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Jurisprudência
Sumário

I. A possibilidade de no decurso do processo (observados os limites marcados pelo objeto do litígio) se proceder à concretização de expressões conclusivas/genéricas (ou, noutra formulação, de factos jurídicos) e, em geral, ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, consubstancia um princípio geral de direito processual, com afloramentos, designadamente, nos arts. 5º, nº 2, a) e b), 590º, nº 2, b), e 4 a 7, e 602º, nº 1, in fine, do CPC, e, quanto ao processo penal, no art. 358º, do CPP, que prevê e regula a alteração não substancial dos factos descritos na acusação e na pronúncia.

II. No tocante ao processo laboral, o art. 72º, nºs 1 e 2, do CPT, prevê ainda um mecanismo tendente a tomar em consideração na sentença factos essenciais tidos por relevantes para a boa decisão da causa que, embora não articulados, surjam no decurso da produção da prova.

III. Neste contexto, e tendo em conta os imperativos de unidade e coerência do sistema jurídico, afigura-se-nos que nada obsta a que a “indicação sucinta dos factos” que deve integrar a comunicação escrita dirigida pelo trabalhador ao empregador, para efeitos de resolução do contrato de trabalho (art. 395º, nº 1, do CT), inclua – para além de factos estritamente materiais – expressões desprovidas de adequada densificação, embora suscetíveis de concretização no decurso do processo, maxime, na petição inicial, como manifestamente acontece no caso vertente, em que comportamentos suscetíveis de constituir o invocado assédio moral e sexual são alegados de forma concreta e exaustiva naquele articulado.

Decisão Texto Integral

Revista n.º 1794/23.0T8MTS-A.P1.S1

MBM/DM/JES

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

I.

1. AA instaurou contra LIDL & CIA. ação com processo comum, pedindo, designadamente, a condenação desta a reconhecer a licitude (justa causa) da resolução do contrato de trabalho por si efetivada, invocando assédio moral e sexual por parte de um chefe de loja da R.

2. Na 1ª Instância, a ação foi julgada parcialmente procedente, decidindo-se, na parte que ora releva, considerar verificada a exceção da insuficiência dos factos descritos na comunicação de resolução do contrato de trabalho e, assim, absolver a R. dos pedidos de: i) declaração da licitude da resolução do contrato de trabalho com invocação de justa causa; ii) condenação no pagamento à A. da correspondente indemnização; iii) e condenação no pagamento à A. de indemnização por danos não patrimoniais.1

3. Interposto recurso de apelação pela A., o Tribunal da Relação do Porto (TRP) confirmou aquela decisão, considerando, essencialmente, que “a mera alegação de imputações genéricas, juízos de valor e conclusões, sem indicação de factos concretos, não cumpre o requisito formal de o trabalhador indicar de forma sucinta os factos concretos que justificam a resolução do contrato de trabalho, e tem como consequência a ilicitude da resolução do contrato de trabalho”.

4. A autora interpôs recurso de revista excecional, tendo a R. contra-alegado.

5. Com fundamento no art. 672º, nº 1, a), do CPC2, a revista excecional foi admitida pela formação dos três Juízes desta Secção Social a que se refere o n.º 3 do artigo 672.º, relativamente à questão referenciada em supra nº 3, com base no seguinte raciocínio:

«[O] artigo 395.°, n.º 1, do Código do Trabalho estabelece que "[o] trabalhador deve comunicar a resolução do contrato ao empregador, por escrito, com a indicação sucinta dos factos que a justificam, nos 30 dias subsequentes ao conhecimento dos factos". Sublinhe-se que "[n]a ação em que for apreciada a ilicitude da resolução, apenas são atendíveis para a justificar os factos constantes da comunicação referida no n.º 1 do artigo 395.°" (n.º 3 do artigo 398.°). Por outro lado, a lei prevê a possibilidade de o trabalhador corrigir os vícios deste procedimento […] "[n]o caso de a resolução ter sido impugnada com base em ilicitude do procedimento previsto no n.° 1 do artigo 395.°", até ao termo do prazo para contestar, mas apenas uma vez [art. 398º, nº 4, do CT].

