Sumário
I. No âmbito da Convenção Relativa ao Contrato de Transporte de Mercadorias por Estrada (Convenção CMR), a transportadora contratada responde pela falta de entrega de parte da mercadoria pela transportadora de facto, que tenha subcontratado.
II. Do contrato de transporte resulta para o transportador o dever de entregar a mercadoria cujo transporte lhe foi entregue; trata-se de uma obrigação de resultado.
III. Do n.º 1 do artigo 17.º CMR resulta a presunção de culpa do transportador.
IV. Provada a perda parcial da mercadoria transportada, mas não se encontrando provados factos que permitam fundamentar positivamente a negligência do transportador material, não se justifica o afastamento dos limites à indemnização constantes dos artigos 23.º e segs. da CMR.
Decisão Texto Integral
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:
1. Mesclacenário Promoção Imobiliária, S.A. instaurou contra Just in Time Transportes e Logística, S.A, uma acção na qual pediu a sua condenação no pagamento de € 65.160,00, com juros.
Para o efeito, e em síntese, alegou ter contratado com a ré o transporte de 100.000 máscaras de protecção da Holanda até ..., concelho de Viana do Castelo, das 200.000 que comprou, para revenda, à sociedade de direito holandês T. ........ em cuja sede a ré as devia recolher; que o preço acordado foi de € 1.200,00, acrescido de IVA (€ 1.476,00 no total), que imediatamente pagou; que, todavia, apenas chegaram ao destino 72 caixas, das 84 que foram carregadas na Holanda; que nunca lhe foram entregues as 12 caixas em falta, o que lhe causou um prejuízo de € 65.160,00 (€31.856,00 que pagou pela mercadoria perdida e € 33.304,00 por não a ter recebido e, assim, não a ter podido revender ao hospital a que se destinavam); que a ré, transportadora, é responsável por este prejuízo.
A ré contestou, por impugnação e por excepção. Impugnou parcialmente a matéria de facto alegada e sustentou ser parte ilegítima na acção, por não ter sido a transportadora, que foi SC ..., S.R.L., com sede em ..., Roménia (“a ré, com conhecimento e autorização da autora”, entregou-lhe o transporte), a quem será imputável o incumprimento do contrato de transporte, a ter ocorrido; invocou ainda a prescrição e que, segundo a Convenção CMR, o limite máximo da indemnização não poderia exceder € 1.491,35.
Concluiu que deveria ser absolvida da instância ou do pedido, na totalidade.
A autora respondeu às excepções na audiência prévia. Alegou, nomeadamente, que só contratou com a ré, que assumiu a posição de transitária; que, sendo totalmente alheia à sub-contratação de SC ..., S.R.L., é a ré a responsável, no âmbito do contrato internacional de mercadorias que celebraram, como transportadora contratual, sendo, portanto, parte legítima; que não se verifica a prescrição, cujo prazo se encontra suspenso; que não estão reunidas as condições para aplicação do limite à indemnização.
No despacho saneador, a ré foi julgada parte legítima e remeteu-se para final o conhecimento da prescrição. Considerou-se, ainda, não ser possível conhecer do mérito da causa e, portanto, a acção prosseguiu.
Veio a ser proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente. A ré foi condenada a pagar à autora € 1.491,07: “Nestes termos, atentos os fundamentos expendidos, o Tribunal decide julgar a presente ação parcialmente procedente e, em consequência, condenar a ré, “Just In Time Transportes e Logísticos S.A.”, no pagamento à autora “Mesclacenário Promoção Imobiliária, S.A.”, da importância de €1.491,07 (mil quatrocentos e noventa e um euros e sete cêntimos), a que acrescem juros de mora à taxa de 5% ao ano, contados desde 19.12.2022, absolvendo-se a ré do demais peticionado. “
A sentença entendeu ter sido celebrado entre autora e ré um contrato de transporte internacional rodoviário de mercadorias, ao qual se aplicam as regras da Convenção CMR, não proceder a excepção de prescrição, por ter havido reclamação escrita da autora que suspendeu o respectivo prazo (n.º 2 do artigo 32.º da CMR), ser a ré responsável pela falta de entrega de parte da mercadoria e estar a medida da indemnização limitada nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 23.º da CMR, por não haver prova que permita “concluir que o dano verificado proveio de dolo seu ou de falta que lhe seja imputável à ré ou à entidade que subcontratou e que, segundo a lei portuguesa, seja equivalente ao dolo. (…).
