Sumário
O titular de uma empresa responde pelos danos evitáveis através da adequada organização dos respectivos elementos — designadamente, através da adequada fiscalização dos respectivos trabalhadores.
Decisão Texto Integral
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Recorrente: Kawlalon — Unipessoal, Lda.
Recorrida: Fidelidade.— Companhia de Seguros, SA,
I. — RELATÓRIO
1. Fidelidade.— Companhia de Seguros, SA, propôs a presente acção declarativa contra Kawlalon — Unipessoal, Lda., pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia global de €45.590,11 euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação e até efectivo e integral pagamento.
2. A Ré contestou, defendendo-se por impugnação e por excepção.
3. Invocou o caso julgado formado sobre o despacho de homologação do acordo alcançado em sede de conciliação entre o sinistrado e a seguradora.
4. A Autora respondeu à excepção, pugnando pela sua improcedência.
5. O Tribunal de 1.ª instância julgou a acção parcialmente procedente, condenando a Ré a pagar à Autora a quantia de 22.795,05 euros.
6. Inconformadas, Autora e Ré interpuseram recursos de apelação.
7. O Tribunal da Relação:
I. — julgou totalmente procedente o recurso interposto pela Autora
II. — julgou totalmente improcedente o recurso interposto pela Ré
condenando a Ré a pagar à Autora a quantia de 45.590,11 euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da citação e até integral pagamento.
8. Inconformada, a Ré Kawlalon — Unipessoal, Lda., interpôs recurso de revista.
9. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:
I- No caso latente, apesar de se verificar a condenação da ora Recorrente em ambas as instâncias, não se verifica dupla conforme porquanto o âmbito da condenação foi aumentado em segunda instância.
II- Pelo exposto, é o presente recurso admissível quanto à totalidade do acórdão recorrido, ou, caso assim não se entenda, o que apenas por mera hipótese académica se admite, sempre será o mesmo admissível quanto à parte da condenação da Recorrente que extravasa a condenação em 1.ª instância, tudo nos termos do artigo 629.º, n.º 1 do CPC.
III- Guardado o devido respeito pelos Venerandos Desembargadores, no presente caso foi desrespeitada a força plena do meio de prova documental, imposta por regra vinculativa extraída de regime do direito probatório.
IV- Existia prova documental que foi ignorada no douto acórdão recorrido e que não o poderia ter sido, tornando assim possível ao tribunal de revista alterar a matéria fáctica em apreço.
V- E prova que não podia ter sido ignorada pelo douto tribunal recorrido, até porque, conforme consta da decisão recorrida, esse mesmo tribunal consultou e até utilizou imagens desse mesmo documento.
VI- Deveria ter sido dado como provado que “A Ré possuía plano específico para a execução dos trabalhos em altura, no qual constassem as medidas de segurança a adotar.” - passando tal facto a ser o facto 36 da matéria de facto dada como provada.
VII- Guardado o devido respeito, ao decidir como decidiu, o douto acórdão recorrido efetuou uma errónea interpretação e aplicação do disposto no artigo 342.º, 362.º a 368.º doC. Civil, desta forma incorrendo na sua violação.
VIII- A Recorrente não violou as normas de segurança, pois fez o que lhe era possível fazer, levando até ao limite as possibilidades que estão no seu completo domínio.
IX- O trabalhador sabia que não deveria estar no local em questão e não lhe foi ordenado pela Ré que ali permanecesse, podendo apenas a Ré conjeturar que aquele ali estivesse por força do alegado no artigo 56.º da contestação.
X- A existir violação das regras de segurança, o que apenas por mera hipótese académica se admite, a mesma então sempre teria de ser imputável aos trabalhadores que foram contra as instruções e formação facultadas pela Recorrente: o gruísta ao não se assegurar da inexistência de demais trabalhadores nos locais por onde iria passar a carga suspensa e ao sinistrado por apesar de saber que não podia permanecer naquele local, ainda assim ali ter permanecido.
XI- Guardado o devido respeito, ao decidir como decidiu, douta decisão recorrida efetuou uma errónea interpretação e aplicação do disposto nos artigos 18.º e 79.º da LAT.
XII- Subsidiariamente, nunca a responsabilidade do sinistro poderia ser atribuída na totalidade à Recorrente.
XIII- No cumprimento da alegada obrigação de pagamento à Recorrida, a Recorrente não se socorreu de quaisquer terceiros, logo, não poderá haver lugar à sua responsabilidade.
