Sumário
A anulação da declaração negocial por incapacidade acidental depende da verificação dos requisitos cumulativos previstos no art. 257.º, do Código Civil, reportados ao momento da celebração do ato impugnado, recaindo sobre o autor o ónus da prova dos pressupostos da anulação, nos termos do art. 342.°, do mesmo diploma.
Decisão Texto Integral
Revista n.º 18870/22.0T8SNT.L1.S1
MBM/JG/JES
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça
I.
1. AA, Público patrocinada pelo Ministério, propôs ação declarativa emergente de contrato individual de trabalho, com processo comum, contra PINGO DOCE - DISTRIBUIÇÃO ALIMENTAR, S.A.
2. Na 1.ª instância, a ação foi julgada parcialmente procedente, decidindo-se, na parte que ora releva:
– Declarar anulada a declaração assinada pela Autora denominada “pedido de demissão” e, bem assim, a declaração denominada “pedido de comunicação de demissão”, tudo com efeitos ao dia 03.05.2022;
– Declarar ilícito o despedimento da A., com efeitos à mesma data;
– Condenar a R. a pagar à A. 24.375,00 €, a título de indemnização pelo despedimento ilícito, correspondente a 30 dias de retribuição base, por referência à antiguidade desta, de 31 anos e 3 meses, até 14.10.2023 e sem prejuízo da atualização da indemnização à data do trânsito em julgado da sentença, e do acréscimo dos juros de mora vencidos e vincendos contabilizados desde a data do trânsito em julgado da decisão até efetivo e integral pagamento.
3. Interposto recurso de apelação pela R., a A. requereu a ampliação do âmbito do recurso1, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), com um voto de vencido, decidido:
a) Julgando parcialmente procedente a apelação da R., condená-la a pagar à A. indemnização pelo despedimento ilícito fixada em 17 dias de retribuição base (ao invés dos 30 dias fixados na 1ª Instância).
b) Julgar prejudicado o conhecimento da ampliação suscitada pela Autora.
c) No mais, manter a sentença recorrida.
4. A ré interpôs recurso de revista, tendo a recorrida contra-alegado.
6. Em face das conclusões das alegações da recorrente, e inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), a única questão a decidir2 consiste em saber se a A. se encontrava afetada por incapacidade acidental quando subscreveu o seu pedido de demissão da R., configurando, por isso, a cessação do contrato de trabalho daí decorrente um despedimento ilícito
Decidindo.
II.
7. A matéria de facto fixada pelo acórdão recorrido é a seguinte:3
(…)
2) No dia 14 de julho de 1992, entre a Autora e a Ré, foi celebrado, por escrito, um contrato de trabalho a termo certo, pelo prazo de 6 meses, com início na data da celebração do contrato, mediante o qual a Autora se obrigou a desempenhar tarefas como operadora ajudante (…)
3) Desde há cerca de 10 anos, a autora desempenhava funções como operadora de caixa, no estabelecimento “Pingo Doce”, sito na Avenida ..., em ....
(…)
5) No estabelecimento comercial da Ré onde a Autora prestava trabalho encontra-se em permanência segurança privada contratada pela Ré (…)
6) Pelo menos na data de 24 de abril de 2022, o segurança BB, da empresa Prestibel, informou a gerência de loja da suspeita de comportamento da trabalhadora CC, adstrita à peixaria da loja.
7) Atenta a suspeita transmitida pelo referido segurança ficou acordado, entre gerência e segurança, que o mesmo iria observar com maior detalhe a referida trabalhadora, o que aquele fez.
8) Nessa sequência, o referido segurança elaborou e entregou à gerência de loja relatórios, datados de 27 e 28 de abril de 2022, nos quais informava da suspeita de apropriação de produtos que a Ré mantinha expostos para venda, pela trabalhadora CC, adstrita à peixaria da loja.
9) No dia 28 de abril, a referida CC foi interpelada pela gerência de loja, à saída da loja, tendo-se concluído que levava consigo produtos, que a Ré destinava ao seu comércio, concretamente peixe, sem que houvesse prova de registo e pagamento dos mesmos.
(…)
11) O departamento de segurança veio a dirigir-se à loja para melhor averiguação dos factos relatados pelo segurança da Prestibel.
12) No decurso dessas averiguações surgiu a suspeita de que a conduta da referida CC era coadjuvada pela Autora no exercício das suas funções como operadora de caixa.
13) Consistindo a conduta da Autora na ausência de registo e consequente omissão de cobrança de pagamento de parte dos produtos que a referida CC levava da loja.
