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Jurisprudência
Sumário

I – Um contrato de locação financeira sobre um imóvel é um contrato duradouro, que apesar de conjugar normas do arrendamento e da compra e venda, surge como um tipo legal autónomo, sui generis, que prossegue finalidades específicas, constituindo uma facti species de formação progressiva, inicialmente obrigacional, com potencialidade de evolução para a transmissão real.

II – A produção do efeito real surge como meramente eventual e não necessária, porque estritamente dependente de um poder potestativo ou faculdade do locatário.

III - A expressão do pacto de preferência - «transmissão a qualquer título» - remete, na linguagem jurídica e na linguagem corrente, para um contrato com efeitos reais, destinado a produzir como efeito principal a transmissão, tendencialmente imediata, de direitos reais de um sujeito para outro, e não para contratos que tenham como obrigação principal proporcionar o gozo de uma coisa, sem que esse gozo seja acompanhado necessariamente da transferência ou constituição de direito reais, como o caso do contrato de locação com opção de compra.

IV - Analisando o resultado prático do exercício do direito de preferência, em relação a um contrato de locação, constata-se que o direito de preferência restringiria, de modo intenso, o direito de o proprietário-locador explorar o bem e o direito de o locatário gozar as suas utilidades, rompendo-se o equilíbrio das prestações na relação tripartida entre o preferente, o locador e o locatário, pelo que, também por este motivo, a expressão «transmissão a qualquer título» não é idónea a abranger um contrato de locação financeira com opção de compra.

V - Os direitos de preferência constituem sempre um limite à liberdade de um sujeito celebrar contratos como quiser, com quem quiser e pelos montantes que bem entender. Mesmo que livremente consentida uma obrigação de preferência, pelo sujeito que se vincula por contrato, não deve ser dado a esse pacto de preferência um alcance que esteja para além da vontade presumível do obrigado à preferência, se esse significado não tem na letra do pacto uma formulação expressa, precisa e clara.

Decisão Texto Integral

Processo n.º 2032/22.9T8CSC.L1.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I - Relatório

1. CASCAISHOPPING - CENTRO COMERCIAL, S.A., número de matrícula e de pessoa coletiva ...52, com sede no Lugar ..., instaurou contra a CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS S.A., com o número de matrícula e de pessoa coletiva ...46, com sede na Avenida ..., e P..., Lda., com o número de matrícula e de pessoa coletiva ...70, com sede na Rua ..., ação declarativa constitutiva de preferência sob a forma de processo comum, pedindo:

- o reconhecimento do direito de preferência na aquisição da fração autónoma designada pela letra “I”, composta por Loja, situada no r/c do prédio urbano constituído no regime de propriedade horizontal, sito na Estrada..., freguesia de ..., concelho de ..., distrito de ..., descrito na ....ª Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ...78, da freguesia de ... e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...04, da dita freguesia, com o consequente reconhecimento do direito de fazer sua a referida fração autónoma, passando a figurar como proprietária desta;

- a declaração da extinção do Contrato de Locação Financeira Imobiliária n.º ...21 de 10-12-2021, celebrado entre as rés, e

- o cancelamento do registo na CRP da Locação Financeira Imobiliária n.º ...21 da referida fração autónoma a favor da ré P..., Lda.

Para tanto, alegou, em síntese, que em 29-05-1992, na altura sob a denominação S..., S.A., alienou à 1.ª ré CGD a fração autónoma a que se refere o pedido, correspondente a uma loja inserida no centro comercial Cascaishopping.

Nessa altura, convencionaram a obrigação de a ré de dar preferência à autora no trespasse do estabelecimento, bem como na venda ou transmissão, a qualquer título, dessa fração autónoma, tendo as partes atribuído eficácia real a esse direito, e procedido ao respetivo registo dessa preferência no registo predial.

Entretanto, veio a ter conhecimento que entre as rés tinha sido celebrado um contrato de locação financeira em 10-12-2021, tendo por objeto a fração em causa, com fixação do valor de compra em € 975.000,00, estabelecendo-se a possibilidade do locatário exercer a opção de compra contra o pagamento do valor residual acordado de € 48.750,00, no final do contrato ou mesmo antecipadamente, sob determinadas condições.

Entende a autora que, em face do clausulado do referido contrato, a aquisição da fração pela 2ª ré depende única e exclusivamente da vontade desta, sem que a 1ª ré se possa opor, pelo que deveria a 1ª ré ter-lhe comunicado o projeto de venda e as cláusulas do contrato referentes à transmissão da fração, por forma a poder exercer o direito de preferência convencionado.

Não tendo a ré procedido a essa comunicação, procedeu à marcação de escritura e solicitou o envio da documentação relevante, sem que a 1ª ré tenha respondido, tendo ainda notificado a 2ª ré para cessar o contrato de locação financeira sem que esta o tenha feito.

Entende a autora que o seu direito de preferência se constituiu no momento em que a 1ª ré decidiu alienar a fração à 2ª ré e que a celebração do contrato de leasing representa uma decisão definitiva de alienação, na medida em que a alienação passa a depender da vontade exclusiva do locatário, não tendo sequer de aguardar pelo fim do contrato, o que faz com que lhe assista o direito de exercer a preferência.

O autor procedeu ao depósito do preço, nos termos do artigo 1410º, nº 1 do Código Civil, que calculou em € 1.023.750,00, com referência ao valor que seria devido no caso de aquisição antecipada da fração, por força da comissão que seria devida.

A 1ª ré, CGD, apresentou contestação, arguindo a nulidade do processo por ineptidão da petição inicial, por contradição entre o pedido e a causa de pedir uma vez que o autor pede, simultaneamente, a extinção do contrato de locação financeira e o reconhecimento do seu direito de preferência com base neste.

No mais, defendeu que o contrato outorgado entre as rés não tem por objeto o trespasse do estabelecimento instalado na referida fração, nem a venda ou transmissão, a qualquer título da referida fração autónoma, pelo que não se encontra abrangido pelo pacto de preferência acordado.

Alega, ainda, decorrer do contrato de locação financeira, a sua obrigação, mediante retribuição, de ceder o gozo temporário da referida fração autónoma, sendo certo que a circunstância da locatária, 2ª ré, poder comprar, decorrido o período acordado de 180 meses, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados, ou mesmo antecipadamente, não a constitui no dever de comunicar a celebração do contrato de locação financeira, por tal não implicar qualquer transmissão do direito de propriedade associado. Assim, defende que a obrigação de dar preferência apenas se verificará, se e quando, a 2ª ré exercer o seu direito relativo à opção de compra, o que não sucedeu ainda nem se sabe se virá a acontecer, podendo o contrato vir a ser, inclusive, resolvido ou por qualquer outro motivo vir a cessar, antes de exercido esse direito.

A 2ª ré, P..., Lda., invocando igualmente a ineptidão da petição inicial por contradição entre a causa de pedir e o pedido e, alegando a falta de interesse em agir por parte do autor uma vez que para a pretensão desta ser útil teria de existir uma alienação ou transmissão do imóvel, a qual não ocorreu. Defendeu, ainda, que o seu direito de opção de compra resulta da própria lei e das cláusulas do contrato, no que respeita à opção antecipada de compra, estando tal dependente de várias condições, não havendo, ainda, qualquer vontade por si formada a respeito do exercício dessa opção.