No caso, não resultando provada qualquer factualidade que aponte no sentido de a perda das mercadorias ter resultado de comportamento doloso ou negligente da ré ou dos seus agentes ou auxiliares, importa chamar à colação as regras especiais atinentes à responsabilidade do transportador internacional de mercadorias por estrada (cfr. artigo 23º a contrario da CMR).
Assim, a responsabilidade da ré fica limitada ao disposto nos nºs 1 a 3 e 6 do artigo 23º da CMR sendo que, não tendo resultado provado o peso global das mercadorias perdidas, nem tal tendo sido alegado pela autora, o valor da indemnização deverá corresponder à importância de €1.491,07, liquidada pela autora, em sede de audiência prévia, a qual não mereceu reparo por parte da ré (cfr. fls. 69).
À referida quantia acrescem ainda juros à taxa de 5% ao ano, contados desde 19.12.2022 (porque assim peticionados), como resulta do disposto no artigo 27º, nº 1 da CMR.”
Esta sentença foi revogada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em recurso interposto pela autora, sendo a ré condenada no pagamento de € 65.160,00, por se entender que “A conduta da transportadora, sociedade comercial que se dedica ao transporte internacional de mercadorias, ao perder parcialmente a mercadoria, a despeito de não poder ser tida por dolosa por total ausência de factualidade no sentido dessa intencionalidade, não pode deixar de ser qualificada como claramente negligente, por não ter agido com a prudência, o cuidado e a diligência que lhe eram profissionalmente exigíveis, tomando como padrão de referência uma empresa média nas mesmas circunstâncias, e constitui uma infracção assinalável dos deveres de protecção, vigilância e custódia, acessórios da obrigação de transporte – art. 487.º, n.º 2, ex vi art. 799.º, n.º 2, ambos do Código Civil.
Por via da actuação assim reconduzida, através do funcionamento do art. 29.º, ficam afastados os limites indicados pelo art. 23.º, não se acompanhando a sentença recorrida neste aspecto.
Deste modo, não havendo dúvidas quanto ao nexo de causalidade, a transportadora está obrigada a indemnizar a parte contrária, conforme arts. 562.º e 566.º, ambos do Código Civil.
(…)
Em suma, verificado o incumprimento contratual, o montante indemnizatório tem que corresponder à totalidade do dano suportado na esfera jurídica da Recorrente, computado em 65 160 € (sessenta e cinco mil cento e sessenta euros), o qual integra o valor da mercadoria perdida, bem como os lucros não obtidos em virtude dessa perda, isto é, 31 856 € (trinta e um mil oitocentos e cinquenta e seis euros), despendido na aquisição das máscaras concretamente extraviadas, acrescido de 33 304 € (trinta e três mil trezentos e quatro euros), da venda hospitalar gorada, com o pagamento de juros moratórios, tal qual fixado na 1.ª Instância.”
2. Just in Time Transportes e Logística, S.A, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça.
Nas alegações que apresentou, formulou as seguintes conclusões, que delimitam o objecto do recurso:
“1. Nada se apurou relativamente às circunstâncias do desaparecimento da mercadoria em falta, em transporte efectuado por uma empresa sub-contratada pela recorrente;
2. Não se provou qualquer acto ou omissão da ré, grave ou não, de que tenha resultado a perda da mercadoria em falta;
3. Para a aplicação do art. 29.º da Convenção CMR seria necessária a prova de qualquer acto ou omissão da ré, praticado ou omitido por esta com culpa grave, de que tenha resultado a perda da mercadoria em falta;
4. Não se provou que a autora tenha indicado no momento da expedição o valor da mercadoria, sendo certo que, conforme pontos 1 e 16 da matéria de facto considerada provada, esse valor ultrapassa € 880.000,00 e que, conforme ponto; [sic]
5. A tê-lo feito, poderia a recorrente ter exigido suplemento de preço, não ter sub-contratado o transporte ou tê-lo recusado, face à desproporção entre o valor da mercadoria e o custo do transporte de € 1.200,00, acrescido de IVA (facto 6 da matéria de facto provada);
6. Com essa omissão contribuiu também a autora para a verificação do dano, pelo que a indemnização que lhe vier a ser arbitrada no caso de se presumir a culpa grave da ré teria de ser calculada com recurso a critérios de equidade como prevê o artigo 570.º do Código Civil.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, sendo revogado o douto acórdão recorrido e mantendo-se a decisão de primeira instância”.