XIV- No limite, a existirem vários co-responsáveis, a Recorrida teria direito de regresso sobre cada um deles, não existindo aqui qualquer auxiliar no cumprimento da alegada obrigação que é distinta das obrigações que a Recorrente tinha perante terceiros–designadamente perante o dono de obra – onde, aí sim, recorreu a auxiliares e trabalhadores para cumprir a sua obrigação, sendo assim responsável por ela.
XV- Esta concorrência de culpas por parte de outros trabalhadores, colegas do sinistrado e pelo próprio sinistrado sempre contribuiriam decisivamente para o resultado final: a ocorrência do acidente que vitimou gravemente AA.
XVI- Os colegas de trabalho do sinistrado infringiram regras elementares de cuidado e cautela, delas tendo tido formação, e podiam e deviam ter atuado de modo diferente. Essas várias concausas contribuíram, todas elas, para a eclosão do evento danoso: acidente que feriu com gravidade o trabalhador AA e, face a todas as circunstâncias apuradas e acima referenciadas, nunca poderia a contribuição da Recorrente para a produção do sinistro ser valorada em mais de 50%.
XVII- Guardado o devido respeito, ao decidir como decidiu, a douta sentença recorrida efetuou uma errónea interpretação e aplicação do disposto no artigo 800.º do Código Civil.
Nestes termos e nos melhores de direito deve o douto acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que julgando a ação totalmente improcedente, absolva totalmente a Recorrente do pedido.
Só assim se fará Justiça!
10. A Autora contra-alegou, pugnando pela inadmissibilidade parcial e pela improcedência do recurso, em toda a extensão em que seja admitido.
11. Como o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cf. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. artigo 608.º, n.º 2, por remissão do artigo 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), as questões a decidir, in casu, são as seguintes:
— se o facto dado como provado sob o n.º 36 deve ser alterado para
A Ré possuía plano específico para a execução dos trabalhos em altura, devidamente aprovado pelo dono da obra, no qual [constavam] as medidas de segurança a adoptar
— se o acidente é imputável à Ré, por não ter adoptado as medidas de segurança exigíveis para a protecção dos trabalhadores,
— se o acidente é imputável ao sinistrado, por não ter adoptado as medidas de segurança exigíveis para a sua auto-protecção;
— se o acidente é imputável a terceiros (trabalhadores da Ré);
em caso de resposta afirmativa à questão III e/ou à questão IV,
— em que medida é que a responsabilidade da Ré deve ser limitada, atendendo à medida em que o comportamento do lesado e/ou o comportamento de terceiros contribuíram para o dano.
II. — FUNDAMENTAÇÃO
12. O acórdão recorrido deu como provados os factos seguintes:
1) A Autora é uma sociedade anónima que se dedica à atividade seguradora.
2) A Ré é uma sociedade comercial por quotas que se dedica à indústria da construção civil.
3) A Ré celebrou com a Autora contrato de seguro de acidentes de trabalho, titulado pela apólice AT......02 na modalidade de prémio fixo, mediante o qual transferiu para esta a reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho que o seu trabalhador AA, carpinteiro de 1ª., sofresse ao seu serviço com a remuneração anual à data do acidente que abaixo se descreve de €12.663,00 [€800,00 x 14 (de retribuição) + €133,00 x 11 (de subsídio de refeição)], nos termos das condições gerais e particulares da apólice (v. Docs. nºs. 1 e 2 juntos com a P.I.).
4) No dia 13 de fevereiro de 2019, pelas 12h.30m., o então trabalhador da Ré, AA, com a categoria profissional de carpinteiro de 1ª, nascido em .../.../1970, sofreu um grave acidente de trabalho ao serviço da Ré.
5) O acidente ocorreu numa obra de construção civil sita na Rua ..., ..., ... onde a Ré procedia à construção de uma moradia propriedade de BB.
6) Na referida hora e local, o trabalhador da Ré, CC, manobrador de grua, procedia à mudança de quatro painéis de cofragem de um local para outro local da obra (em suspenso).
7) Esses quatro painéis de cofragem de alumínio estavam empilhados num plano de terreno inclinado, como se apresenta na figura abaixo (pág. 17 do Doc. 66, junto com a P.I.):
8) E os painéis de alumínio são os seguintes (pág. 16 do Doc. 66, junto com a P.I.):
9) O sinistrado AA estava num plano inferior da construção, a descofrar uma sapata de um pilar, tal como resulta da fotografia junta na pág. 12 do Doc. 66, junto com a P.I.:
10) Os quatro painéis foram empilhados uns em cima dos outros, metal em contacto com metal, sem qualquer amarração e no painel de cima foram colocadas todas as porcas e parafusos de cada painel, o que foi concretizado por um outro trabalhador.
