Sumário
I. Para os efeitos do art. 1842º, nº 1, al. c) do CC, e para se prevalecer do prazo suplementar de 3 anos, competia à autora alegar o conhecimento de circunstâncias de que pudesse concluir-se não ser filha do marido da mãe após o decurso do prazo objectivo de 10 anos e dentro do prazo de 3 anos que antecederam a propositura da acção;
II. Porém, à autora competia apenas a prova da aquisição desse conhecimento após o decurso do prazo de 10 anos, uma vez que era à ré que, para se prevalecer da caducidade, competia a prova de que o prazo suplementar dos 3 anos referido na segunda parte da al. c) do nº 1 do art. 1842º do CC já se mostrava expirado à data em que a autora intentou a acção;
III. De todo o modo, não tendo a autora alegado sequer que teve conhecimento superveniente, após o decurso do prazo de 10 anos previsto na 1ª parte do art. 1842º do CC, de qualquer circunstância de que pudesse concluir-se que não era filha do marido da mãe, não pode a mesma beneficiar do prazo suplementar dos 3 anos, ficando sujeita, assim, ao prazo de caducidade de 10 anos previsto naquela disposição legal;
IV. Todavia, a referida norma do art. 1842º padece de inconstitucionalidade em virtude de os concretos prazos aí estabelecidos (o de 10 anos e o posterior de 3) implicarem uma restrição desproporcionada e excessiva do direito à identidade pessoal (art. 26º, nº 1, da CRP) em conjugação com o princípio da proporcionalidade ínsito no art. 18º, nº 2, da CRP;
V. A interpretação normativa cuja aplicação se recusa reporta-se ao caso em que, pretendendo a impugnante não apenas a destruição do vínculo resultante do registo mas também o estabelecimento da paternidade em relação a um sujeito, o presumido pai e a mãe da autora já faleceram, sem outros descendentes e o investigado bem como o seu filho biológico faleceram também sem descendência;
VI. Em tal caso, os direitos da filha devem prevalecer sobre o da protecção da família do presumido pai e do investigado.
Decisão Texto Integral
Revista nº 1448/17.7T8VCD.S1
Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça:
AA, casada, residente na Rue ..., França, intentou acção pretendendo a impugnação da paternidade estabelecida em relação a si (com o cancelamento do respectivo assento de nascimento e da avoenga paterna), bem como a investigação de paternidade, contra BB, viúva, residente na Av. ..., ..., pedindo:
a) que se declare que o CC não é o seu pai biológico, eliminando-se tal menção de paternidade que consta do seu assento de nascimento, bem como a respectiva avoenga paterna;
b) que se reconheça e declare que é filha de DD, antecessor da ré BB, devendo, em consequência, ordenar-se o respectivo averbamento no seu assento de nascimento.
Alegou ter nascido no dia ... de Fevereiro de 1953, sendo sua mãe EE, então no estado de casada com CC, desde ... de Julho de 1942.
Porém, afirmou que este CC não é o seu pai biológico, pois que há mais de um ano este e sua mãe viviam em casas e cidades separadas, não mantendo qualquer relação afectiva e amorosa. Aliás, sua mãe, anos antes do nascimento da Autora, tinha passado a viver na casa de DD, viúvo, onde fora trabalhar como empregada doméstica, com este tendo vindo a manter uma relação amorosa. Conclui dizendo que o seu pai biológico é DD e não CC.
Mais alega que CC faleceu no dia ... de Julho de 1957, no estado de casado com EE, não tendo deixado descendentes (apenas se encontrando averbada como sua filha a ora Autora); que EE faleceu no dia ... de Setembro de 1991, no estado de viúva de CC, tendo deixado como sua herdeira a sua única filha ora Autora; que DD faleceu no dia ... de Setembro de 1972, no estado de viúvo de FF, tendo deixado como seu herdeiro o seu filho GG ; que este GG faleceu no dia ... de Maio de 2007, no estado de casado com BB, sem descendentes, tendo deixado como sua herdeira a sua referida mulher, que nessa qualidade é demandada como Ré para a presente acção.
Citada, a ré apresentou contestação por excepção e por impugnação.
Desde logo, e por excepção, alega que a presente acção, tal qual foi configurada pela Autora, comporta duas causas de pedir e dois pedidos que se reconduzem, no fundo, a duas acções: uma de impugnação da paternidade e uma outra de investigação e reconhecimento da paternidade.
Tendo já ocorrido a morte da mãe e do presumido pai a acção deveria de ter sido instaurada ou prosseguir contra as pessoas referidas no art. 1844º do Código Civil, devendo, na falta delas – como, aliás, também ocorre no caso vertente -, ser nomeado curador especial. Conclui dizendo não ter legitimidade passiva para intervir na acção de impugnação da paternidade, devendo a Autora de ser convidada a proceder à regularização subjectiva da instância
Por outro lado, alegou que é pressuposto processual para a interposição da acção de investigação e reconhecimento da paternidade que, previamente, tenha sido interposta e julgada procedente acção de impugnação da paternidade, e que na sua decorrência, o registo da filiação quanto ao presumido pai tenha sido declarado nulo, o que não ocorreu no caso vertente.
Mais excepcionou a caducidade do direito à acção, quer quanto à impugnação, quer quanto à investigação prevista no art. 1842º, nº 1, al. c). A esse propósito alegou que a Autora nasceu no dia 10 de Fevereiro de 1953 e atingiria a sua maioridade no dia 10 de Fevereiro de 1974, dado que, à data, ainda a idade da maioridade estava estabelecida nos 21 anos. Porém, tendo casado catolicamente com HH em ... de Setembro de 1971, isso levou à sua emancipação naquela data, em que tinha 18 anos, 7 meses e 2 dias,
Assim, apenas podia intentar a presente acção até à idade de 28 anos, 7 meses e 2 dias. Logo, como à data da interposição da presente acção, em 28 de Novembro de 2017, já tinha atingido a idade de 64 anos, encontrava-se largamente ultrapassado o prazo de 10 anos para a propositura da acção, estando caducado o direito da Autora para interpor a acção de impugnação da paternidade, bem como a de investigação.
No mais, impugnou o alegado bem como os documentos juntos.
Foi proferido o despacho a convidar a autora a suprir o vício da ilegitimidade, na sequência do que foi requerida e admitida a intervenção principal passiva para o exercício da função de curador de II.
Foi realizada audiência prévia no âmbito da qual foi proferido despacho saneador decididas questões prévias, identificado o objecto do litígio e seleccionados os temas de prova, tendo sido julgado improcedente a invocada excepção da legitimidade e relegada para a sentença a apreciação da excepção da caducidade (fls. 84 a 89 – refª ...25).
Foram interpostos recursos relativamente aos despachos que determinaram a realização da perícia com exumação de cadáver.
Tais recursos foram julgados improcedentes e confirmadas as decisões.
Foi realizada a perícia cujo relatório foi junto de fls. 514 e 515.
Realizada a audiência de julgamento, veio no seu termo a ser proferida sentença que julgou “totalmente procedente a excepção de caducidade do direito à acção e, consequentemente, (…) improcedente o pedido de impugnação e de investigação da paternidade formulado nestes autos por AA, absolvendo a ré BB do mesmo.”
Desta sentença foi interposto recurso de apelação, mas a Relação negou provimento a tal recurso, confirmando a sentença.
Não se conformou, de novo, a autora que interpôs recurso de revista excepcional, formulando as seguintes conclusões:
“a. Segundo o pensamento da Recorrente, é ao Réu que cabe alegar e provar a caducidade, nos termos do artigo 1842 n.º 1 alínea c), ex vi artigo 342.º e 343º do Código Civil.
b. A questão objecto do presente recurso consiste em saber se a propositura da acção dentro do prazo de 3 anos traduz um facto constitutivo do direito do autor, recaindo a respectiva prova sobre este; ou se essa propositura, passado esse prazo, constitui um facto extintivo, caso em que a prova impende sobre o réu (art. 342.º, n.º 1 e 2 e 343 n.º 2 do CC).
c. A propósito das ações de investigação da paternidade, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 401/2011, de 22.9.2011, esclareceu que «os prazos de três anos referidos nos transcritos n.º 2 e 3 do artigo 1817.º do Código Civil, contam-se para além do prazo fixado no n.º 1, do mesmo artigo, não caducando o direito de proposição da acção antes de esgotados todos eles. [ Isto significa que o prazo de dez anos após a maioridade ou emancipação previsto no n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil não funciona como um prazo cego, cujo decurso determine inexoravelmente a perda do direito ao estabelecimento da paternidade, mas sim como um marco terminal de um período durante o qual não opera qualquer prazo de caducidade].