A autora apresentou contra-alegações, sustentando a manutenção do acórdão recorrido.
3. Vem provado o seguinte (transcreve-se da sentença):
1. Em março de 2020, a autora comprou à sociedade de direito holandês, denominada T. ......., duzentas mil máscaras de proteção KN95, ao preço unitário de € 2,20 cada uma, ascendendo ao montante global de € 440.000,00.
2. Tendo a autora contratado a ré para que esta efetuar o transporte de parte das referidas máscaras.
3. A ré é uma sociedade comercial que se dedica ao transporte nacional e internacional de mercadorias.
4. A ré aceitou efetuar o transporte de cem mil máscaras, desde a Holanda até Portugal, tendo o serviço de transporte sido concluído no dia 13 de maio de 2020.
5. A prestação de serviços consistia na recolha das referidas máscaras no armazém da empresa vendedora “T. .......”, sito em ..., na Holanda, no dia 11.05.2020, e o seu transporte, por via terrestre, desde Neeritter até ..., no concelho de Viana do Castelo, local da entrega, no dia 13.05.2020.
6. A ré aceitou prestar o serviço, mediante o pagamento de €1.200,00, acrescido de I.V.A., num total de €1.476,00, tendo a ré emitido, a 08.05.2022 a Fatura JIT2020, que foi imediatamente paga pela autora.
7. As máscaras supra mencionadas eram para ser transportadas desde Holanda para Portugal embaladas em 84 caixas.
8. No dia 11 de maio de 2020, as mencionadas máscaras foram carregadas nos armazéns da empresa holandesa, T. ......., e em camião TIR detido pela sociedade “SC ..., S.R.L.., com sede em ... – Alba.
9. Da guia de transporte datada de 11 de maio de 2020, junta a fls. 13 verso (repetida a 21 verso), cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, consta: “84 boxes with 100.00 protection masks KN95”, o que, traduzido para a língua portuguesa, significa: “84 caixas com 100.000 máscaras de proteção KN95”.
10. Tal mercadoria era para ser transportada até ..., concelho de Viana do Castelo, Portugal, e ser entregue à autora.
11. No dia 13.05.2020, a aguardar pela mercadoria, em ..., encontravam-se presentes para o seu descarregamento, AA, representante da autora e, em representação da ré, BB, funcionário daquela, com a função de Business Developmente Manager.
12. Descarregado o camião TIR, constatou-se que somente existiam setenta e duas caixas, tendo desaparecido entre ..., na Holanda e ... em Viana do Castelo, doze master boxes.
13. No mesmo dia 13.05.2020, a autora reclamou por escrito, fazendo constar na guia de transporte identificada em 9) a seguinte nota: “Just received 72 boxes, with 85.520 masks, missing 12 boxes, with 14.480 masks”, o que traduzido para a língua portuguesa significa: “Apenas recebi 72 caixas, com 85.520 máscaras, encontrando-se em falta 12 caixas, com 14.480 máscaras”.
14. O funcionário da ré, BB, presenciou esta situação e recebeu cópia da guia de transporte com aquela reclamação.
15. Não obstante, sem qualquer justificação, até à presente data, a ré nunca entregou a mercadoria em falta à autora.
16. Tais máscaras destinavam-se a ser revendidas ao Hospital ..., sito na Amadora, o qual se havia comprometido a adquiri-las, pelo preço de € 4,50 (quatro euros e cinquenta cêntimos) a unidade.
17. A viatura em que foi transportada a mercadoria desde Holanda até às instalações da autora era detida pela transportadora, não sendo propriedade da ré, e o motorista que conduzia a viatura em que foi feito o supra transporte não era funcionário da ré.
18. Previamente à presente ação, a aqui ré apresentou requerimento de injunção a que foi atribuído o nº 89774/21.0..., e onde reclamava o pagamento de uma fatura vencida.
19. No âmbito do referido procedimento de injunção, a autora apresentou a contestação junta nos autos a fls. 24 a 29, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, e onde invocou a compensação de créditos.