Acrescentou ter conhecimento e consciência de que, pretendendo exercer essa opção, e uma vez que tal implicará a transmissão da fração, estará a sua efetivação dependente do não exercício pelo autor do direito de preferência que lhe assiste, sendo a opção de compra mera faculdade de celebrar um outro contrato.

Mais sustenta não se poder equiparar a celebração de um contrato de locação financeira a um contrato de compra e venda para efeitos do exercício do direito de preferência, uma vez que num ocorre a transmissão da propriedade e noutro a cedência do gozo da coisa, não contemplando o pacto de preferência essa equivalência. Defende, ainda, que essa equivalência apenas ocorreria se estivesse em causa um denominado contrato de locação-compra em que tivesse sido estipulada uma cláusula de transmissão automática da propriedade do imóvel no fim do contrato, o que não sucede pois, tanto do regime legal como convencional, apenas se prevê a possibilidade de ser exercida ou não essa opção.

Por fim, a insuficiência do depósito efetuado pelo autor no dia da instauração da presente ação, entendendo que este deveria ter correspondido a € 1.085.243,71, em virtude de todas as variáveis incluindo os juros que seriam cobrados ao longo do contrato, com a consequente caducidade do direito de ação.

Com estes fundamentos, conclui que a ação deve ser julgada improcedente.

2. O autor, Centro Comercial Cascaishopping, respondeu, espontaneamente às exceções defendendo a inexistência de qualquer nulidade por ineptidão da petição inicial uma vez que a extinção do contrato de locação financeira corresponde a uma mera consequência do reconhecimento da preferência e sustentou verificar-se o seu interesse em agir na medida em que entende ter-se constituído o seu direito de preferência no momento em que a 1ª ré decidiu alienar a fração autónoma através da celebração do contrato de leasing com atribuição de opção de compra em favor da 2ª ré.

No que se refere à insuficiência do depósito sustentou que o valor depositado decorre das próprias cláusulas do contrato e que, em qualquer caso, não tendo sido comunicada a preferência entende a jurisprudência não ser exigível o depósito do preço e que entender o contrário corresponderia uma forma de abuso do direito.

3. Procedeu-se à realização da audiência prévia, no decurso da qual as partes deram o seu acordo quanto à inexistência de temas da prova a enunciar e à possibilidade de ser proferida, de imediato, decisão de mérito.

4. No saneador-sentença proferido a 31/8/2023, foram julgadas improcedentes as exceções dilatórias de interesse em agir e improcedente a exceção de caducidade do direito de ação de preferência.

A final, foi a ação julgada improcedente, com a consequente absolvição das rés dos pedidos contra si formulados, com custas pelo autor.

5. Inconformada com a sentença, o autor, Cascais Shopping, veio interpor recurso, tendo o Tribunal da Relação decidido, por acórdão, julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença que considerou a ação improcedente.

6. Novamente inconformado, veio o Cascais Shopping – Centro Comercial, SA, interpor recurso de revista excecional, por relevância jurídica e social (alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC), da questão de saber se, «(…) à luz do disposto no n.º 1 do artigo 416.º do Código Civil, um obrigado à preferência na transmissão de um imóvel, se encontra vinculado a comunicar ao preferente o projecto de venda e as cláusulas do contrato projectado se celebrar um Contrato de Locação Financeira com a típica de opção de compra antecipada/imediata ou no final do contrato (e a consequente promessa unilateral de venda pelo locador), no qual se fixam os termos e condições, incluindo o preço, dessa aquisição e pelo qual se transmite a propriedade económica do imóvel».

7. A Formação admitiu o recurso de revista excecional por relevância jurídica da questão.

8. Na alegação de recurso, o Cascaishopping, juntou parecer doutrinário, e formulou conclusões de recurso que aqui se consideram integralmente transcritas.

9. Caixa Geral dos Depósitos e P..., Lda., notificadas da apresentação de recurso de revista excecional pelo Autor apresentaram, respetivamente, as suas contra-alegações, aqui consideradas integralmente transcritas, nas quais pugnam pele improcedência do recurso e pela confirmação do acórdão recorrido nos seus exatos termos.

10. Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões do recurso que de se delimita o thema decidendum, a única questão a decidir é a de saber se a celebração de um contrato de locação entre a 1.ª e a 2.ª ré, acompanhado de uma cláusula de opção de compra, dá lugar ao exercício do direito de preferência convencionado entre o autor, Centro Comercial Cascaisshopping, e a ré, Caixa Geral de Depósitos, locadora do imóvel.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A – Os factos

Na primeira instância foram considerados provados os seguintes factos, aos quais a Relação não introduziu qualquer modificação:

“1. A autora Cascaishopping - Centro Comercial, S.A. é uma sociedade comercial que tem por objeto a compra e venda, arrendamento, exploração, gestão de bens imóveis, de estabelecimentos comerciais e a prestação de serviços.

2. Por escritura de compra e venda outorgada em 29-05-1992, no 2.º Cartório Notarial da 1.ª ré Caixa Geral de Depósitos, S.A., a autora, à data designada por “S..., S.A.”, declarou vender à referida 1.ª ré, a fracção autónoma designada pela letra “I”, composta por loja, situada no r/c do prédio urbano constituído no regime de propriedade horizontal, sito na ..., freguesia de ..., concelho de ..., distrito de ..., descrito na ....ª Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ...78, da freguesia de ... e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...04, da dita freguesia, integrando-se a fração autónoma em causa no denominado Centro Comercial Cascaishopping.

3. A 1.ª ré, aquando da aquisição da referida fração autónoma atribuiu um direito de preferência convencional com eficácia real à autora no seguintes termos: “Que a representada do segundo outorgante [ré Caixa Geral de Depósitos, S.A.] se obriga a dar preferência à S..., S.A. [autora] no trespasse do estabelecimento instalado na fração agora indicada, bem como na venda ou transmissão, a qualquer título, dessa fração autónoma, sendo atribuído a esse direito eficácia real.”.

4. O referido direito convencional de preferência com eficácia real foi registado pela AP. 658 de 2016/05/04.

5. Em 10-12-2021 a 1.ª ré e a 2.ª ré P..., Lda. celebraram entre si um Contrato de Locação Financeira n.º ...21, tendo por objeto a mencionada fração autónoma, com início em 10-12-2021, pelo prazo de 180 meses, tendo fixado o respetivo valor de compra em € 975.000,00.

6. Consta da cláusula 10.ª das Condições Gerais do referido Contrato, sob a epígrafe “Opção de Compra”, o seguinte;

“1. O Locatário tem o direito de optar pela compra do imóvel objecto do presente contrato, no termo do prazo de vigência, contra o pagamento do valor residual e desde que se encontrem integralmente cumpridas todas as suas obrigações contratuais. 2. O direito mencionado no número anterior deverá ser exercido até 60 dias antes do termo do prazo do contrato, por carta registada com aviso de recepção enviada ao Locador.