11) Eram 16 porcas Ø 100 e 16 parafusos de painel, a granel, também eles sem qualquer sistema de fixação que garantisse o transporte em altura sem risco de queda.
12) O manobrador da grua, CC, colocou o porta-paletes por baixo dos 4 painéis de cofragem, com as porcas e parafusos, referidos em 11), sensivelmente a meio dos mesmos, para posteriormente os elevar com o auxílio da grua, tal como resulta das seguintes imagens (v. páginas 11 e 18 do Doc. 66, junto com a P.I.):
13) Assim que o manobrador da grua elevou o porta-paletes que transportava os 4 painéis de cofragem com as porcas e parafusos, cerca de 1 (um) metro de altura, e de seguida puxou e virou para trás, os painéis desequilibraram-se e deslizaram nos garfos do porta-paletes, caindo na vertical no solo, na zona inferior da obra, onde se encontrava o sinistrado.
14) Os painéis caíram ao solo na vertical e tombaram sobre o sinistrado, tendo este sofrido vários ferimentos.
15) O manobrador da grua estava no solo com o comando e não viu o trabalhador AA no local onde este se encontrava.
16) Naquela data, a grua tinha uma deficiência no arranque da 1.ª mudança para a 2.ª mudança, provocando oscilações que destabilizavam as cargas.
17) A queda dos painéis ocorreu no local do sinistro, como ilustra a figura (pág. 13 do Doc. 66, junto com a P.I.):
18) O trabalhador sinistrado foi levado de urgência para o Hospital 1 em ... e, de seguida, transportado para o CH 2 onde deu entrada no serviço de Urgências pelas 19h.34m. com traumatismo grelha costal, traumatismo da bacia e traumatismo facial produzidos pela queda e choque dos painéis de cofragem sobre o seu corpo (v. doc. nº 3, junto com a .I.).
19) Nesse serviço, foi-lhe diagnosticada fratura de quatro arcos costais com enfisema subcutâneo, fratura dos ossos próprios do nariz e fratura acetabular com luxação da cabeça do fémur.
20) O trabalhador foi submetido a redução da luxação e aplicada tração esquelética à tuberosidade anterior da tíbia, permanecendo internado no Serviço de Ortopedia até 20/03/2019.
21) Foi participado à A. o acidente de trabalho e o trabalhador sinistrado foi assistido nos seus serviços clínicos, no Hospital 3, em ..., onde realizou TAC da bacia no dia 15/05/2019, que revelou fratura do acetábulo direito com afastamento dos topos ósseos e desalinhamento da superfície articular e fratura arrancamento na cabeça do fémur com necrose vascular.
22) Foi submetido a artroplastia total da anca direita em 12/08/2019, cumpriu tratamento de Medicina Física e Reabilitação entre 29/05/2019 e 24/06/2019 e teve alta a 12/11/2020, com uma incapacidade permanente parcial fixável em 67,5% (já incluído o fator de bonificação de 1,5 em função da idade), sendo as sequelas sofridas no descrito acidente causa de incapacidade permanente absoluta para a atividade profissional habitual (v. doc. nº 4 junto com a P.I.).
23) A Autora assumiu a responsabilidade do trabalhador da Ré por força do contrato de seguro de acidentes de trabalho supra alegado.
