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Jurisprudência
Sumário

O administrador dos prédios, que integravam o património hereditário da cedente, à data da sua morte, deve prestar contas das rendas que recebeu dos referidos prédios e das que foram destinadas à cessionária.
Decisão Texto Integral

Revista nº 1957/21.3T8CSC.L1.S1

Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça:


*


AA, representado pelo seu pai BB, intentou acção especial de prestação de contas contra CC, DD e EE, pedindo que estes prestem contas da administração do património da sua falecida mãe desde Maio de 2017 até à data da sua morte (...de Outubro de 2019) e do seu agora património desde ... de Outubro de 2019.

Alegou, para tanto, e em síntese, que o património da sua mãe, FF, composto pelos bens identificados na petição inicial (bens imóveis e contas bancárias) vem sendo administrado pelos Réus que, desde Maio de 2017 - altura em que foi diagnosticado um tumor cerebral a FF e em virtude do qual veio a falecer em ... de Outubro de 2019 - passaram, em conjunto e de comum acordo, a movimentar e a gerir as contas bancárias e o património imobiliário, celebrando contratos de arrendamento e recebendo as respectivas rendas.

Citados, os Réus deduziram contestação, negando a obrigação de prestação de contas.

Sustentaram, além do mais, que, relativamente ao prédio urbano sito no concelho de ..., EE e os três filhos acordaram verbalmente no ano de 2010 que, logo que caducasse o usufruto vitalício constituído sobre os mesmos a favor de GG (companheira do pai e avô paterno dos Requeridas), a primeira passaria a ter o uso e a fruição dos ditos bens imóveis, passando a ser titular de um “usufruto de facto vitalício” e, por conseguinte, proprietária do valor das rendas como forma de a compensar de não ter reclamado o pagamento de tornas no processo de inventário que correu termos por conta do falecimento do seu pai e de ter sido prejudicada na sua legítima. Concluíram que o acordo verbal foi cumprido pelas partes até à data da morte de FF, sendo que a obrigação contraída por esta se transmitiu por sucessão ao seu herdeiro AA a cujo cumprimento está naturalmente vinculado, o que constitui facto impeditivo do direito de o autor exigir contas. O valor das rendas é depositado em conta bancária, sendo utilizado para o pagamento das despesas com os prédios de ..., ... e .... No que respeita aos prédios sitos no concelho de ... e ..., alegaram que FF tinha conhecimento e acesso aos extractos da conta de onde constavam as receitas e despesas dos ditos prédios.

O Autor apresentou articulado de resposta, aduzindo ser falso que as partes tenham acordado verbalmente no “usufruto de facto vitalício” dos imóveis a favor de EE, mas que, a admitir-se a existência do mesmo, sempre seria nulo por falta de forma legal.

Teve lugar a produção de prova após o que foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“Julgar o Réu DD obrigado a prestar contas respeitantes ao período de tempo decorrido desde o dia ... de Outubro de 2019 até ao presente quanto à administração:

- da proporção de 1/3 do prédio urbano destinado a habitação sito na Rua ..., actualmente inscrito na matriz sob o artigo ...77 da união das freguesias de ..., concelho de ... (correspondente ao anterior artigo ...12 da extinta freguesia de ...), descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...85;

- da proporção de 1/3 do prédio urbano destinado a habitação sito na Rua ..., inscrito na matriz sob o artigo ...56 da união das freguesias de ..., concelho de ..., (correspondente ao anterior artigo ...28 da extinta freguesia de ...), descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...85;

- da proporção de 1/3 do prédio misto sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...16, composto por uma parte rústica, inscrita na matriz sob o artigo 40 da secção ... da freguesia de ..., e por uma parte urbana, inscrita na respetiva matriz sob o artigo ...44 da freguesia de ..., concelho de ... (correspondente ao anterior artigo ...94 da freguesia de ..., concelho de ...), se destina a habitação;

- da proporção de 1/3 do prédio rústico denominado “...” inscrito na matriz sob o artigo 38 da secção ... da freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...41.

- da proporção de 1/3 do prédio rústico denominado “...” sito em ..., inscrito na matriz sob o artigo 10 da secção... da freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...13, indo, no mais, absolvido;

b) Julgar a Ré CC obrigada a prestar contas respeitantes ao período de tempo decorrido desde 1 de Março de 2019 até ao presente quanto à administração da conta de depósito à ordem nº ...52, domiciliada no Banco “ActivoBank”, titulada por FF, indo, no mais, absolvida.

c) Absolver a Ré EE do peticionado.”

Desta decisão recorreu o Réu DD, pugnando pela alteração da sentença no sentido de que fosse reconhecido que o apelado AA é parte no contrato por ter sucedido na posição de sua falecida mãe (FF) de sujeito passivo da obrigação, absolvendo-se o R. do pedido de prestação de contas a partir de ... de Outubro de 2019 até ao presente, o que se projectará reflexamente na família.

A Relação, julgando parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pelos réus, determinou que as rendas dos prédios de ... não deverão entrar nas “contas” a que o réu DD está obrigado a prestar, confirmando, no mais, a sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância.

O acórdão conta com o seguinte voto de vencido:

“ Julgaria improcedente o recurso confirmando integralmente a decisão da 1.ª instância por entender que fez correcta aplicação do Direito aos factos no que se refere à questão relacionada com a transmissão da obrigação assumida pelos herdeiros CC, DD e pela falecida FF, nos termos constantes do ponto 24º dos factos provados.

Com efeito, ali se dá como provado que “24. Em data não concretamente apurada do ano de 2010, FF, CC, DD e EE acordaram que, caducando o usufruto constituído a favor GG sobre os prédios identificados em 11) e 12), o valor das rendas dos prédios reverteria a favor de EE”.

A questão está em saber se esta obrigação, (admitimos que nos termos do disposto no artº 1306º nº1 2.ª parte, este acordo tem natureza obrigacional), se transmitiu ao ora Autor AA, único herdeiro da falecida FF.

Não há dúvida de que as dívidas do autor da herança se transmitem aos seus herdeiros, nos termos do disposto no artº 2068º do Código Civil.