3. O valor residual será liquidado no termo de vigência do contrato, por transferência, nos termos descritos no n.º 2 da cláusula 3.ª destas Condições Gerais.

4. A escritura de venda do imóvel ao Locatário será realizada em local, dia e hora a indicar pelo Locador, no prazo máximo de 60 dias após o termo de vigência do contrato, devendo o Locatário entregar ao Locador, até ao termo do contrato, todos os documentos necessários à realização da referida escritura. (…)”.

7. De acordo com o disposto na cláusula 6.ª das Condições Particulares do referido Contrato de Locação Financeira, foi acordado o valor residual de € 48.750,00.

8. Foi ainda convencionado, na cláusula 11.ª das Condições Gerais do aludido Contrato de Locação Financeira, que:

“O Locatário poderá exercer antecipadamente a opção de compra do imóvel ou efectuar amortizações parciais do capital em dívida nas seguintes condições:

a) Não se encontrar em mora relativamente a qualquer uma das suas obrigações contratuais;

b) Notificar o Locador da sua intenção com pelo menos 30 dias de antecedência em relação à data prevista para o efeito;

c) Pagar o valor de compra antecipada, correspondente ao capital em dívida acrescido de todos os impostos e taxas legais em vigor que incidam sobre a transmissão, ou o valor de amortização parcial pretendido, bem como as correspondentes comissões, previstas nas Condições Particulares, e as despesas administrativas inerentes”.

9. Por fim, foi também acordado, na cláusula 12.ª das Condições Particulares do referido Contrato de Locação Financeira, que:

“Caso opte pela compra antecipada, e sem prejuízo do disposto nas Condições Gerais, o Locatário fica obrigado ao pagamento de uma comissão de reembolso antecipado total no montante de 5% sobre o capital em dívida à data da compra”.

10. A 2.ª ré já se encontra, desde 10-12-2021, a efetuar os pagamentos referentes às 180 rendas mensais convencionadas na cláusula 5.ª das Condições Particulares, tendo ascendido a primeira ao valor de € 300.000,00 e as restantes ao valor de € 4.114,49, cada, circunstância que lhe permitirá, no final do contrato, adquirir a fração autónoma pela quantia de € 48.750,00.

11. A 1.ª ré não comunicou à autora a celebração do contrato de locação financeira com a 2.ª ré, nem foi dada qualquer preferência à autora sobre este negócio.

12. Por carta datada de 22-04-2022, a autora remeteu à 1.ª ré uma missiva a exercer o direito de preferência na aquisição da fração autónoma, fixando o prazo para a outorga da respetiva escritura pública em 30 dias a contar da data da receção da mesma, tendo, ainda, solicitado o envio de toda a documentação necessária para o efeito, a comunicação dos elementos essenciais da alienação convencionados no Contrato de Locação Financeira e a cessação do mesmo até à data da referida escritura.

13. A 1.ª ré, apesar de ter recepcionado a referida missiva em 26-04.2022, não apresentou qualquer resposta.

14. Por carta datada de 22-04-2022 dirigida pela autora à 2.ª ré, foi esta notificada para promover a imediata cessação do Contrato de Locação Financeira, atento o exercício do direito de preferência na aquisição da fracção autónoma e bem assim para se abster da prática de quaisquer actos que ponham em causa o direito da autora”.

B – O direito

1. Nos autos está em causa a questão de saber se um contrato de leasing de um imóvel, no qual consta uma cláusula de opção de compra a favor do locatário, ainda não exercida pelo mesmo, constitui o locador, que se obrigou a uma preferência em caso de trespasse, venda ou transmissão a qualquer título sobre esse imóvel, no dever de comunicar ao preferente, aqui autor, a celebração deste contrato de locação.

A questão de direito suscitada pela recorrente assume um caráter inovador, tal como reconhecido pela Formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, do CPC, que constatou não ter sido ainda debatida tal problema jurídico na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça.

O acórdão recorrido fez apelo às regras de interpretação das declarações negociais previstas nos artigos 236.º e ss. do Código Civil, e entendeu que a celebração, em 10-12-2021, do contrato de locação financeira em causa nos autos, entre a 1.ª ré e a segunda ré, pelo prazo de 180 meses, contendo a mencionada opção de compra, não pode ser considerada uma “venda” ou uma “transmissão a qualquer título”, subsumível na previsão do mencionado pacto de preferência. Como argumentos para a sua tese aduz, citando a sentença do tribunal de 1.ª instância que (...) não só os termos e a regulamentação do referido contrato de locação financeira não podem ser equiparados ao contrato de compra e venda, nos termos do art. 874.º e ss, como a consagração de uma opção de compra, seja ela legal por referência ao termo do contrato e ao pagamento do valor residual, ou convencional de forma antecipada, mediante o pagamento do valor aplicável no momento desse exercício, não podem ser interpretados como correspondendo a uma forma de transmissão do imóvel objecto da locação financeira».

As instâncias consideraram ainda que, mesmo que se entendesse que com a celebração do contrato de locação financeira nasceria para o autor, Centro Comercial Cascais Shopping, o direito de adquirir o bem ao abrigo do pacto de preferência, ficariam por preencher os requisitos da comunicação da preferência relativos à necessidade de ser comunicado o “projeto de venda”, com inclusão de todas as condições e indicação do respetivo preço, nos termos do artigo 416.º do Código Civil, pois não se poderia saber, no momento da celebração do contrato de locação financeira, qual seria o valor concreto a pagar, na medida em que cabe apenas ao locatário decidir os termos e o momento em que pretende exercer o direito de opção de compra.

2. A recorrente, para rebater a argumentação do acórdão recorrido, sustenta nas conclusões do recurso, em síntese, que, o direito de preferência da autora se constituiu por efeito da promessa unilateral de venda do imóvel contraída pela locadora financeira a favor da locatária financeira, e que, mesmo que a compra e venda não se venha a realizar, deve entender-se que a locadora financeira já decidiu vender, manifestando uma vontade irrevogável nesse sentido, sendo esse o facto determinante para a constituição da preferência e não a decisão da locatária. Propugna, pois, que o contrato de locação financeira representa, por si só, para a locadora financeira, ab initio, uma decisão definitiva e exteriorizada de alienação, na medida em que a transmissão da propriedade deixa de depender da sua vontade para passar a depender exclusivamente da vontade da locatária.

Prossegue a recorrente, afirmando ainda que, quer a interpretação literal quer a interpretação teleológica do artigo 416.º do Código Civil impõem à CGD a obrigatoriedade de dar preferência à Recorrente.

Sustenta a recorrente que da interpretação do Pacto de Preferência, à luz dos critérios constantes no disposto nos artigos 236.º a 239.º do Código Civil, sempre decorreria que a locação financeira, enquanto transmissão da propriedade económica do imóvel, se enquadra na definição aí prevista de “venda ou transmissão a qualquer título”, circunstância que vincularia a locadora financeira ab initio a promover a notificação constante do artigo 416.º do Código Civil.