20. Tal contestação foi notificada à ré com data de 27 de maio de 2022.
21. No âmbito da presente ação, a ré foi citada a 19 de dezembro de 2022.
Foi considerado não provado:
a. O camião TIR mencionado em 8) dos factos provados era da ré.
b. O funcionário da ré, BB, efetuou o transporte da mercadoria mencionada no artigo 8) da factualidade provada.
4. Está em causa neste recurso saber se deve ou não ser aplicado o disposto no artigo 29.º da Convenção CMR para o cálculo da indemnização e se a falta de indicação, por parte da autora, do valor da mercadoria transportada releva para o efeito de a indemnização ser calculada segundo a equidade, “como prevê o artigo 570.º do Código Civil”.
5. Antes de mais, cumpre ter presente o seguinte:
– Não há controvérsia sobre tratar-se de um contrato de transporte internacional de mercadorias, regulado pela Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada, CMR – cfr. artigo 12.º da Convenção CMR;
– Vem provado que autora e ré acordaram em que a ré transportaria cem mil máscaras das duzentas mil que a autora comprou à sociedade de direito holandês T. ......., embaladas em oitenta e quatro caixas, entre o armazém da empresa vendedora, situado em ..., Holanda, e ..., concelho de Viana de Castelo (pontos 1, 2, 4, 5 e 7);
– Vem ainda provado que esse transporte foi efectuado “em camião TIR detido pela sociedade ‘SC ..., S.R.L..”, que não era propriedade da ré, e conduzido por um motorista que não era seu funcionário (pontos 8 e 17 dos factos provados”, e que só chegaram ao destino setenta e duas caixas (ponto 12). Todavia, a ré, enquanto transportadora contratada, responde perante a autora pela falta de entrega de parte da mercadoria pela transportadora de facto, que subcontratou, segundo afirma nas suas alegações de recurso (e, aliás, já resultava da contestação), o que permite considerar aqui o artigo 3.º CMR para fundamentar a responsabilidade da ré;
– Neste recurso, aliás, não está em causa a responsabilidade do motorista ou da transportadora material ou, sequer, da transportadora contratada, a ré (assim se interpretam as alegações, não obstante a recorrente referir que não há prova de qualquer acto ou omissão sua de que tenha resultado a perda de parte da mercadoria), mas apenas o título de imputação subjectiva da responsabilidade e, por via desse título, a medida da indemnização devida – mais concretamente, saber se, apesar da regra de que o transportador responde pelo valor da mercadoria perdida (n.º 1 do artigo 17.º e n.º 1 do artigo 23.º CMR) pode ser aplicável a limitação prevista no n.º 3 do artigo 23.º (como sustenta a ré, ora recorrente, e entendeu a sentença) ou não (como decidiu o acórdão recorrido e considera a recorrida);
– Não está em causa determinar se ocorreu ou não alguma das excepções previstas no n.º 2 do artigo 17.º da CMR, nem tão pouco se foi afastada a presunção de culpa do transportador (n.º 1 do mesmo artigo 17.º). Aliás, não releva agora saber se deste preceito resulta uma presunção de culpa (Menezes Cordeiro, Manual de Direito Comercial, colab. de António Barreto Menezes Cordeiro, 5.ª ed., revista e actualizada, Coimbra, 2022, pág 852, ou José Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Coimbra, 2009, referindo-se em especial ao n.º 1 do artigo 18.º CMR, pág. 755), ou, como também se tem sustentado, uma presunção de responsabilidade do transportador (assim, Manuel Januário da Costa Gomes, “O Acórdão de 12.10.2017 ou o persistente alheamento do STJ relativamente ao regime específico da CMR”, Revista de Direito das Sociedades, 2018 (3), pág. 09 e segs., pág. 612 ou Sobre o Sistema próprio de Responsabilidade do Transportador de Mercadorias, in Temas de Direito dos Transportes, IV, Coimbra, 2018, pág. 449 e segs., pág.495), embora, na prática, seja mais gravosa pra o transportador a última interpretação, naturalmente;
– No que toca à perda parcial da mercadoria transportada, nada vem provado sobre as condições em que ocorreu; nomeadamente, nada se provou que permita ter por positivamente demonstrada a culpa de nenhum interveniente no transporte, ou na escolha do transportador ou do motorista. A 1.ª instância considerou a presunção de culpa já referida; a Relação, todavia, decidiu diferentemente: “A conduta da transportadora, sociedade comercial que se dedica ao transporte internacional de mercadorias, ao perder parcialmente a mercadoria, a despeito de não poder ser tida por dolosa por total ausência de factualidade no sentido dessa intencionalidade, não pode deixar de ser qualificada como claramente negligente, por não ter agido com a prudência, o cuidado e a diligência que lhe eram profissionalmente exigíveis, tomando como padrão de referência uma empresa média nas mesmas circunstâncias, e constitui uma infracção assinalável dos deveres de protecção, vigilância e custódia, acessórios da obrigação de transporte – art. 487.º, n.º 2, ex vi art. 799.º, n.º 2, ambos do Código Civil.”;