Porém, entendo que no caso em apreço, nenhum dos filhos da EE se constituiu devedor desta. Apenas pretenderam compensar a sua mãe e garantir-lhe uma vida confortável, prescindindo dum rendimento que era seu por direito, a favor da sua mãe, pois esta como está provado no ponto 37º dos factos “ não aufere qualquer pensão”.

Portanto, não existe uma dívida da herança que se transmita aos herdeiros. Existiu uma liberalidade por parte da falecida FF que não se transmite ao seu filho que por conseguinte, não está obrigado tal como fez a sua mãe, a prescindir de um direito seu, a favor da sua avó.

Da prestação de contas, não devem ser , pois, excluídas, as mencionadas rendas.

Irresignado com a decisão da Relação, veio o Autor interpor recurso de revista e pedir a revogação do acórdão recorrido, com a repristinação do decidido pela 1ª instância.

Para o efeito, apresentou as seguintes conclusões:

“1- O Douto Tribunal de primeira instância julgou “o Réu DD obrigado a prestar contas respeitantes ao período de tempo decorrido desde o dia ... de outubro de 2019 até ao presente quanto à administração” da proporção de 1/3 dos prédios urbanos sitos em ... (alínea a), parágrafos 1 e 2, da Douta Sentença proferida no Tribunal de 1ª instância) da propriedade do A..

2- Já o Douto Tribunal da Relação de Lisboa julgou “a apelação procedente no sentido de que as rendas dos prédios de ... não deverão entrar nas contas a que o DD está obrigado a prestar”, com o voto de vencido / declaração de voto da Meritíssima Juíza Dr.ª Maria de Deus Correia;

3- Salvo o devido respeito, que é muito, o Tribunal da Relação não interpretou e não aplicou corretamente o Direito à questão em apreciação;

4- O objeto do presente recurso é, em primeiro lugar, a apreciação da validade e transmissibilidade ao A. (por sucessão hereditária), do acordo celebrado entre a mãe deste e os RR. constante do ponto 24 dos fatos provados da Douta Sentença proferida em 1ª instância, segundo o qual “caducando o usufruto constituído a favor GG sobre os prédios identificados em 11) e 12), o valor das rendas dos prédios reverteria a favor de EE.” e, em segundo lugar, apurar se esse acordo é impeditivo ou de alguma forma afasta a obrigação do R. DD de prestar de contas ao A. acerca da administração que tem vindo a exercer e exerce sobre os bens de que é comproprietário com o A.;

5- O objeto do referido contrato em causa é a entrega do valor das rendas que vierem a ser recebidas pelo arrendamento dos imóveis sitos em ... e de que o A. é co-titular na proporção de 1/3 e não das rendas propriamente ditas, já que o direito ao recebimento das rendas continuou e continua a pertencer aos respetivos proprietários, que não o transmitiram.

6- Produzindo o mesmo efeitos meramente obrigacionais (e não reais) entre as respetivas partes que o celebraram;

7- A “obrigação” constituída é um direito de crédito futuro, incerto e eventual, de que os contratantes não eram sequer titulares (porque eram apenas nu-proprietária dos prédios arrendados em causa) mas tinham a mera expetativa de um dia vir a ser (após a caducidade do usufruto, se os imóveis continuassem arrendados e se os arrendatários lhes pagassem a renda).

8- O dito contrato é gratuito, na medida em que apenas uma das partes (mãe do A. e RR. DD e CC) se sacrifica patrimonialmente (com a entrega do valor das rendas) em benefício de outro (R. EE), que não tem nenhum sacrifício patrimonial e

9- constitui uma liberalidade / doação (artº 940º C.Civil) porquanto é manifesto que a sua finalidade é unicamente beneficiar a contraparte (ato de generosidade), que, concretamente, a nada se obriga;

10-Em suma, o dito acordo consiste na constituição de uma obrigação unilateral de doação pura e simples de um direito de crédito futuro e incerto correspondente ao valor das rendas vincendas que os donatários viessem, um dia, a receber.

11-Nos termos do disposto no artº 942º nº 1 “a doação não pode abranger bens futuros”, pelo que, ao incidir sobre um bem / crédito futuro, o dito acordo está ferido de nulidade, nunca tendo produzido qualquer efeito (cfr nº 1 do artº 942º, no artº 280º e no artº 286º do CC) na esfera jurídica da mãe do A., que, por isso mesmo, não o transmitiu, por sucessão, ao A..

12-Mas ainda que assim se não entenda, o que não se concebe de todo e só por mero raciocínio académico se coloca, ainda assim e à cautela, sempre se dirá que, mesmo a admitir-se que o dito contrato é válido e produziu efeitos na esfera jurídica da mãe do A., o mesmo não se transmitiu e não é transmissível ao A.. porquanto sendo uma liberalidade, é um ato de generosidade, agradecimento e de reconhecimento de uma filha para a respetiva mãe, com dimensão estritamente pessoal e valor meramente inter-partes.

13-Uma liberalidade é, pela sua própria natureza e essência, livre, gratuita e generosa, e por isso mesmo, necessariamente incompatível com uma qualquer obrigação de o fazer. Uma liberalidade é, por isso mesmo inexigível e intransmissível. Se se admitir a constituição da obrigação de alguém dar, desaparecerá automaticamente a gratuitidade e generosidade inerente à liberalidade em si e, por conseguinte, a pretendida liberalidade deixará de o ser e transformar-se-á num contrato obrigacional e oneroso, sendo certo, porém, que não foi e não é essa a razão de ser do dito acordo, nem tão pouco a intenção das partes contratantes.

14-Porque desse acordo não resulta a constituição de uma qualquer dívida ou obrigação (mas sim uma doação pura e simples) para o declaratário (mãe do A.), temos que não se enquadra nas situações de dívidas ou encargos da herança transmissíveis por sucessão (ao A.) nos termos do disposto no artº 2068º do CC,

15-Pelo que, bem decidiu o Tribunal de primeira instância que entendeu que “tal acordo vinculou apenas FF, e apenas esta, não podendo os Réus pretender que, da sua celebração, nasceram quaisquer obrigações para o Autor, que nele não interveio (artigo 406º, nº 2 do Código Civil).”.

16- E mal andou o Douto Tribunal de recurso que alterou a Douta Sentença da primeira instância e ao entender que “o A. não é um terceiro para efeitos do apontado artº 406º nº 2 CC, antes é um sucessor nos direitos e deveres patrimoniais de sua mãe. E porque assim é fica vinculado ao acordo sobredito firmado entre sua mãe, seus tio e avó”.

