Sumário
I - O despacho judicial que indeferiu a nulidade principal arguida pela Ré quanto à sua citação não se confunde em termos de objeto ou questão decidida, nem se equipara jurídica e processualmente, com o saneador/sentença que julgou procedente a exceção dilatória inominada de imunidade de jurisdição, nos moldes dele constantes, não se tendo formado, nessa medida e quanto ao primeiro, caso julgado formal que impedisse a apreciação e decisão da mencionada exceção dilatória inominada no quadro do mencionado saneador/sentença.
II - Sintetizando as duas perspetivas distintas que a nossa doutrina e jurisprudência têm assumido e que definem e caracterizam de maneira oposta a situação de imunidade de jurisdição, há que distinguir entre as que lhe atribuem uma natureza impeditiva absoluta e que deriva do simples facto de os Estados serem demandados em quaisquer ações propostas nos tribunais de outros Estados, independentemente da sua natureza e objeto, e aquelas que reconhecem, ao lado dessa imunidade de cariz absoluto [e que se refere a situações em que estão em causa atos públicos e emergentes dos poderes soberanos do Estado que os executa], uma outra que possui uma índole meramente relativa e que admite a demanda judicial dos Estados nos tribunais de outros países [por estarem apenas em causa atos de mera administração ou gestão privada, praticados já fora do quadro daqueles poderes munidos de jus imperii].
III - O trabalhador recorrente não pretende que os tribunais de trabalho portugueses fixem, em substituição do Estado brasileiro, os salários que, em seu entender, deveriam ou devem ser pagos, em tese e em abstrato, ao Autor, como merecida contrapartida pecuniária da sua atividade profissional, mas antes demanda que aqueles cruzem o quadro remuneratório-base por ele efetivamente auferido e que sempre foi estabelecido pela Ré, com as disposições legais que constam da Constituição da República Portuguesa, dos Códigos do Trabalho de 2003 e 2009 e de demais legislação laboral aplicável e que proíbem que se verifiquem situações de injustificada discriminação salarial ou outras no seio de vínculos laborais vigentes em território nacional e que se encontrem sujeitos às referidas regras jurídicas.
IV - O Autor busca, através da propositura desta ação, que, com base no concreto contrato de trabalho celebrado com a REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL e nas condições salariais que desde 2005 lhe foram sendo concedidas pela sua entidade empregadora, os tribunais de trabalho competentes afiram se as mesmas se mostram conformes aos princípios e regras que regulam a igualdade salarial entre trabalhadores com idênticas funções e categoria profissional dentro de uma mesma organização como é estrutura consular brasileira sediada em Portugal, nada impedindo a Ré de, por seu turno, explicar e justificar as eventuais diferenças salariais que venham a ser demonstradas nos autos, de maneira a ilidir e afastar qualquer aparente cenário de discriminação salarial.
V – Tem, nessa medida, o recurso de revista do Autor de ser julgado procedente, com a inerente alteração do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, na parte onde não reconheceu e declarou a competência internacional dos tribunais de trabalho portugueses para julgarem os pedidos constantes das alíneas a) a c) do petitório final da Petição Inicial daquele, competência absoluta essa que o STJ reconhece e declara no quadro deste Acórdão, com a inerente baixa dos autos às instâncias com vista à subsequente e normal tramitação dos mesmos, de acordo com as normas processuais aplicáveis, de maneira a serem oportunamente apreciadas e decididas aquelas pretensões.
Decisão Texto Integral
RECURSO DE REVISTA N.º 1473/23.9T8PRT.P1.S1 (4.ª Secção)
Recorrente: AA
Recorrida: EMBAIXADA DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
(Processo n.º 1473/23.9T8PRT.P1.S1 – Tribunal Judicial da Comarca ... - Juízo Trabalho - Juiz ...)
ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DESTE SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
I – RELATÓRIO
AA, com os sinais constantes dos autos, intentou, em 24/01/2023, contra EMBAIXADA DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, igualmente com os sinais constantes dos autos, uma ação declarativa de condenação com processo comum laboral, tendo para o efeito apresentado Petição Inicial, onde formulou o seguinte petitório final:
«Termos em que, deve a presente ação ser julgada procedente, por provada, e em consequência a Ré condenada a:
“A) Pagar ao Autor o montante correspondente ao diferencial entre o que lhe pagou e o que pagou aos trabalhadores com a mesma categoria administrativa e antiguidade no consulado e embaixada de Lisboa a título de vencimento base, subsídio de férias e subsídio de Natal, desde Junho de 2005 até à presente data, deduzida a parte relativa a descontos obrigatórios para a Segurança Social e em sede de IRS, que a Ré deverá encaminhar para os serviços respetivos;
B) Pagar ao Autor os juros moratórios, vencidos e vincendos, à taxa legal, que incidem sobre o diferencial de cada uma dessas prestações - salários e subsídios de Natal e de férias - vencidas a partir de 30 de Junho de 2005 e a partir do vencimento respetivo, da data em que ocorreram os pagamentos, até efetivo e integral pagamento;
C) Condenada a Ré a, partir da presente data, relativamente ao salário base, subsídios de Natal e de férias, a igualar o Autor relativamente aos trabalhadores com a mesma categoria administrativa e antiguidade no consulado e embaixada de Lisboa, enquanto os mesmos continuarem a prestar trabalho igual, a que, em caso de incumprimento, acrescerão juros de mora, à taxa legal, desde o vencimento de cada uma das prestações, até integral e efetivo pagamento.
D) Condenada a Ré no pagamento ao Autor da quantia de € 7.656,47, correspondente ao subsídio mensal de 4% para falhas, calculado sobre a remuneração certa mínima mensal prevista para a categoria profissional do período de 01.06.2005 a 31.12.2016, a que acrescem juros de mora vincendos, à taxa legal, até integral e efetivo pagamento.
E) Condenada a Ré no pagamento ao Autor da quantia de € 19.144.04, correspondente ao subsídio de refeição por cada dia completo de trabalho do período de 01.06.2005 a 31.12.2022, acrescido de juros de mora vincendos, à taxa legal, até integral e efetivo pagamento.
F) Condenada a Ré no pagamento ao Autor da quantia de € 29.627,33, correspondente ao período em que a Ré não deu formação aos trabalhadores, nem ao Autor ao longo dos anos de manutenção do contrato de trabalho 01.06.2005 a 31.12.2022, acrescido de juros de mora vincendos, à taxa legal, até integral e efetivo pagamento.”.
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A citação da Ré EMBAIXADA DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL foi remetida diretamente, por via postal com aviso de receção, para as instalações da aludida Embaixada.
Em 10/02/2023, a Ré juntou procuração forense.
Por ofício datado de 13/02/2023, o Ministério dos Negócios Estrangeiros remeteu aos autos a carta de citação que lhe foi entregue pela Embaixada.
A Ré veio arguir a nulidade da sua citação, sustentando, designadamente, que ocorrera incumprimento “das normas internacionais, designadamente, de âmbito diplomático, que exigem que a presente citação judicial seja realizada por intermédio do Ministério dos Negócios Estrangeiros”.
Exercendo o contraditório, pronunciou-se o Autor, por requerimento de 20.02.2023, defendendo que não ocorre a invocada nulidade, referindo, nomeadamente, que a relação de trabalho subordinado estabelecida entre ele e a Ré “é regida pelo direito português, em termos idênticos a um qualquer contrato de trabalho celebrado com um particular, na sua veste civil, praticando, assim, um mero ato jure gestionis, e não, jure imperii”.
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Apreciando a questão o tribunal da 1.ª instância proferiu despacho com o teor que seguidamente se transcreve:
«Vem a Ré invocar a nulidade da sua citação, por entender que deveria ter sido citada por intermédio do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
O Autor pronunciou-se quanto à nulidade invocada, pugnando pela sua improcedência.
Nestes autos é demandada a EMBAIXADA DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL em Portugal, com quem o Autor alega ter celebrado um contrato de trabalho para exercer as funções de auxiliar administrativo mediante remuneração.
De acordo com o disposto no artigo 222.º do Código de Processo Civil que “com os agentes diplomáticos observa-se o que estiver estipulado nos tratados e, na falta de estipulação, o princípio da reciprocidade”.
A função da missão diplomática representar o Estado acreditante perante o Estado acreditador.
A referida norma está diretamente relacionada com a imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros, princípio fundamental em direito internacional.
Ora, não se me afigura que no caso dos autos esteja em causa o estatuto da imunidade diplomática, nomeadamente a aplicação da Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas que consagrou garantias aos agentes de missões diplomáticas.