A aplicação destas normas suscita uma série de dificuldades teóricas e práticas. A lei exige a indicação de factos, mas apenas de forma sucinta. É, desde logo, necessário ter em conta que o trabalhador que escreve a carta de resolução é amiúde um leigo que pode ainda não ter tido sequer aconselhamento jurídico (embora não pareça ser esse o caso dos autos).

Mas, e sobretudo, o assédio moral e o assédio sexual são hoje conceitos jurídicos, mas foram na sua origem conceitos sociológicos. Mas pode questionar-se se não são também factos sociais, realidades associadas a uma certa tipicidade social. Se na linguagem do dia-a-dia alguém afirmar que foi vítima de assédio sexual o destinatário da comunicação compreenderá que podem estar em jogo certos comportamentos indesejados e altamente lesivos, numa gama mais ou menos ampla (expressões verbais, contactos físicos). A acusação não é puramente genérica e não se vê porque é que não há-de poder ser cabalmente concretizada no próprio processo judicial (mormente na petição inicial), tanto mais que a própria lei permite que o vício da comunicação seja sanado até ao momento da contestação. Não se ignora que a doutrina tem defendido que "[c]aso o vício respeite à "indicação sucinta dos factos" que justificam a imediata cessação do contrato pelo trabalhador, e de modo a preservar o sentido útil do estatuído no n.° 3 do presente preceito [o artigo 398.° do CT], haverá que distinguir consoante aquele consista na ausência de indicação de factos, hipótese em que será insanável, ou resida na sua mera incompletude, caso em que se mostra possível a sua correção"[…], mas pode questionar-se se a conclusão lapidar de que a resolução é ilícita quando se indicam factos com uma certa generalidade é adequada num sistema legal como o nosso, que tendo ultrapassado uma certa conceção formal da justiça, prevê o convite de aperfeiçoamento de uma petição inicial inepta ou até que uma petição inepta se pode "salvar" se a contraparte mostrar que compreendeu o seu sentido. Acresce que em casos como o presente em que a vítima de um alegado assédio sexual se pode encontrar numa situação de grande penosidade pessoal e constrangimento social se pode interrogar se será legítimo exigir-lhe que na comunicação escrita ao empregador concretize os comportamentos de que foi (alegadamente) vítima - e já agora com que detalhe?

Em suma, trata-se de questão que merece ser ponderada por este Tribunal para lograr uma melhor aplicação do direito (…)»

6. Neste Supremo Tribunal, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser negada a revista, parecer a que respondeu a recorrente, manifestando discordância com o mesmo.

Decidindo.

II.

7. Foi fixada pelas instâncias a seguinte matéria de facto:

A) Autora e Ré outorgaram entre si contrato de trabalho, em 05 de janeiro de 2004 e com efeitos a partir de 12 de janeiro de 2004.

B) Tal contrato foi ab intio um contrato de trabalho por tempo indeterminado.

C) Prestando a Autora o seu trabalho com a categoria profissional de ... de Loja, no âmbito das suas aptidões e conteúdo funcional.

D) A autora atualmente prestava o seu trabalho na loja/supermercado da Ré sita à Rua de ... ....

(…)

F) A Autora tinha designadamente as seguintes tarefas: a) Gestão de documentos, planeamento de trabalho, análise e previsão de vendas; b) Análise e melhoria contínua de indicadores, processos de gestão de mercadorias e inventários; c) Gestão de tempo, pessoas e seu desenvolvimento, controlo de processos.

(…)

H) Em 10 de março a Autora remeteu à Ré carta registada com aviso de receção, a qual foi recebida pela ré em 13 de março de 2023 invocando a resolução do contrato de trabalho com justa causa.