17- De fato, e relativamente à liberalidade assumida pela mãe do A., o A. é uma terceira pessoa, e é um terceiro precisamente porque essa liberalidade não faz parte da universalidade de direitos e deveres que lhe foram transmitidos por sucessão da mãe.

18-Não se tendo transmitido ao A., o dito acordo não só não lhe é oponível como é ainda insuscetível de afastar a obrigação legal do R. DD prestar contas ao A.

19-Constitui Princípio Geral do Direito o de que, quem administra bens ou interesses alheios (total ou parcialmente), mesmo que se trate de uma mera administração de fato, se encontra obrigado a prestar contas da sua administração aos restantes titulares (neste sentido v. Ac.R.E. de 26-03-2015 e de 20-10-2016, e S.T.J. de 13-11-2003, in www.dgsi.pt). A obrigação de prestação de contas decorre da obrigação geral de informação prescrita no art. 573.° do Código Civil, e é um corolário do princípio geral da boa fé.

20-Encontra-se provado nestes autos que os bens de ... vêm sendo, desde 2014, administrados pelo R. DD (cfr. ponto 16 dos fatos provados da Douta Sentença proferida), que os referidos bens pertencem, 1/3 ao R. DD, 1/3 à R. CC e 1/3 ao aqui A. (cfr. pontos 11 e 12 dos fatos provados da Douta Sentença proferida) e que o R. DD não prestou contas ao A. cerca da administração que vem fazendo dos referidos bens, não obstante o pedido do A. para esse efeito (cfr. ponto 25 dos fatos provados da Douta Sentença proferida).

21-Ou seja, estão provados todos os fatos constitutivos do direito do A. a que lhe sejam prestadas contas e da obrigação do R. DD a prestar-lhas.

22-O R. DD entende que o acordo celebrado entre a mãe do A. e os RR., constante do ponto 24 dos fatos provados da Douta Sentença proferida em 1ª instância, constitui uma exceção ao direito do A. que impede e afasta a obrigação do Ré DD de prestar de contas ao A.

23-O Douto Acórdão de que ora se recorre, proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, entende que esse acordo “não constitui a nosso ver matéria de excepção mas sim de impugnação”.

24-Mas, ainda assim, decide pela exclusão das “rendas” dessa prestação de contas.

25-O que, salvo o devido respeito, que é muito, não se compreende e não se aceita. Só as exceções (e não a impugnação) podem impedir os efeitos jurídicos pretendidos pelo A. e se o Douto Tribunal entendeu não se verificar uma exceção, então, não pode decidir como se a mesma se verificasse: ou estamos perante uma exceção, impeditiva dos efeitos jurídicos pretendidos pelo A. ou, então, não estamos perante uma exceção e nesse caso mantém-se a obrigação do R. DD prestar contas (porque provados os fatos constitutivos do direito do A.) tal como o Douto Tribunal de primeira instância decidiu, e bem, a nosso ver.

26-E, se o Tribunal de Recurso entendeu que não se tratava de uma exceção, então não pode, sem mais, excluir as rendas da obrigação de prestação de contas, como o fez.

27-E, de fato, o dito acordo constante do ponto 24º dos fatos provados da Douta Sentença proferida não constitui uma exceção e não é impeditivo, não exclui, não diminui, nem, tão pouco, belisca, o direito do A a que lhe sejam prestadas contas e por isso não há que excluir as rendas da prestação de contas.

28-O direito às rendas e ao seu recebimento sempre pertenceu e pertence aos respetivos titulares, a saber, a mãe do A. (e agora o A.) e os RR. DD e CC (e não à R. EE, que apenas tem o direito de receber o valor das rendas por aqueles recebidas) porque esse direito não foi transmitido e não foi objeto do dito contrato.

29-O Douto Tribunal da Relação confundiu, indevidamente, as rendas e o direito ao seu recebimento com o valor dessas mesmas rendas

30-E, bem assim, confundiu, indevidamente, o direito ao recebimento das rendas (pertencente ao A. e decorrente do seu direito de propriedade e do arrendamento dos imóveis em causa) com a “obrigação” do A. entregar o valor dessas rendas à R. EE (decorrente do ponto 24º dos fatos provados da Douta Sentença proferida) e considerou, sem mais, que ambas eram coincidentes, como se, automaticamente, a R. EE tivesse adquirido o direito a receber diretamente as rendas dos arrendatários e o R. DD tivesse a obrigação de lhas entregar diretamente, o que não é verdade.

31-Salvo o devido respeito, é inconcebível que o A., que é titular das rendas e do direito ao seu recebimento ao A., na parte correspondente a 1/3, seja privado do direito a ser informado acerca das rendas recebidas pelos arrendamentos dos imóveis de ..., respetivos valores, onde os mesmos foram gastos, a quem foram entregues e/ou onde se encontram aplicados. E mais inconcebível é ainda que, apesar de privado do direito àquela informação, esteja obrigado a declarar fiscalmente as rendas que desconhece e não recebe e ainda a pagar todas as despesas e impostos referentes a esses mesmos imóveis. No extremo, chegaremos ao absurdo de ser o neto de 6 anos, que é órfão de mãe desde os 3, não tem qualquer meio de subsistência (dependendo exclusivamente do pai) e não tem idade nem condições para trabalhar, a ter a obrigação de sustentar a sua avó, que não tem e nunca teve qualquer limitação para trabalhar e não o contrário

32-Excluir as rendas da obrigação de prestação de contas do R. DD é, salvo o devido respeito, um absurdo jurídico, porquanto é coartar ao A. o direito de conhecer e de receber os rendimentos prediais a que tem legalmente direito (ativo) e que tem a obrigação de declarar ao Estado. Admitir tal coisa constituiria uma limitação ilegítima e ilegal ao direito de propriedade constitucionalmente consagrado. E representaria uma limitação ilegal e injustificável dos direitos do A., enquanto proprietário que é, indo muito para além do direito de usufruto que as partes no dito acordo (RR. CC, DD eEE e a mãe do A.), assumidamente não quiseram celebrar e prejudicando de forma gravosa e irreparável os direitos do A.