Argumenta ainda, o Cascaishopping, que esta solução se impõe também pela tutela da unidade do estabelecimento comercial, razão de ser do estabelecimento no contrato de compra e venda celebrado entre o recorrente e a CGD de uma preferência convencional com a maior amplitude possível, «(…) nela incluindo todos os contratos pela via dos quais se decidisse transmitir o imóvel, a qualquer título (como seja o contrato de locação financeira), de modo a conceder a oportunidade à Recorrente Cascaishopping de reaver a referida fracção, para com isso evitar a mesma fosse destinada a outro fim que não correspondesse ao de loja de centro comercial»

Defende, ainda, argumentos de natureza social, sustentando que a interpretação jurídica constante do acórdão recorrido será suscetível de esvaziar as disposições legais e contratuais que atribuem direitos de preferência, circunstância que colocará em causa a segurança jurídica e a credibilidade dos direitos de preferência, quer de natureza convencional, quer de natureza legal.

3. Vejamos.

Nos termos dos factos provados n.º 3, 4 e 5, a sociedade Cascais Shopping, SA vendeu, por escritura outorgada em 29-05-1992, uma fração autónoma que se integrava no centro comercial Cascais Shopping (letra “I”, composta por loja), à Caixa Geral de Depósitos, acordando ambas as partes na atribuição de um direito de preferência convencional, dotado de eficácia real e registado, ao Cascais Shopping.

O direito de preferência foi atribuído nos seguintes termos:

“Que a representada do segundo outorgante [ré Caixa Geral de Depósitos, S.A.] se obriga a dar preferência à S..., S.A. [autora] no trespasse do estabelecimento instalado na fracção agora indicada, bem como na venda ou transmissão, a qualquer título, dessa fracção autónoma, sendo atribuído a esse direito eficácia real.”.

Nos termos do artigo 414.º do Código Civil, «O pacto de preferência consiste na convenção pela qual alguém assume a obrigação de dar preferência a outrem na venda de determinada coisa.»

Nestes pactos uma das partes assume a obrigação de dar preferência à outra na transmissão de uma coisa, no caso de decidir celebrar determinado negócio, enquanto a outra, titular do direito de preferência, tem a liberdade de exercer, ou não, o direito que lhe foi conferido.

Os poderes de que goza o titular do direito de preferência são qualificados pela doutrina e pela jurisprudência (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09-03-2021, Revista n.º 3218/19.9T8LSB.L1.S1) como um direito potestativo, ou seja, verificados os pressupostos do exercício do direito, o seu titular pode exercê-lo por sua vontade exclusiva, produzindo efeitos na esfera jurídica da contraparte, independentemente do concurso da vontade desta

Segundo o artigo 421.º do Código Civil, podem as partes convencionar atribuir eficácia real ao direito de preferência, respeitando este a bens imóveis ou móveis sujeitos a registo, desde que sejam observados determinados requisitos de forma e de publicidade exigidos pelo artigo 413.º do Código Civil.

O direito de preferência deve assim ser qualificado como um direito real de aquisição que atua através da manifestação de vontade do seu titular, dizendo-se, neste caso, potestativo (cfr. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 6.ª edição, Quid Iuris, Lisboa, 2009, pp. 165-166).

A preferência com eficácia real, segundo o mesmo autor (cfr. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, ob. cit., p. 167) e de acordo com o que tem sido entendido pela jurisprudência, consiste no direito de certa pessoa adquirir, com afastamento de outro adquirente, e nas mesmas condições acordadas com este (tanto por tanto), um direito relativo a uma coisa, no caso de ele ter sido transmitido por direito oneroso (em geral, compra e venda ou dação em cumprimento).

Sendo a preferência real de fonte convencional, em caso de violação do pacto de preferência, o preferente tem o direito de haver para si a coisa alienada, entregando ao adquirente o preço por ele satisfeito, sendo aplicável analogicamente o artigo 1410.º do Código Civil (artigo 421.º, n.º 2, do Código Civil).

4. Em 10-12-2021 a 1.ª ré, CGD, e a 2.ª ré P..., Lda. celebraram entre si um Contrato de Locação Financeira, tendo por objeto a mencionada fração autónoma, com início em 10-12-2021, pelo prazo de 180 meses, tendo fixado o valor do imóvel em €975.000,00.

Do contrato de locação financeira designado por “Opção de Compra”, para o que aqui releva, decorre que «1 - O Locatário tem o direito de optar pela compra do imóvel objecto do presente contrato, no termo do prazo de vigência, contra o pagamento do valor residual e desde que se encontrem integralmente cumpridas todas as suas obrigações contratuais. 2. O direito mencionado no número anterior deverá ser exercido até 60 dias antes do termo do prazo do contrato, por carta registada com aviso de recepção enviada ao Locador».

De acordo com o disposto na cláusula 6.ª das Condições Particulares do referido Contrato de Locação Financeira, foi acordado o valor residual de € 48.750,00.

Foi ainda convencionado, na cláusula 11.ª das Condições Gerais do aludido Contrato de Locação Financeira, que “O Locatário poderá exercer antecipadamente a opção de compra do imóvel ou efectuar amortizações parciais do capital em dívida nas seguintes condições: a) Não se encontrar em mora relativamente a qualquer uma das suas obrigações contratuais; b) Notificar o Locador da sua intenção com pelo menos 30 dias de antecedência em relação à data prevista para o efeito; c) Pagar o valor de compra antecipada, correspondente ao capital em dívida acrescido de todos os impostos e taxas legais em vigor que incidam sobre a transmissão, ou o valor de amortização parcial pretendido, bem como as correspondentes comissões, previstas nas Condições Particulares, e as despesas administrativas inerentes”.

Nos termos dos factos provados, a 2.ª ré já se encontra, desde 10-12-2021, a efetuar os pagamentos referentes às 180 rendas mensais convencionadas na cláusula 5.ª das Condições Particulares, tendo ascendido a primeira ao valor de € 300.000,00 e as restantes ao valor de € 4.114,49, cada, circunstância que lhe permitirá, no final do contrato, adquirir a fração autónoma pela quantia de € 48.750,00.

Nos termos do facto provado n.º 11, a 1.ª ré, CGD, não comunicou ao Cascaishopping a celebração do contrato de locação financeira com a 2.ª ré, nem foi dada qualquer preferência à autora sobre este negócio.

5. O contrato de locação está regulado no DL n.º 149/95, de 24.06 (com a última alteração pelo DL n.º 30/2008, de 25/02), onde é descrito como “o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados” (cfr. artigo 1.º do DL n.º 149/95).

Não gerou controvérsia nos autos que o contrato que as partes celebraram é um contrato de locação financeira com os seguintes efeitos: a obrigação do locador de cedência do gozo de um bem imóvel; a obrigação do locatário de pagar uma renda; a manutenção, até ao termo do contrato, do direito de propriedade do bem na esfera jurídica do locador; a opção de compra do bem, no termo do contrato (ou em data antecipada), por parte do locatário.