I. A mencionada carta tem o seguinte teor:

“(…)

1. No âmbito da minha baixa médica com efeitos desde 6 de março de 2023, venho realizando consultas médicas e merecendo acompanhamento médico com tratamento farmacológico, devido ao meu estado de saúde – designadamente síndrome depressivo-ansioso marcado por insónia inicial e intermédia, instabilidade emocional, inquietação permanente e crises ansiosas com dispneia e opressão torácica;

2. Com efeito concluiu-se que tal estado de saúde é adveniente do ambiente laboral que vivencio nos últimos tempos na V. loja de ..., onde laboro e imputável ao atual encarregado desta loja, designadamente assédio sexual e moral, além de atitudes persecutórias, degradação do relacionamento e humilhação pessoal de que sou vítima;

3. Com efeito, aquele ambiente laboral, com atitudes persecutórias, assédio sexual e moral de que sou vítima, como sucede(u) com outros(as) colegas, causou-me graves e inaceitáveis problemas pessoais e de saúde;

4. Na verdade, o desrespeito pelas mais elementares regras de convivência laboral e humana, bem como pela minha dignidade e sensibilidade por parte daquele responsável de loja, causaram-me danos morais e de saúde emocional e psíquica que impedem que prossiga o contacto com tais repugnantes comportamentos.

Ora,

5. Face ao supra exposto e ao teor da declaração clínica emitida ontem, 9 de março de 2023, a qual remeto em anexo, comunico pela presente a resolução do contrato de trabalho que outorguei com V.Exas. e com efeitos a 12 de janeiro de 2004.

6. Esta resolução é com justa causa, designada e nomeadamente o previsto nas alíneas d) e f) do nº 2 do art. 394º do Código do Trabalho, face a todo o supra exposto, e produz efeitos imediatos.

(…)”

J) Da [supradita] declaração médica datada de 09/03/2023, lê-se que:

“Para os devidos efeitos se declara que a utente se encontra com síndrome depressivo-ansioso marcado por insónia inicial e intermédia, instabilidade emocional, inquietação permanente e crises ansiosas com dispneia e opressão torácica. Está a ser acompanhada em consulta médica e iniciou tratamento farmacológico. Dado que os sintomas estão relacionados com conflitos laborais beneficia de se manter afastada até à sua resolução.”

L) O mandatário da Autora, e signatário da P.I., remeteu à Ré uma carta, em 14 de março de 2023, a qual foi rececionada por esta em 15 de março de 20233.

M) Esta carta obteve resposta através de email de 15 de março de 20234.

III.

a) – Considerandos prévios:

9. Como se sabe, a matéria de facto incluída na sentença “não pode conter qualquer apreciação de direito, isto é, qualquer valoração segundo a interpretação ou a aplicação da lei ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica”5, pelo que as questões de direito que constarem da seleção da matéria de facto devem considerar-se não escritas6.

Deste modo, apesar de “afastada a rigidez na seleção estrita das questões de facto nos quesitos, não pode, o Juiz no novo modelo processual, ignorar a demarcação técnica entre questões de facto e de direito”7, como tem sido sustentado pela jurisprudência8, são de afastar − na sentença − expressões de conteúdo puramente valorativo ou conclusivo, destituídas de qualquer suporte factual, que sejam suscetíveis de influenciar o sentido da solução do litígio, ou seja, que invadam o domínio de uma questão de direito essencial9.

Embora só acontecimentos ou factos concretos possam integrar a seleção da matéria de facto relevante para a decisão (“o que importa não poderem aí figurar nos termos gerais e abstratos com que os descreve a norma legal, por que tanto envolveria já conterem a valoração jurídica própria do juízo de direito ou da aplicação deste”10), são ainda de equiparar aos factos os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum11, verificado que esteja um requisito: não integrar o conceito o próprio objeto do processo ou, mais rigorosa e latamente, não constituir a sua verificação, sentido, conteúdo ou limites objeto de disputa das partes.12

Vale isto por dizer, também na expressão de Anselmo de Castro, que “a linha divisória entre facto e direito não tem carácter fixo, dependendo em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa; o que é facto ou juízo de facto num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são flutuantes”.13

10. O atual Código de Processo Civil consagra um modelo enformado pelos princípios da prevalência do fundo sobre a forma e do aproveitamento (sempre que possível) dos atos processuais, implícitos em vários dos demais princípios estruturantes do nosso paradigma processual civil, como é o caso do direito à tutela judicial efetiva (art. 20.º, da CRP), da confiança (corolário dos princípios da boa-fé e da lealdade processual), da adequação formal e da prevalência do fundo sobre a forma (v.g., arts. 6º, 146º, nº 2, 278º, nº 3, 411º e 547º, do CPC), sem olvidar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade ínsitos na ideia de processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da CRP, e 547º, do CPC), na sua dimensão de "processo justo" ("fair trial"; "due process").