33-O A. é absolutamente livre para decidir se cumpre ou não a eventual “obrigação” constituída pela sua mãe a favor da sua avó e aqui R. EE. É inconcebível que o R. DD possa “cumprir” essa “obrigação” pelo A., com os rendimentos deste, sem o seu conhecimento, nem vontade. Tal constituiria, mais do que uma administração de bens alheios(que já existe), uma disposição de bens e direitos alheios, o que é frontalmente proibida por lei.

34-Acrescente-se, ainda, que a responsabilidade do aqui A., como herdeiro que é, está objetivamente limitada às forças da herança por si efetivamente recebidas (cfr. artº 2068º do C.Civil). Logo, se for privado do direito a saber o concreto valor das rendas que recebe, como poderá calcular o limite da sua responsabilidade?

35-Em suma, o Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa decidiu mal ao excluir as “rendas” da obrigação de prestação de contas pelo R. DD e, ao fazê-lo, violou o disposto no nº 1 do artº 942º, no artº 2068º e no nº 1 do artº 1306º, todos do C.Civil.

36-Já a Douta Sentença da primeira instância alterada pelo Douto Acórdão ora recorrido não enferma de qualquer vício ou contradição, pelo que deverá ser mantida na íntegra.

37-Assim, deverá ser dado provimento ao presente recurso de Revista, e por via dele, ser revogado o acórdão recorrido e substituído por outro que determine a obrigação do R. DD a prestar contas ao A., sem quaisquer restrições, ou seja, com inclusão das rendas, mantendo-se assim, nos precisos termos, a Douta Sentença proferida em primeira instância.

Termos em que deverá ser dado provimento ao presente recurso de Revista, e por via dele, ser revogado o acórdão recorrido e substituído por outro que determine a obrigação do R. DD a prestar contas ao A., sem quaisquer restrições (com inclusão das rendas) mantendo-se assim, nos precisos termos, a Douta Sentença proferida em primeira instância que nenhum reparo merece. (…) “

O R./apelante/recorrido contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso.

Cumpre decidir.

A Relação considerou provada a seguinte matéria de facto:

“1. AA nasceu no dia ... de Junho de 2016 e é filho de BB e FF.

2. Em Maio de 2017 foi diagnosticada uma doença a FF.

3. Em Maio de 2019 o estado de saúde de FF deteriorou-se, passando a andar de cadeira de rodas em Junho de 2019.

4. Em Agosto de 2019 FF já não conseguia falar mas compreendia as perguntas que lhe eram feitas, respondendo às mesmas através do “piscar de olhos”.

5. FF faleceu no dia ... de Outubro de 2019, no estado de solteira.

6. Por escritura de habilitação notarial, outorgada em 29 de Novembro de 2019, exarada de fls. dois a dois verso do livro de notas para escrituras nº ...65-A, foi reconhecido, como único herdeiro de FF, AA.

7. No dia 4 de Março de 1996 HH outorgou testamento do qual consta, além do mais, «Que lega por conta da sua quota disponível: a) A GG (...) o usufruto dos prédios urbanos inscritos na respectiva matriz predial sob os artigos ...12 e ...28, ambos situados na Rua ..., freguesia de ..., (...), concelho de ... (...).b) A seus netos nascidos, nascituros, concebidos ou não filhos de sua filha EE e que a mesma conceber até aos quarenta e cinco anos de idade, lega a nua propriedade dos referidos prédios urbanos cujo usufruto legou a favor da Senhora GG», cujo teor no mais se dá aqui por integralmente reproduzido.

8. Através da Apresentação nº 2 de 29 de Julho de 2003, foi registada a aquisição, por partilha de herança, a favor de FF, DD e CC, cada um na proporção de 1/3, do prédio misto sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...16, sendo que a parte rústica, inscrita na matriz sob o artigo 40 da secção ... da freguesia de ..., se destina a terras de semeadura, montado de sobro, oliveiras, pinheiros e árvores de fruto, e a parte urbana, inscrita na respetiva matriz sob o artigo ...44 da freguesia de ..., concelho de ... (correspondente ao anterior artigo ...94 da freguesia de ..., concelho de ...), se destina a habitação.

9. Através da Apresentação nº 1 de 29 de Julho de 2003, foi registada a aquisição, por partilha de herança, a favor de FF, DD e CC, cada um na proporção de 1/3, do prédio rústico denominado “...” composto por cultura arvense, pastagem, olival, oliveiras e montado de sobro, inscrito na matriz sob o artigo 38 da secção ... da freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...41.

10. Através da Apresentação nº 4 de 29 de Julho de 2003, foi registada a aquisição, por partilha extrajudicial, a favor de FF, DD e CC, cada um na proporção de 1/3, do prédio rústico denominado “...”, sito em ..., composto por leito de curso de água, cultura arvense, pastagem com destino a montado de sobro, montado de sobro, oliveiras, sobreiros e pomar de citrinos, inscrito na matriz sob o artigo 10 da secção ... da freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...13.

11. Através da Apresentação nº 137 de 23 de Julho de 2009, foi registada a aquisição, por legado, a favor de FF, DD e CC, cada um na proporção de 1/3, do prédio urbano destinado a habitação composto por um edifício com r/c com 1 cozinha, 5 divisões, 1 casa de banho, 3 corredores, 1 despensa e uma marquise e 1º andar com 1 cozinha, 5 divisões, 2 casas de banho, 1 despensa e 2 marquises, sito na Rua ..., actualmente inscrito na matriz sob o artigo ...77 da união das freguesias de ..., concelho de ... (correspondente ao anterior artigo ...12 da extinta freguesia de ...), descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...85.

12. Através da Apresentação nº 137 de 23 de Julho de 2009, foi registada a aquisição, por legado, a favor de FF, DD e CC, cada um na proporção de 1/3, do prédio urbano destinado a habitação composto por r/c com 4 divisões, 3 armazéns e quintal e 1º andar com cozinha, casa de banho, corredor e 3 divisões, sito na Rua ..., inscrito na matriz sob o artigo ...56 da união das freguesias de ..., concelho de ..., (correspondente ao anterior artigo ...28 da extinta freguesia de ...), descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...85.

13. Os prédios identificados em 8) a 10) são administrados por DD desde data não concretamente apurada do ano de 2003 até ao presente.