24) Na tentativa de conciliação que teve lugar no dia 8 de Março de 2022, no âmbito do processo de acidente de trabalho que correu seus termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Procuradoria do Juízo de Trabalho da ..., sob o nº 821/20.8... (Fase Conciliatória), a A. acordou com o trabalhador da Ré, AA, pagar-lhe:
1)- Indemnização, nos termos dos Arts. 23º, al. b), 47º, n.º 1, al. a), 48º, n.º 1 e n.º 3, al. d) e 50º da Lei n.º 98/2009, do período de Incapacidade Temporária Absoluta (638 dias), no montante de €8.864,10, nos primeiros 12 meses, e de €7.103,42, após 12 meses, num total de €15.967,52, deduzida a quantia já paga pela seguradora, o que dá um total de € 41,57 (€15.967,52 - €15.925,95);
2)- Pensão anual e vitalícia, nos termos dos Arts. 23º, al. b), 47º, n.º 1, al. c), 48º, n.º 2 e n.º 3, al. b), 71º e 75º da Lei n.º 98/2009, devida desde 13/11/2020, no valor de € 8.041,01, passando essa pensão a ser de €8.121,42 para o ano de 2022;
3)- Subsídio por situações de elevada incapacidade permanente, nos termos dos arts. 23º, al. b), 47º, n.º 1, al. d), 48º, n.º 2 e 67º, n.º 3 da Lei n.º 98/2009, no valor de € 5.191,21;
4)- O montante gasto em deslocações obrigatórias, nos termos do Art. 39º, n.os 1 e 2 da Lei n.º 98/2009 – € 15,00 -, para ida ao INML;
5)- Juros de mora à taxa legal, sobre cada uma das prestações devidas, desde o respetivo vencimento e até integral pagamento (v. doc. nº 5, junto com a P.I.).
25) O aludido acordo foi homologado por decisão judicial notificada à A. em 24 de Março de 2022 e transitada em julgado (v. doc. nº 6, junto com a P.I.), sem prejuízo da A. vir a demandar a Ré pela violação das regras de segurança na obra, causa do acidente.
26) Em cumprimento da relação contratual de seguro de acidentes de trabalho estabelecida com a Ré, titulada pela apólice acima mencionada, a A. suportou até à data as seguintes quantias em consequência do acidente de trabalho ocorrido com o trabalhador da Ré, AA:
- € 15.967,52 em indemnização por ITA; - €1.144,00 em honorários, consultas e cirurgias; - €6.507,06 em despesas médicas; - €864,94 em elementos auxiliares de diagnóstico; - €2.740,05 em aparelhos e próteses; - €15,00 em transportes;
- €276,98 em juros de mora; - €132,60 em despesas de tribunal; - €12.750,75 em pensões;
- €5.191,21 em subsídio por elevada incapacidade permanente, num total de €45.590,11 (v. docs. nºs 7 e 64, juntos com a P.I.).
27) O manobrador da grua possuía, à data do acidente, formação adequada para exercer essa função.
28) A Ré forneceu aos seus funcionários um manual com orientações para aplicação de regras sobre saúde e segurança no local de trabalho, sob o título “Sensibilização de Segurança em Obra – ...” (v. Doc. 66, mais concretamente na parte do relatório de averiguação).
29) (Retirado dos factos provados)
30) As porcas e os parafusos pertencentes aos painéis não estavam no centro do monta-cargas.
31) (Passou para os não provados).
32) Ninguém se assegurou que inexistiam trabalhadores por perto.
33) (Passou para os não provados).
34) O manobrador da grua tinha formação adequada fornecida pela Ré para o transporte de cargas em altura sem risco de queda, tendo conhecimento que devia assegurar-se que essas cargas, nomeadamente, não passavam por cima dos trabalhadores da obra em causa.
35) Os quatro painéis de cofragem não estavam amarrados nem dispunham de qualquer dispositivo que garantisse a sua manutenção no porta-paletes ao longo do trajeto pelo ar, desde a sua elevação à sua receção no solo.
36) A Ré não possuía plano específico para a execução dos trabalhos em altura, devidamente aprovado pelo dono da obra, no qual constassem as medidas de segurança a adotar.
13. Em contrapartida, o acórdão recorrido deu como não provados os factos seguintes:
a) O acidente que vitimou o trabalhador da Ré deveu-se, exclusivamente, à conduta culposa desta.
b) Para evitar a deslocação do porta-paletes no início da elevação, sobretudo quando aqueles se encontravam num plano de terreno inclinado - proveniente da redação inicial do facto provado 29. c) «...num dos topos» - proveniente da redação inicial do facto provado 30.
d) Ao empilhamento dos painéis, já que o contacto metal com metal tem menos aderência do que metal com madeira ou contraplacado marítimo.» - anterior facto provado 31.
e) Ao descuido na elevação dos painéis quando já era aparente que os mesmos estavam em desequilíbrio e que poderia ocorrer deslizamento - proveniente da redação inicial do facto provado 32.
f) E à falha na instalação e manutenção da grua, que sempre que inicia a rotação para a esquerda ou direita, começa muito rápido provocando uma espécie de esticão, o que origina um tombar das cargas para o lado em que é feita a rotação e, se o operador não tiver cuidado ao pressionar o comando de rotação, a grua passa da primeira a segunda velocidade muito rápido - anterior facto provado 33.