É que, como se lê no Acórdão do STJ de 12/01/2006 (www.dgsi.pt) “embora ainda se tivesse defendido que as regras estatuídas por aquelas convenções conferiam aos Estados estrangeiros imunidade total em face da jurisdição do país em que se situavam tais missões, julgamos que este entendimento está hoje completamente superado”.
De facto, é hoje amplamente aceite a teoria da imunidade relativa em detrimento da teoria da imunidade absoluta, segundo a qual o Estado beneficiaria da imunidade para os atos jure imperii, mas não para os atos jure gestionis (aqueles em que intervém como pessoa de direito privado em relações de direito privado).
Assim o defende Jonatas Machado (“Direito Internacional - Do Paradigma Clássico ao pós 11 de Setembro”, Coimbra Editora, 2003, pág. 162): “A imunidade relativa, imposta pelo recurso crescente ao direito privado por parte dos Estados, é considerada por uma parte substancial da doutrina como a mais consentânea com a tendência atual no sentido da responsabilização dos poderes públicos por danos, contratuais ou extracontratuais, causados aos particulares.
Com efeito, tende a considerar-se que a imunidade não pode ser invocada, nomeadamente no caso de transações comerciais, contratos de trabalho, responsabilidade civil por ações ou omissões danosas, questões de propriedade imobiliária, mobiliária ou intelectual, participações sociais, utilização de embarcações para fins não oficiais, sempre que os elementos de conexão relevantes se encontrem localizados no território do Estado do foro”.
Como se lê no Acórdão do STJ de 13/11/2002 (www.dgsi.pt) “Relativamente aos litígios laborais, designadamente ações fundadas em despedimento ilícito essa prática não tem reconhecido a imunidade do Estado estrangeiro quanto o trabalhador exerce funções subalternas e não funções de direção na organização do serviço público do réu ou funções de autoridade de representação. Não beneficia de imunidade de jurisdição o Estado estrangeiro contra o qual foi intentada ação de impugnação de despedimento, por empregada doméstica, …, sendo essa relação laboral regulada pelo direito português em termos idênticos ao vulgar contrato de trabalho para prestação de serviços domésticos com qualquer particular”.
Relembrando a situação dos autos, alega o Autor ter celebrado um contrato de trabalho com a Ré para exercer as funções de auxiliar administrativo mediante remuneração, pelo que se conclui que estamos perante atos jure gestionis do Estado, aqui representado pela sua missão diplomática, não sendo, por isso, de aplicar o mecanismo da citação por intermédio do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Em face de todo o exposto, desatende-se a arguida nulidade da citação.
Custas do incidente que fixo em 1 UC, a cargo da Ré (artigo 7.º, n.º 4 do RCP).»
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Foi realizada Audiência de Partes, onde os litigantes não chegaram a acordo.
A Ré deduziu contestação, na qual se defendeu por exceção, invocando, para o efeito, a sua ilegitimidade processual e a sua imunidade de jurisdição, bem como por impugnação.
O Autor apresentou articulado de resposta.
Realizou-se Audiência Prévia em 12.10.2023, na qual o Autor foi convidado a liquidar o pedido, o que o mesmo fez nos seguintes termos:
“Deve a presente ação ser julgada procedente, por provada, e em consequência ser a Ré condenada a pagar ao Autor:
- As diferenças salariais conforme indicadas no artigo 45.º da petição inicial [1], no montante de 31.167,24 Euros;
- A quantia de 59.448,84 Euros relativa às retribuições mencionadas no artigo 46.º da petição inicial [2];
- A quantia de 83.895,00 Euros relativa às prestações salariais mencionadas no artigo 47.º da petição inicial [3];
- A quantia de 3.655,688 relativa às prestações salariais mencionadas no artigo 48.º da petição inicial [4], sem prejuízo da correção dos valores de acordo com as prestações salariais que realmente venham a ser apuradas em resultado dos documentos cuja junção é requerida por parte da Ré e também do que se requereu que fosse oficiado à Segurança Social.»
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Nessa mesma Audiência Prévia foi ainda considerada improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade passiva, fixado o valor da causa em € 234.594,60 [5] e decidido, em sede de saneador/sentença, o seguinte:
“Por conseguinte, ao abrigo das disposições legais citadas, decide-se:
A) Reconhecer a imunidade de jurisdição à República Federativa do Brasil, representada pela Embaixada em Portugal, na ação contra si instaurada pelo Autor, na parte relativa aos pedidos deduzidos sob as alíneas a) a c) e, consequentemente, declara-se a incompetência absoluta dos Tribunais Portugueses para apreciar e julgar a presente ação nessa parte, absolvendo-se a Ré da instância dos pedidos deduzidos sob as alíneas a) a c).
B) Julgar a ação improcedente relativamente aos pedidos deduzidos sob as alíneas d) a f), absolvendo a Ré desses pedidos.”.
O Autor interpôs recurso de Apelação de tal saneador/sentença que tendo sido admitido, subiu ao Tribunal da Relação do Porto, onde seguiu a sua normal tramitação .
Por Acórdão desse tribunal da 2.ª instância, prolatado em 28.06.2024, foi decidido o seguinte:
“Face ao antes exposto, acordam os juízes da Secção ... do Tribunal da Relação do Porto, mantendo essa no mais, em revogar a decisão recorrida, quanto no que se refere aos pedidos formulados pelo Autor nas alíneas d) a f), determinando-se que a ação prossiga os seus termos subsequentes, quanto aos referidos pedidos, incluindo, salvo se outra razão o vier a obstar, a realização da instrução e audiência de discussão e julgamento, para depois, então sim, ser proferida nova decisão nesta parte.”
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O Autor AA, inconformado com tal acórdão, veio interpor recurso do mesmo para este Supremo Tribunal de Justiça, que foi admitido pelo Tribunal da Relação do Porto por despacho judicial de 31/10/2024, como de Revista, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Vieram então os autos a subir a este Supremo Tribunal de Justiça, onde foram objeto do relator que considerou o recurso de Revista corretamente admitidos nos precisos moldes antes referenciados.
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O recorrente AA apresentou alegações de recurso, onde, formulou as seguintes conclusões:
“a) O conceito de imunidade jurisdicional reporta-se à Ré e não ao processo, pelo que tendo sido negada essa imunidade pelo Tribunal para manter a decisão de citação da Ré através de carta registada, recusando-se a fazer a citação da Ré pela via diplomática, através do ministério dos negócios estrangeiros, não pode mais tarde alterar-se a decisão anterior e considerar-se existir essa imunidade de jurisdição para absolver a Ré dos pedidos e determinar que o Autor tem que intentar a ação no Brasil por gozar a Ré de imunidade de jurisdição.
b) São dois despachos sobre a mesma questão, contraditórios entre si – no primeiro declara-se que se trata de um ato de gestão e no segundo exatamente o contrário -, pelo que, se transitado o primeiro, ao proferir-se o segundo, viola-se o caso julgado formal, as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.
c) Não concordando com esse despacho, a Ré poderia dele apresentar recurso ou, como o artigo 616.º, n.º 2, a), do C.P.C dispõe, que não cabendo recurso da decisão, poderia requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz, tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos.
d) Mas nada disto sucedeu no caso, pois a Ré nem apresentou recurso da decisão, nem pedido da sua reforma. E houve violação de caso julgado formal ao ter-se proferido um despacho (o segundo) que contraria o primeiro, pois a Ré tinha a possibilidade, de obter a reforma da sentença ou de apresentar recurso da mesma.
e) Se a Ré tivesse apresentado pedido de reforma da primeira decisão, não haveria violação de caso julgado formal, pois a lei permite a alteração, por essa via, de um anterior despacho. Importaria então determinar se o tribunal tinha fundamento para reformar a sentença, no caso, aferir se ocorria erro na determinação da norma aplicável. Se tal pedido não podia ser apreciado, então o tribunal não podia pronunciar-se de novo sobre a questão, nem alterar o sentido da decisão, sob pena de violar o princípio do esgotamento do seu poder jurisdicional.
f) Quando a Ré na contestação volta a levantar a questão de intervir no processo não nas vestes de um particular, mas no seu ius imperii, o tribunal recorrido deveria ter mencionado, na apreciação dessa questão, que o seu poder jurisdicional sobre a matéria estava esgotado porque a Ré, para conseguir obter a alteração do decidido, tinha de ter reclamado da decisão anterior ou dela recorrido.
g) Acabando o Tribunal por emitir nova pronuncia sobre a mesma questão, desta feita julgando procedente a exceção, e deferindo esse pedido, em que se encontre base legal para tanto, o tribunal recorrido violou o princípio relativamente ao esgotamento do seu poder jurisdicional e profere uma decisão sobre a mesma matéria, quando já não o podia fazer, acrescendo que o faz em sentido oposto à primeira. E, no caso concreto, atento o tempo já decorrido entre a primeira e a segunda decisão ao proferir-se um despacho sobre a mesma matéria de um anterior, já transitado em julgado, violou-se o caso julgado formal.