14. Até 10 de Outubro de 2019 DD administrou os prédios identificados em 8) a 10) com o conhecimento e autorização de FF e de CC.

15. Desde 10 de Outubro de 2019 DD tem vindo a administrar os prédios identificados em 8) a 10) com o conhecimento e autorização de CC.

16. Os prédios identificados em 11) e 12) são administrados por DD desde data não concretamente apurada do ano de 2014 até ao presente.

17. Até 10 de Outubro de 2019 DD administrou os prédios identificados em 11) e 12) com o conhecimento e autorização de FF e de CC.

18. Desde 10 de Outubro de 2019 DD tem vindo a administrar os prédios identificados em 11) e 12) com o conhecimento e autorização de CC.

19. Em 1 de Outubro de 2016 FF, CC, DD e II assinaram um escrito intitulado «contrato de arrendamento urbano para fins habitacionais com prazo certo», ao abrigo do qual os três primeiros declararam ceder ao quarto que, por sua vez, declarou aceitar, o uso e fruição do r/c do prédio sito na Rua ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo ...77, pelo valor de € 750,00/mês, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido em razão da sua extensão.

20. Em 1 de Maio de 2019 FF, CC, DD e JJ assinaram um escrito intitulado «contrato de arrendamento urbano para fins habitacionais com prazo certo», ao abrigo do qual os três primeiros declararam ceder à quarta que, por sua vez, declarou aceitar, o uso e fruição do r/c do prédio sito na Rua ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo ...56, pelo valor de € 275,00/mês, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido em razão da sua extensão.

21. Em 7 de Novembro de 2021 CC, DD e KK assinaram um escrito intitulado «contrato de arrendamento urbano para fins habitacionais com prazo certo», ao abrigo do qual os dois primeiros declararam ceder ao terceiro que, por sua vez, declarou aceitar, o uso e fruição do r/c do prédio sito na Rua ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo ...56, pelo valor de € 750,00/mês, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido em razão da sua extensão.

22. Sobre um dos prédios identificados em 11) e 12), foi firmado um acordo de cedência de gozo e fruição entre HH e LL “Pé-Curto”, mediante o pagamento de um valor mensal, que ainda hoje perdura.

23. O valor das rendas dos prédios identificados em 11) e 12) são depositadas na conta à ordem nº ...09, domiciliada no Novo Banco, titulada por FF, CC, DD e EE.

24. Em data não concretamente apurada do ano de 2010, FF, CC, DD e EE acordaram que, caducando o usufruto constituído a favor GG sobre os prédios identificados em 11) e 12), o valor das rendas dos prédios reverteria a favor de EE.

25. Por carta datada de 29 de Maio de 2020, e recebida pelos Requeridos, BB deu-lhe a saber, sob a epígrafe «Óbito de FF – Prestação de Contas/Entrega de Bens e Prestação de Informações»: «Exmos. Senhores: Como é do vosso conhecimento, a vossa filha e irmã, FF, faleceu no passado dia ...-10-2019 tendo deixado como seu único e universal herdeiro, seu filho (vosso neto e sobrinho) menor de idade AA. Ora, tendo em conta que nos últimos meses de vida que antecederam a sua morte a FF ficou impedida de gerir a sua vida (por motivos de saúde) e que foram V. Excias quem assumiu a responsabilidade, geriu e administrou todos os assuntos referentes à mesma, desde já solicito que, até ao dia 30 de junho de 2020 prestem as contas devida ao herdeiro AA, vosso neto e sobrinho.

Mais solicito que, dentro do mesmo prazo (até 30 de Junho de 2020) sejam depositadas e/ou transferidas para a conta do herdeiro AA com o IBAN PT50 ...23 (cfr comprovativo ora junto) todas as quantias retiradas das contas bancárias (Activo Bank, Banco CTT, Novo Banco), desde Maio de 2019 em diante, sem a autorização nem o conhecimento da respectiva titular FF, nem do seu sucessor legal ora herdeiro. (…) no que concerne aos bens imóveis deixados (1/3 dos prédios inscritos na matriz predial respetiva sob os arts urbanos ...77 e ...56 da união de freguesias ..., ... e ..., concelho de ..., rústicos 38 e 40 ambos da secção ... e urbano ...44, todos da freguesia de ..., concelho de ... e rústico 10 da secção G da união de freguesias de S. Francisco da Serra, concelho de ...) desde já solicito que até ao dia 30 de junho de 2020 me seja enviado por correio um molho de chaves referente a cada um dos referidos imóveis. Para além disso, e tendo em conta que os referidos bens estão arrendados, solicito ainda que, dentro do mesmo prazo, ou seja até dia 30 de junho de 2020: a) me enviem por correio fotocópia de todos os contratos de arrendamento que tenham por objeto os bens imóveis (ou parte deles) referidos supra, com a identificação e contato dos respectivos inquilinos; b) me informem de que forma estão a ser processados os recibos referentes às rendas recebidas porquanto é imperativo que os rendimentos auferidos pelo menor sejam comunicados às finanças; c) procedam ao depósito ou transferência para a conta bancária do menor herdeiro com o IBAN PT50 ...23 (conforme comprovativo ora junto) o valor correspondente a 1/3 (parte respeitante ao menor) das rendas recebida, desde novembro de 2019 até à presente data; (…)».

26. A conta de depósito à ordem nº ...52, domiciliada no Banco “ActivoBank”, era titulada por FF, a qual, em 10 de Outubro de 2019, apresentava o saldo de € 86,17.

27. FF fez a gestão e a administração da sua conta nº ...52 até Fevereiro de 2019.

28. A partir de Março de 2019 FF conferiu a CC o poder de movimentar a sua conta nº ...52, e cujos montantes aí depositados pertenciam exclusivamente a FF, para o pagamento das suas despesas.

29. No dia 23 de Agosto de 2019 CC transferiu as quantias de € 2.000,00 e de € 500,00 da conta nº ...52 para a conta bancária com o IBAN nº PT...94 de que é titular.

30. No dia 9 de Setembro de 2019 CC transferiu as quantias de € 2.000,00 e de € 500,00 da conta nº ...52 para a conta bancária com o IBAN nº PT...94 de que é titular.

31. No dia 3 de Outubro de 2019 CC transferiu as quantias de € 2.000,00 e de € 500,00 da conta nº ...52 para a conta bancária com o IBAN nº PT...94 de que é titular.