14) No dia 03 de maio de 2022, dois funcionários do departamento de segurança da Ré dirigiram-se à loja onde a Autora trabalhava para reunirem com a referida CC e com a Autora.
15) No dia 3 de maio de 2022, a gerente da Ré, DD, dirigiu-se à caixa onde a autora se encontrava no desempenho das suas funções e solicitou-lhe que a acompanhasse ao seu gabinete.
16) e 17) A Autora (…), ao chegar ao gabinete, verificou que no seu interior se encontravam já dois indivíduos, que (…) eram os funcionários do departamento de segurança da Ré.
(…)
19) A Autora foi questionada sobre se sabia que tinha uma colega da peixaria que levava coisas sem pagar e que o fazia, com conhecimento da Autora, passando na caixa da Autora, sem que esta registasse os artigos.
(…)
21) Uma vez descritas as suspeitas de que a Autora não procedia ao registo e cobrança do valor de alguns produtos à referida CC, aquela veio a confirmar as suspeitas transmitidas.
22) A Autora, estando muito nervosa, chorou.
23) Colocada perante as hipóteses de ser submetida a um processo disciplinar ou apresentar no imediato um pedido de demissão, a Autora optou por apresentar pedido de demissão.
24) Porque a Autora se encontrava muito nervosa e a chorar, solicitou à gerente DD que redigisse o pedido de demissão.
25) Foi a gerente DD quem redigiu o documento que a Autora veio a assinar, intitulado “pedido de demissão”, datado de 3 de maio de 2022, redigido pela gerente da Ré nos seguintes termos: “Eu, AA ...30 venho por este meio pedir a minha demissão do Pingo Doce por motivos pessoais a partir da presente data”.
(…)
28) Após, a Autora e a gerente abandonaram a sala onde decorreu a reunião, tendo a Autora pedido desculpa à referida DD pela sua conduta.
(…)
31) A Autora tinha perdido a mãe em data não apurada.
(…)
III.
8. A 1ª Instância considerou que os factos provados configuram despedimento ilícito da A., por a A. se encontrar afetada por incapacidade acidental quando subscreveu o seu pedido de demissão, com os seguintes fundamentos:
“(…)
Neste enquadramento, entendemos que o “pedido de demissão” da Autora deve ser anulado, porque a Autora notoriamente não detinha o livre exercício da sua vontade.
Assim, o “pedido de demissão” não pode ser valorado como denúncia do contrato de trabalho por iniciativa da trabalhadora. A anulação do “pedido de demissão” implica a anulação “do pedido de comunicação de demissão”, tudo com efeitos retroativos ao dia 03 de maio de 2022 (cfr. artigos 288º e 289º do CC).
Tal significa que, não podendo a empregadora socorrer-se da comunicação de denúncia do contrato de trabalho que obteve da trabalhadora, porque inválida, ocorreu o despedimento ilícito, por inobservância pela Ré das formalidades legalmente impostas (cfr. artigo 381º, alínea c) do CT).
Cumpre, pois, declarar ilícito o despedimento da Autora.”
9. No essencial, a Relação acompanha e desenvolve este entendimento.
10. Preliminarmente, refira-se que a trabalhadora não fez uso da faculdade legal que tinha ao seu dispor de, no prazo de 7 dias, revogar a denúncia do contrato, nos termos do art. 402º, do CT).
Posto isto, uma vez que se nos afigura que a incapacidade acidental não encontra adequado suporte nos factos provados, de forma alguma se subscreve o entendimento que na Relação fez vencimento.
Desde já se adianta, pois, que se impõe conceder a revista.
Com efeito:
“A declaração negocial feita por quem, devido a qualquer causa, se encontrava acidentalmente incapacitado de entender o sentido dela ou não tinha o livre exercício da sua vontade é anulável, desde que o facto seja notório ou conhecido do declaratário” (art. 257º, nº 1, do Código Civil), sendo que “o facto é notório, quando uma pessoa de normal diligência o teria podido notar” (nº 2, do mesmo artigo).
Sobre a interpretação destas normas, e com relevo para a decisão, encontram-se estabilizadas as seguintes linhas da jurisprudência deste Supremo Tribunal:
A anulação da declaração negocial por incapacidade acidental depende da verificação dos requisitos cumulativos previstos no art. 257.°, do Código Civil, reportados ao momento da celebração do ato impugnado, recaindo sobre os autores o ónus da prova dos pressupostos da anulação, nos termos do art. 342.°, do mesmo diploma (cfr. Ac. de 06.04.2021, Proc. n° 2541/19.7T8STB.E1.S1, 1ª Secção).