Compreende-se, pois, que se assista a uma tendência para a superação do formalismo e rigidez que tradicionalmente dominavam as abordagens da problemática em causa nos autos, com base, precisamente, na ideia de que não há uma exata separação entre a matéria de facto e a matéria de direito.

11. Sobre o uso de factos conclusivos no processo (fora do contexto da sentença, se bem se compreende), escreveu expressivamente Miguel Teixeira de Sousa: 14

«Os factos jurídicos são factos com relevância jurídica, mas não são factos desprovidos de qualquer sentido empírico ou valorativo. A linguagem do direito não é "insípida", "inodora" e "incolor".

Era por isto que a exclusão do antigo questionário de factos sobre os quais recaía o anátema de serem "factos conclusivos" era inaceitável. Havia uma linguagem legal que era "proibida" nos tribunais.»

E ainda sobre o mesmo tema: 15

« [O]s chamados "factos conclusivos" não são mais que os factos que integram a previsão de uma regra jurídica, ou seja, os factos jurídicos; ora, se não for possível operar com os "factos conclusivos", está a negar-se a existência dos factos jurídicos e a impossibilitar o preenchimento da previsão de qualquer regra jurídica.

Dito de outro modo: o juiz do processo vai ter necessariamente de recorrer à figura dos "factos conclusivos", dado que em algum momento ele vai ter de verificar se a previsão de uma regra jurídica está preenchida ou não preenchida. Portanto, o que se impõe não é combater os "factos conclusivos", mas antes concluir que esses factos são inerentes à aplicação do direito a um caso concreto. Sem "factos conclusivos" não há a conclusão de nenhum processo.

(…)

Excluir da realidade processual os "factos conclusivos" é contrariar a solução que, de forma adequada, foi finalmente consagrada no regime processual civil português: a de que não há uma estrita separação entre a matéria de facto e a matéria de direito. Afinal, qualquer facto provado em processo só tem relevância se for um facto jurídico, ou seja, um (…) "facto conclusivo". Em direito, não há senão factos jurídicos, pelo que de duas, uma:

– Do facto que é provado em processo não se pode inferir nenhum facto jurídico, porque esse facto não é subsumível à previsão de nenhuma regra jurídica; esse facto é um facto juridicamente irrelevante e não justifica a aplicação de nenhuma regra jurídica;

– Do facto que é provado em processo pode inferir-se um facto jurídico, ou seja, um facto que é subsumível à previsão de uma regra jurídica; o tribunal pode aplicar esta regra, isto é, pode aplicar ao caso concreto a estatuição dessa regra.

Em suma: em vez de serem combatidos, os "factos conclusivos" devem ser vistos como algo inerente ao carácter inferencial da prova e ao preenchimento das previsões das regras jurídicas; a única coisa que se impõe fazer é substituir a equivocada expressão "factos conclusivos" pela correta expressão "factos jurídicos".»

12. Expressões tradicionalmente tidas por “conclusivas”, não se reconduzem, afinal, nalguns casos, a puros conceitos normativos, concluindo-se, antes, que determinados adjetivos, “se devidamente, interpretados, densificam e concretizam uma realidade de facto” (cfr. Ac. do STJ de 28.09.2017, Proc. nº 659/12.6TVLSB.L1.S1, 7ª Secção).

Do mesmo modo, determinados pontos da matéria de facto, “pese embora algum défice de densificação e concretização no plano factual, uma vez que não acolhem conceitos normativos de que dependa a solução do caso, no plano jurídico, e na medida em que contêm um inquestionável substrato factual, que deve ser interpretado em conexão com os restantes segmentos que integram o acervo factual provado, devem subsistir como factos materiais a considerar” (cfr. Ac. do STJ de 12.12.2017, 2211/15.5T8LRA.C2.S1, 4ª Secção).