32. No dia 9 de Outubro de 2019 CC transferiu as quantias de € 2.000,00 e de € 500,00 da conta nº ...52 para a conta bancária com o IBAN nº PT...94 de que é titular.

33. A conta de depósito à ordem solidária nº ...21, domiciliada no Banco CTT, titulada por FF e CC, apresentava, em 10 de Outubro de 2019, o saldo de € 4,80.

34. No dia 9 de Outubro de 2019 foi transferida a quantia de € 20.000,00 da conta de depósito à ordem nº ...21 para a conta bancária com o IBAN nº PT...94, de que CC é titular.

35. A conta à ordem solidária nº ...09, domiciliada no Novo Banco, titulada por FF, CC, DD e EE, apresentava, em 10 de Outubro de 2019, o saldo de € 178,15.

36. No dia 10 de Outubro de 2019 foi transferida a quantia de € 14.500,00 da conta à ordem nº ...09 para a conta bancária com o IBAN nº PT...94 de que CC é titular.

37. EE não aufere qualquer pensão.

A Relação fixou como não provados os seguintes factos:

“a) A partir de Maio de 2017 FF tenha perdido a capacidade de gerir a sua vida, o seu património e consultar e/ou entender os extractos bancários das contas.

b) CC e EE tenham vindo a explorar e a administrar conjuntamente os prédios identificados em 8) a 12) com DD – sem prejuízo da factualidade vertida nos pontos 13 a 18 do elenco dos factos provados.

c) As transferências da conta nº ...52 para a conta bancária com o IBAN nºPT...94, de que CC é titular, referidas em 29) a 32) tenham sido realizadas a pedido de FF – sem prejuízo da factualidade vertida no ponto 28 do elenco dos factos provados.

d) Os montantes depositados na conta nº ...21 domiciliada no Banco CTT sejam provenientes da conta original do BES nº ...09 aberta por EE em 1998.

e) Os montantes depositados na conta nº ...21 domiciliada no Banco pertençam a EE.

f) Os valores constantes da conta nº ...09 domiciliada no Novo Banco pertençam por inteiro a EE.

g) Os valores constantes da conta nº ...09 domiciliada no Novo Banco sejam provenientes da conta original do BES nº ...09 aberta por EE em 1998.

Admissibilidade do recurso.

De acordo com o AUJ nº 5/2021, “o acórdão da Relação que, incidindo sobre a decisão de 1.ª instância proferida ao abrigo do nº 3 do art. 942º do CPC, aprecia a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas, admite recurso de revista, nos termos gerais.”

Verificados os requisitos gerais de recorribilidade, o recurso de revista é, assim, admissível.

Da obrigação do réu DD de prestar contas quanto às rendas devidas pelo arrendamento dos prédios sitos em ....

O objecto do presente recurso consiste em determinar se a obrigação de prestar contas do réu DD se estende às rendas inerentes aos contratos de arrendamento celebrados relativamente a dois prédios urbanos localizados em ..., que são compropriedade de FF, CC e do próprio réu DD, e administrados por este desde data não concretamente apurada de 2014 até ao presente (pontos 11, 12 e 16, 19 a 22 da factualidade assente).

A este respeito ficou provado que “em data não concretamente apurada do ano de 2010, FF, CC, DD e EE acordaram que, caducando o usufruto constituído a favor GG sobre os prédios identificados em 11) e 12), o valor das rendas dos prédios reverteria a favor de EE” (ponto 24 da matéria assente).

Ora, com o falecimento da mãe do autor, FF, coloca-se a questão de saber se tal acordo firmado quanto à transmissão da titularidade das rendas é oponível ao autor, herdeiro daquela comproprietária.

Na sentença, considerou-se que se encontravam reunidos os pressupostos para que o autor, na qualidade de herdeiro de FF, exigisse a prestação de contas quanto à administração dos prédios em causa no período posterior ao do falecimento da sua mãe, ocorrido a 10.10.2019, salientando-se que o acordo mencionado no ponto 24 dos factos provados não o vinculava, nos termos do nº 2 do art. 406º do CC, e que o direito de usufruto sobre os imóveis não fora constituído a favor de EE de modo formalmente válido, através de escritura pública.

Por sua vez, a Relação realçou que nenhum direito de usufruto foi constituído a favor da ré EE, concluindo que a posição decorrente do acordo firmado entre a mãe, tios e avó do autor, ao abrigo da liberdade contratual, se transmitiu ao autor, por via sucessória.

Contou o acórdão com um voto de vencido, em que, como se viu, se frisou que, não obstante as dívidas do autor da herança se transmitirem aos seus herdeiros, nos termos do art. 2068º do CC, no caso, nenhum dos filhos de EE se havia constituído devedor desta, tendo antes actuado com intenção de a compensar, por aquela não auferir qualquer pensão, através da realização de uma liberalidade, que não poderá vincular o filho da falecida FF.

Vejamos.

A determinação da obrigação do réu DD de prestar contas relativamente às quantias percebidas a título de rendas depende dos efeitos do acordo celebrado entre os réus e a falecida CC em relação ao autor.

Para o efeito, importa determinar o alcance de tal pacto, por via da interpretação das declarações nele vertidas, de acordo com os critérios hermenêuticos plasmados nos arts. 236º a 239º do CC - uma actividade que se inscreve no âmbito dos poderes de cognição do STJ.

Não tendo ficada demonstrada a vontade real das partes indicativa de um sentido particular da declaração (art. 236º, nº 2 do CC), cremos que, no caso, a aplicação da teoria objectivista da impressão do destinatário, que confere prevalência ao sentido apreensível por um declaratário normal, colocado na posição de real declaratário (art. 236º, nº 1 do CC), permite concluir que os três filhos visaram ceder à sua mãe um crédito correspondente às rendas advenientes de contratos de arrendamento incidentes sobre os imóveis de que eram comproprietários.

Estamos, assim, perante uma cessão de créditos, consistente na transmissão singular “inter vivos” de direitos de crédito, que se encontra regulada nos arts. 577º a 588º do CC.