O DIREITO
14. As partes discutem a admissibilidade do recurso, atendendo à dupla conforme.
15. O Autor, agora Recorrido, alega que o Supremo Tribunal de Justiça não pode pronunciar-se sobre se o facto dado como provado sob o n.º 36 deve ser alterado e sobre se o acidente é imputável à Ré, por não ter adoptado as medidas de segurança exigíveis, em consequência de a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância ter sido confirmada, sem fundamentação diferente pelo Tribunal da Relação 1.
16. Em consequência, o Supremo Tribunal de Justiça só poderia pronunciar-se sobre se o acidente é imputável a terceiros (trabalhadores da Ré) 2 e, eventualmente, sobre a medida em que a responsabilidade da Ré deve ser limitada 3.
17. Quanto à primeira questão — se o facto dado como provado sob o n.º 36 deve ser alterado — concorda-se com o Autor, agora Recorrido:
18. Em primeiro lugar, a Ré, agora Recorrente, não suscita uma questão relacionada com as regras de direito probatório material.
19. O art. 674.º, n.º 3, do Código de Processo Civil é do seguinte teor:
3. — O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
20. O teor das conclusões do recurso de revista dá a impressão de que a Ré, agora Recorrente, suscita uma questão relacionada com o ónus da prova, invocando o artigo 342.º do Código Civil 4, ou uma questão relacionada com a força probatória dos documentos, invocando os arts. 362.º a 368.º do Código Civil 5.
21. Em todo o caso, a impressão dada pelo teor das conclusões do recurso de revista desfaz-se desde que se confronte o dado como provado sob o n.º 28 com o facto dado como provado sob o n.º 36:
28 — A Ré forneceu aos seus funcionários um manual com orientações para aplicação de regras sobre saúde e segurança no local de trabalho, sob o título “Sensibilização de Segurança em Obra – ...” (v. Doc. 66, mais concretamente na parte do relatório de averiguação).
36 — A Ré não possuía plano específico para a execução dos trabalhos em altura, devidamente aprovado pelo dono da obra, no qual constassem as medidas de segurança a adotar.
22. A Ré, ao alegar que possuía plano específico de que constavam as medidas de segurança a adoptar, está em substância a alegar que o “manual com orientações para aplicação de regras sobre saúde e segurança no local de trabalho, sob o título ‘Sensibilização de Segurança em Obra – ...’ seja qualificado como “plano específico para a execução dos trabalhos em altura, devidamente aprovado pelo dono da obra, no qual [constavam] as medidas de segurança a adotar”.
23. Ora a questão da qualificação do manual Sensibilização de segurança em obra como plano para a execução dos trabalhos de que constassem as medidas de segurança a adoptar não é uma questão de facto — e, em todo o caso, não é uma questão de facto cuja resolução dependa das regras de direito probatório, formal ou material: contrariamente àquilo que alega a Ré, agora Recorrente, não tem nada a ver com o ónus da prova e, contrariamente àquilo que alega a Ré, agora Recorrente, não tem nada a ver com a força probatória dos documentos.
24. Em segundo lugar, ainda que a Ré, agora Recorrente, tivesse suscitado uma questão relacionada com as regras de direito probatório material, sempre o recurso de revista da decisão proferida pelo Tribunal da Relação teria de defrontar-se com o impedimento da dupla conforme.
25. Quanto à apreciação da segunda questão — se o acidente é imputável à Ré, por não ter adoptado as medidas de segurança exigíveis —, não se concorda com o Autor, agora Recorrido.
26. O acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/2022, de 20 de Setembro de 2022, concretiza o critério do art. 671.º, n.º 3, nos seguintes termos:
Em acção de responsabilidade civil extracontratual fundada em facto ilícito, a conformidade decisória que caracteriza a dupla conforme impeditiva da admissibilidade da revista, nos termos do artigo 671.º, n.º 3, do CPC, avaliada em função do benefício que o apelante retirou do acórdão da Relação, é apreciada, separadamente, para cada segmento decisório autónomo e cindível em que a pretensão indemnizatória global se encontra decomposta.
27. Face ao acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/2022, deve averiguar-se se as duas questões correspondem a segmentos autónomos e cindíveis.