h) Note-se que o primeiro despacho adotou uma posição expressa sobre a questão da imunidade jurisdicional da Ré e é por causa disso que, não pode depois apreciar novamente a mesma questão que lhe de novo suscitada, desta feita em sede de contestação. Não se está perante uma declaração meramente genérica que faça concluir que a situação acabou por não ser apreciada, como sucede quando se declara tabelarmente, no despacho saneador, que as partes são legítimas.
i) A Ré antes de contestar veio colocar ao tribunal a questão da sua imunidade jurisdicional foi e, com base nesse conhecimento, assumindo-o, que o Tribunal declarou que a Ré não atuava no processo nessa qualidade, declarando-o. Depois, no despacho saneador, modifica a sua primeira versão, o tribunal recorrido altera-a, mas aqui, mesmo que a confirmasse, com análise mais profunda, já ocorreria violação de caso julgado formal, pois sempre fica unicamente a ter efeitos a primeira decisão. Pelo que terá de se concluir que está definido nos autos que a Ré atua como um particular, sem ius imperii, sendo a decisão contrária proferida no despacho saneador ineficaz.
j) Deve, pois, ser revogado o acórdão recorrido e substituído por outro que, respeitando o princípio do caso julgado e os seus efeitos intra processuais, sob pena de violar o princípio do esgotamento do seu poder jurisdicional considere que o Tribunal não pode voltar a pronunciar-se sobre a questão da imunidade de jurisdição da Ré, já declarada no processo e decidida anterior e definitivamente em sede de incidente de nulidade de citação, o tribunal não podia pronunciar-se de novo sobre a questão nem alterar o sentido da decisão, julgando procedente o recurso de revista e declarando ineficaz, por violação do caso julgado, o acórdão recorrido.
l) O acórdão recorrido violou a lei processual, os artigos 613.º, n.ºs 1 a 3, 620.°, 625.° e 628.° do Código Processo Civil.
m) A imunidade de jurisdição dos Estados tende hoje a prevalecer uma conceção restrita, praticar salários diferentes em relação a trabalhadores de diferentes “estabelecimentos”, no caso “Consulados”, não deverá considerar-se um ato de ius imperii, (de Estado, ato afeto às finalidades da missão diplomática), mas apenas de gestão de recursos humanos e patrimoniais, tal como o poderia praticar um particular, uma empresa privada, em relação a trabalhadores de diferentes estabelecimentos.
n) As funções exercidas pelo Autor são manifestamente de carácter subalterno, não lhe podendo ser reconhecida qualquer posição de direção na organização do serviço público da Ré ou de desempenho de funções de autoridade ou de representação.
o) Não se pode subscrever o entendimento seguido no acórdão recorrido o qual, pela sua amplitude, levaria a abranger todo o pessoal necessário ao funcionamento regular de uma representação diplomática, independentemente do nível de relevância e de responsabilidade das funções exercidas. Os seus salários teriam sempre de ser definidos no Brasil e os trabalhadores teriam de intentar as ações nos Tribunais Brasileiros, mesmo tratando-se de funcionários como o Autor de nacionalidade portuguesa e a trabalhar numa representação local do Estado Brasileiro em Portugal, ….
p) E seguir-se o entendimento do acórdão recorrido levaria a situações impensáveis num estado de direito integrado numa comunidade do mundo ocidental a UE de se permitir que os trabalhadores dos consulados do Brasil e da embaixada auferissem um salario inferior ao SMN permitido em Portugal, não gozassem férias, não lhes fosse pago subsidio de ferias e de Natal e que trabalhassem 16 horas por dia, 8 dias por semana, como é permitido em países como a Arabia Saudita, a India, Indonésia, Sri Lanka, China, Paquistão, ou ser o trabalhador despedido sem qualquer fundamento como sucede nos estados Unidos, na Austrália, Nova Zelândia, Africa do sul, Tanzânia, Malawi, Zâmbia, Zimbabwe, Namíbia, Botsuana, para só enumerar alguns.
q) O entendimento seguido no acórdão recorrido, atente-se, permitiria que qualquer um desses países definisse internamente a política salarial e laboral a ser praticada nas embaixadas e consulados dispersos pelo mundo e também em Portugal e, assim, que tivéssemos pessoas a trabalhar nessas missões diplomáticas a ganhar um salário de 15,00€ mensais, que trabalhassem 24 horas dia e 8 dias por semana, sem férias, dias de descanso, fossem despedidas sem qualquer processo e sem necessidade de fundamento, tudo isto porque se entende em Tribunal se tratar de uma questão de politica salarial do foro do estado respetivo.
w) Como pode um cidadão explicar a um trabalhador do consulado no Porto ou de Faro ou de outra empresa publica ou provada e que trabalha as mesmas exatas horas, executa o mesmo serviço e tem as mesmas habilitações e antiguidade que o seu colega e ganha por mês menos € 500,00, € 600,00 ou € 700,00. Que justificação dar a estes trabalhadores?!!
y) O entendimento seguido no acórdão recorrido leva ainda a outras consequências, ao considerar os Tribunais portugueses internacionalmente incompetentes para conhecer da questão, colocando os trabalhadores na necessidade de terem de intentar a ação no país do consulado ou embaixada na qual trabalham.
r) Há que atender à natureza das atividades que integram as funções do trabalhador, devendo o Tribunal ponderar se o regime legal aplicável à relação laboral estabelecida entre o Autor e a Ré é substancialmente diferente do que liga qualquer outro trabalhador com as mesmas funções de auxiliar administrativo a um qualquer particular, uma empresa com varias delegações no país, Porto, Coimbra, Lisboa, Faro. Ninguém duvida que não poderia pagar salários diferentes a trabalhadores nas mesmas circunstâncias de trabalho.
s) No caso, a resposta é claramente negativa. Basta atentar no alegado no ponto 11.º da PI sobre a caracterização das tarefas exercidas pelo Autor: “O Autor presta a atividade de apoio administrativo nas diferentes áreas de atuação do consulado, procedendo ao atendimento ao público, à execução de tarefas de produção, trâmite, arquivamento e eliminação de expedientes e documentos, em atendimento às instruções dos servidores do quadro permanente do ministério das relações externas e outras de similar natureza.”
t) A relação de trabalho subordinado estabelecida entre o Autor e a Ré é regida pelo direito português, em termos idênticos a um qualquer contrato de trabalho celebrado com um particular, na sua veste civil, praticando, assim, um mero ato jure gestionis, e não, jure imperii.
u) Não existe, nenhuma Convenção, Tratado, ou norma, que diga implícita ou explicitamente, que diferenças salariais entre empresas, sucursais, Consulados ou Embaixadas, dentro do mesmo País, estão a coberto de Ius Imperium, até porque, além de ferir as normas que o Estado Português, tem o dever de cognição, mesmo dentro do próprio Consulado-Geral do Brasil no Porto e do Setor Consular da Embaixada do Brasil em Lisboa, existem funcionários locais.
v) Decorre do entendimento seguido no acórdão recorrido a violação do princípio constitucional “trabalho igual, salário igual”. Este princípio da igualdade de tratamento implica que se trate igualmente como situações iguais, sob pena de iniquidade. Ora, no caso vertente, é patente a desigualdade das situações, pelo que o acórdão violou o disposto no art.ºs 59.º, n.º 1 a) e 13.º, n.º 1 da CRP, ocorrendo inconstitucionalidade decorrente da não aplicação das normas da CRP.
x) Pelo que tem o Tribunal do Trabalho … competência internacional para conhecer do litígio pelo que devia ser julgada improcedente, de facto e de direito, a exceção da imunidade de jurisdição e da incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecer da ação invocada pela Ré atentos os elementos de conexão legalmente disponíveis.
z) O acórdão recorrido violou a lei substantiva os artigos 41.º do Código Civil, 8.º, n.º 4 da Constituição 18.º, n.º 2 e 19.º, do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000 e 11º da Convenção Internacional das Nações Unidas sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens, aprovada pela resolução da Assembleia da República n.º 46/2006, ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 57/2006 e publicada no DR, I série, de 20 de Junho de 2006 e as normas da lei processual, os artigos 59.º, 62.º, 63.º, 65.º, n.º 1 alínea d) e 94.º do CPC.