Conexamente, a declaração negocial só é inválida se, acidentalmente, na altura em que é emitida, o declarante está incapacitado, sendo que “a capacidade é a regra e a incapacidade é a exceção, pelo que quem invocar esta tem o ónus de a provar” e o que está em causa é apenas o seu eventual “estado de não entendimento do sentido das suas declarações” (cfr. Ac. de 16.01.2014, Proc. n° 1556/08.5TBVRL.P1.S1, 2ª Secção).
11. Como bem se refere no voto de vencido lavrado no Tribunal da Relação, “os factos julgados provados na sentença não suportam a conclusão (…) segundo a qual a apelada se encontrava numa situação de incapacidade acidental quando denunciou o contrato de trabalho mantido com a apelante”; o art. 257.°, do Código Civil exige mais - muito mais - em termos fácticos para se o poder ter por preenchido nos seus pressupostos”.
Na verdade, como aí se pondera:
“No caso sub iudicio provou-se que "a Autora optou por apresentar pedido de demissão" (facto provado n.° 23); e ainda que "após, a Autora e a gerente abandonaram a sala onde decorreu a reunião, tendo a Autora pedido desculpa à referida DD pela sua conduta" (facto provado n.° 28).
Ora, dizer-se que a apelada "optou" é uma manifestação suficientemente segura da sua capacidade de entender e querer as coisas tal como lhe foram apresentadas; e pedir desculpa só pode ser visto como uma manifestação da sua compreensão de que a sua conduta violava o direito. E não apenas as normas laborais às quais estava vinculada, como a de observar lealdade à apelante (art. 128.°, n.° 1, alínea f), do Código do Trabalho), mas também às normas penais ancestrais que regem qualquer sociedade civilizada, como são as que a todos dizem ser crime furtar coisas a outras pessoas (arts. 26.° e 203.°, n.° 1, do Código Penal; não por acaso este é um daqueles crimes vindos dos primórdios da civilização (…), pelo que não podem ficar dúvidas acerca da consciência da apelante sobre a natureza dos factos que praticou - de resto, nada se provou em contrário). E isto não pode ter deixado de ser pesado na valoração feita pela apelada acerca da situação que resolveu protagonizar e também na decisão que optou por tomar (…)”.
Acresce que in casu não se provaram os factos que fundamentalmente poderiam levar a problematizar um quadro de incapacidade acidental, como é o caso dos seguintes: a) que a Autora tenha negado a prática dos factos que lhe foram imputados; b) que os funcionários do departamento de segurança da Ré tenham proferido as afirmações alegadas nos artigos 11º, 12º, 13º e 14º da p.i.; c) que os referidos funcionários tenham insistido com a Autora para a mesma assinar um documento a pôr fim ao contrato de trabalho; d) que a Autora se tenha negado a assinar o referido documento e que os indivíduos tenham continuado a insistir; e) que a Autora não tenha praticado os factos que lhe foram imputados; f) que a Autora apenas tenha assinado o “pedido de demissão” e o “pedido de comunicação de demissão” por medo de que os representantes da Ré a pudessem difamar junto das colegas e pessoas que frequentavam o seu local de trabalho.
12. Sem necessidade de outras considerações, procede, pois, a revista.
Uma vez que o TRL julgou prejudicado o exame da ampliação do âmbito do recurso requerida pela A., que por essa via impugnou a decisão da matéria de facto, impõe-se que os autos voltem à Relação, para decisão desta matéria e ponderação das implicações jurídicas que, quanto ao mais, daí eventualmente advenham.
IV.
13. Nestes termos, concedendo a revista, acorda-se em revogar o acórdão recorrido, remetendo-se os autos à Relação para os efeitos referidos em supra nº 12.
Custas da revista a cargo da A.
Lisboa, 11.12.2024
Mário Belo Morgado (Relator)
Júlio Manuel Vieira Gomes
José Eduardo Sapateiro
SUMÁRIO4
DESCRITORES
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1. Sustenta que a matéria constante dos 20), 21), 23), 24) e 28) dos factos provados deve ser dada como não provada e que se devem reputar como assentes os factos dados como não provados em a), b) c), d), e) e f).↩︎
2. O tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, 663.º, n.º 2, e 679º, CPC], questões (a resolver) que, como é sabido, não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais não vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.º, n.º 3, do mesmo diploma.↩︎
3. Transcrição expurgada dos factos destituídos de relevância para a decisão do recurso de revista↩︎
4. Identicamente ao sumário do Ac. do STJ de 06.04.2021, Proc. n° 2541/19.7T8STB.E1.S1, 1ª Secção.↩︎