– Não vem provado que na declaração de expedição (artigo 6.º da CMR) tenha sido declarado um valor para a mercadoria que seja superior ao “limite mencionado no parágrafo 3.º do artigo 23º” da CMR (artigo 24.º) ou que tenha sido incluída uma cláusula de “interesse especial na entrega” (artigo 26.º), o que permitiria afastar o referido limite e, no caso da declaração de interesse especial, eventualmente, abranger lucros cessantes (cfr. José Luís Saragoça, O Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias, A Convenção, CMR, Coimbra, 2022, pág. 481;
– Do contrato de transporte resulta para o transportador o dever de entregar a mercadoria cujo transporte lhe foi entregue. É comumente aceite tratar-se de uma obrigação de resultado; vem provado que não foi entregue toda a mercadoria transportada e, portanto, que houve dano, podendo assim funcionar a presunção constante do artigo 17.º da CMR (cfr., no sentido de valerem as regras do ónus da prova quanto à prova dos danos, o c do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Abril de 2021, www.dgsi.pt, proc. n.º 21305718.9T8PRT.G1.S1).
6. A recorrente alega que não há prova que sustente a aplicação do disposto no artigo 29.º da CMR: “Que há neste caso uma presunção de culpa, já o sabemos, assim como sabemos que a culpa do transportador efectivo, sub-contratado pela ré, se transmite à própria ré. Outra coisa é essa culpa poder ser presumida como dolosa, para efeitos do artigo 29.º”, escreveu nas alegações.
No acórdão deste Supremo Tribunal de 30 de Abril de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 613/13.0TVPRT.P1.S1, observou-se que «O nº 1 do artigo 29º da CMR dispõe que o transportador não pode beneficiar das limitações de responsabilidade “se o dano provier de dolo seu ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo”.
De forma expressa e genérica – artigo 494º do Código Civil –, a lei portuguesa apenas prevê no âmbito da responsabilidade extra-contratual que o julgador possa fixar uma indemnização em montante inferior aos danos causados, segundo a equidade e atendendo a certos critérios que enumera – entre os quais se encontra o grau de culpabilidade do lesante –, quando a responsabilidade se fundar em mera culpa; mas não se pode ignorar que o mesmo Código Civil considera relevante a distinção entre dolo e negligência em outros casos de responsabilidade contratual (cfr. os exemplos indicados por Antunes Varela, op. e vol. cits., pág. 99: “artigos 814º e 815º (mora do credor); 835º, 1, al. a) (exclusão da compensação); 956º e 957º (responsabilidade do doador); 1134º (responsabilidade do comodante); 1151º (responsabilidade do mutuante), sendo naturalmente de responsabilidade contratual que estamos a falar, no caso; nem que o Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado por diversas vezes que a possibilidade de redução da indemnização, prevista no artigo 494º do Código Civil, é também aplicável no domínio da responsabilidade contratual.
No entanto, e a propósito do nº 1 do artigo 29º da CMR, escreveu-se, por exemplo, no acórdão deste Supremo Tribunal de 14 de Junho de 2011, www.dsgi.pt, proc. nº 437/05.9TBANG.C1.S1, que “uma falta que segundo a lei da jurisdição que julgar o caso seja considerada equivalente ao dolo, como acontece com a jurisdição nacional, não pode deixar de ser, manifestamente, face à legislação nacional, enquanto elemento do nexo de imputação do facto ao agente, a negligência ou mera culpa que, conjuntamente com o dolo, faz parte da culpa lato sensu”. No mesmo sentido, decidiu-se nos acórdãos de 5 de Junho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3303/05.4TBVIS,C2.S1, ou nos acórdãos desta secção de 15 de Maio de 2013, www.dgsi.pt, proc. nº 9268/07.0TBMAI.P1.S1 e de 12/10/2017, www.dgsi.pt, proc. nº 4858/12.2TBMAI.P1.S1 e Mónica Alexandra Soares Pereira, O Contrato de Transporte de Mercadorias Rodoviário, A Responsabilidade do Transportador, http://repositorioaberto.up.pt/bitstream/10216/63916/2/TESE%20%20MESTRADO%20EM%20DIREITO).»