d. O mesmo se verifica em relação à impugnação da paternidade, conforme decidido no Acórdão fundamento (Ac. do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2021, de 15 de Novembro de 2021 no âmbito do processo n.º 2947/12.2TBVLG.P1.S2), e devidamente supra citado[9 Nas acções que devam ser propostas dentro de certo prazo a contar da data em que o autor teve conhecimento de determinado facto, cabe ao réu a prova do prazo já ter decorrido, salvo se outra for a solução especialmente consignada na lei] no ponto n.º 50 das presentes alegações.
e. Idêntico raciocínio tem que ser feito em relação às ações de impugnação de paternidade: ou seja, à Recorrente incumbe fazer a prova do direito que se pretende ver reconhecido na acção (de que não é filha do pretenso pai) e não já dos factos extintivos do exercício do direito de acção.
f. O decurso do prazo que a lei faculta à Autora/Recorrente para exercer o direito implica a caducidade desse direito – é um facto extintivo desse direito – competindo à Ré a respectiva prova (n.º 2 do artigo 342 e 343.º n.º 2 do CC). [10 Genericamente, competirá ao pretenso pai alegar e demonstrar que o investigante, quando propôs a ação já tinha conhecimento há mais de 3 anos de factos ou circunstâncias que justificaram a sua propositura]
g. Com efeito, conforme resulta diretamente da norma, e como entende o Acórdão Fundamento, é à Ré que se exige a demonstração de factos extintivos.
h. Estando em causa – como está –, a "exceção perentória de caducidade", a prova dos factos integradores do decurso do prazo preclusivo do exercício do direito à impugnação de paternidade cabe à Ré.
i. A Recorrente entende que, com a decisão do Acórdão recorrido, terem sido clamorosamente desconsideradas as regras das quais decorre o princípio do dispositivo (artigo 5º do CPC), assim como o teor, claro e cristalino, do artigo 343.º, n.º 2, do Código Civil.
j. Com o devido respeito, decidiu-se mal no douto Acórdão Recorrido, tendo sim o douto Acórdão Fundamento efetuado, no entendimento do Recorrente, à correta aplicação do Direito à situação em análise.
k. A Ré é que teria de fazer a alegação e prova da ultrapassagem do prazo de 3 anos, logrando, desse modo, provar um facto extintivo, passível de produzir a cessação do direito da Autora. [11 Não consignando a Lei uma diferente forma de distribuição do ónus da prova, compete ao pretenso pai demonstrar que o investigante, quando propôs a ação, já tinha conhecimento há mais de três anos]
l. Por seu turno, a Recorrente alegou todos os factos dos quais dependia a impugnação e posterior estabelecimento da filiação (por aplicação do artigo 1817.º n.º 2 do CC).
m. Impõe-se como única conclusão juridicamente legítima, a constatação de que não ocorreu a caducidade do direito do Recorrente.
n. Verificou-se, assim, contradição entre o Acórdão Recorrido e o Acórdão Fundamento.
o. A jurisprudência do Acórdão Fundamento deve prevalecer na Ordem Jurídica, na medida em que, ao contrário da decisão recorrida, interpreta certamente as normas e princípios em causa, acautelando os interesses de aplicação do Direito.
p. Tanto mais que não é apresentada pelo Tribunal da Relação qualquer fundamentação jurídica para justificar quais os motivos para se exigir à Autora alegar uma excepção à sua própria pretensão para que depois a Ré a provar.
q. Ou seja, a Autora é que teria de alegar e provar em que altura é que adquiriu um tal conhecimento. Teria que provar a tempestividade da ação. Mas é claro que não pode ser assim. [12 Pelo contrário, é à Autora que cabe a afirmação e prova dos factos que servem de pressuposto ao efeito jurídico pretendido, tem o ônus de afirmar e provar os factos (constitutivos) correspondentes à situação de facto traçada na norma substantiva em que funda a sua pretensão. E por seu turno, à Ré incumbirá, a afirmação e prova dos factos correspondentes à previsão (abstrata) da norma substantiva em que se baseia a causa impeditiva, modificativa ou extintiva do efeito pretendido pelo autor.]
r. Deste modo, constituindo a caducidade pelo decurso do tempo um facto extintivo à procedência da pretensão da Autora, cabia à Ré alegar factos que indicassem que a Autora adquiriu conhecimento em momento anterior aos 3 anos que antecederam a apresentação da ação.
s. É o que resulta, aliás, dos arts. 342.º, n.º 2 e 343.º, n.º 2 do C. Civil, que, referindo-se embora ao ónus da prova, subentendem naturalmente um prévio ónus de afirmação.
t. Ora, não tendo a Ré alegado na sua contestação de já ter decorrido três anos sobre o conhecimento quando a Autora intentou a acção, é óbvio que o processo se encontrava em condições de receber o devido sentenciamento, e este era no sentido da fatal improcedência da exceção da caducidade.
u. Assim, deve ser julgado procedente o presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e decidindo-se que nos termos da alínea c) do n.º 1, do artigo 1842.º do Código Civil, é à Ré que compete alegar e provar que a Autora teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filha do marido da mãe há mais de três anos, antes da propositura da ação.
NORMAS VIOLADAS:
Proferindo a sentença de que ora se recorre, o Tribunal a quo violou as seguintes disposições legais:
– Código Civil: Art.º 264º, Artº 329.º, Art.º 342.º n.º 1 e 2, Art.º 343.º n.º 2, Art.º 1815.º, Art.º 1817.º n.º 2, 3 e 4, , Art.º 1842.º, Art.º 1848.º e Art.º 1873.º
– Código de Processo Civil: Art.º 5.º, Art.º 615.º, n.º 1, d) e Art.º 615.º, n.º 1, b)
Termos em que deve o presente Recurso ser julgado procedente, por provado, devendo, por conseguinte, ser revogada o acórdão de que ora se recorre.
Nesse sentido deverá ser proferido um Acórdão que o substitua e que, por sua vez, determine a que nos termos da alínea c) do n.º 1, do artigo 1842.º do Código Civil, é à Ré que compete alegar e provar que a Autora teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe há mais de três anos, antes da propositura da ação.”
Por sua vez, a ré/apelada contra-alegou no seguinte sentido (conclusões):
“ 1 – A verificação da dupla conformidade tem de ser aferida pela questão objecto do recurso;
2 – Neste sentido, verifica-se que não existe diferente fundamentação entre as decisões proferidas pela Primeira Instância e o Tribunal da Relação do Porto, sendo que, para além da decisão deste último ter sido confirmatória daquela, a decisão mereceu a unanimidade do colectivo que a proferiu.
3 – A questão objecto do presente recurso encontra-se consensualizada na Jurisprudência, pelo que não se verifica o pressuposto da al. a), do nº 1, do art. 672º, do C.P.C.;
4 – Em consequência, esse consenso é de molde a afastar o pressuposto da al. b), do nº 1, do art. 672º, do C.P.C., já que se presume que os Tribunais orientam a Jurisprudência por decisões justas, que respeitam o Direito e os princípios axiológicos-normativos dominantes na Sociedade;
5 – Ademais, quanto a este conspecto a Recorrente limita-se a uma mera reprodução do preceito legal ao qual adita generalidades, juízos conclusivos e de valor
6 - A exigência de que a Autora, na sua P.I., tivesse carreado para os autos os factos que justificassem a interposição tardia da acção de impugnação e investigação da paternidade – factos estes que são do seu estrito conhecimento pessoal –, eximindo-a, ainda, da prova de que os mesmos não tinham ocorrido há mais de três anos, não é de molde a provocar qualquer obstáculo ao seu direito à identidade e verdade biológica.
7 – Inexiste qualquer identidade entre as questões fundamentais decididas na douta decisão recorrida e no acórdão pretensamente fundamento invocado pela Recorrente, bem como inexiste qualquer identidade fáctica e de forma de interposição das lides sobre que se pronunciaram, o que implica o afastamento da verificação do pressuposto previsto na al. c), do nº 1, do art. 672º, do C.P.C..
8 – Afastada que está a verificação de todos os pressupostos que legitimariam a Recorrente a lançar mão do recurso de revista excepcional, deve o recurso pela mesma interposto ser julgado inadmissível.
9 - Com todo o devido respeito, a tese defendida pela Recorrente não tem qualquer fundamento de Direito, nem é sufragada pelo pretenso Acórdão fundamento.
10 -A Recorrente baralha conceitos, optando por confundir o ónus que sobre si impende de alegar no petitório inicial os factos que justificam a propositura da acção para além do prazo “normal” de 10 anos, com o ónus, este sim, que impende sobre o Réu de, mediante tal alegação, a contraditar e provar que os prazos especiais de 3 anos foram excedidos.