Deverá ser julgado procedente o recurso interposto, e em consequência revogado o acórdão recorrido, substituindo-o por outro que determine que a ação prossiga os seus termos, com a realização da instrução e da audiência de discussão e julgamento.
Assim, decidindo, far-se-á, JUSTIÇA.”
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A Ré EMBAIXADA DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL apresentou contra-alegações dentro do prazo legal, na sequência da notificação que para esse efeito lhe foi feita, tendo formulado as seguintes conclusões:
«1. O aqui Recorrente não se conformando com o douto Acórdão proferido a fls... que confirmou a decisão da 1.ª instância quanto aos pedidos:
A) Pagar ao Autor o montante correspondente ao diferencial entre o que lhe pagou e o que pagou aos trabalhadores com a mesma categoria administrativa e antiguidade no consulado e embaixada … a título de vencimento base, subsídio de férias e subsídio de Natal, desde Junho de 2005 até à presente data, deduzida a parte relativa a descontos obrigatórios para a Segurança Social e em sede de IRS, que a Ré deverá encaminhar para os serviços respetivos;
B) Pagar ao Autor os juros moratórios, vencidos e vincendos, à taxa legal, que incidem sobre o diferencial de cada uma dessas prestações - salários e subsídios de Natal e de férias - vencidas a partir de 30 de Junho de 2005 e a partir do vencimento respetivo, da data em que ocorreram os pagamentos, até efetivo e integral pagamento;
C) Condenada a Ré a partir da presente data, relativamente ao salário base, subsídios de Natal e de férias, a igualar o Autor relativamente aos trabalhadores com a mesma categoria administrativa e antiguidade no consulado e embaixada …, enquanto os mesmos continuarem a prestar trabalho igual, a que, em caso de incumprimento, acrescerão juros de mora, à taxa legal, desde o vencimento de cada uma das prestações, até integral e efetivo pagamento.
2. Julgando assim, improcedente o seu Recurso de Apelação quanto aos pedidos supra.
3. Vem agora o Recorrente interpor Recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça, alicerçando a sua admissibilidade em fundamentos cumulativos, alternativos e subsidiários;
(i) O recuso de revista deve ser admitido nos art.º 671.º, n.º 3, porquanto: “Considera o recorrente que se verificam os pressupostos de admissibilidade do recurso, na medida em que o acórdão do Tribunal da Relação decidiu a questão do recurso com base em fundamentação essencialmente diferente da que esteve na origem da sentença de a instância.”
(ii) Se assim, não se entender, em alternativa, admissão de recurso de revista excecional fundado nas alíneas b) e c) do n.º 1 do art.º 672.º do CPC, porquanto, estarmos perante uma questão de manifesta dificuldade e complexidade, cuja solução jurídica clama por estudo e reflexão, dada a sua relevância jurídica e a existência de interesses de particular relevância social.
(iii) Acaso ainda assim se não entenda, deverá ser admitido recurso de revista excecional fundado na alínea a) do n.º 1, do art.º 672.º CPC, porquanto o acórdão do Tribunal da Relação do Porto esta em oposição com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.03.2001, já transitado e do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.05.2011.
(iv) E, acaso ainda assim se não entenda, deverá o recurso de revista excecional fundado na alínea a) do n.º 1 , do art.º 672.º CPC, porquanto existir a necessidade de verificação do caso julgado formal.
4. Entende a Recorrida não assistir razão ao Recorrente, em nenhum dos fundamentos alegados para a admissão do Recurso.
5. Considera a Recorrida, que estamos perante uma situação/decisão de “dupla conformidade”, onde os juízes da secção social do Tribunal da Relação, por unanimidade, confirmaram, por acórdão, a sentença do Tribunal de 1.ª instância;
6. Mais, entende a Recorrida que a Recorrente delimita erradamente o objeto do presente Recurso, de forma a inscrevê-lo numa potencial situação de manifesta dificuldade e complexidade, cuja solução jurídica clama por estudo e reflexão.
7. Nesse conspecto, alega a Recorrida que o objeto do Recurso se circunscreve imunidade de jurisdição da Républica Federativa do Brasil, na definição das suas politicas salariais;
8. E não como define o Recorrente na complexidade das diferenças salariais aplicada nos diferentes postos da República Federativa do Brasil em Portugal.
9. Ainda entende e alega a Recorrida que não estamos perante casos julgados contraditórios, na justa medida em que os acórdãos sujeitos as oposições, referem-se a situações em que a entidade empregadora, mesmo sendo um posto diplomático, age no âmbito de atos de gestão;
10. E no caso do acórdão da Relação ora em crise, a Embaixada da República Federativa do Brasil em Portugal age no âmbito dos seus poderes de soberania;
11. Ainda, por último, referir que a Recorrente entende que não existe caso julgado formal e por tal não deve ser admitido o recurso de revista excecional baseado nesse fundamento, porquanto,
12. O Tribunal da Relação quando entendeu que no acórdão recorrido, no âmbito da sequência dos atos do processo judicial, existem as decisões finais, que põem termo ao processo, e as meramente interlocutórias, que vão sendo proferidas ao longo da instância desde a introdução do facto em juízo, e que vão resolvendo as várias questões suscitadas, até a decisão final.
13. O acórdão recorrido considerou que a primeira decisão, que decidiu que a Recorrente agiu no âmbito de atos de gestão, teve apenas em vista, resolver a questão concreta que então era colocada ao Tribunal, sobre a validade do ato de citação, nada mais que isso.
14. E não impedir que a Ré/Recorrida na contestação, momento processual de que dispõe para o efeito, ficasse impedida de invocar os meios de defesa que entendesse, onde se incluiu a exceção perentória de imunidade de jurisdição, máxime a competência do Tribunal para julgar o mérito da ação, porquanto a Recorrida na matéria de equivalência salarial age no âmbito dos seus poderes de império.
15. Pelo dito, também não deverá ser admitido o Recurso no que respeita à violação do caso julgado formal, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º CPC.
16. No mais, a Recorrida alega que Recorrente no presente Recurso limitou-se a “reproduzir” as alegações apresentadas em sede de petição inicial e posteriormente, em sede de recuso de apelação.
17. Não trazendo ao conhecimento deste Venerando Tribunal, nenhuma nova questão de mérito que ainda não tenha sido decidida pelo Tribunal de 1.ª instância e, pelo Tribunal da Relação.
18. Ou fundamentação diferente, que pudesse concorrer para uma decisão diferente por parte do STJ.
19. Tentando, com as mesmas alegações, mesmo estando perante uma “dupla conformidade” impeditiva da admissibilidade do Recuso de Revista nos termos do art.º 671.º, n.º 2 CPC, forçar o Supremo Tribunal de Justiça a pronunciar-se.
20. Configurando situações de (i) questão de manifesta dificuldade e complexidade, (ii) oposição de acórdãos contraditórios e (iii) caso julgado formal.
21. E em consequência, o Recorrente nas suas alegações nada acrescenta ao alegado, discutido e decidido em sede de Tribunal de 1.ª instância e em sede do Tribunal da Relação.
22. Razão pela qual, a aqui Recorrida reproduz tudo o já dito em sede de contestação e em sede de resposta ao recurso de apelação;
23. Bem como, adere na íntegra ao acórdão do Tribunal da Relação ora em crise, na parte relativa ao objeto do presente Recurso.
24. E neste conspecto, ademais, oferece o merecimento dos autos quanto ao mérito da decisão.
TERMOS EM QUE O PRESENTE RECURSO NÃO DEVE SER ADMITIDO,
A) DEVENDO SER REJEITADO POR MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA, E, EM CONSEQUÊNCIA,
B) DEVE O ACÓRDÃO OBJETO DO RECURSO SER CONFIRMADO POR ESSE VENERANDO TRIBUNAL!
FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA!»
*
O ilustre Procurador Geral Adjunto colocado junto deste Supremo Tribunal de Justiça proferiu, ao abrigo do número 3 do artigo 87.º do Código de Processo do trabalho, Parecer que vai no seguinte sentido:
«Por tudo o exposto, somos de parecer que o recurso deve ser considerado procedente, devendo o douto acórdão recorrido ser revogado em consonância.»
***
Tendo as partes sido notificadas do teor de tal Parecer, não veio o Autor responder-lhe dentro do prazo legal de 10 dias, ao contrário do que aconteceu com o Réu, que veio se opor ao teor do mesmo.
*
Cumpre apreciar e decidir em Conferência.
II – OS FACTOS
Os factos relevantes para a decisão do presente recurso de revista mostram-se referenciados no relatório deste Aresto cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
***
III – OS FACTOS E O DIREITO
É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e 679.º, 639.º e 635.º, n.º 4, todos do Novo Código de Processo Civil, salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 608.º n.º 2 do NCPC).