Considerou-se nesse acórdão de 30 de Abril de 2019 que tinham sido provados factos que configuravam uma conduta grosseiramente negligente por parte do motorista que conduzia o camião que tinha sido furtado com a mercadoria transportada e, por esse motivo, entendeu-se que era inaplicável a limitação de responsabilidade prevista no n.º 3 do artigo 23.º da CMR e que se chegava a essa conclusão, quer seguindo a doutrina dos acórdãos acabados de citar, quer aplicando o disposto no artigo 494.º do Código Civil: “ou seja, mesmo considerando que a lei portuguesa não equipara necessariamente o dolo e a negligência para efeitos de cálculo da indemnização, em caso de responsabilidade contratual.”
Interessaria saber – mas também não é verdadeiramente relevante para o presente caso, como se verá já de seguida – se, em lugar de recorrer às regras gerais constantes do Código Civil, não caberia buscar a resposta no regime especificamente constante do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de Outubro, que define o regime jurídico do contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias, do qual resulta que, em caso de perda, avaria ou demora na entrega, só o dolo do transportador o impede de se prevalecer “das disposições que excluem ou limitam a sua responsabilidade” (assim, José Luís Saragoça, op. cit. pág. 459).
7. Diferentemente do que se decidiu no acórdão recorrido, como se disse atrás, entende-se que não se encontram provados factos que permitam fundamentar positivamente a negligência do transportador material (recorde-se que a ré será responsável se os pressupostos da responsabilidade civil se verificarem relativamente a este transportador material) – ou, dito por outra forma, a mera culpa, o que implicaria saber se o condutor usou da diligência que lhe era exigível. Para o efeito, cumpriria confrontar o cuidado e a diligência exigíveis para evitar o desaparecimento de parte da mercadoria transportada efectivamente adoptados pelo condutor com o que teria um profissional medianamente cuidadoso e diligente, em face das circunstâncias do caso (nº 2 do artigo 487º do Código Civil, expressamente aplicável à responsabilidade contratual, por remissão do n.º 2 do artigo 799.º do Código Civil).
Ora nada na prova permite fazer este confronto e, assim, concluir pela culpa do motorista, da transportadora de facto e, sucessivamente, da ré.
Entende-se que a presunção de culpa não pode transmutar-se numa presunção de dolo – e, por essa via, justificar o afastamento dos limites à indemnização constantes dos artigos 23.º e segs. da CMR que devem assim valer, nos termos decididos em 1.ª Instância.
Como, aliás, se decidiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Março de 1999, www.dgsi,pt, proc. n.º 99B097, também relativo à aplicação do regime da CMR e à aplicação do seu n.º 3 do artigo 23.º ao cálculo da indemnização por perda de mercadoria, todavia recorrendo ao n.º 1 do artigo 799.º do Código Civil, a culpa presume-se, mas não o dolo.
Assim sendo, cumpre revogar o acórdão recorrido e repristinar a condenação decidida em 1.ª Instância.
8. Por este motivo, fica prejudicada a apreciação da segunda questão colocada pela recorrente – saber se a falta de indicação, por parte da autora, do valor da mercadoria transportada releva para o efeito de a indemnização ser calculada segundo a equidade, “como prevê o artigo 570.º do Código Civil”.
9. Nestes termos, decide-se revogar o acórdão recorrido e repristinar a sentença, julgando a acção parcialmente procedente e condenando a ré Just In Time Transportes e Logísticos S.A., no pagamento à autora Mesclacenário Promoção Imobiliária, S.A., da importância de €1.491,07 (mil quatrocentos e noventa e um euros e sete cêntimos), a que acrescem juros de mora à taxa de 5% ao ano, contados desde 19.12.2022 até ao efectivo pagamento, absolvendo-se a ré quanto ao mais.
Custas do recurso pela ré.
Lisboa 13 de Março de 2025
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (relatora)
Maria de Deus Correia
José Maria Ferreira Lopes