28. Em concreto, a resposta é — só pode ser — uma resposta negativa: só pode averiguar-se o acidente é imputável ao lesado ou a terceiros desde que saiba se o acidente é imputável à Ré; só pode averiguar-se a medida em que a imputação do acidente ao lesado ou a terceiros limita a responsabilidade da Ré desde que se saiba a medida em que o incidente é imputável à Ré.
29. Excluída a primeira questão, deverá apreciar-se a segunda, a terceira e a quarta.
30. A segunda questão suscitada pela Ré, agora Recorrente, consiste em averiguar se o acidente é imputável à Ré, por não ter adoptado as medidas de segurança exigíveis.
31. O Tribunal de 1.ª instância e o Tribunal da Relação concordaram em dar-lhe uma resposta afirmativa.
32. O acórdão recorrido alude, com algum desenvolvimento, a cinco circunstâncias que concorreram para o acidente: “a falta de uma planificação acerca do deslocamento das cargas”; “[o] facto [de a] carga não ter sido imobilizada com o auxílio de correntes ou cordas; “[o] facto [de os] painéis e [de os] acessórios terem sido transportados num porta-paletes”; “[o] facto [de as] porcas e [de os] parafusos não [terem sido] colocad[os] no centro do porta-paletes ou o seu peso distribuído de modo uniforme pela superfície dos painéis”; e, enfim, o facto de terem sido deslocadas cargas suspensas sobre locais de trabalho não protegidos.
33. A resposta do Tribunal da Relação deve subscrever-se sem qualquer reserva:
“Os quatro painéis foram empilhados uns em cima dos outros, metal em contacto com metal, sem qualquer amarração” 6 ou sistema de fixação que prevenisse o risco de queda 7; “no painel de cima foram colocadas todas as porcas e parafusos de cada painel” 8, sem sequer se ter tido a preocupação de que ficassem no centro do monta-cargas 9; em termos em tudo semelhantes aos painéis, as porcas e os parafusos foram colocados “sem qualquer sistema de fixação que garantisse o transporte em altura sem risco de queda” 10.
34. Em resposta à segunda questão, dir-se-á que o acidente deve considerar-se imputável à Ré, agora Recorrente, por se ter provado que não adoptou as medidas de segurança exigíveis para a protecção dos trabalhadores.
35. A terceira questão consiste em averiguar se o acidente é imputável ao sinistrado por não ter adoptado as medidas de segurança exigíveis para a sua auto-protecção.
36. A Ré, agora Recorrente, alega que
IX- O trabalhador sabia que não deveria estar no local em questão e não lhe foi ordenado pela Ré que ali permanecesse, podendo apenas a Ré conjeturar que aquele ali estivesse por força do alegado no artigo 56.º da contestação
e que
XV- [a] concorrência de culpas por parte de outros trabalhadores, colegas do sinistrado e pelo próprio sinistrado sempre contribuiriam decisivamente para o resultado final: a ocorrência do acidente que vitimou gravemente AA.
37. O artigo 570.º do Código Civil determina que, “[q]uando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída” 11.
38. Em complemento do artigo 570.º do Código Civil, o artigo 572.º esclarece:
“Àquele que alega a culpa do lesado incumbe a prova da sua verificação; mas o tribunal conhecerá dela, ainda que não seja alegada” 12.
39. O único facto relacionado com o comportamento do sinistrado é o facto dado como provado sob o n.º 9:
9) O sinistrado AA estava num plano inferior da construção, a descofrar uma sapata de um pilar, tal como resulta da fotografia junta na pág. 12 do Doc. 66, junto com a P.I.
40. Ora do facto dado como provado sob o n.º 9 não pode deduzir-se nenhum comportamento doloso ou sequer negligente do sinistrado que tenha concorrido para a causação ou sequer para o agravamento dos danos.
41. Em resposta à terceira questão, dir-se-á que o acidente não deve considerar-se imputável ao Autor, agora Recorrido, por não se ter provado que não tenha adoptado as medidas de segurança exigíveis para a sua auto-protecção.
42. A quarta questão consiste em averiguar se o acidente é imputável a terceiros (aos trabalhadores) da Ré.
43. O Tribunal de 1.ª instância considerou que sim, explicando que o fazia pelas razões seguintes:
“para além de algumas regras de segurança infringidas pela entidade patronal […], houve ainda outros fatores a contribuírem para a produção do acidente.