Conexamente, “não deve o Tribunal da Relação eliminar como conclusivos factos que contenham um substrato factual relevante, ainda que acompanhado de valorações” (Ac. do STJ de 19.05.2021, Proc. n.º 9109/16.8T8PRT.P2.S1, 4.ª Secção) .

Noutro caso, embora se reiterando que a enunciação da matéria de facto deve ser expurgada de locuções genéricas ou conclusivas ou de valorações jurídicas e que “os enunciados de facto devem ser expressos numa linguagem natural e exata, de modo a retratar com objetividade a realidade a que respeitam e a prevenir obscuridade, contradição ou incompletude”, afirma-se que “a linguística deixou, hoje, de ser confinada às suas duas dimensões primárias – a dimensão gramatical (lógico-sintática) e a dimensão semântica – para se alcandorar, agora, numa nova dimensão, que é a dimensão pragmática, a qual relaciona a linguística com os contextos vivenciais e com as estratégias comunicacionais”, bem como que “na formulação dos juízos probatórios, devem ser empregues enunciados que sejam portadores de um alcance semântico o mais consensual possível, no contexto relacional em causa, de forma a denotar a correspetiva substância factual, para além das formas meramente epidérmicas da expressão linguística”, não bastando assim “apelar ao mero significado linguístico ou etimológico de determinado vocábulo ou locução, de forma atomizada, mas antes considerar o seu alcance semântico e pragmático no contexto narrativo em que se encontrem inseridos”. E, dentro destes parâmetros, conclui-se que, nas circunstâncias do caso concreto, a expressão reportada à utilização de certa construção pelos A.A., como parte integrante de um imóvel, se afigurava “suficientemente representativa do seu domínio empírico sobre aquela construção, à luz do consenso social” (Ac. de 11.03.2021, Proc. nº 1205/18.3T8PVZ.P1.S1, 2.ª Secção).

Noutra perspetiva, “factos conclusivos traduzidos na consequência lógica retirada de outros factos uma vez que, ainda assim, constituem matéria de facto, devem permanecer na factualidade provada quando facilitem a apreensão e compreensão da realidade visando uma melhor adequação e ponderação de todas as circunstâncias na resolução do litígio” (Ac. de 13.10.2020, Proc. nº 2124/17.6T8VCT.G1.S1, 6.ª Secção).

E, especificamente quanto à interpretação do art. 395º, nº 1, do CT, esta Secção Social já decidiu, por exemplo, que “[c]umpre a referida disposição legal a comunicação enviada pelo trabalhador ao empregador, na qual fez consignar que pretende a resolução imediata, com justa causa, do contrato de trabalho, por motivo de violação do direito de continuar a exercer efetivamente a atividade para a qual foi contratado, na medida em que indica de forma sucinta o fundamento da resolução, com recurso a uma expressão de base factual” (Ac. de 21.10.2018, Proc. nº 16066/16.9T8PRT.P1.S1).

13. Em linha com tudo o antes exposto, uma nota adicional se impõe, para sinalizar que a deficiência ou insuficiência dos factos descritos na petição inicial – e, por maioria de razão, na comunicação da resolução do contrato de trabalho ao empregador, ao abrigo do art. 395º, nº 1, do Código do Trabalho (CT) – não implica necessariamente a improcedência da ação, ainda que estejam em causa factos essenciais, integrantes da causa de pedir.

Como se decidiu no Ac. de 11.09.2024, Proc. nº 2695/23.8T8LSB.L1.S1, a propósito de determinado facto tido por conclusivo e com relevância determinante para a decisão do litígio:

“Apesar da natureza conclusiva do ponto em questão, afigura-se-nos que os autores – embora deficientemente – cumpriram o seu ónus de alegação quanto à matéria aí contida em termos que processualmente não permitem desvalorizá-lo e, muito menos, ignorá-lo.

Na verdade, a petição inicial não foi julgada inepta e decorre da contestação que a ré interpretou perfeita e convenientemente aquele articulado (cfr. art. 186º, n.º 3), sendo certo que a conduta processual das partes deve ser compreendida e valorada à luz das exigências de cooperação, boa-fé e lealdade processual a que se encontram adstritos aquelas e, em geral, todos os intervenientes no processo (cfr. arts. 7º e 8º).