A obrigação do locador de “vender o bem ao locatário, caso este queira, findo o contrato” [cfr. artigo 9.º, n.º 1, al. c), do DL n.º 149/95] ou o correspetivo direito do locatário de “adquirir o bem locado, findo o contrato, pelo preço estipulado” [cfr. artigo 10.º, n.º 2, al. f), do DL n.º 149/95] traduzem a ideia de que o contrato de locação financeira, não obstante próximo do arrendamento, contém um elemento especial – a opção de compra – que a doutrina qualifica, como se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 14-01-2021 (proc. n.º 8621/17.6T8LSB.L1.S1), ora como uma promessa unilateral de venda (Filipe Cassiano dos Santos, Direito comercial português, volume I – Dos actos de comércio às empresas: o regime dos contratos e mecanismos comerciais no Direito Português, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 397-398), ora como uma proposta de venda como a que ocorre no pacto de opção (Cfr. Carlos Ferreira de Almeida, Contratos II – Conteúdo. Contratos de troca, Almedina, Coimbra, 2011, pp. 193-194): se se considerar que é uma proposta de venda, a venda produz os seus efeitos com a mera aceitação do locatário; se se considerar que é uma promessa unilateral é necessário que, manifestando o locatário a intenção de adquirir o bem, seja celebrado o contrato de compra e venda (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14-01-2021, Proc. n.º 8261/17).

6. Do teor da cláusula contratual em litígio que estabelece um direito de preferência e da circunstância de lhe ter sido atribuída eficácia real, reforçada pelo registo, decorre que o autor, Cascais Shopping, tem relevantes interesses na “reaquisição” dessa fração e que o conteúdo desse direito se reveste de uma amplitude que vai para além do contexto da tradicional da venda a um terceiro, na medida em que se refere ao trespasse do estabelecimento comercial e a transmissão da fração a qualquer título.

Neste sentido, o recorrente defende que o contrato de locação dos autos está abrangido pela previsão contratual descrita no facto provado n.º 2, «transmissão a qualquer título», apoiando a sua tese na asserção segundo a qual o contrato de locação de imóvel vinculou a CGD a uma promessa unilateral de venda do bem ao locatário, exteriorizando a locadora, logo no momento inicial da celebração do contrato, uma decisão definitiva de venda do bem à locatária, por um valor de 975.000,00 euros. A Caixa dispõe assim, na perspetiva da recorrente, diferentemente do que entendeu o acórdão recorrido, de todos os elementos necessários para comunicar o projeto de venda ao preferente Cascais Shopping, nos termos do artigo 416.º do Código Civil.

Será assim?

6. Enquanto os direitos legais de preferência estão teleologicamente orientados à proteção do propriedade perfeita, prosseguindo objetivos que transcendem os interesses privados e imediatos do respetivo titular (p. ex. a exploração mais racional da propriedade, o favorecimento da empresa e o acesso à propriedade de certos grupos sociais), o contrato objeto da preferência, no âmbito da preferência convencional, prossegue finalidades privadas, podendo assim não ter qualquer eficácia translativa (cfr. Agostinho Guedes, O Exercício do Direito de Preferência, Publicações Universidade Católica, Porto, 2006, pp. 254-255).

Considera este Supremo Tribunal, todavia, que, se por um lado, a amplidão do âmbito da preferência convencional é fruto do princípio da liberdade contratual, por outro, pode criar situações de ónus ocultos sobre os bens e restrições à própria liberdade contratual, suscetíveis de criar entraves no comércio jurídico. A aceitar-se esta posição, a interpretação dos contratos que estipulam direitos de preferência convencionais deve ser cautelosa e basear-se numa justa e adequada ponderação de interesses de todos os intervenientes, exigindo-se um interesse do preferente digno de tutela e o respeito pelo princípio do equilíbrio das prestações nos contratos que se cruzam.

7. No caso vertente está em causa um contrato de locação financeira sobre um imóvel.

Como se afirmou no sumário do Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, datado de 02-03-2010, proferido no proc. n.º 5662/07.5YYPRT-A.S1, um contrato de locação financeira assume uma função muito relevante para o financiamento da aquisição de bens, podendo ser considerado um contrato de crédito ao consumo, que permite desde logo o gozo do bem, a troco do pagamento de uma renda:

«I - O contrato de locação financeira (imobiliária) (leasing) por alguns considerado um contrato de crédito ao consumo, não obstante pressupor que em campos jurídicos distintos se situam o dono/locador da coisa e o locatário financeiro/fruidor, constitui uma realidade económica que tendo como muito relevante o financiamento da aquisição de bens, estabelece um regime legal que visa, em função do nodal aspecto de fruição económica em vista da expectativa de aquisição do direito de propriedade, que constitui um direito potestativo do locatário contra o qual o locador nada pode, impõe ónus e riscos que, na pura lógica do direito de propriedade, ainda que comprimido, por outro direito real ou obrigacional, mal se compreenderiam».

II) - Na locação financeira imobiliária, existe um contrato de financiamento, visando, tendencialmente, um contrato de compra e venda; mas, enquanto este contrato perdurar a relação jurídico-negocial tem notória afinidade com o contrato de arrendamento.

III) – Durante o tempo por que perdura, o locatário entra na posse material do imóvel dado em locação (i)mobiliária e, tal como um mero arrendatário, tem poderes de fruição temporária – medida esta pelo período de duração do contrato – mediante o pagamento de uma renda».

Estamos, pois, perante um contrato duradouro, que apesar de conjugar normas do arrendamento e da compra e venda, surge como um tipo legal autónomo, sui generis, que prossegue finalidades específicas, constituindo uma facti species de formação progressiva, inicialmente obrigacional com potencialidade de evolução para a transmissão real. A tentativa de o reconduzir a tipos legais pré-existentes, por exemplo, à compra e venda, como pretende a recorrente, fracassa na medida em que estamos perante um contrato complexo, com uma função específica, que satisfaz um feixe de interesses sociais e económicos amplos, que não são, de todo, equiparáveis aos que moldam a compra e venda de um imóvel, cujo objetivo único é a transferência imediata da propriedade, a troco do pagamento de um preço, enquanto no contrato de locação o efeito translativo é apenas um elemento possível do contrato, mas não necessário.

A transferência da propriedade, na compra e venda, coincide com a data da celebração do contrato, mesmo tendo em conta que é normalmente antecedida de um contrato de promessa bilateral de natureza obrigacional e que, portanto, a produção do efeito real também não é instantânea.

Já o contrato de locação destina-se a satisfazer, em primeiro lugar, a necessidade imediata do locatário de gozar as utilidades de uma coisa, in casu, imóvel, na qual exerce uma atividade económica, independentemente de vir a exercer ou não uma opção de compra. O locatário utiliza o bem, em regra, para finalidades profissionais ou comerciais durante vários anos antes da compra, que pode nunca vir a consumar-se, o que não sucede no contrato de compra e venda ainda que antecedido de um contrato promessa de compra e venda. Mesmo na compra e venda a prestações, verifica-se a automaticidade do efeito translativo ausente no contrato de locação financeira. Já na venda com reserva de propriedade, à qual a doutrina costuma equiparar a locação, não se dá este automatismo da transferência real para o comprador, mantendo-se a propriedade na esfera jurídica do vendedor como garantia do pagamento de um crédito.