11 - No art. 1817º, nº 3, a1. b) e no art. 1842º, nº 1, al. c), IIª parte, ambos do C.C. o legislador previu cláusulas de salvaguarda que permitem a interposição das acções de investigação e de impugnação da paternidade para além do prazo “normal” de 10 anos fixado no art. 1817º, nº 1 e no art. 1842º, nº 1, al. c), Iª parte, ambos do C.C., contanto que o Autor cumprisse o ónus de alegar factos que tornassem a propositura tardia da acção desculpável ou justificável (maxime, o desconhecimento, sem culpa, da identidade do progenitor, o conhecimento após os 10 anos em que atingiu a maioridade de factos que o levassem a concluir que o marido da mãe não é o seu pai, a existência de reais obstáculos práticos ou sociais à propositura da acção).
12 - Ou seja, uma vez decorridos os prazos de caducidade referidos no art. 1817º, nº 1 e no art. 1842º, nº 1, al. c), Iª parte, ambos do C.C., e pretendendo o Autor socorrer-se das situações previstas no art. 1817º, nº 3, a1. b) e no art. 1842º, nº 1, al. c), IIª parte, ambos do C.C., deve alegar na petição inicial as circunstâncias em que teve conhecimento dos factos que justificam a propositura da acção e designadamente que esse conhecimento lhe adveio já depois de decorrido o prazo “normal” de 10 anos e, em particular, que o mesmo ocorreu nos três anos que a antecederam, sob pena de, não o fazendo e sendo a caducidade de conhecimento oficioso, se arriscar a ver a mesma decretada por manifesto decurso do previsto prazo de caducidade de 10 anos após ter atingido a maioridade ou ser emancipado.
13 - O que não compete ao Autor provar, uma vez alegados aqueles factos e circunstâncias, é que esses prazos especiais de 3 anos não foram excedidos.
14 - De facto, perante a alegação da referida factualidade, compete ao Réu provar que o autor, quando propôs a acção, já tinha conhecimento, há mais de três anos, dos factos e das circunstâncias que justificaram a sua propositura.
15 - Embora esta questão não seja o objecto do AUJ que a Recorrente invoca para sustentar a sua posição, o exposto é a solução que inequivocamente decorre do teor desse mesmo AUJ, quando refere explicitamente – numa das passagens que a Recorrente se esqueceu de transcrever, mas que é a única em que verdadeiramente é tratada directamente a questão ora sub judice: “É verdade que uma vez decorrido o prazo de caducidade referido no n.º1do artigo 1817.º e pretendendo o investigante socorrer -se de alguma das situações previstas no n.º 3, designadamente da al. b), deve alegar na petição inicial as circunstâncias em que teve conhecimento dos factos que justificam a propositura da acção e designadamente que esse conhecimento lhe adveio já depois de decorrido o prazo referido no n.º 1 e em particular que o mesmo ocorreu nos três anos que a antecederam, sob pena de, não o fazendo e sendo a caducidade do conhecimento oficioso se arriscar a ver tal caducidade declarada por ser manifesto o decurso do prazo previsto no n.º 1 do citado preceito”.
16 - Por isso mesmo é que o invocado AUJ se refere às acções intentadas/propostas nos termos do art. 1817º, nº 3, al. b) do C.C. – o que também vale para as acções de impugnação da paternidade.
17 – O que a Recorrente bem sabe e se retira do comportamento processual que assumiu em sede do recurso que deduziu à decisão proferida pela Primeira Instância – quando mediante expediente tentou forçar uma inexistente violação do princípio do contraditório, precisamente porque atentou não ter alegado os factos/circunstâncias que a legitimavam a intentar a presente acção aos 64 anos.
18 - Muito embora impenda sobre o Réu o ónus de alegar e provar os factos demonstrativos de que a acção foi intentada decorridos mais de três anos sobre os factos que justificaram a acção, competia, previamente, à Autora alegar os factos e circunstâncias que justificassem a interposição tardia da acção, por forma a poder beneficiar dos prazos de 3 anos após o conhecimento de que não será filha do pai registado previstos quer nas diversas alíneas, do nº 3, do art. 1817º do C.C. quer na IIª parte, da al. c), do art.1842º, do C.C., aplicando-se esta mesma exigência quer ao pedido de impugnação, quer ao pedido de investigação da paternidade.
19 - Não o tendo feito a Recorrente, como demonstradamente decorre dos elementos dos autos e dos articulados que neles produziu, nunca poderia a Ré contra-alegar e provar factos demonstrativos da caducidade do que não foi invocado pela Autora.
20 - Claro está que cabe às partes – neste caso à Autora - essa alegação, já que se trata de factos essenciais que constituem a causa de pedir da acção, sendo, pois, dever da Autora trazer ao processo os factos que sustentam as respetivas pretensões, não podendo o tribunal substituir-se à mesma nessa alegação, muito menos deduzindo da posição da contraparte (no caso, da contestação da Ré) um comportamento não alegado sequer pela Autora, ou fazer recair sobre a Ré o ónus da alegação de factos que apenas poderiam ser do conhecimento daquela – como a Recorrente parece defender na sua peça recursiva – ou conjecturar e impugnar factos que por aquela nem sequer foram alegados.
21 - Analisado o teor da sua P.I., da articulação da Autora resulta que a mesma não invocou qualquer facto ou circunstância que a tenha impedido de propor a acção, pelo menos durante os 10 anos seguintes a ter atingido a maioridade ou emancipação, só o vindo fazer agora, com 64 anos à data da propositura da acção.
22 – Desta feita, o prazo a aplicar, para aferir da alegada caducidade da acção de impugnação de paternidade é o de 10 anos a contar da maioridade ou da emancipação da autora.
23 – A Recorrida alegou e provou essa excepção, cumprindo o ónus que sobre si impendia.
24 – O Douto Acórdão recorrido também assim o entendeu e, por isso, confirmou a decisão proferida pela Primeira Instância que julgou procedente as excepções de caducidade arguidas pela Recorrida.
25 – A douta decisão recorrida não violou as normas legais invocadas pela Recorrente.
26 – O Direito aplicado é o próprio e conforme aos factos dados como provados, não merecendo a decisão sob recurso qualquer reparo ou censura, seja relativamente a toda a decisão da matéria de facto e sua motivação, seja quanto ao Direito aplicado.
27 – Em consequência, deve a Sentença recorrida ser sustentada e confirmada por douto Acórdão a proferir por este Colendo Tribunal ad quem.
Nestes termos, e nos mais de Direito que mui doutamente suprirão:
“a) julgando o recurso inadmissível, por falta dos pressupostos exigidos para a sua interposição e apreciação;
Ou, caso assim o não entendam,
b) mantendo a decisão recorrida e negando provimento ao recurso(…)”
O relator proferiu o seguinte despacho:
“A autora AA intentou acção de impugnação e de investigação de paternidade, no sentido de declarar que CC não é seu pai biológico, eliminando essa paternidade do registo, e reconhecer como seu verdadeiro pai DD.
A ré excepcionou a caducidade da acção de impugnação e da investigação.
A sentença, com apelo ao art. 1817º, nº 1 e nº 3, al. c) do CC, considerou que a acção de impugnação e de investigação de paternidade caducou, não tendo a autora alegado quaisquer factos que justificassem a propositura tardia da acção.
Diferente foi o caminho trilhado pelo acórdão da Relação.
Considerou que o direito de impugnação da paternidade caducou nos termos do art. 1842º, nº 1, al. c) do CC e que, mantendo-se o registo da paternidade, tal facto impede que se abra o prazo de caducidade de três anos subsequentes ao cancelamento do registo da paternidade presumida, estabelecido no nº 2 do art. 1817º aplicável por via do art. 1873º, sendo certo que jamais estaria em causa a aplicação das hipóteses previstas nos nº 1 e 3 (aplicados pela 1ª instância).
A fundamentação é, pois, radicalmente diferente, não se justificando, assim, a admissão do recurso de revista como excepcional, o qual pressuporia a existência de dupla conforme, inexistente no caso em apreço.
Pelo exposto, admite-se o recurso de revista em termos gerais, nada obstando ao seu conhecimento.
Notifique.”
Cumpre decidir.
A matéria de facto dada como provada nas instâncias e que não suscitou reparo é a seguinte:
“Factos Provados da petição inicial
1. A autora, AA, nascida no dia ... de Fevereiro de 1953, é filha de EE.
2. Consta inscrito no seu assento de nascimento como sendo seu pai CC.
3. Á data do nascimento da autora a sua mãe EE era casada com CC, tendo estes contraído casamento entre si em ... de Julho de 1942.
4. CC faleceu no dia ... de Julho de 1957, no estado de casado com EE, não tendo deixado descendentes.
5. EE faleceu no dia ... de Setembro de 1991, no estado de viúva de CC, tendo deixado como sua herdeira a sua única filha ora Autora.