São eles: a circunstância de um dos trabalhadores da Ré, de modo descuidado, ter disposto as porcas e os parafusos num dos topos dos painéis de cofragem, em vez de ter sido distribuído o peso desse material ao longo dos painéis; e ter empilhado os painéis, colocando em contacto metal com metal; e ainda o facto de o manobrador, de forma pouca atenta, ter elevado os painéis quando já era aparente que os mesmos estavam em desequilíbrio e que poderia ocorrer deslizamento, assim como não [se ter assegurado de] que inexistiam trabalhadores por perto […]
Os colegas de trabalho do sinistrado infringiram regras elementares de cuidado e cautela, delas tendo tido formação, e podiam e deviam ter atuado de modo diferente […], [contribuindo] para a eclosão do evento danoso: acidente que feriu com gravidade o trabalhador AA […]”.
44. O Tribunal da Relação considerou que não, imputando o comportamento dos trabalhadores à Ré, agora Recorrente, por aplicação do art. 800.º do Código Civil:
“a lei protege[ria] […] o credor […], dispondo que é indiferente quem no âmbito da organização da empresa Ré foi o culpado pelo surgimento dos danos, desde que estes sejam imputáveis à actividade da empresa Ré”.
45. O artigo 800.º do Código Civil, sob a epígrafe Actos dos representantes legais ou auxiliares, dispõe:
O devedor é responsável perante o credor pelos actos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor.
46. A Ré, agora Recorrente, alega em síntese que o art. 800.º do Código Civil não é aplicável ao caso sub judice, por não ser adequado representar-se a relação entre o Autor, agora Recorrido, e a Ré, agora Recorrente, como uma relação obrigacional em que o sinistrado é credor e a Ré, devedora de uma obrigação e, sobretudo, por não ser adequado representar-se os trabalhadores da Ré como auxiliares, como pessoas que a Ré utilize para o cumprimento de uma obrigação para com o Autor.
47. Embora a alegação da Ré, agora Recorrente, seja em substância correcta, deve entender-se que a responsabilidade do devedor pelos actos de auxiliares é, tão-só, um afloramento de um princípio geral de responsabilidade do devedor pelos elementos da sua empresa — ou, em termos mais amplos, pelos elementos da sua organização 13.
48. O caso será de uma culpa de organização 14, de alguma forma comparável à culpa de serviço admitida e reconhecida no regime da responsabilidade civil do Estado 15.
49. Face ao princípio de responsabilidade pela culpa de organização deduzido do art. 800.º do Código Civil, o titular de uma empresa deverá responder por todos os danos evitáveis através da adequada organização dos elementos da sua empresa — designadamente, através da adequada fiscalização dos seus trabalhadores.
50. Carneiro da Frada chama a atenção para que, “[n]o apuramento das falhas de organização que desencadeiam a responsabilidade há que levar em conta o tipo de risco envolvido, a sua recognoscibilidade, a adequação e a exigibilidade de medidas organizatórias destinadas a evitá-lo” 16.
51. Em concreto, o tipo de risco era facilmente recognoscível, o tipo de danos relacionado com a concretização do risco grave ou muito grave e as medidas organizatórias relacionadas com a adequada fiscalização dos trabalhadores, absolutamente necessárias.
52. O acórdão recorrido, ao excluir a limitação da responsabilidade da Ré, aplicou correctamente o direito: O sinistrado deverá ter direito à indemnização pelos danos decorrentes de quaisquer coisas ou de quaisquer pessoas integradas na empresa Ré (“no âmbito da organização da empresa Ré”) — e, em consequência, a Autora, agora Recorrida, deverá ter direito de regresso pelos danos imputáveis à culpa, ainda que a uma culpa de organização, da Ré, agora Recorrida.
53. Em resposta à quarta questão, dir-se-á que o acidente não deve considerar-se imputável a terceiros, para efeitos de excluir ou de limitar a responsabilidade da Ré.
54. As respostas dadas à terceira e à quarta questões fazem com que fique prejudicada a quinta — em que medida é que a responsabilidade da Ré deve ser limitada, atendendo à medida em que o comportamento do lesado e/ou o comportamento de terceiros contribuíram para o dano.
III. — DECISÃO
Face ao exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o acórdão recorrido.
Custas pela Recorrente Kawlalon — Unipessoal, Lda.