Nas palavras de Antunes Varela, “a cessão de créditos pode assim ser definida como o contrato pelo qual o credor transmite a terceiro, independentemente do consentimento do devedor, a totalidade ou uma parte do seu crédito.” (Das Obrigações em Geral, volume II, 7ª edição, 2006, Almedina, pág. 295)

Na síntese do acórdão do STJ de 28.3.2019, proc nº 281648/11.7YIPRT.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt “a cessão de créditos é, assim, um negócio de causa variável ou policausal, podendo ter por base uma compra e venda (art. 874º do C. Civil), uma doação (art. 940º), uma sociedade (art. 984º, al. c) ), um contrato de factoring, uma dação em cumprimento ( art. 837º) ou pro solvendo (art. 840º, nº2) ou um ato de constituição de garantia.”

Ora, se é certo que o contrato de cessão de créditos poderá apresentar múltiplas causas, no caso concreto nenhuma delas resultou provada, designadamente a doação. Com efeito, não se extrai da matéria de facto provada o “animus donandi” que permita identificar como doação o negócio causal (art. 940º, nº 1, do CC), não se podendo deduzir do ponto 37 da facticidade assente ( que nos dá conta de que a ré EE não aufere qualquer pensão) a intenção das partes em realizar uma liberalidade.

Observou o acórdão do STJ de 12.4.2018, no proc. nº 529/15.6T8BGC.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt, quanto à natureza do direito cedível, que esta compreende “a generalidade dos direitos de crédito na livre disponibilidade do cedente, na malha ampla da liberdade contratual proclamada no artigo 405º, nº 1, do CC, ressalvadas as exceções proibitivas constantes da lei (v.g. nos artigos 579º, 581º e 2008º do CC) ou as convencionadas pelas partes, como decorre do disposto na 2.ª parte do nº 1 do artigo 577º. E a cessão pode incidir tanto sobre créditos presentes, vencidos ou não, como sobre créditos futuros, desde que determináveis, nos mesmos termos em que é permitida a constituição de obrigações sobre coisas futuras (artigos 211º e 399º do CC).”

Revertendo ao caso sub judice, verifica-se que a cessão incidiu sobre créditos futuros (cfr. art. 211º do CC), consistentes em rendas de negócios jurídicos ainda não celebrados à data da cessão, de natureza determinável - uma categoria de créditos que não se mostra abrangida pela interdição constante da parte final do nº 1 do art. 577º do CC (neste sentido, cfr. Antunes Varela, ob. cit., pág. 316, nota 1). Tal contrato de cessão não tinha de obedecer a nenhuma forma especial (arts. 219º e 578º do CC), não se verificando, ao contrário do sugerido pelo autor, qualquer impedimento legal à cessão desta tipologia de créditos.

No citado acórdão do STJ de 12.4.2018, identifica-se uma divergência doutrinária relativamente ao momento em que se produz a eficácia translativa do contrato de cessão de créditos, no âmbito da qual a teoria da eficácia translativa diferida se opõe à teoria da eficácia translativa imediata: “na doutrina nacional, Antunes Varela, convocando a orientação preconizada por Vaz Serra, na linha da solução consagrada no direito alemão, sustenta que, diversamente do anteriormente estabelecido no artigo 789º do Código Civil de 1867, em virtude do princípio da consensualidade dos contratos estabelecida no artigo 408º do CC atual se deve considerar o contrato de cessão de créditos submetido à eficácia imediata do negócio, quer em relação às partes quer no respeitante a terceiros, independentemente da notificação do devedor prescrita no artigo 583º, nº 1, do mesmo Código (CC de 1966), ficando a eficácia diferida apenas ressalvada quanto ao devedor e ao sucessivos adquirentes do crédito, respetivamente nos termos específicos daquele artigo 583º e do artigo 584º. Por seu lado, Menezes Leitão, começando por afirmar que “em relação a terceiros, a cessão produz efeitos independentemente de qualquer notificação”, ainda assim afasta-se da solução tida por mais rígida de Antunes Varela, no caso de dupla alienação do crédito, procurando conciliar o artigo 583º, nº 2, com o artigo 584º, no sentido de considerar que da redacção deste último normativo decorre “a prevalência de créditos, não com base na prioridade do negócio abstracto, mas na notificação que venha a ser realizada ao devedor ou na aceitação da cessão por ele emitida.”

Podemos nós qualificar o autor como terceiro em relação ao contrato?

Pensamos que não.

Se o princípio da relatividade do contrato, consagrado no nº 2 do art. 406º do CC, exige que os efeitos contratuais se cinjam às partes, o conceito de “parte” terá de abranger não apenas os contraentes originários mas também os que lhe venham a suceder a título sucessório (Almeida Costa, Noções Fundamentais de Direito Civil, 5ª edição, Almedina, 2009, pág. 56) - extensão que se encontra também prevista na norma prevista no art. 4º, nº 1 do Código do Registo Predial (v. Armando Triunfante, Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações, Universidade Católica Editora, 2018, pág. 64) - uma vez que o que está em causa na sucessão é a “atribuição do património do falecido a uma ou mais pessoas que globalmente o vão adquirir, segundo diversas modalidades de aquisição derivada (em que predomina a translativa) (…)” (Carvalho Fernandes, Lições de Direito das Sucessões, 4ª edição, Lisboa, Quid Iuris, 2012, pág. 62). Na verdade, na sucessão “mortis causa” verifica-se uma substituição na titularidade de relações jurídicas patrimoniais compreendidas na herança, relações essas cuja identidade, todavia, se mantém, não obstante a mudança operada nos seus titulares (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume VI, Coimbra Editora, 1998, pág. 2).

Opõe o autor que o acordo celebrado entre os filhos e mãe tem efeitos meramente obrigacionais (e não reais) entre as partes, mas não cremos que tal entendimento esteja correcto.