Por outro lado, e determinantemente, não podem olvidar-se os imperativos de aproveitamento dos atos processuais, princípio geral implícito em vários dos demais princípios estruturantes do nosso paradigma processual civil, como é o caso do direito à tutela judicial efetiva (art. 20.º, da CRP), da confiança (corolário dos princípios da boa-fé e da lealdade processual), da adequação formal e da prevalência do fundo sobre a forma (v.g., arts. 6º, 146º, nº 2, 278º, nº 3, 411º e 547º), sem olvidar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade ínsitos na ideia de processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da CRP, e 547º, do CPC), na sua dimensão de " processo justo " ("fair trial"; "due process").

Tratando-se de elemento decisivo para a boa decisão da causa, na fixação dos factos provados e não provados impunha-se às instâncias – relativamente ao âmbito, teor e alcance da matéria contida no art. 45º da petição inicial – uma dimensão corporizadora (traduzida em adequado conteúdo factual), mediante o uso dos amplos poderes-deveres colocados à disposição do tribunal no plano do julgamento de facto, seja, nos termos gerais, no respeitante à consideração de factos instrumentais, complementares e concretizadores [cfr. arts. 5º, nº 2, a) e b), e 602º, nº 1, in fine, do CPC], seja, inclusive, no tocante a factos essenciais, à luz do regime especial consagrado no art. 72º, do CPT.

Vale por dizer que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, impondo-se, para o efeito, a remessa dos autos à Segunda Instância (art. 682º, nº 3), isto sem prejuízo da possibilidade que a Relação sempre tem de determinar que na 1ª Instância se proceda a novo (complementar) julgamento, se assim o entender necessário para a boa decisão da causa [art. 662º, nº 2, c)].”

b) – (In)suficiência dos factos descritos na comunicação de resolução do contrato de trabalho:

14. Emerge do art. 9º, do Código Civil, que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, embora não possa ser considerado pelo intérprete um pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, e sendo ainda certo que, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

15. A possibilidade de no decurso do processo (observados os limites marcados pelo objeto do litígio) se proceder à concretização de expressões conclusivas/genéricas (ou factos jurídicos, no dizer do processualista antes citado) e, em geral, ao “suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada”16, consubstancia, na nossa ordem jurídica, um princípio geral de direito processual, com afloramentos, designadamente, nos arts. 5º, nº 2, a) e b), 590º, nº 2, b), e 4 a 7, e 602º, nº 1, in fine, do CPC, e, quanto ao processo penal, no art. 358º, do CPP, que prevê e regula a alteração não substancial dos factos descritos na acusação e na pronúncia, entendidos os factos aí imputados no seu conjunto, enquanto “pedaço da vida”, “acontecimento da vida”, “acontecimento histórico” ou “facto histórico”17 (será o caso, por exemplo, da alteração do condicionalismo de tempo ou lugar constante da acusação ou pronúncia).

Acresce, no tocante ao processo laboral, que o art. 72º, nºs 1 e 2, do CPT, prevê um mecanismo tendente a tomar em consideração na sentença factos essenciais tidos por relevantes para a boa decisão da causa que, embora não articulados, surjam no decurso da produção da prova.

Neste contexto, e tendo em conta os imperativos de unidade e coerência do sistema jurídico, afigura-se-nos que nada obsta a que a “indicação sucinta dos factos” que deve integrar a comunicação escrita dirigida pelo trabalhador ao empregador, para efeitos de resolução do contrato de trabalho (art. 395º, nº 1, do CT), inclua – para além de factos estritamente materiais – expressões desprovidas de adequada densificação, embora suscetíveis de concretização no decurso do processo, maxime, na petição inicial, como manifestamente acontece no caso vertente, em que comportamentos suscetíveis de constituir o invocado assédio moral e sexual são alegados de forma concreta e exaustiva, mormente nos artigos 26 a 43 daquele articulado.