6. DD faleceu no dia ... de Setembro de 1972, no estado de viúvo de FF, tendo deixado como seu herdeiro o seu filho GG.
7. GG faleceu no dia ... de Maio de 2007, no estado de casado com BB, sem descendentes.
Da contestação:
8. A Autora se casou catolicamente com HH em... de Setembro de 1971.
9. Consta do assento de nascimento da Autora que a sua mãe, EE, e o seu pai, CC, à data do seu nascimento, residiam na mesma morada: Rua ..., na ....
10. No jazigo onde se encontram depositados os restos mortais de DD encontram-se inumados JJ, inumada a .../04/1978; KK, inumada a .../06/1994; e GG, inumado a .../05/2007.
Mais se provou que:
11. Foi inviável a realização de perícia quanto a DD.
12. No âmbito dos presentes autos foi efectuada perícia de investigação biológica de paternidade com colheitas biológicas a GG onde se conclui que não permite excluir GG como irmão consanguíneo de AA e não permite excluir o pai de GG da paternidade de AA sendo o IP previamente determinado conduziu a uma probabilidade W=99,97% considerando uma probabilidade a priori de 0,5, cfr. teor de fls. 514 e 515.
13. A presente acção deu entrada em 28 de Novembro de 2017 (data rectificada, conforme infra determinado)”
Foram dados como não provados os seguintes factos:
“Da petição inicial:
a) Há mais de um ano que a mãe da autora e o CC residiam em casas e cidades separadas (a sua mãe residia na cidade da ... e CC em ...), não mantendo qualquer relação afectiva e amorosa.
b) Tendo a sua mãe, anos antes do nascimento da Autora passado a viver na casa de DD, à data viúvo, para onde foi trabalhar como empregada doméstica.
c) E com este manteve uma relação amorosa (art. 10º).
Da contestação:
d) Que a mãe da Autora tinha, à data do seu nascimento, a profissão de conserveira.
e) A referida EE é pessoa completamente desconhecida de DD, da sua família, designadamente GG seu filho e defunto marido da aqui Ré, e até de amigos;
f) Com quem, todos eles, nunca tiveram qualquer contacto;
g) Também a Autora é pessoa completamente desconhecida de DD, da sua família, designadamente GG seu filho e defunto marido da aqui Ré, e até de amigos;
h) Com quem, todos eles, nunca tiveram qualquer contacto;
i) Sendo que a primeira vez que a Ré ouviu falar da Autora, de sua mãe ou do seu pai, foi quando tomou contacto comos autos.”
O Direito:
A autora intentou acção de impugnação e investigação de paternidade.
A questão que se coloca é a de saber se, nos termos e para os efeitos da alínea c) do n.º 1 do artigo 1842º do Código Civil, para obter, previamente, o desiderato da impugnação da paternidade do presumido pai, ex-marido da mãe, a Autora devia ter alegado que tinha tido conhecimento, no decurso do prazo dos 3 anos anteriores à propositura da acção, de circunstâncias de que se pudesse concluir que não era filha do marido da mãe ou se era à Ré (cônjuge sobreviva do filho do investigado) que competia a alegação (e subsequente prova) de que ela, Autora, tinha tido conhecimento daquele tipo de circunstâncias em momento anterior ao prazo de 3 anos que antecedeu a apresentação da acção.
No acórdão recorrido, a Relação sustentou que, para obstar à caducidade resultante do decurso do prazo de 10 anos, era à Autora que competia a alegação de que tinha tido conhecimento, nos últimos 3 anos (anteriores à propositura da acção) de circunstâncias de que pudesse concluir-se de que não era filha do marido da mãe e que não era à Ré que, para se prevalecer do prazo de 10 anos, competia o ónus de alegar que a Autora tinha tido conhecimento daquelas circunstâncias fora do período de 3 anos anteriores à propositura da acção. E, como a Autora nada alegou no sentido de que tinha tido conhecimento, nos últimos 3 anos ( anteriores à propositura da acção) de circunstâncias de que pudesse concluir-se de que não era filha do marido da mãe, aplicou o prazo de caducidade dos 10 anos previsto no nº 1, julgando caducada a acção de impugnação de paternidade.
A propósito do ónus de alegação e prova, e no que respeita à interpretação do art. 1817º, nº 3, al. b) e 1842º do CC, alega, por sua vez, a recorrente que existe contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento- o AUJ nº 4/2021, de 17 de Setembro de 2020. Argumenta que o acórdão recorrido sufragou o entendimento de que cabe à autora a alegação e a prova do momento em que ocorreu o conhecimento de circunstâncias de não ser filha do marido da mãe (reportado ao art. 1817º do CC).
Porém, o acórdão não disse isso. O acórdão recorrido referiu que o AUJ “só fixou jurisprudência quanto à repartição do ónus da prova, não se alargando à imposição de um ónus de alegação quase impossível de satisfazer”, remetendo para o que se escreveu no dito AUJ “: É verdade que uma vez decorrido o prazo de caducidade referido no n.º 1 do artigo 1817.º e pretendendo o investigante socorrer-se de alguma das situações previstas no n.º 3, designadamente da al. b), deve alegar na petição inicial as circunstâncias em que teve conhecimento dos factos que justificam a propositura da acção e designadamente que esse conhecimento lhe adveio já depois de decorrido o prazo referido no n.º 1 e em particular que o mesmo ocorreu nos três anos que a antecederam, sob pena de, não o fazendo e sendo a caducidade do conhecimento oficioso se arriscar a ver tal caducidade declarada por ser manifesto o decurso do prazo previsto no n.º 1 do citado preceito. Mas já não lhe compete provar que esse prazo especial de três anos não foi excedido.” Para depois ( o acórdão recorrido) acrescentar: “Assim, transpondo a solução desse AUJ para a hipótese de uma acção de impugnação como a presente, nem por isso se pode considerar que cabia à ré alegar que não foi nos últimos 3 anos que a autora soube de circunstâncias que lhe trouxeram o conhecimento de não ser filha do marido da mãe. Portanto, na falta dessa alegação, o prazo a aplicar, para aferir da alegada caducidade da acção de impugnação de paternidade é o de 10 anos a contar da maioridade ou da emancipação da autora.”
Assim, o acórdão entendeu que a Autora devia ter alegado na petição inicial ( e não provado, como diz a recorrente) as circunstâncias em que teve conhecimento dos factos que justificam a propositura da acção e designadamente que esse conhecimento lhe adveio já depois de decorrido o prazo referido no n.º 1 e em particular que o mesmo ocorreu nos três anos que a antecederam E como a Autora nada alegou, a Relação, aplicando o prazo de caducidade dos 10 anos previsto no nº 1, julgou caducada a acção de impugnação de paternidade.
Argumenta a recorrente que o AUJ, tirado a propósito do art. 1817 do CC, considerou que “competia ao pretenso pai ( ou mãe) alegar e demonstrar que o investigante, quando propôs acção já tinha conhecimento há mais de 3 anos de factos ou circunstâncias que justificaram a sua propositura”; que “ ao A. compete fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado… e não dos factos constitutivos do exercício do direito de acção “; e que idêntico raciocínio deve ser feito em relação às acções de impugnação de paternidade: à recorrente incumbe apenas fazer a prova do direito que pretende ver reconhecido na acção ( de que não é filha do pretenso pai) e não já dos factos extintivos do direito de acção. Assim, para a recorrente, constituindo a caducidade pelo decurso do tempo um óbice à procedência da pretensão da autora/recorrente, cabia à ré/recorrida alegar factos que indiciassem que a autora adquiriu o conhecimento em momento anterior aos 3 anos que antecederam a apresentação da acção, por ser isso que resulta do art. 342º, nº 2 e 343º, nº 2 do CC, que referindo- se embora ao ónus da prova, subentende naturalmente um prévio ónus de afirmação.
Mas não parece ter razão, no plano da interpretação do AUJ, o qual, relembra-se, uniformizou jurisprudência nos seguintes termos: “ Nas acções de investigação de paternidade, intentadas nos termos da alínea b) do nº 3 do art. 1817 do CC, compete ao réu/investigado o ónus de provar que o prazo de três anos referidos no aludido normativo já se mostrava expirado à data em que o investigante intentou a acção “.
É verdade que o AUJ refere que “decorre do nº 1 desse preceito [art. 342] que ao A. compete fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado, ou seja, do direito que se pretende ver reconhecido na acção e não já dos factos constitutivos do exercício do direito de acção“.
Porém, o AUJ não dispensa o A. do ónus de alegar as circunstâncias que lhe permitem prevalecer-se do prazo mais longo dos 3 anos após os 10. O que o AUJ dispensa, isso sim, é o A. de fazer a prova de que teve conhecimento das ditas circunstâncias dentro do período dos 3 anos anteriores à propositura da acção.