O efeito transmissivo, à data da celebração do contrato de locação, é incerto porque dependente de uma ulterior manifestação de vontade do locatário, que corresponde ao exercício de uma faculdade ou um poder potestativo que este não está vinculado a exercer, nisto se distinguindo da posição do promitente-comprador, num contrato-promessa de compra e venda, a quem pode ser imposta por execução específica o cumprimento do contrato definitivo, não tendo, de todo, possibilidade de optar por não o celebrar.

Como esclarece Rui Pinto Duarte (in Escritos sobre Leasing e Factoring, Principia, Lisboa, 2001, p. 71 e seguintes), a natureza jurídica da locação tem sido definida de forma variada pelos autores e pela jurisprudência estrangeiras, salientando-se, ora a modalidade de locação, ora a de locação-venda, consoante o contexto em que a questão é debatida, a finalidade do contrato de locação e as estipulações contratuais concretas que a podem aproximar mais de um ou de outro tipo contratual. No caso vertente, apesar de as partes terem previsto a opção de compra e a possibilidade da sua antecipação, como nos encontramos numa fase inicial de execução de um contrato de locação celebrado por quinze anos com um valor residual muito reduzido (facto provado n.º 7) no termo do contrato, entendemos que a promessa unilateral de venda assumida pela Caixa Geral de Depósitos não descarateriza a locação enquanto concessão temporária do gozo da coisa, devendo prevalecer a visão do contrato como locação e não como uma venda a prestações ou venda a crédito.

A obrigação de conceder o gozo da coisa constitui, assim, para o efeito de sabermos se estamos perante a violação de um direito de preferência, o núcleo do contrato de locação financeira.

É de notar, também, que, uma vez que o direito de preferência se exerce tanto por tanto, em igualdade de circunstâncias com o locatário, sempre existiria a dificuldade para o obrigado à preferência de calcular o preço do bem a comunicar ao preferente: pagaria o titular da preferência apenas o remanescente a pagar pelo locatário após ter pago rendas durante a execução do contrato de locação, o que redundaria num benefício injustificado para o preferente? Ou seria necessário determinar, logo no momento da decisão de celebrar o contrato de locação, um preço de mercado do bem, com o apoio das cláusulas do contrato de locação e fazendo cálculos, tendo por referência o valor do bem e o valor das rendas, distinguindo a parte proporcional ao gozo da parte destinada à amortização do preço e outros encargos e comissões?

O alegado “projeto de venda” se assim lermos, como pretende a recorrente, o contrato de locação destes autos, tem uma natureza complexa e progressiva, destinado a durar no tempo, e a determinação do “preço” pago pelo locatário depende de vários fatores, não estando definido o seu montante no contrato de forma precisa e clara. Assim, não parece ser possível, nestas condições, comunicá-lo ao preferente de modo a que este possa preferir tanto por tanto. O valor que as partes atribuíram ao bem, 975.000 euros, não surge no contexto das cláusulas do contrato, como um preço de venda, como entende o recorrente, mas somente como uma referência para a fixação das rendas e do valor residual a pagar pelo locatário.

A pretensão do autor, Centro Comercial Cascais Shoping, levanta assim dificuldades, quer conceituais, quer práticas, relacionadas com a natureza obrigacional do contrato de locação e com o conteúdo do dever de comunicação para preferir, em especial, com o cálculo do preço destinado a integrar o projeto de venda. É que, exercendo o autor o direito de preferência antes do locatário ter exercido a opção de compra, é manifesto que o contrato de locação não consiste numa venda ou alienação do bem, nem opera qualquer transmissão do direito, antes assumindo uma natureza predominantemente obrigacional destinada a proporcionar o gozo da coisa. A natureza mista do contrato de locação com opção de compra, que conjuga elementos do arrendamento com elementos da compra e venda com reserva de propriedade, assumindo uma função de garantia ao crédito (cfr. Miguel Pestana Vasconcelos, Direito das Garantias, 2.ª Edição, 2013, Almedina, Coimbra, p. 454), não confere a esta cláusula de opção de compra, porque dependente de uma declaração de vontade futura, uma eficácia real ou transmissiva de direitos reais.

Os direitos reais, no nosso sistema jurídico, transmitem-se por mero efeito do contrato (artigo 408.º do Código Civil). Um contrato, para se enquadrar no conceito de “transmissão a qualquer título”, para o efeito do pacto de preferência dos autos, tem de incidir sobre a propriedade ou sobre a constituição de direitos reais sobre uma coisa, e não, conforme sucede com o contrato de locação financeira, ter por objeto direitos obrigacionais, como seja a cedência do uso da coisa, ainda que acompanhada por uma cláusula acessória de opção de compra. É que se o locatário decidir não exercer esta faculdade, não haverá afinal qualquer projeto de compra e venda e tudo se reduz a uma situação semelhante à de um contrato de arrendamento. A forma jurídica não pode ser completamente diluída no conceito de propriedade económica invocado pelo recorrente, com apoio no parecer junto aos autos, que equipara a locação a uma venda a crédito, sob pena de se criar insegurança jurídica quanto à circulação e exploração dos bens e de se subverter a finalidade do contrato de locação, que implica, no seu imediato, apenas uma obrigação de proporcionar o gozo da coisa, essencial para a atividade económica do locatário.

Admitir, sem mais, que o direito de preferência pudesse ser exercido em relação a um contrato de locação com opção de compra sempre suscitaria uma dúvida geradora de insegurança e de entraves à exploração dos bens, quanto ao momento temporal em que o preferente deve cumprir o dever de comunicação: 1) deve comunicar, como pretende a recorrente, ab initio, o contrato de locação financeira e as suas cláusulas, independentemente de não ser possível saber se vai ou não ser exercida a faculdade de opção de compra pelo locatário? (sempre haverá situações em que este perde o interesse no contrato ou não tem recursos económicos para o cumprir); 2) Ou deve comunicar apenas se e quando o locatário exercer essa opção de compra?

8. Apesar de todas estas dificuldades práticas, importa interpretar o pacto de preferência apresentado pelo Cascais Shopping, de acordo com os critérios fixados nos artigos 236.º a 239.º do Código Civil, de forma a decidir se na estipulação do direito de preferência em caso de «transmissão a qualquer título» está incluído o contrato de locação financeira com opção de compra. A interpretação incide sobre uma declaração negocial e no apuramento do seu sentido são utilizáveis diversos meios ou elementos, incluindo a vontade do declarante, conhecida ou reconhecível, circunstâncias pertinentes, como o contexto económico e jurídico em que foi subscrito o pacto de preferência, antecedentes ou elementos preparatórios, no caso de existirem, o ambiente ou contexto externo em que a declaração é emitida, a finalidade da declaração, os valores e os interesses em jogo e os usos do comércio. Perante a ausência de elementos disponíveis que indicassem que a vontade real das partes foi a de prever uma obrigação de preferência a cargo da Caixa em relação a contratos de locação financeira com opção de compra, o juiz deve assumir como critério de interpretação a teoria da impressão do declaratário ou destinatário médio da declaração colocado na posição do declaratário real (artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil). Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios onerosos, o sentido que conduzir ao maior equilíbrio das prestações, nos termos do artigo 237.º do Código Civil.