Neste sentido aponta ainda, muito significativamente, o disposto no art. 398º, nº 4, do mesmo diploma, segundo o qual, “[n]o caso de a resolução ter sido impugnada com base em ilicitude do procedimento previsto no n.º 1 do artigo 395.º, o trabalhador pode corrigir o vício até ao termo do prazo para contestar” (embora só possa utilizar esta faculdade uma vez).

Nesta perspetiva, impõe-se conexamente concluir que o nº 3 do mesmo art. 398º, ao dispor que “[n]a ação em que for apreciada a ilicitude da resolução, apenas são atendíveis para a justificar os factos constantes da comunicação referida no n.º 1 do artigo 395.º”, não obsta a que no processo (mormente na petição inicial) sejam usados factos instrumentais, complementares e concretizadores das fórmulas constantes daquela comunicação.

Para além de dogmaticamente adequada, esta solução figura-se como a mais consentânea com os imperativos de justiça material que em primeira linha devem estar presentes na aplicação do direito, mormente quando estão em causa situações em que a efetividade da tutela judicial se revela particularmente premente.

16. Em suma, ao contrário do acórdão recorrido, concluímos, pois, que a comunicação levada a cabo pela recorrente, descrita no ponto I) da matéria de facto, observa suficientemente os requisitos formais exigidos pela lei, pelo que se revela infundada a declarada ilicitude da resolução do contrato de trabalho.

Com prejuízo da apreciação da nulidade do mesmo aresto, prevista no art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, alegada pela recorrente, procede, pois, o recurso.

IV.

17. Em face do exposto, acorda-se, concedendo a revista, em revogar o acórdão recorrido, remetendo-se o processo ao Tribunal da Relação para, nos termos tidos por adequados, prosseguir ou determinar a sua subsequente tramitação.

Custas da revista a cargo da ré.

Lisboa, 11.12.2024

Mário Belo Morgado (Relator)

José Eduardo Sapateiro

Domingos Morais

SUMÁRIO

DESCRITORES:

_____________________________________________

1. São nossos todos os sublinhados e destaques inseridos no presente acórdão.↩︎

2. Como todas as disposições legais citadas sem menção em contrário.↩︎

3. Cujo teor não se transcreve por não assumir relevância para a decisão do recurso de revista.↩︎

4. Cujo teor não se transcreve por não assumir relevância para a decisão do recurso de revista.↩︎

5. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Processo Civil, Lex, 1997, p. 312.↩︎

6. Embora o CPC vigente não contenha norma correspondente à do art. 646º, n.º 4, 1ª parte, do anterior CPC, chega-se à mesma conclusão interpretando a contrario sensu o atual art. 607.º, n.º 4, segundo o qual na fundamentação da sentença o juiz declara os factos que julga provados.↩︎

7. Ac. do STJ de 25.05.2023, Proc. nº 22773/19.7T8PRT.P1.S1, 2.ª Secção.↩︎

8. V.g., ainda, Acs. do STJ de 05.07.2022, 638/19.2T8FND.C1.S1, 6.ª Secção, de 28.10.2021, Proc. nº 4150/14.8TBVNG-A.P1.S1, 2.ª Secção, de 28.09.2017, Proc. nº 809/10.7TBLMG.C1.S1, 7ª Secção, e de 07.04.2016, Proc. nº 7895/05.0TBSTB.E1.S1, 2ª Secção.↩︎

9. Na expressão do Ac. do STJ de 09.12.2010, Proc. nº 838/06.5TTMTS.P1.S1, 4ª Secção.↩︎

10. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III, 268-269.↩︎

11. “Pagar”, “arrendar”, “emprestar”, “vender”, etc.↩︎

12. Cfr. Anselmo de Castro, ibidem.↩︎

13. Ibidem.↩︎

14. Cfr. https://blogippc.blogspot.com/2023/06/factos-conclusivos-ja-nao-ha-motivos.html↩︎

15. Cfr. https://blogippc.blogspot.com/2024/01/algumas-conclusoes-sobre-os-factos.html↩︎

16. Cfr. art. 590º, nº 4, do CPC.↩︎

17. Cfr. Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos no Processo Penal Português, Almedina, 1992, pp. 79 – 84.↩︎