*
A – REGIME ADJECTIVO E SUBSTANTIVO APLICÁVEIS
Importa, antes de mais, definir o regime processual aplicável aos autos dos quais depende o presente recurso de revista, atendendo à circunstância da instância da ação declarativa com processo comum laboral ter sido intentada no dia 24/01/2023, com a apresentação, pelo Autor da sua Petição Inicial, ou seja, muito depois das alterações introduzidas pela Lei n.º 107/2019, datada de 4/9/2019 e que começou a produzir efeitos em 9/10/2019.
Tal ação, para efeitos de aplicação supletiva do regime adjetivo comum, foi instaurada depois da entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil, que ocorreu no dia 1/9/2013.
Será, portanto e essencialmente, com os regimes legais decorrentes da atual redação do Código do Processo do Trabalho e do Novo Código de Processo Civil como pano de fundo adjetivo, que iremos apreciar as diversas questões suscitadas neste recurso de Revista.
Também se irá considerar, em termos de custas devidas no processo, o Regulamento das Custas Processuais, que entrou em vigor no dia 20 de Abril de 2009 e se aplica a processos instaurados após essa data.
Importa, finalmente, atentar na circunstância dos factos que se discutem no quadro destes autos recursórios terem ocorrido sucessivamente na vigência dos Códigos de Trabalho de 2003 e 2009, que, como se sabe, entraram respetivamente em vigor em 1/12/2003 e 17/02/2009, sendo, portanto, os regimes deles decorrentes que aqui irão ser chamados à colação em função da factualidade a considerar e consoante as normas que se revelarem necessárias à apreciação e julgamento do objeto do presente recurso de Revista.
B – OBJETO DA PRESENTE REVISTA
Neste recurso de Revista está em causa decidir se:
- A decisão proferida em incidente de nulidade de citação constitui caso julgado relativamente à inexistência de imunidade de jurisdição da Ré e, em consequência, se a sentença violou aquele caso julgado;
- Em caso negativo, se os Tribunais Portugueses são internacionalmente competentes para conhecer dos pedidos a) a c) formulados pelo Autor.
C – DECISÃO SOBRE A NULIDADE DA CITAÇÃO E CASO JULGADO FORMAL
O Autor, no seu recurso de Apelação, suscitou igualmente esta questão, sustentando a formação de caso julgado formal [artigo 620.º do NCPC] quanto ao despacho judicial que indeferiu a nulidade de citação arguida pela Ré - e que não foi objeto de atempado recurso de Apelação por parte da EMBAIXADA DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL -, dado o tribunal da 1.ª instância, na correspondente fundamentação jurídica, ter-se socorrido do instituto da imunidade de jurisdição dos Estados, quando, no saneador/sentença veio a abordar a mesma problemática, mas já em sentido oposto [pelo menos parcialmente] ao apreciado no mencionado despacho judicial.
Ora, nesta matéria, ainda que compreendamos as dúvidas levantadas pelo recorrente quanto a tal problemática, temos que concordar com o Aresto proferido pelo Tribunal da Relação do Porto [TRP] quando sustenta que o despacho judicial que indeferiu a referida nulidade principal arguida pela Ré quanto à sua citação – e que se mostra transcrito no relatório do presente Acórdão - não se confunde em termos de objeto ou questão decidida, nem se equipara jurídica e processualmente, com o saneador/sentença que julgou procedente a exceção dilatória inominada de imunidade de jurisdição, nos moldes dele constantes.
Efetivamente, como se afirma, a certa altura da argumentação de direito de tal Acórdão do TRP, «É que, sendo verdade que, como antes dito, o Tribunal considerou então, na referida decisão que estaríamos no caso perante atos jure gestionis do Estado, aqui representado pela sua missão diplomática, ou seja a Ré, não é menos certo, porém, que tal pronúncia ocorreu no âmbito da apreciação concreta do ato de citação, no sentido de se apreciar se esse ato poderia ter sido praticado, como o foi, ou diversamente, do modo que defendia a então arguente, Ré na ação.
Ora, chamando-se de novo à atenção que, no encadeamento de atos que constitui o processo judicial, existem as decisões finais, que põem termo ao processo, e as meramente interlocutórias, que vão sendo proferidas ao longo da instância desde a introdução do facto em juízo, e que vão resolvendo questões diversas, até à prolação da decisão final, integra-se sem dúvidas no âmbito daquelas e não pois desta última, afinal, a decisão que o Recorrente invoca e em que pretende alicerçar os efeitos do caso julgado formal. Porém, sendo assim, não é menos certo que essa decisão teve apenas em vista, como dito, resolver a questão concreta que então era colocada ao Tribunal, ou seja da validade ou não do ato de citação, mas não mais, não tendo designadamente a virtualidade, até pela sua própria natureza, de impedir que a parte processual, no momento processual de que dispõe para o efeito, assim na contestação, de impedir que essa aí pudesse invocar todos os meios de defesa que entendesse, em que se inclui a matéria de exceção e em particular, já que é essa que veio a ser afirmada na decisão agora recorrida, a questão da competência do Tribunal. Ou seja, aquando da prolação do despacho saneador, para efeitos de pronúncia sobre a competência do tribunal, entendemos que o Tribunal recorrido poderia pronunciar-se, como o fez, sobre a matéria, incluindo os fundamentos de que veio a conhecer, em que se inclui o que é objeto de discórdia no presente recurso, por se nos afigurar que não se verifica o obstáculo que decorreria da existência de caso julgado formal.».
Logo, pelos fundamentos antes expostos, tem o presente recurso de revista de ser julgado improcedente quanto a esta primeira questão [formação de caso julgado formal e proibição do tribunal de comarca de voltar a apreciar e julgar no saneador/sentença a temática da imunidade de jurisdição da Ré quanto às três primeiras pretensões formuladas pelo Autor].
D – PEDIDOS DO AUTOR E IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO DA RÉ
Abordemos agora a segunda questão equacionada no recurso de Revista do Autor.
Se visitarmos as pretensões deduzidas pelo recorrente, depois de quantificadas em sede da Audiência Prévia [AP], deparamo-nos com os seguintes pedidos de condenação da Ré:
“A) Pagar ao Autor:
- As diferenças salariais conforme indicadas no artigo 45.º da petição inicial [6], no montante de 31.167,24 Euros;
- A quantia de 59.448,84 Euros relativa às retribuições mencionadas no artigo 46.º da petição inicial [7];
- A quantia de 83.895,00 Euros relativa às prestações salariais mencionadas no artigo 47.º da petição inicial [8];
- A quantia de 3.655,688 relativa às prestações salariais mencionadas no artigo 48.º da petição inicial [9], sem prejuízo da correção dos valores de acordo com as prestações salariais que realmente venham a ser apuradas em resultado dos documentos cuja junção é requerida por parte da Ré e também do que se requereu que fosse oficiado à Segurança Social.
B) Pagar ao Autor os juros moratórios, vencidos e vincendos, à taxa legal, que incidem sobre o diferencial de cada uma dessas prestações - salários e subsídios de Natal e de férias - vencidas a partir de 30 de Junho de 2005 e a partir do vencimento respetivo, da data em que ocorreram os pagamentos, até efetivo e integral pagamento;
C) Condenada a Ré a, partir da presente data, relativamente ao salário base, subsídios de Natal e de férias, a igualar o Autor relativamente aos trabalhadores com a mesma categoria administrativa e antiguidade no consulado e embaixada de Lisboa, enquanto os mesmos continuarem a prestar trabalho igual, a que, em caso de incumprimento, acrescerão juros de mora, à taxa legal, desde o vencimento de cada uma das prestações, até integral e efetivo pagamento.
D) Condenada a Ré no pagamento ao Autor da quantia de € 7.656,47, correspondente ao subsídio mensal de 4% para falhas, calculado sobre a remuneração certa mínima mensal prevista para a categoria profissional do período de 01.06.2005 a 31.12.2016, a que acrescem juros de mora vincendos, à taxa legal, até integral e efetivo pagamento.
E) Condenada a Ré no pagamento ao Autor da quantia de € 19.144.04, correspondente ao subsídio de refeição por cada dia completo de trabalho do período de 01.06.2005 a 31.12.2022, acrescido de juros de mora vincendos, à taxa legal, até integral e efetivo pagamento.
F) Condenada a Ré no pagamento ao Autor da quantia de € 29.627,33, correspondente ao período em que a Ré não deu formação aos trabalhadores, nem ao Autor ao longo dos anos de manutenção do contrato de trabalho 01.06.2005 a 31.12.2022, acrescido de juros de mora vincendos, à taxa legal, até integral e efetivo pagamento.”.