Senão vejamos.
Consta do AUJ o seguinte:
“Em todo o caso na hermenêutica dos princípios gerais que regem a interpretação das leis e o ónus da prova, cremos que o entendimento defendido por Guilherme de Oliveira(16) ainda antes da alteração introduzida pela Lei n.º 14/2009, na esteira da posição anteriormente perfilhada por Pereira Coelho, é o que melhor respeita e compatibiliza tais princípios. Defendem estes ilustres mestres, a propósito do prazo especial previsto nos 3 e 4 do art. 1817.º (redacção anterior) para as situações de haver escrito a reconhecer o filho ou tratamento como filho, mas com inteira aplicação às situações hoje comtempladas no n.º 3 vigente, que nesses casos «Pode repartir-se o ónus segundo as regras gerais, atribuindo-se ao autor a prova do facto constitutivo do seu direito de agir ao abrigo de um prazo especial - o tratamento - e atribuindo-se ao réu a prova do facto extintivo desse direito - o facto de o autor ter proposto a acção mais do que (três anos) sobre a cessação do tratamento». No domínio da actual redacção do artigo 1817.º do CC, esta posição, foi reiterada recentemente por Guilherme de Oliveira no seu Manual de Direito da Família, Almedina, Coimbra, 2020, pp. 438-439. É essa também a posição defendida por Rodrigues Bastos(17), para quem a "solução parece estar de harmonia com o disposto no art. 342.º, n.º 2, visto tratar-se fundamentalmente da caducidade do direito de acção, além da maior facilidade da prova de um facto positivo. No mesmo sentido se pronuncia Rita Lynce de Faria, para quem esta norma vem "qualificar a caducidade do direito de propor a acção como um facto extintivo" (.). "Apesar de ser sustentável que o não decurso do prazo de caducidade seja configurado como facto constitutivo do direito do autor, parece ter sido determinante para a opção do legislador a questão da extrema dificuldade da prova de factos negativos. Para o autor seria extremamente difícil demonstrar que não teve conhecimento de certo facto em momento algum antes de determinada data enquanto para o réu será mais fácil demonstrar que mim determinado momento concreto o autor já tinha conhecimento do facto"(18). Também Amorim Pereira(19), que se debruça desenvolvidamente sobre esta questão (face à redacção saída da Reforma de 1977), aceita que a prova do decurso do prazo previsto naqueles normativos, compete ao réu, por ser um prazo de caducidade. Observa que "é lícito defender-se que o disposto nos n.os 3 e 4(20) do artigo 1817.º do Código Civil não constitui qualquer espécie de prorrogação legal do prazo estabelecido no n.º 1 do mesmo artigo, regulando apenas desvios ao princípio geral, no caso de ocorrência de especiais situações impeditivas da utilização do prazo normal". E prossegue que «...é lícito defender-se que o disposto nos números 3 e 4 do artigo 1817º do Código Civil não constitui qualquer espécie de prorrogação legal do prazo estabelecido no n.º 1 do mesmo artigo, regulando apenas desvios ao princípio geral, no caso da ocorrência de especiais situações impeditivas da utilização do prazo normal.
Deste jeito, não poderá deixar de cometer-se ao Réu o encargo da prova da caducidade, que tem sempre a natureza de facto extintivo(21).
Por outro lado, poderá observar-se que, sendo o direito sujeito a caducidade tendencialmente ilimitado no tempo, será um facto novo, extrínseco ao próprio direito, funcionando no processo como uma excepção, cabendo por consequência ao Réu a sua prova»(22).
No entender de VAZ SERRA, «parece preferível conceber a expiração do prazo como um facto extintivo do direito, aplicando-se, pois, ao Réu, a regra de lhe caber o respectivo ónus da prova, até por questões de razoabilidade.
Para este Autor, se é certo que a solução tem o inconveniente de, por não fazer o Réu a prova, a acção poder ser admitida fora do prazo legal, também a solução oposta tem o inconveniente de, por não fazer o Autor a prova da inobservância do prazo, poder não ser admitida uma acção dentro do prazo legal. Risco que seria mais grave do que aquele, porque cerceia um direito(23).
Adianta ainda VAZ SERRA, em defesa da mesma tese, «que será muitas vezes mais fácil ao Réu provar a inobservância do prazo que ao Autor provar a observância dele, nomeadamente nos casos - como o da existência de escrito - em que o início do prazo coincide com o conhecimento ou o dever do conhecimento de um facto»(24).
O acórdão define um “ prazo geral de caducidade [no nº 1], assumindo-se os prazos previstos no número 2 e número 3 como prazos especiais face àquele prazo geral e funcionando o prazo estabelecido no número 1 como a delimitação de um período durante o qual não opera qualquer prazo de caducidade “
E mais adiante:“ O prazo de 10 anos após a maioridade ou emancipação consagrado no artigo 1817º, nº 1 do Código Civil revela-se pois como suficiente para assegurar que não opera qualquer prazo de caducidade para a instauração pelo filho duma ação de investigação de paternidade durante a fase da vida deste em que ele poderá ainda não ter a maturidade, a experiência de vida e a autonomia suficientes para sobre esse assunto tomar uma decisão suficientemente consolidada».
Não há, pois, um prazo regra, e um prazo excepção, como já vinha afirmando Amorim Pereira, mas sim um duplo prazo de caducidade ou, seguindo a perspectiva do Tribunal Constitucional, um prazo de caducidade e a definição de um período em que ele não opera. Assim não fará muito sentido afirmar-se que os prazos de caducidade previstos no n.º 3 do artigo 1817, configuram contra-excepções ou factos impeditivos da caducidade prevista no n.º 1 do mesmo preceito.
É verdade que uma vez decorrido o prazo de caducidade referido no n.º 1 do artigo 1817.º e pretendendo o investigante socorrer-se de alguma das situações previstas no n.º 3, designadamente da al. b), deve alegar na petição inicial as circunstâncias em que teve conhecimento dos factos que justificam a propositura da acção e designadamente que esse conhecimento lhe adveio já depois de decorrido o prazo referido no n.º 1 e em particular que o mesmo ocorreu nos três anos que a antecederam, sob pena de, não o fazendo e sendo a caducidade do conhecimento oficioso se arriscar a ver tal caducidade declarada por ser manifesto o decurso do prazo previsto no n.º 1 do citado preceito. Mas já não lhe compete provar que esse prazo especial de três anos não foi excedido. A prova dum facto negativo, com a natureza deste, quase indeterminado constitui uma prova diabólica, quase inultrapassável, a menos que haja excessiva complacência por parte das instâncias. Com efeito será muito difícil conseguir demonstrar, mesmo com um grau de certeza mínimo, que alguém não teve conhecimento de um facto antes de certa data (a menos que esse conhecimento antes dessa data seja impossível). Mas este argumento ainda que relevante no contexto da problemática da caducidade das acções de estabelecimento da filiação, por constituir um obstáculo acrescido no direito à identidade e à verdade biológica não decisivo. O que é decisivo é que a lei estabeleceu um prazo contado de "dies a quo" do conhecimento de certo facto e este prazo é indiscutivelmente um prazo de caducidade, cabendo a demonstração desta ao réu.”
Continua, depois, o AUJ:
“Na verdade, quanto a este último aspecto é indiscutível a aplicação do disposto no artigo 343.º, n.º 2, do C. Civil, o qual dispõe o seguinte:
Nas acções que devam ser propostas dentro de certo prazo a contar da data em que o autor teve conhecimento de determinado facto, cabe ao réu a prova do prazo já ter decorrido, salvo se outra for a solução especialmente consignada na lei.
Na generalidade dos casos em que o prazo de caducidade de uma acção se conta a partir do "dies a quo" do conhecimento de certo facto, a jurisprudência deste STJ vem decidindo uniformemente (com excepção do caso que ora nos ocupa - das investigações de paternidade/maternidade) que o ónus de provar que o dito prazo já se mostrava excedido à data da propositura da acção, compete ao Réu. Acontece assim nas acções de preferência a que se reporta o artigo 1382.º do CC(25), nas acções de responsabilidade civil contratual contra o empreiteiro para eliminação de defeitos prevista nos artigos 917.º, 1224.º e 1225.º do CC(26) e em muitas outras sujeitas a prazo de caducidade. Também a doutrina vai nesse sentido(27). Aliás este entendimento está em perfeita sintonia com a repartição do ónus da prova estabelecido no n.º 1 e 2 do artigo 342.º do CC. Na verdade, decorre do n.º 1 desse preceito que ao A. compete fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado, ou, seja do direito que se pretende ver reconhecido na acção e não já dos factos constitutivos do exercício do direito de acção. O decurso do prazo que a lei faculta ao A. para exercer o direito implica a caducidade desse direito - é um facto extintivos desse direito - competindo ao R. a respectiva prova (n.º 2 do artigo 342º e nº 2 do 343º do CC).