Neste sentido, a expressão do pacto de preferência - «transmissão a qualquer título» - remete, na linguagem jurídica e na linguagem corrente, para um contrato com efeitos reais, destinado a produzir como efeito principal a transmissão, tendencialmente imediata, de direitos reais de um sujeito para outro, e não para contratos que tenham como obrigação principal proporcionar o gozo de uma coisa, sem que esse gozo seja acompanhado necessariamente da transferência ou constituição de direito reais, como o caso do contrato de locação com opção de compra. A locação do imóvel com opção de compra, aproxima-se mais, nas conceções do declaratário médio e dos usos do tráfico jurídico, de um arrendamento do que de um contrato com efeitos reais, semelhante à compra e venda, pelo que consideramos que o direito de preferência contratualizado não abrange o contrato de locação financeira. Ademais, tratando-se de um contrato celebrado entre duas pessoas coletivas, que têm assessoria jurídica para a prática de atos, o normal seria, se quisessem prever a possibilidade de exercício do direito de preferência, em relação a contratos de locação financeira, que o estipulassem expressamente, dado que os representantes das pessoas coletivas não podem deixar de saber que estes contratos são muito vulgares e que constituem uma forma de rentabilização do capital usada pelos Bancos ou outros agentes económicos.

Em caso de dúvida, aplica-se o princípio do equilíbrio das prestações como critério de interpretação das declarações negociais. Ora, analisando o resultado prático do exercício do direito de preferência, em relação a um contrato de locação, constata-se que o direito de preferência restringiria, de modo intenso, o direito de o proprietário-locador explorar o bem e o direito de o locatário gozar as suas utilidades, rompendo-se o equilíbrio das prestações na relação tripartida entre o preferente, o locador e o locatário, pelo que, também por este motivo, entendemos que a expressão «transmissão a qualquer título» não é idónea a abranger um contrato de locação financeira com opção de compra.

10. A doutrina que se pronunciou sobre a possibilidade de exercício de um direito de preferência, em relação a contratos de locação com opção de compra, discute-a apenas quanto aos direitos de preferência legais e por referência ao momento em que o locatário pretende exercer a opção de compra, ou seja, em que este já fez investimento na aquisição do bem. Acaba por rejeitar essa possibilidade, por representar um enriquecimento injustificado do preferente, que poderia adquirir o bem pelo valor residual, à custa do locatário.

É o caso de Gravato Morais (in “Locação financeira de estabelecimento comercial”, Nos 20 anos do Código das Sociedades Comerciais: Homenagem aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coordenação da Secção de Ciências Jurídico-Empresariais da FDUC, António Joaquim de Matos Pinto Monteiro, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 634) que aborda a questão de saber se o locador financeiro, na qualidade de arrendatário e de potencial vendedor (no trespasse por venda do estabelecimento comercial) necessita de notificar o senhorio para que este exerça o direito de preferência. O autor afasta este entendimento (ob. cit., p. 634), considerando que se admitíssemos que cabia ao senhorio tal direito, estaríamos a limitar o locatário no investimento que realizou, tendo em vista a possibilidade de adquirir o estabelecimento comercial. Salienta ainda que o caráter eventual da venda (que está dependente da vontade do locatário no termo do contrato) e o preço residual a pagar pelo locatário apontam nesse sentido.

No mesmo sentido, Maria da Conceição Soares Fratela (in A Locação Financeira Imobiliária e os Direitos Reais – Da Natureza Real do Direito do Locatário Financeiro, Coimbra, Almedina, 2020, pp. 265-273) questiona se é legalmente possível que terceiros possam exercer o direito de preferência em sobreposição e detrimento do locatário financeiro, podendo forçar o locador a transmitir ao preferente a propriedade da coisa locada pelo “preço” correspondente ao valor residual. A autora tem por referência a possibilidade de o direito de preferência legal operar, não no início, mas no decurso da execução do contrato de locação financeira imobiliária, concluindo que não pode haver qualquer direito de preferência na transmissão da coisa locada do locador para o locatário quando este exerce o direito de opção, porque falta a liberdade do locador decidir vender ou não vender a coisa locada (tem a obrigação legal de vender ao locatário - artigo 9.º, n.º 1, al. c), do DL n.º 149/95, de 24 de junho), elemento essencial para a existência de um direito de preferência (Maria da Conceição Soares Fatela, ob. cit., pp. 266-267 e 271), bem como a liberdade de estipular o preço ou de alterar unilateralmente o valor residual a pagar pelo locatário. Aventa ainda a autora a hipótese de o preferente, que conhecia a celebração do contrato de locação e não exerceu de imediato o seu direito, não estar de boa fé quando o invoca no momento da opção de compra pelo valor residual, muito inferior ao valor comercial ou ao valor patrimonial tributário do imóvel (ob. cit., p. 270).

A autora fundamenta a sua posição também na diferença entre os tipos contratuais da opção de compra e da compra e venda (ob. cit., p. 272):

«Consideramos ainda que na aquisição da propriedade pelo locatário, pelo exercício do direito de opção de compra na locação financeira, não podemos falar, propriamente, de um contrato de compra e venda, pois o preço nem sequer corresponde ao valor patrimonial tributário do imóvel, na grande maioria das vezes é inferior; nem do ponto de vista fiscal a opção de compra é reconhecida como uma compra e venda, na medida em que há isenção de IMT; e, por fim, do ponto de vista formal, o contrato de transmissão da propriedade, seja por documento particular autenticado, seja por escritura pública é denominado de opção de compra e não de compra e venda.»

11. Na jurisprudência, encontramos apenas um acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 13-10-2022 (Processo n.º 364/21.2T8STB-T.E1), que se pronunciou sobre uma questão semelhante, negando o direito de preferência ao avalista em relação a um contrato de locação financeira imobiliária, num caso em que o administrador da insolvência declarou não pretender adquirir os imóveis locados, frisando o acórdão, nos seus fundamentos, que não se constituiu qualquer direito de preferência dada a inexistência de qualquer contrato de compra e venda, uma vez que as locações não atingiram tal fase, por opção da insolvente.