O tribunal da 1.ª instância julgou procedente a referida exceção dilatória quanto às pretensões do trabalhador constantes das alíneas a) a c) e considerou-se internacionalmente incompetente para os apreciar, nessa medida absolvendo, a empregadora da instância quanto às mesmas, vindo depois a absolver a aqui recorrida dos demais pedidos [10], por motivação de direito distinta daquela, por referência às acima reproduzidas alíneas d) a f), vindo posteriormente o Tribunal da Relação do Porto [TRP] a alterar tal saneador/sentença no que respeita a estes últimos pedidos, os quais determinou que fossem oportunamente julgados e decididos pelo Juízo do Trabalho do Porto.
Sendo assim, é por referência à verificação da referida imunidade de jurisdição e, nessa medida, da incompetência internacional dos tribunais de trabalho portugueses para conhecerem e decidirem os três primeiros pedidos deduzidos pelo recorrente que este recurso de revista foi interposto, nos termos dos números 1 e 2, alínea a) do artigo 629.º do NCPC, pelo Autor [não tendo a Ré recorrido de tal Aresto, na restante parte, em que revogou a dita sentença quanto aos demais pedidos, constantes das alíneas d) a f) e determinou o prosseguimento dos autos para efeitos do seu julgamento e decisão, tendo tal inação processual implicado o seu trânsito em julgado] [11].
O Autor recorrente veio alegar a celebração de um contrato de trabalho com a Ré EMBAIXADA DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL [no rigor dos conceitos, com este último Estado Federal] com vista ao exercício de funções subordinadas de auxiliar administrativo no consulado da recorrida acreditado no Porto e que se acha sujeito à legislação laboral nacional, o que nos reconduz a uma relação de direito privado, com vista ao desenvolvimento de uma atividade administrativa que não se situa, integra e concretiza ou executa os poderes próprios e imbuídos do jus imperii da República Federativa do Brasil.
O trabalhador da Ré invoca ainda, por parte desta e no âmbito da relação laboral assim constituída, um tratamento remuneratório desigual e discriminatório, em clara violação do princípio constitucional de salário igual para trabalho igual ou equivalente, no que toca aos valores mensais da sua retribuição-base e dos correspondentes subsídios de férias e de Natal, por referência e quando confrontados com os valores percebidos a esse mesmo título pelos seus colegas a desempenhar idênticas funções e com a mesma categoria profissional no Consulado da recorrida sediado em Lisboa, alegando, para o efeito, os factos concretos que evidenciam tais diferenças, aliás significativas, entre os correspondentes e acima descritos estatutos remuneratórios.
A sentença da 1.ª instância, muito em síntese, concluiu quanto a esta problemática o seguinte:
«Nos termos em que o autor configura a ação, nesta parte, ao que cremos não relevam atos de gestão em que o Estado Brasileiro tenha intervindo como um particular, mas atos de natureza soberana do Estado estrangeiro, porquanto estamos perante questões de política salarial transversal (na expressão usada pela Ré que aqui se acolhe) e que extravasam a relação laboral estabelecida, diga-se, entre o autor e o Consulado do Porto (e não, contrariamente ao que parece resultar da petição inicial, a Embaixada, com quem o autor não celebrou qualquer contrato de trabalho). Exemplificativo disso mesmo é o teor do documento n.º 11 junto com a petição inicial e que o Autor transcreve nos artigos 43.º e 44.º deste articulado, enviado pela Cônsul-Geral à Secretaria de Estado, alertando para os problemas decorrentes das diferenças salariais constatadas entre os trabalhadores afetos aos diferentes postos consulares.
Por conseguinte, reconhece-se a imunidade de jurisdição à República Federativa do Brasil, representada pela Embaixada em Portugal, na ação contra si instaurada pelo Autor, na parte relativa aos pedidos deduzidos sob as alíneas a) a c).
Consequentemente, estamos perante um caso de incompetência absoluta, em razão das regras de competência internacional, que constitui uma exceção dilatória, que é de conhecimento oficioso, mas foi arguida, e que obsta ao conhecimento do mérito da causa.
Assim sendo, declara-se a incompetência absoluta dos Tribunais Portugueses para apreciar e julgar a presente ação nessa parte, absolvendo-se correspondentemente a Ré da instância dos pedidos deduzidos sob as alíneas a) a c) – artigos 96.º, alínea a), 97.º, n.º 2, 98.º, 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, alínea a), 576.º, n.º 2, 577.º, alínea a) e 578.º, todos do Código de Processo Civil.» [a posição da 2.ª instância quanto a esta mesma matéria acha-se resumida no Sumário antes transcrito em Nota de Rodapé deste Aresto].
Procedamos então aqui e dada a temática em análise, à sintetização das duas perspetivas distintas que a nossa doutrina e jurisprudência têm assumido e que definem e caracterizam de maneira oposta a situação de imunidade de jurisdição, distinguindo-se entre as que lhe atribuem uma natureza impeditiva absoluta e que deriva do simples facto de os Estados serem demandados em quaisquer ações propostas nos tribunais de outros Estados, independentemente da sua natureza e objeto, e aquelas que reconhecem, ao lado dessa imunidade de cariz absoluto [e que se refere a situações em que estão em causa atos públicos e emergentes dos poderes soberanos do Estado que os executa], uma outra que possui uma índole meramente relativa e que admite a demanda judicial dos Estados nos tribunais de outros países [por estarem apenas em causa atos de mera administração ou gestão privada, praticados já fora do quadro daqueles poderes munidos de jus imperii].
Ora, partindo de tal cenário factual e jurídico e tendo em consideração as pretensões deduzidas pelo Autor nas três primeiras alíneas do seu petitório final – depois de corrigidas ou quantificadas em sede de Audiência Prévia – e a causa de pedir das mesmas, conforme alegada na Petição Inicial, o que dizer relativamente às decisões coincidentes das duas instâncias?
A primeira dúvida que se nos suscita nesta matéria, relativamente a tais julgamentos conformes, prende-se com a circunstância das duas decisões das instâncias não terem sequer equacionado – oficiosamente, dado a Ré não o ter invocado quanto a essas outras pretensões - idêntico cenário de incompetência internacional por força da imunidade de jurisdição do Estado brasileiro por referência às demais pretensões que foram formuladas e que se radicam na condenação da Ré no pagamento ao Autor dos créditos pecuniários emergentes das prestações laborais que se reconduzem vulgarmente ao denominado abono para falhas, ao subsídio de refeição ou alimentação e à formação profissional anual prevista no Código do Trabalho, dado que, segundo o demandante, as mesmas nunca lhe foram liquidadas ou disponibilizadas.
Se a Ré nunca lhe reconheceu e pagou tais prestações no quadro do contrato de trabalho com ele firmado e por força da legislação laboral e convencional pelo Autor invocada, não se poderia dizer que tal aconteceu por a REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, no exercício dos seus poderes soberanos, ter decidido não o fazer, à imagem do que aconteceu quanto às alegadamente diferentes retribuições liquidadas aos trabalhadores dos Consulados do Porto e de Lisboa e às inerentes diferenças salariais existentes entre o Autor e os seus colegas do Consulado … e decorrentes de tal cenário?
Importa, por outro lado, e olhando agora para os pedidos abrangidos pelas três primeiras alíneas do petitório final do Autor perguntar se, verdadeiramente e à imagem do que acontece com essas demais pretensões, não nos movemos igualmente no âmbito do referido contrato de trabalho e das normas legais e convencionais que, no nosso sistema jurídico, se aplicam aos direitos e deveres resultantes de um vínculo laboral?
Não ignoramos que a Ré e as instâncias entendem que as pretensões em questão têm de ser encaradas como «questões de política salarial transversal», que, nessa medida, se configuram como «atos de natureza soberana do Estado estrangeiro», mas, salvo o devido o respeito por tal posição, parece-nos que tal visão do problema incorre num vício de perspetiva.
Afigura-se-nos que o trabalhador recorrente não pretende que os tribunais de trabalho portugueses fixem, em substituição do Estado brasileiro, os salários que, em seu entender, deveriam ou devem ser pagos, em tese e em abstrato, ao Autor, como merecida contrapartida pecuniária da sua atividade profissional, mas antes demanda que aqueles cruzem o quadro remuneratório-base por ele efetivamente auferido com as condições remuneratórias dos demais trabalhadores do Consulado do Brasil … com a mesma categoria profissional e/ou funções com as disposições legais que constam da Constituição da República Portuguesa, dos Códigos do Trabalho de 2003 e 2009 e de demais legislação laboral aplicável e que proíbem que se verifiquem situações de discriminação salarial ou outras no seio de vínculos laborais vigentes em território nacional e que se encontrem sujeitos às referidas regras jurídicas.