O legislador, nas diversas alterações que operou, teve oportunidade de estabelecer regras diferentes quanto à prova da caducidade. Mas a verdade é que não o fez (e quando quis fazê-lo, como sucedeu no n.º 4 do actual artigo 1817.º e no n.º 6 do redacção anterior, fê-lo de forma absolutamente incompreensível e sem sentido, como já se referiu). Ora não consignando a lei, nos casos previstos na primeira parte da alínea b) de na alínea c) do n.º 3 do artigo 1817, uma diferente forma de distribuição do ónus da prova, competirá ao pretenso pai (ou mãe) alegar e demonstrar que o investigante, quando propôs a acção já tinha conhecimento há mais de 3 anos de factos ou circunstâncias que justificaram a sua propositura. Só perante esta demonstração por parte do réu (28) se poderá considerar caducado o direito ao reconhecimento judicial da paternidade/maternidade.”
Porém, quando no AUJ se afirma que o autor tem de provar os factos constitutivos do direito e não os factos constitutivos do exercício do direito não se está a significar que o réu tenha de provar, primeiro, que ocorreram factos ou circunstâncias que justificam a propositura da acção e, só depois, que os mesmos ocorreram há mais de 3 anos. Tal como quando se refere que compete ao réu a prova dos factos extintivos não está a exprimir o entendimento de que é ao réu que compete fazer a prova dos factos constitutivos (designadamente das circunstâncias) do exercício do direito de acção. Ao réu competirá provar apenas o facto relacionado com o decurso do prazo pois só este é extintivo. É o que decorre do citado entendimento de Pereira Coelho e Vaz Serra.
E, por isso, se afirma expressamente no AUJ que o investigante “deve alegar na petição inicial as circunstâncias em que teve conhecimento dos factos que justificam a propositura da acção e designadamente que esse conhecimento lhe adveio já depois de decorrido o prazo referido no n.º 1 e em particular que o mesmo ocorreu nos três anos que a antecederam, sob pena de, não o fazendo e sendo a caducidade do conhecimento oficioso se arriscar a ver tal caducidade declarada por ser manifesto o decurso do prazo previsto no n.º 1 do citado preceito”. Ou seja: a não alegação dos factos ou circunstâncias a que alude a al. b) do nº 3 do art. 1817º faz operar a caducidade do nº 1 do art. 1817º do CC.
Afigura-se, pois, que o AUJ faz impender sobre o autor a alegação do conhecimento das circunstâncias que justificam a investigação, sem as quais não se pode prevalecer do prazo de 3 anos, previsto no nº 3 do art. 1817º do CC, sob pena de ver aplicado o prazo de caducidade dos 10 anos.
Assim sendo, e por idênticas razões, competiria à aqui à Autora alegar o conhecimento das circunstâncias de que pudesse concluir-se que não era filha do marido da mãe. Só assim poderia abrir a porta à aplicação do prazo de 3 anos previsto na segunda parte da al. c) do nº 3 do art. 1842º do CC. Só depois competiria à Ré alegar que quando a Autora propôs a acção já tinha conhecimento há mais de 3 anos das referidas circunstâncias.
É verdade que o AUJ não afirma expressamente que é sobre o autor que recai o ónus de provar o que deve alegar. Mas é a solução que decorre naturalmente do ónus da alegação.
Aliás, é também essa a posição de Guilherme Oliveira, em artigo intitulado “Contribuições jurisprudenciais para o desenvolvimento do direito da família, “ publicado em “ A Revista” do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 2 — Julho-Dezembro de 2022, págs. 39-72 (64-71), que se acolhe.
Aí se refere:
“ (..) Embora não satisfazendo a tendência para a eliminação de qualquer prazo, a lei n.º 14/ 2009 previu que o pretenso filho pudesse ter tido conhecimento após o decurso daquele prazo geral “de factos ou circunstâncias que justifica investigação designadamente quando cesse o tratamento como filho “pelo pretenso progenitor.
Nestas últimas hipóteses a lei faz renascer o direito de investigar que tinha caducado; naturalmente que o pretenso filho tem o ónus de provar o conhecimento - que não tinha antes - de algum “daqueles factos ou circunstâncias” (…). Como exemplos destes “factos ou circunstâncias” podemos pensar em confidências feitas pela mãe ou por uma pessoa próxima, a notícia das relações sexuais havidas entre a mãe e o pretenso pai, a descoberta de uma carta ou de outro documento que configura um “escrito do pai” , a informação segura sobre a convivência entre a mãe e o pretenso pai, a hipótese plausível de uma sedução simples ou qualificada . É algum destes factos “novos “que sustenta a atribuição do direito de investigar .
Mas este direito de agir suplementar - fundado nos factos novos de que o investigante teve conhecimento recente - também está por sua vez sujeito a caducidade alegadamente para evitar que se protele indefinidamente a possibilidade de agir. Ou seja, funciona de novo - como sempre o jogo entre o direito de agir e o limite temporal para o seu exercício; funciona sempre o direito de agir e a caducidade.
Por consequência - também como é normal -o autor tem o ónus de provar o conhecimento novo de um fundamento relevante para a lei fazer renascer o direito de agir ; e o réu tem o ónus de provar que se excedeu o novo prazo de caducidade e; portanto, que aquele direito de agir caducou.”
Acompanham-se, por isso, as conclusões tiradas pelo autor, a págs. 71 e 72, do citado artigo:
“a) o direito geral de agir em investigação está sujeito ao prazo-regra da maioridade (ou da emancipação)acrescido de dez anos O direito suplementar ( eventual ) de agir é atribuído pela lei com fundamento no conhecimento novo de factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação; o autor como sempre tem o ónus de provar a aquisição deste conhecimento.
b) O direito suplementar ( eventual ) de agir tem de ser exercido dentro dos 3 anos subsequentes à aquisição do conhecimento novo do autor ; o réu por sua vez tem um ónus de provar que o prazo passou e por isso o direito de agir caducou “
c) (…)”
Factos que justificam a investigação, no sentido da al. b) do n.º 3 do art. 1817.º do CC, são aqueles que fazem com que seja exigível ao pretenso filho a propositura da acção de investigação da maternidade ou da paternidade. O conceito indeterminado da alínea b) do n.º 3 do art. 1817.º do Código Civil foi concretizado, designadamente, pelo acórdão do STJ de 2 de fevereiro de 2017 — processo n.º 200/11.8TBFVN.C2.S1 —, em cujo sumário se diz: VIII - O conhecimento superveniente de que cuida o n.º 3, alínea c) será aquele que se verifique depois de integralmente decorrido o prazo objectivo de dez anos previsto no n.º 1 do artigo 1817º do Código Civil. IX - O seu preenchimento não se basta com todo e qualquer facto ou circunstância, antes exigindo que o tal conhecimento superveniente se reporte a factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação ou, dito de outro modo, a factos que justifiquem que tenha sido apenas nesse momento (e não antes – ou seja, dentro do prazo geral de dez anos após a maioridade ou a emancipação) que o investigante tenha lançado mão da acção com vista a exercer o seu direito de ver estabelecido o vínculo da filiação.”
Assim, transpondo para a impugnação de paternidade, também aqui o direito suplementar (eventual) de agir (impugnando a paternidade), previsto na segunda parte da al. c) do nº 1 do art. 1842º do CC, é atribuído pela lei com fundamento no conhecimento novo (depois de integralmente decorrido o prazo objectivo de dez anos) de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe.
E, tal como na investigação de paternidade, em que o direito suplementar (eventual) de agir tem de ser exercido dentro dos 3 anos subsequentes à aquisição do conhecimento novo do autor, também aqui o direito de acção da al. c) do nº 1 art. 1842º, que estabelece igualmente o prazo suplementar de 3 anos, só pode ser exercitado se o conhecimento se verificar depois de integralmente decorrido o prazo objectivo de dez anos previsto na primeira parte da al. c) n.º 1 do artigo 1842º do Código Civil e não antes.
Em síntese: para efeitos da al. c) do nº 1 do art. 1842º do CC, e na esteira do entendimento do AUJ, o autor deve alegar na petição inicial as circunstâncias em que teve conhecimento dos factos dos quais se possa concluir que não é filho do marido da mãe e designadamente que esse conhecimento lhe adveio já depois de decorrido o prazo de 10 anos referido na al. c) e, em particular, que o mesmo ocorreu nos três anos que a antecederam; porém, e na linha do entendimento de Guilherme Oliveira, o autor tem apenas o ónus de provar a aquisição superveniente desse conhecimento, após o decurso do prazo de 10 anos; ao réu caberá o ónus de provar que o prazo suplementar dos 3 anos passou e, por isso, o direito de agir caducou.