Com efeito, e na linha do já mencionado acórdão do STJ de 12..4.2018, há que aplicar “ao contrato de cessão de crédito, por via extensiva ou mesmo analógica, os princípios da consensualidade negocial e da sua eficácia erga omnes consagrados no artigo 408º em conjugação com o disposto no artigo 879º, alínea a), 2.ª parte, do CC, em que se inclui, como efeito típico da compra e venda, a transmissão da titularidade do direito, disposição esta também aplicável aos demais contratos onerosos por via do artigo 939º do mesmo Código. Nem a natureza relativa do direito de crédito se afigura que obste a tal eficácia erga omnes, na medida em que esta eficácia translativa não versa sobre o conteúdo da prestação creditícia, mas sim sobre a própria titularidade do direito de crédito.” Também Tiago Ramalho realça que, tanto na alienação de um direito real, como na alienação de um direito de crédito se modifica a ordenação dominial (“A Cessão de Créditos Futuros e a Insolvência – A Posição do Cessionário na Insolvência do Cedente”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, ano 9, 2012, pág. 485). É, pois, possível, na esteira da construção defendida por este autor, sustentar que a autonomização da titularidade do direito de crédito, enquanto objecto específico de cessão, lhe confere natureza absoluta, equiparável aos direitos reais, e eficácia “erga omnes” inerente ao respetivo efeito patrimonial translativo, nos termos do art. 408º do CC (págs. 485-486). E, tratando-se de crédito futuro, “a sua transferência da esfera do cedente para a do cessionário ocorrerá logo que o direito cedido ingresse na esfera daquele, nos termos do nº 2 do indicado artigo 408º, ou seja, transfere-se automática e imediatamente para a esfera do cessionário.”

Na presente situação, tratando-se os créditos cedidos (rendas) de créditos futuros emergentes de relações contratuais (contrato de arrendamento) ainda não constituídas no momento em que a cessão foi efectuada, os créditos nascerão primeiramente na titularidade do cedente, só depois se transferindo para o cessionário (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, volume II, 7.ª edição, pág. 318).

Poder-se-ia objectar que, cessando a personalidade jurídica com a morte (art. 68º, nº l), o cessionário não poderia adquirir um crédito por transmissão de alguém que já não existia no momento em que o mesmo se vem a constituir. ”Neste enquadramento, a cessão de créditos futuros extinguir-se-ia, caso o crédito viesse apenas a constituir-se após a morte do cedente.” (Menezes Leitão, Cessão de Créditos, Coimbra, Almedina, 2016, pág 436). No entanto, como sublinha o mesmo autor, ”essa solucão não parece (...) a melhor posição. Efectivamente, a regra geral é a hereditabilidade das situações jurídicas (art. 2024º), só não sendo objecto de sucessão as relações jurídicas que devam extinguir-se por morte do respectivo titular, em razão da sua natureza ou por força da lei (art. 2025º). Ora, a disposição sobre o crédito futuro não constitui um negócio cuja eficácia tenha por lei ou pela sua natureza que ter a sua operatividade limitada à vida do cedente, parecendo dever-se admitir a sua transmissão para os herdeiros, nos termos gerais.” (Cessão de Créditos, págs. 436-437).

Os créditos cedidos correspondentes às rendas (ou melhor, a parte destas) constituíram-se, pois, no património autónomo formado pela herança de FF, transferindo-se, posteriormente, para a esfera da cessionária EE.

Pode argumentar-se que tais créditos cedidos não podem integrar o activo da herança, nos termos da al. d) do art. 2069º do CC, uma vez que, apesar de serem frutos dos bens hereditários, não foram percebidos pelo património autónomo, tendo-se verificado uma modificação subjectiva da obrigação, através da substituição do credor originário por outra pessoa.

É certo que tais créditos não se terão consolidado no património constituído pela herança de FF, uma vez que dele terão saído por efeito da cessão.

Cremos, porém, que, tendo entrado nesse património, à data do óbito de FF, deverá, ainda assim, o autor, na qualidade de herdeiro (cfr. Ac. R.G. de 26.9.2024, proc. 283/21.2T8PVL.G1, a decisão do T.R.C de 8.4.2019, Proc. 1971/18.6T8LRA.C1) ter acesso à informação dos créditos que entraram nesse património e dos que foram, depois, transferidos para a cessionária. O facto de os créditos cedidos não se terem consolidado no património hereditário de FF não deve obstar a que o autor, como herdeiro, tenha conhecimento dos créditos e da sua situação jurídica, inclusivamente do trajecto que tiveram desde que nasceram na titularidade da herança por óbito de FF (e foram, nessa medida, por ela percebidos).

Como decorre do art. 941º do CPC, “a acção de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se”.

O réu DD é administrador dos bens imóveis sitos em ..., que são simultaneamente alheios e próprios.

Como decorre do art. 941º do CPC, “a acção de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se”.

Escreve-se no Ac. STJ de 16.11.2013, proc. 2517/18.1T8PBL.L1.S1, em www.dgsi,pt:

“A pluralidade de normas dispersas pela lei civil (e também pela lei comercial) a impor a obrigação de prestar contas a quem gere património alheio, permite induzir, como refere Alberto Reis, um princípio geral: quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses”.

E mais adiante: “Em aplicação do princípio de direito acima referido, a obrigação de prestar contas tem lugar todas as vezes que alguém trata da gestão de património alheio ou simultaneamente alheio e próprio (…). Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de junho de 2011 (proc. nº 3717/05.0TVLSB.L1, citando Vaz Serra (Scientia Iuridica, Vol. XVIII, 115), a obrigação de prestar contas “tem lugar todas as vezes que alguém trate de negócios alheios ou de negócios, ao mesmo tempo, alheios e próprios. Umas vezes, é a própria lei que impõe expressamente tal obrigação; noutras, o dever de apresentar contas resulta de negócio jurídico ou de princípio geral da boa fé. Por consequência, a fonte da administração que gera a obrigação de prestar contas não releva; o que importa é o facto da administração de bens alheios, seja qual for a sua fonte” (v. , também, neste sentido, o Ac. STJ de 13.11.2003,. proc. 03B2826, o citado Ac. R.G. de 26.9.2024, a citada decisão do T.R.C. de 8.4.2019 e o Ac. R.G. de 15.12.2022, proc. 300/21.6T8PVL.G1, todos em www.dgsi.pt).

Sobre o réu DD - que administra os prédios de ... - recai, assim, a obrigação de prestar contas das rendas que recebeu dos referidos prédios e das que foram destinadas à cessionária EE.

Pelo exposto, concede-se a revista e determina-se que o réu DD preste contas das rendas dos prédios de ... desde o dia ... de Outubro de 2019.

Custas pelos recorridos.


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Lisboa, 11 de Março de 2025

António Magalhães (Relator)

Jorge Leal

Nelson Borges Carneiro