Importa frisar nesta matéria que as remunerações em confronto foram todas estabelecidas pela Ré e, no caso concreto, serão elas e apenas elas que serão tomadas em consideração na necessária comparação que o princípio do trabalho igual, salário igual impõe e que pode redundar apenas na eventual condenação da demandada a pagar ao Autor os montantes mais altos praticados pela REPÚBLICA FEDERAL DO BRASIL no seu Consulado sito em Lisboa.
O Autor busca, através da propositura desta ação, que, com base no concreto contrato de trabalho celebrado com a REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL e nas condições salariais que desde 2005 lhe foram sendo concedidas pela sua entidade empregadora, os tribunais de trabalho competentes afiram se as mesmas se mostram conformes aos princípios e regras que regulam a igualdade salarial entre trabalhadores com idênticas funções e categoria profissional dentro de uma mesma organização como é estrutura consular brasileira sediada em Portugal, nada impedindo a Ré de, por seu turno, explicar e justificar as eventuais diferenças salariais que venham a ser demonstradas nos autos, de maneira a ilidir e afastar qualquer aparente cenário de discriminação salarial.
Neste preciso sentido parece ir o Parecer do ilustre Procurador-Geral Adjunto que foi proferido nestes autos recursórios e que sustenta, a dada altura, o seguinte:
«Sobre esta questão não conseguimos concordar, e com o devido respeito, com o acórdão recorrido.
Evitando repetir todas as considerações teóricas já expendidas nos autos sobre a problemática da imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro, sempre cumpre realçar que essa imunidade apresenta-se como corolário do princípio da igualdade entre Estados e radica no direito internacional público consuetudinário, de acordo com o qual nenhum Estado soberano está sujeito, contra sua vontade, à jurisdição de outro Estado.
O alcance dessa imunidade foi evoluindo de acordo com a prática, designadamente, jurisprudencial, dos diversos Estados que integram a comunidade internacional, sendo atualmente comummente reconhecida a tese da imunidade restrita, pela qual a imunidade jurisdicional deve ser limitada ou restrita, reconhecendo-a apenas quando existe uma atividade no âmbito do jure imperii, mas já não quando a mesma se desenvolve numa atuação de jure gestionis – cf., como mero exemplo, os acórdãos do STJ de 13-11-2002, proc. n.º 01S2172, e do STJ de 18-02-2006, proc. n.º 05S3279 [12].
Dúvidas não se colocam que em relação ao contrato de trabalho em causa não é invocável pela ré a imunidade jurisdicional – cf. art.º 11.º, n.º 1, da Convenção das Nações Unidas sobre as imunidades jurisdicionais dos estados e dos seus bens, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 46/2006, e ratificada pelo decreto do Presidente da República n.º 57/2006, com publicação no DR, I série, de 20.06.2006 [13] –, pelo que aquele aresto considerou os tribunais portugueses internacionalmente competentes quanto aos restantes pedidos.
Analisado o contrato de trabalho, verifica-se, no entanto, e facilmente, que o mesmo encontra-se sujeito à legislação portuguesa, conforme consta expressamente do seu clausulado.
Estipula-se na sua cl.ª 1.ª:
«O CONTRATADO é pelo presente contratado pelo CONTRATANTE, para, na qualidade de Auxiliar Administrativo, sob o regime jurídico da legislação portuguesa, Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto (Código do Trabalho) e demais disposições aplicáveis à espécie, na conformidade do que lhe faculta a lei brasileira, artigo 3.º do Decreto n.º 1570, de 21 de Julho de 1995.».
O que é confirmado pela cl.ª 15.ª:
«Fica entendido e esclarecido que, submetendo-se o presente contrato à legislação portuguesa, não se aplicam ao CONTRATADO quaisquer privilégios e imunidades de quaisquer espécies tendo em conta a Ordem Pública Interna do Estado Português em matéria de legislação trabalhista.».
Ora, o recorrente fundamenta o pedido efetuado nas als. a) a c) da PI no princípio da igualdade, na vertente de «trabalho igual, salário igual», conforme o previsto nos art.ºs 13.º, n.º 1, al. a), e 59.º, n.º 1, al. a), da CRP, e 24.º, n.ºs 1 e 2, al. c), e 270.º do CT. Ou seja, fundamenta aqueles pedidos com base na legislação portuguesa que rege a execução do contrato de trabalho em causa.
Não se vislumbra, portanto, qualquer distinção entre estes pedidos e os restantes para os quais o acórdão recorrido entendeu que não se aplicava a imunidade jurisdicional da ré.
É que esses pedidos decorrem diretamente da aplicação de direitos consagrados na legislação que lhe é aplicável, mais concretamente de princípios pelos quais se regem o contrato de trabalho em causa, não se extravasando a questão da própria interpretação e aplicação desse contrato.
A ré quando celebrou o contrato em causa, com a sujeição do mesmo à legislação laboral portuguesa, abdicou do seu jure imperii e passou a atuar no âmbito do jure gestionis, sendo que se a situação contende ou não com a política salarial transversal deixou de ser decisiva.
Apesar disso, e sem prejuízo do referido, a política salarial transversal da ré que terá servido de base para a concretização dessa discriminação salarial até pode, eventualmente, ser relevante, se devidamente fundada e justificada, mas já no âmbito da apreciação da aplicação do próprio princípio da igualdade salarial ao contrato de trabalho, uma vez que tal princípio admite, naturalmente, exceções.
Com efeito, se a diferenciação salarial assentar em critérios objetivos, com fundamento razoável, compreensível e equitativo que justifique essa prática remuneratória, ou seja, se se alicerçar em razões materialmente fundadas, e não discriminatórias, então essa diferenciação será legal [14].
Só que essa política salarial transversal da ré terá de se enquadrar no âmbito da legislação laboral portuguesa, uma vez que a própria ré assim o entendeu, ao celebrar o contrato de trabalho em causa sujeito ao enquadramento legal português.
Em suma, afigura-se-nos que a ré também não goza de imunidade jurisdicional em relação aos pedidos a) a c) da PI, pelo que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para a sua apreciação – cf. art.º 62.º e segs. do CPC.»
Concordando-se com o defendido no Parecer do Ministério Público e com o que demais se deixou explanado em termos de fundamentação no âmbito deste Aresto, há que revogar o acórdão recorrido prolatado pelo Tribunal da Relação do Porto, na parte em que confirmou a sentença da 1.ª instância e reafirmou que os três primeiros pedidos formulados pelo recorrente no final da sua Petição Inicial – e que foram, aliás, corrigidos ou completados em sede da Audiência Prévia [AP] realizada nos autos, como ressalta do Relatório deste Aresto – estavam abarcados pela invocada exceção dilatória inominada de imunidade de jurisdição, que determinava, assim, a incompetência internacional dos tribunais de trabalho nacionais para julgar aquelas pretensões.
Logo, pelo conjunto de fundamentos que deixámos acima expostos, tem o recurso de revista do Autor de ser julgado procedente, com a inerente alteração do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, na parte onde não reconheceu e declarou a competência internacional dos tribunais de trabalho portugueses para julgarem os pedidos constantes das alíneas a) a c) do petitório final da Petição Inicial do Autor, competência absoluta essa que agora se reconhece e declara no quadro deste Acórdão. com a inerente baixa dos autos às instâncias com vista à subsequente e normal tramitação dos mesmos, de acordo com as normas processuais aplicáveis, de maneira a serem oportunamente apreciadas e decididas aquelas pretensões.
IV – DECISÃO
Por todo o exposto, nos termos dos artigos 87.º, número 1, do Código do Processo do Trabalho e 629.º, número 2, alínea a), 679.º e 663.º do Novo Código de Processo Civil, acorda-se, neste Supremo Tribunal de Justiça, em julgar procedente o presente recurso de Revista interposto pelo Autor AA, com a inerente alteração do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto no sentido de se passar a reconhecer e a declarar a competência internacional dos tribunais de trabalho portugueses para julgarem os pedidos constantes das alíneas a) a c) do petitório final da Petição Inicial do Autor, com a inerente baixa dos autos às instâncias com vista à subsequente tramitação dos mesmos, de acordo com as normas processuais aplicáveis, de maneira a serem oportunamente apreciadas e decididas aquelas pretensões.
Custas do presente recurso a cargo da recorrida - artigo 527.º, número 1 do Novo Código de Processo Civil.
Registe e notifique.