Revertendo ao caso sub judice, as circunstâncias de que poderia concluir-se que a Autora não era filha do marido da mãe eram as de que:
“a) Há mais de um ano [a contar da data de nascimento] que a mãe da autora e o CC residiam em casas e cidades separadas (a sua mãe residia na cidade da ... e CC em ...), não mantendo qualquer relação afectiva e amorosa”
b) Tendo a sua mãe, anos antes do nascimento da Autora passado a viver na casa de DD, à data viúvo, para onde foi trabalhar como empregada doméstica.
c) E com este manteve uma relação amorosa (art. 10º).”
Porém, a autora não alegou que teve conhecimento novo (superveniente) dessas circunstâncias das quais poderia concluir-se que não era filha do marido da mãe. Aliás, não logrou provar sequer qualquer dessas circunstâncias (que ficaram todas não provadas).
Assim, verifica-se que a Autora não alegou e, por isso, não provou que teve conhecimento posterior, dentro do prazo de três anos (após o decurso dos 10) de qualquer daquelas circunstâncias ou de outras das quais poderia concluir-se que não era filha do marido da mãe.
Não podendo beneficiar desse prazo, mostra-se sujeita ao prazo de caducidade de 10 anos previsto na primeira parte do artigo 1842º, nº 1, al. c) do Código Civil., pelo que, deste modo, teria de concluir-se que a acção tinha sido proposta, manifestamente, fora de tempo.
Sucede, porém, que o nº 1 da al. c) do art. 1842º do CC, que estabelece o prazo de caducidade de 10 anos e o posterior de 3 anos padece, a nosso ver, de inconstitucionalidade material, por violação dos direitos fundamentais à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade (art. 26º, nº 1 da CRP).
Não se ignora que o Ac. T.C nº 309/2016 de 18.5.2016 julgou no sentido de não julgar inconstitucional a norma do artigo 1842º, nº 1, al. c) no segmento em que estabelece que a acção de impugnação da paternidade pode ser intentada pelo filho num prazo de 3 anos contados desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe; e que o acórdão do STJ de 16.12.2020, no proc. 389/14.4T8VFR.P2.S1, julgou no mesmo sentido.
Porém, o Ac. do Tribunal Constitucional nº 552/2024, de 15 de Julho, declarou a inconstitucionalidade a norma do nº 1 do art. 1817º do CC, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação de paternidade por força do art. 1973º do mesmo Código, prevê um prazo de 10 anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante, com argumentos que podem, em grande medida, ser transpostos para a norma do art. 1842º, nº 1, al. c) que, para a acção de impugnação de paternidade, prevê um prazo de 10 anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do impugnante ou, posteriormente de 3 anos a contar da data em que este teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe. Assim já se tinha entendido, aliás, no voto de vencido do acórdão nº 309/2016, de 8 de Setembro, que relativamente ao prazo de 3 anos, exprimiu o entendimento de que a tutela do direito à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade deve prevalecer sobre os interesses da segurança jurídica, da protecção da família constituída, do interesse social da estabilidade das relações familiares ou da reserva da vida privada (que, no caso, faziam operar uma restrição desproporcionada ao direito à identidade pessoal, que era violadora do art. 18º, nº 2 da CRP).
Mas detenhamo-nos nos argumentos do acórdão do TC nº 552/2024, de 15 de Julho, que acompanhamos.
Como se assinala nesse acórdão, o estabelecimento de um prazo de caducidade para a acção de investigação de paternidade afecta o direito à identidade, na dimensão do direito ao conhecimento da ascendência genética (direito à historicidade pessoal) e na dimensão do direito ao livre desenvolvimento da sua personalidade ( direito de autoconformação da sua própria vida) e o direito a constituir família (art. 36º, nº 1 da CRP).
O mesmo se passa com a impugnação da paternidade. E desde logo, quanto ao direito à identidade. Com efeito,“ deve admitir-se que o direito à identidade pessoal engloba também, na sua esfera de proteção, o interesse em não manter um vínculo não correspondente à verdade biológica. Ele não atua só em sentido positivo como direito de cada um a conhecer e a ver juridicamente reconhecido aquilo que é, mas também em sentido negativo como direito de cada indivíduo de excluir, como factor conformador da identidade própria aquilo que não é” (cfr. Acórdão do TC nº 446/2010 de 27 de Dezembro).
O que importa é ver se as restrições dos direitos mostram ou não desproporcionadas.
Uma das razões invocadas para a limitação do direito à investigação da paternidade (e da impugnação) é o envelhecimento e a aleatoriedade da prova.
Ora, entende o acórdão do TC nº 552/2024 e a doutrina que este argumento se mostra ultrapassado, uma vez que o recurso a exames de ADN oferece já uma certeza sobre a paternidade superior a 99%. Escreve, a propósito, Guilherme de Oliveira: “O argumento do envelhecimento das provas perdeu quase todo o valor com a eficácia e a generalização das provas científicas. as ações só cada vez mais julgadas com base nos testes da ADN que não envelhecem nunca - os exames podem fazer-se muitos anos depois da morte do suposto pai ou na ausência do pai” (Manual de Direito da Família, pág. 509 ).
Ora, apreciando o caso sub judice, verifica-se que a ultrapassagem dos prazos de caducidade não impediu a realização de testes científicos.
Outra razão invocada para as limitações decorrentes da imposição de prazos tem a ver com a segurança jurídica. Ora, como observa o Acórdão do TC nº 552/2024, o interesse na determinação precoce da paternidade não pode ser satisfeito à custa do interesse do filho em ver estabelecida a relação de filiação, não havendo razões para o postergar ao fim de determinado prazo, já na idade adulta. Cabe aqui, também, a observação de Guilherme de Oliveira “… será que o suposto progenitor merece também esta segurança [ jurídica]- a segurança de não ser incomodado a partir de uma certa idade do filho?” (ob. cit., pág. 508). Também aqui se nos afigura questionável que se proteja o estatuto jurídico anterior à custa dos direitos fundamentais do investigante ou do impugnante. A protecção da confiança só é constitucionalmente atendível se “ as expectativas na continuidade do estatuto anterior forem fundadas em boas razões”. O que não será caso. O investigado ou o presumido pai “não têm direito a não serem incomodados a partir de certa idade do filho”
Aliás, e ainda no plano do sobressalto relativamente às relações de família de DD (investigado), deve notar-se que apenas subsiste como herdeira a Ré BB, mulher do filho do investigado (nora, portanto), pois o investigado DD faleceu no dia ... de Setembro de 1972, no estado de viúvo de FF, tendo deixado como seu herdeiro o seu filho GG que também faleceu no dia ... de Maio de 2007, no estado de casado com a dita BB ( a aqui ré), sem descendentes.
Como se destaca no Ac. do TC nº 552/2024, não parece que a protecção patrimonial daqueles que herdaram antes de estabelecida a paternidade possa justificar a postergação definitiva do direito a tornar-se filho, não havendo no nosso direito qualquer disposição nesse sentido (cfr., pelo contrário, a protecção da herança e o funcionamento dos prazos subjectivos do nº 3 do art. 1817º que não atende a essa circunstância).
Por último, costuma invocar-se o argumento da “caça à herança” e da tutela do património do investigado.
Sobre este argumento, observa Guilherme de Oliveira: “A ideia de evitar a caça às heranças tem de se entender de outro modo, porque a natureza e a distribuição da riqueza mudaram. Muitas das ações que poderiam beneficiar da imprescritibilidade decorreriam hoje, provavelmente, entre autores e réus com meios de fortuna semelhantes, que se exprimem por uma formação profissional e por um emprego. Provavelmente, o móbil seria o de esclarecer a existência do vínculo familiar, forçar o progenitor a assumir a sua responsabilidade, descobrir o lugar no sistema de parentesco como meio de combater a solidão individual; e porventura num momento em que o filho não tem pretensões patrimoniais, isto é, no momento em que já não poderá formular pretensões de natureza alimentar e ainda não terá pretensões de natureza sucessória”
Porém, mesmo que as motivações patrimoniais estejam na base da acção de investigação/impugnação de paternidade, elas não devem ser de molde “ a apagar ou a empalidecer a produção do efeito pessoal” (Sousa Ribeiro, A Inconstitucionalidade, pág. 234, citado no acórdão do TC). E, por isso, “caso o legislador pretendesse impedir os efeitos sucessórios de um estabelecimento tardio da filiação – designadamente em nome da protecção das expectativas de herdeiros que já houvessem acedido aos bens da herança” a solução sempre se revelaria “ excessiva e desproporcionada “ ( Ac. do TC nº 552/2024).