Lisboa, 27 de Fevereiro de 2025
Nuno Manuel Pinto Oliveira
José Maria Ferreira Lopes
Maria de Deus Correia
__________
1. Cf. art. 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
2. Cf. conclusões XII-XVII do recurso de revista.
3. Cf. conclusão XVI do recurso de revista.
4. Cf. conclusão VII do recurso de revista.
5. Cf. conclusão VII do recurso de revista.
6. Cf. facto dado como provado sob o n.º 10.
7. Cf. facto dado como provado sob o n.º 35 — sem “qualquer dispositivo que garantisse a sua manutenção no porta-paletes ao longo do trajeto pelo ar, desde a sua elevação à sua receção no solo”.
8. Cf. facto dado como provado sob o n.º 10.
9. Cf. facto dado como provado sob o n.º 30.
10. Cf. facto dado como provado sob o n.º 11.
11. Sobre a interpretação do artigo 570.º do Código Civil, vide por todos Fernando Andrade Pires de Lima / João de Matos Antunes Varela (com a colaboração de Manuel Henrique Mesquita), anotação ao art. 570.º, in: Código civil anotado, vol. I — Artigos 1.º-761.º, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, págs. 585-586; António Menezes Cordeiro / A. Barreto Menezes Cordeiro, anotação ao art. 570.º, in: António Menezes Cordeiro (coord.), Código Civil comentado, vol. II — Das obrigações em geral, Livraria Almedina, Coimbra, 2021, págs. 585-586, ou José Carlos Brandão Proença, anotação ao art. 570.º, in: Luís Carvalho Fernandes / José Carlos Brandão Proença (coord.), Código Civil anotado, vol. II — Direito das obrigações. Das obrigações em geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, págs. 576-580.
12. Sobre a interpretação do artigo 572.º do Código Civil, vide por todos Fernando Andrade Pires de Lima / João de Matos Antunes Varela (com a colaboração de Manuel Henrique Mesquita), anotação ao art. 572.º, in: Código civil anotado, vol. I — Artigos 1.º-761.º, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pág. 589; António Menezes Cordeiro / A. Barreto Menezes Cordeiro, anotação ao art. 572.º, in: António Menezes Cordeiro (coord.), Código Civil comentado, vol. II — Das obrigações em geral, Livraria Almedina, Coimbra, 2021, págs. 586-587; ou José Carlos Brandão Proença, anotação ao art. 572.º, in: Luís Carvalho Fernandes / José Carlos Brandão Proença (coord.), Código Civil anotado, vol. II — Direito das obrigações. Das obrigações em geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, págs. 582-583.
13. Vide, por todos, Manuel Carneiro da Frada, Contrato e deveres de protecção, Coimbra, 1994, págs. 203-217; Manuel Carneiro da Frada, Direito civil. Responsabilidade civil — O método do caso, Livraria Almedina, Coimbra, 2006, págs. 86-87; Jorge Ferreira Sinde Monteiro, “Ofensa ao crédito ou ao bom nome, ‘culpa de organização’ e responsabilidade da empresa”, in: Revista de legislação e de jurisprudência, ano 139.º (Novembro-Dezembro de 2009), págs. 117-136; António Pinto Monteiro, “Exclusões de responsabilidade na actividade médica”, in: André Gonçalo Dias Pereira / Filipe Albuquerque Matos / Javier Barceló Domenech / Nélson Rosenvald (coord.), Responsabilidade civil em saúde — Diálogo com o Doutor Jorge Sinde Monteiro, Centro de Direito Biomédico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2021, págs. 43-58 (45-46); Manuel Carneiro da Frada, Direito civil. Responsabilidade civil — O método do caso, Livraria Almedina, Coimbra, 2006, págs. 86-87; Manuel Carneiro da Frada, “Dever de legalidade dos administradores e responsabilidade civil societária”, in: IV Congresso Direito das sociedades em revista, 2016, págs. 17-27; Mafalda Miranda Barbosa, “Responsabilidade civil por acto de terceiro: Entre a culpa, o risco e a confiança”, in: Revista de direito da responsabilidade, ano 3.º (2021), págs. 1038-1084, ainda que contestando a colocação do caso no sistema da responsabilidade por actos de auxiliares do artigo 800.º do Código Civil; ou Cláudia Madaleno, A responsabilidade obrigacional objetiva por facto de outrem, dissertação de doutoramento, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2014, págs. 595-596.
14. Cf. acórdão do STJ de 22 de Junho de 2004 — processo n.º 04A1299.
15. Cf. art. 7.º, n.ºs 3 e 4, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, entretanto alterada pela Lei n.º 31/2008, de 17 de Julho.
16. Manuel Carneiro da Frada, Direito civil. Responsabilidade civil — O método do caso, cit., pág. 87.