Lisboa, 29 de janeiro de 2025
José Eduardo Sapateiro [Juiz-Conselheiro Relator]
Mário Belo Morgado [Juiz-Conselheiro Adjunto]
Júlio Gomes [Juiz-Conselheiro Adjunto]
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1. «45.º - Em resultado do procedimento salarial discriminatório entre os trabalhadores com funções de auxiliar administrativo a exercerem funções nas instalações da Ré no Porto e em Lisboa, o Autor no período entre 01.06.2005 a 01.03.2009, ou seja, ao longo do processamento de 52 retribuições mês e subsídios de Natal e de férias recebeu mensalmente menos € 599,37 de remunerações ilíquidas que os outros trabalhadores com a mesma categoria profissional a exercerem funções em Lisboa.»↩︎
2. «46.º - Como consequência do procedimento salarial discriminatório entre os trabalhadores com funções de auxiliar administrativo a exercerem funções nas instalações da Ré no Porto e em Lisboa, o Autor no período entre 01.04.2009 a 01.06.2015, ou seja, ao longo do processamento de 87 retribuições mês e subsídios de Natal e de férias recebeu mensalmente menos € 683,32 de remunerações ilíquidas que os outros trabalhadores com a mesma categoria profissional a exercerem funções em Lisboa.»↩︎
3. «47.º - Face ao procedimento salarial discriminatório entre os trabalhadores com funções de auxiliar administrativo a exercerem funções nas instalações da Ré no Porto e em Lisboa, o Autor no período entre 01.07.2015 a 01.10.2022, ou seja, ao longo do processamento de 105 retribuições mês e subsídios de Natal e de férias recebeu mensalmente menos € 799,00 de remunerações ilíquidas que os outros trabalhadores com a mesma categoria profissional a exercerem funções em Lisboa.»↩︎
4. «48.º - Face ao procedimento salarial discriminatório entre os trabalhadores com funções de auxiliar administrativo a exercerem funções nas instalações da Ré no Porto e em Lisboa, o Autor no período entre 01.11.2022 e 01.01.2023, ou seja, ao longo do processamento de 4 retribuições mês e subsídios de Natal e de férias recebeu mensalmente menos € 913,92 de remunerações ilíquidas que os outros trabalhadores com a mesma categoria profissional a exercerem funções em Lisboa.»↩︎
5. «Valor da ação:
Em face dos elementos do processo, que se consideram suficientes, da ausência de divergência entre as partes e revelando-se desnecessário qualquer arbitramento ou fixação incidental do valor da lide, ao abrigo do disposto no artigo 297.º, n.ºs 1 e 306.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, fixo o valor da ação em € 234.594,60 (duzentos e trinta e quatro mil quinhentos e noventa e quatro euros e sessenta cêntimos).»↩︎
6. «45.º - Em resultado do procedimento salarial discriminatório entre os trabalhadores com funções de auxiliar administrativo a exercerem funções nas instalações da Ré no Porto e em Lisboa, o Autor no período entre 01.06.2005 a 01.03.2009, ou seja, ao longo do processamento de 52 retribuições mês e subsídios de Natal e de férias recebeu mensalmente menos € 599,37 de remunerações ilíquidas que os outros trabalhadores com a mesma categoria profissional a exercerem funções em Lisboa.»↩︎
7. «46.º - Como consequência do procedimento salarial discriminatório entre os trabalhadores com funções de auxiliar administrativo a exercerem funções nas instalações da Ré no Porto e em Lisboa, o Autor no período entre 01.04.2009 a 01.06.2015, ou seja, ao longo do processamento de 87 retribuições mês e subsídios de Natal e de férias recebeu mensalmente menos € 683,32 de remunerações ilíquidas que os outros trabalhadores com a mesma categoria profissional a exercerem funções em Lisboa.»↩︎
8. «47.º - Face ao procedimento salarial discriminatório entre os trabalhadores com funções de auxiliar administrativo a exercerem funções nas instalações da Ré no Porto e em Lisboa, o Autor no período entre 01.07.2015 a 01.10.2022, ou seja, ao longo do processamento de 105 retribuições mês e subsídios de Natal e de férias recebeu mensalmente menos € 799,00 de remunerações ilíquidas que os outros trabalhadores com a mesma categoria profissional a exercerem funções em Lisboa.»↩︎
9. «48.º - Face ao procedimento salarial discriminatório entre os trabalhadores com funções de auxiliar administrativo a exercerem funções nas instalações da Ré no Porto e em Lisboa, o Autor no período entre 01.11.2022 e 01.01.2023, ou seja, ao longo do processamento de 4 retribuições mês e subsídios de Natal e de férias recebeu mensalmente menos € 913,92 de remunerações ilíquidas que os outros trabalhadores com a mesma categoria profissional a exercerem funções em Lisboa.»↩︎
10. Relativamente aos quais afirmou, previamente, na sua fundamentação, o seguinte: «Quanto a estes pedidos declara-se que o Tribunal é competente em razão da matéria, da hierarquia e da nacionalidade.»
Funda tal conclusão na seguinte argumentação jurídica:
«No que refere aos demais pedidos, a conclusão terá de ser diversa, porquanto nos situamos no domínio estrito da relação laboral e, concretamente, do alegado incumprimento de obrigações retributivas e formativas, as quais recaem sobre o empregador e dizem respeito a atos de gestão, subtraídos à imunidade de jurisdição (nem a ré alegou tal exceção por reporte a tais pedidos, diga-se em abono da verdade).»
Tal entendimento foi aceite pelo Tribunal da Relação do Porto, como aliás, resulta da revogação da sentença da 1.ª instância e do prosseguimento dos autos para efeitos da sua apreciação e decisão, depois da sua eventual instrução e realização da Audiência de Discussão e Julgamento, caso não existe motivo que a tal obste.↩︎
11. O Sumário desse Acórdão do Tribunal da Relação do Porto é por demais esclarecedor relativamente aos fundamentos que estiveram na base de tais distintas decisões:
«I - No âmbito do princípio da imunidade da jurisdição dos Estados, a teoria da imunidade jurisdicional absoluta reconhece a imunidade pelo simples facto de o Estado ser demandado.
II - De acordo com a perspetiva da imunidade relativa, os Estados beneficiam de imunidade para os atos jure imperii, mas não para os atos jure gestionis, por tal se entendendo aqueles em que os Estados intervêm como pessoa de direito privado em relações de direito privado, não exercendo poderes públicos no contexto dessas relações.
III - Para proceder a esta distinção quando se trate do Estado empregador, tem-se dado relevância à natureza do contrato e à natureza e objetivo das funções exercidas, permitindo-se ainda a interferência de outro tipo fatores na decisão sobre a imunidade, designadamente relacionados com o objeto do próprio processo.
IV - Não se assumem com a natureza de atos jure gestionis questões que, extravasando aquelas que estão diretamente referentes a um contrato de trabalho que tenha sido celebrado, estão já relacionadas com o modo como, exercitando interesses próprios de natureza pública, o Estado estrangeiro estas pretende tratar, dentro de opções que se integrarão nas suas exclusivas competências, como ocorre com a definição da política salarial transversal que esse pretendeu definir, ou seja, o quadro geral remuneratório que aquele Estado entendeu como sendo o mais ajustado para cada um dos seus postos de representação no estrangeiro, embaixadas e/ou postos consulados, naturalmente em função das especificidades de cada uma dessas representações.
V - O conhecimento do mérito no despacho saneador pressupõe que não existam factos controvertidos indispensáveis para esse conhecimento, ponderando as diferentes soluções plausíveis de direito, não sendo bastante que o juiz se considere habilitado a conhecer do mérito da causa segundo a solução que julga adequada, não tendo sequer fixado na decisão os factos concretos que considera já provados.»↩︎
12. Consultáveis em:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b3dd7ca224ab6e2f8025714d00333320?OpenDocument» - NOTA DE RODAPÉ DO TRASNCRITO PARECER, COM O NÚMERO 2↩︎
13. «Acessível em: https://www.ministeriopublico.pt/instrumento/convencao-das-nacoes-unidas-sobre-imunidades-jurisdicionaisdos-estados-e-dos-seus-0» - NOTA DE RODAPÉ DO TRASNCRITO PARECER, COM O NÚMERO 3↩︎
14. «Cf., a título de mero exemplo, os acórdãos do STJ de 07-04-2005, proc. n.º 04S4127, do STJ de 14-12-2016, proc. n.º 4521/13.7TTLSB.L1.S1, e do STJ 12-04-2024, proc. n.º 18474/21.4T8LSB.L1.S1, disponíveis, respetivamente, em:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c1174b421784f44680256ffc003d1a9c?OpenDocument» - NOTA DE RODAPÉ DO TRASNCRITO PARECER, COM O NÚMERO 4↩︎