Por outro lado, não existem do lado do investigado (e também do presumido pai) interesses suficientemente fortes que justifiquem a derrogação dos interesses do filho, que parecem superiores.
Com efeito, não nos parece que a reserva da vida privada possa constituir argumento suficiente para afastar a investigação (ou a impugnação) da paternidade, a partir de determinado momento, uma vez que o investigado ou o presumido pai têm a possibilidade de cooperar no apuramento da verdade biológica fora das acções judiciais, sujeitando-se aos testes científicos.
Além disso, também não se nos afigura que o valor da estabilidade da família constituída se deva sobrepor ao conhecimento e ao estabelecimento da progenitura. Sobre o assunto convoca-se do novo Guilherme Oliveira quando refere: “ É certo que o pretenso pai talvez possa também invocar o direito ao desenvolvimento da personalidade com alcance de um direito de conformar livremente a sua vida. Porém nesta matéria atribuo pouco ou nenhum valor a esse direito do suposto pai , pelas mesmas razões que me levaram a muitos anos a defender que o pai biológico tem um dever jurídico de perfilhar “ (ob. cit., pág. 509).
Porém, e regressando aos prazos da acção de impugnação da paternidade, deve assinalar-se que o assunto da inconstitucionalidade desses não merecem já do ilustre autor a mesma certeza.
Assim, escreve:“ Esta discussão sobre a constitucionalidade dos prazos de caducidade tem sido em feita em Portugal sobretudo a propósito do direito de intentar ação de investigação de paternidade. Mas os argumentos que têm sido apresentados nesta discussão têm sido facilmente transpostos para o debate sobre a caducidade do direito de impugnar. Na verdade, também aqui se pode dizer que a identidade pessoal a integridade moral e o direito ao livre desenvolvimento da personalidade exigem que se afaste a paternidade jurídica que não corresponde a um vínculo biológico. Acresce que, se ficar vedada a possibilidade de impugnar um vínculo que não corresponde à verdade biológica, porque a paternidade do marido continua a constar do registo, torna-se impossível promover a subsequente investigação da paternidade biológica e satisfazer os direitos fundamentais mencionados” (ob. cit., pág. 476)
Foi também o que se afirmou no Acórdão do TC nº 609/2007: “ (…) num caso em que o autor é o filho, a impugnação da paternidade presumida apresenta-se como um mecanismo essencial no iter processual que o impugnante -investigante têm de percorrer de forma a alcançar a definição e estabelecimento da verdade biológica da sua ascendência . Com efeito, existindo uma paternidade estabelecida e devidamente registada a fixação de outra depende impreterivelmente do afastamento daquela “
Porém, o mesmo autor Guilherme Oliveira coloca reservas: “ Admito, porém, que não pode ignorar-se que as pretensões de constituição de vínculos novos podem merecer um regime diferente das pretensões de impugnar vínculos existentes - por exemplo, se me parece claro que a investigação da paternidade deve ser imprescritível, não me parece tão líquido que a impugnação da paternidade (do marido ou do perfilhante) deva ser assim tão livre. Tal como o regime do divórcio nunca é tão simples como o do casamento - porque o estado de casado que se constituiu gerou efeitos pessoais e patrimoniais que devem ser regulados - assim as impugnações agridem um estado jurídico e social prévio, que pode ter tido uma duração e uma densidade consideráveis .Isto é: para além dos direitos fundamentais invocados também deve ponderar se o valor da proteção da família constituída, que vai necessariamente sofreu um abalo em consequência de eventual impugnação. No entanto, para se considerar relevante o mencionado interesse fundamental de proteger a família constituída – com o mérito de justificar a previsão dos prazos de caducidade - não devia bastar a mera defesa do vínculo formal, constituído e registado, sem curar de saber se o vínculo da de paternidade em causa tem uma correspondência na vida real, traduzida em convivência e em sentimentos de tal modo que o exercício da impugnação cause perturbações e sofrimento. Se bastar o vínculo formal e o decurso do tempo afinal o que se protege? Se bastar a mera existência formal de uma paternidade presumida e registada para, decorrido o prazo legal, consolidar o vínculo então apenas se protege “ a presunção de paternidade “, o estado de filho matrimonial ou, nas palavras de Antunes Varela a estabilidade da família legalmente constituída . Porém, ao seguir este caminho repõe-se a antiga distinção entre família “legítima” e família “ilegítima” com o propósito de garantir a estabilidade da primeira para defender a legitimidade” (ob. cit., págs. 477 e 478).
Ora, regressando ao caso sub judice, verifica-se que o presumido pai, CC, faleceu no dia ... de Julho de 1957, no estado de casado com EE, não tendo deixado (outros, para além da Autora) descendentes.
Por outro lado, EE faleceu no dia ...de Setembro de 1991, no estado de viúva de CC, tendo deixado como herdeira a sua única filha, ora Autora.
Por isso, não se nos afigura que deva relevar aqui o valor da protecção da família constituída de modo a justificar a instauração de um prazo de caducidade. Não existem indícios dos perigos apontados no Ac. STJ de 3.5.2018, no proc. 158/15.4T8TMR.E1.S1, ou seja, que a relação paterno-familiar estabelecida, a confiança e a paz familiar seriam [sejam] necessariamente postas em crise. Não se mostra, deste modo, evidente que o exercício da impugnação cause perturbações e sofrimento que justifique a postergação do exercício da ação de impugnação em nome da protecção da família constituída.
Assim, entende-se que os concretos prazos estabelecidos na lei implicam uma restrição desproporcionada e excessiva do direito à identidade pessoal (art. 26º, nº 1, da CRP) em conjugação com o princípio da proporcionalidade ínsito no art. 18º, nº 2, da CRP.
A Relação decidiu que, com a procedência da caducidade do direito da autora à impugnação da paternidade ficava prejudicado o interesse de decidir as restantes questões, designadamente as respeitantes à alteração da matéria de facto.
Porém, não ocorrendo a caducidade, devem os autos regressar para a apreciação das questões prejudicadas.
Sumário (art. 663º, nº 7 do CPC):
“1. Para os efeitos do art. 1842º, nº 1, al. c) do CC, e para se prevalecer do prazo suplementar de 3 anos, competia à autora alegar o conhecimento de circunstâncias de que pudesse concluir-se não ser filha do marido da mãe após o decurso do prazo objectivo de 10 anos e dentro do prazo de 3 anos que antecederam a propositura da acção;
2. Porém, à autora competia apenas a prova da aquisição desse conhecimento após o decurso do prazo de 10 anos, uma vez que era à ré que, para se prevalecer da caducidade, competia a prova de que o prazo suplementar dos 3 anos referido na segunda parte da al. c) do nº 1 do art. 1842º do CC já se mostrava expirado à data em que a autora intentou a acção;
3. De todo o modo, não tendo a autora alegado sequer que teve conhecimento superveniente, após o decurso do prazo de 10 anos previsto na 1ª parte do art. 1842º do CC, de qualquer circunstância de que pudesse concluir-se que não era filha do marido da mãe, não pode a mesma beneficiar do prazo suplementar dos 3 anos, ficando sujeita, assim, ao prazo de caducidade de 10 anos previsto naquela disposição legal;
4. Todavia, a referida norma do art. 1842º padece de inconstitucionalidade em virtude de os concretos prazos aí estabelecidos (o de 10 anos e o posterior de 3) implicarem uma restrição desproporcionada e excessiva do direito à identidade pessoal (art. 26º, nº 1, da CRP) em conjugação com o princípio da proporcionalidade ínsito no art. 18º, nº 2, da CRP;
5. A interpretação normativa cuja aplicação se recusa reporta-se ao caso em que, pretendendo a impugnante não apenas a destruição do vínculo resultante do registo mas também o estabelecimento da paternidade em relação a um sujeito, o presumido pai e a mãe da autora já faleceram, sem outros descendentes e o investigado bem como o seu filho biológico faleceram também sem descendência;
6. Em tal caso, os direitos da filha devem prevalecer sobre o da protecção da família do presumido pai e do investigado.”
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção Cível em:
a) recusar a aplicação da norma contida no artigo 1842º, nº 1, al. c), do Código Civil, que estabelece que a acção de impugnação da paternidade pode ser intentada, pelo filho, até 10 anos depois de haver atingido a maioridade ou de ter sido emancipado, ou posteriormente, dentro de três anos a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe;
b) revogar o acórdão recorrido e determinar a remessa dos autos à Relação para apreciação das questões prejudicadas.
Custas pela recorrida.
*
Lisboa, 28 de Janeiro de 2025
António Magalhães (Relator)
Manuel Aguiar Pereira
Jorge Leal