12. A posição mais ampla quanto ao âmbito da preferência convencional é a defendida por Agostinho Guedes, que entende que o artigo 423.º do Código Civil permite que se celebrem pactos de preferência, tendo por objeto a compra e venda ou “outros contratos” compatíveis com a obrigação de preferência, como a dação em cumprimento, a locação, a prestação de serviços e a troca, sustentando que a referência num pacto à «preferência na venda» não deve excluir negócios que, sob um ponto de vista económico e social, ainda são assimiláveis à compra e venda, ou seja, operações traduzindo genericamente uma alienação de um bem mediante uma contrapartida em dinheiro, direta ou indireta, independentemente da sua natureza jurídica, como na permuta por crédito pecuniário sobre terceiro, na assunção de dívida, na promessa de liberação de dívida a terceiro (cfr. Agostinho Guedes, O Exercício do Direito de Preferência, ob. cit., pp. 389 e ss; “Comentário ao artigo 423.º do Código Civil”, in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, 2018, p. 113). O autor considera decisivo, não a qualificação jurídico-formal do contrato projetado, mas a interpretação da norma contratual que confere o direito de preferência (in Comentário ao artigo 418.º do Código Civil, in Comentário ao Código Civil...ob.cit., p. 104).

O autor entende ainda que o contrato de locação corresponde, em termos económicos, a uma venda a crédito, que transmite a propriedade económica da coisa para o locatário (Exercício do direito de preferência…ob. cit., p. 393, nota 86), retirando desta classificação do contrato de locação, no parecer junto aos autos, a conclusão de que o direito de preferência pode ser exercido em relação a contratos de locação financeira e que este direito nasce com a decisão da locadora, a CGD, celebrar o contrato de locação, em determinados termos, com determinado terceiro, exteriorizando essa sua decisão por qualquer forma.

No caso dos autos, estamos perante um direito de preferência invocado durante a execução do contrato de locação financeira e antes do seu termo, quando ainda não foi exercida a opção de compra, mas já foram pagas algumas das rendas, entendendo a recorrente, com base no parecer junto aos autos, que, exercendo o preferente o direito pelo valor que serviu de referência ao contrato de locação – 975.000 euros – não se verifica qualquer enriquecimento do preferente.

A tese defendida pela recorrente assenta numa construção conceitual nos termos da qual a CGD, com a celebração do contrato de locação, fica obrigada por uma promessa unilateral de venda perante o locatário.

Esta construção ou natureza jurídica do contrato de locação foi assumida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14-01-2021 (proc. n.º 8621/17.6T8LSB.L1.S1), citado na alegação de recurso da Caixa, o qual dando nota da divergência doutrinal verificada a este propósito – promessa unilateral ou pacto de compra – entende que face ao clausulado concreto se estaria em face de uma promessa unilateral.

Aceitamos a tese de que, no caso presente, dada a regulação contratual da opção de compra, estamos perante uma promessa unilateral de venda por parte da Caixa.

Todavia, as soluções jurídicas de um caso não podem resultar, sem mais, de uma cadeia de raciocínios lógico-dedutivos que partem de uma premissa relativa à natureza jurídica de um determinado negócio jurídico para a decisão do conflito de interesses. Releva com mais intensidade, no plano decisório – que é o mais importante para um tribunal – ponderar os interesses em causa, de acordo com princípios de proporcionalidade e de equilíbrio. Nesta sede, o que ressalta de imediato é a circunstância objetiva e incontornável de ainda não ter sido exercida, pelo locatário, a opção de compra. A matéria de facto provada não demonstra que essa vontade negocial já tenha sido declarada ou esteja em vias de o ser.

É certo que o direito de compra surge como um direito do locatário, ao qual a proprietária, CGD, não se poderá opor, na medida em que assumiu uma obrigação legal de contratar, suscetível de execução específica (artigo 830.º do Código Civil e 9.º al. c) do DL n.º 149/2015). Todavia, nesta fase contratual não existe ainda qualquer transmissão real do direito de propriedade, que pode nunca acontecer, p. ex. se o locador não cumprir a obrigação de pagamento das rendas, se não tiver interesse económico em invocar a opção de compra ou se ficar insolvente.

Ou seja, admitir o exercício do direito de preferência convencional, em relação ao contrato de locação financeira, na fase de execução, quando já foram pagas algumas rendas, mas antes da compra, implica o incumprimento das obrigações do locador para com o locatário, frustra as expetativas de um sujeito, o locatário, que precisa de usufruir do imóvel, onde exerce uma atividade económica, e que está a pagar rendas de valor superior ao de mercado. Este resultado demonstra, não só a diferença estrutural, como a diferença funcional entre uma compra e venda e um contrato de locação.

Se, em alternativa, aceitássemos a eficácia da preferência, no momento da opção de compra, aí já na presença de um efeito transmissivo real, também não estariam como vimos, reunidos os pressupostos da constituição de um direito de preferência, pois o valor residual é (muito) inferior ao valor patrimonial ou de mercado do bem e não seria justo esvaziar o locatário do investimento feito e permitir um enriquecimento injustificado do preferente. Para além disto, há ainda que afirmar que, para esse efeito, a presente ação não teria utilidade prática, na medida em que tendo sido interposta em momento anterior à do exercício da faculdade de opção de compra sempre surgiria como um meio de resolução antecipada de um conflito que ainda não emergiu da realidade e que antecede a manifestação de vontade negocial da locatária.

Mesmo que a preferência fosse exercida no momento inicial da celebração do contrato de locação, perante uma comunicação do obrigado à preferência das cláusulas do contrato de locação ao preferente, seria necessário a determinação de um preço que tivesse em conta os vários elementos do contrato de locação, não bastando o valor atribuído ao imóvel e que serviu de referência à locação, uma vez que o locatário se encontra a pagar rendas num valor superior ao do mercado (para amortização do preço do bem, juros e outros encargos), gerando um lucro para o locador, que se deve repercutir no preço de uma venda ao preferente. Ou seja, a indefinição do preço de mercado do bem e a necessidade de uma operação de determinação do mesmo, de forma a tornar a locação equivalente a uma venda e a permitir o exercício da preferência, tanto por tanto, em igualdade de circunstâncias com as condições contratuais previstas no contrato de locação, demonstra, por si mesmo, a impossibilidade de admitir o exercício do direito de preferência contra o locatário. Assim, também não é possível ao tribunal, na fase de exercício judicial do alegado direito de preferência, decretar a substituição do adquirente (o locatário) pelo preferente, sem calcular um preço de venda, intervenção judicial não prevista no regime jurídico do direito de preferência.

14. Os argumentos com os quais a autora constrói a sua tese são, assim, manifestamente insuficientes para considerar que a ré, CGD, incumpriu o seu dever de comunicação do negócio nos termos do artigo 416.º do Código Civil com a consequência de o Cascaishopping poder exercer de imediato o seu direito de preferir, adquirindo o bem tanto por tanto, e obtendo a declaração da extinção do contrato de locação financeira dos autos.

O reconhecimento do direito da autora de fazer sua a fração autónoma e de extinguir o contrato de locação financeira celebrado pela Caixa significaria, na prática, uma limitação do direito de exploração do bem não prevista no pacto de preferência, que não incidiu sobre contratos que proporcionassem o gozo do bem, permitindo a permanência da propriedade do imóvel na esfera jurídica do obrigado à preferência, como acontece no contrato de locação, desde o momento inicial e até à celebração da escritura que executa a opção de compra.

A complexidade das posições dos sujeitos desta relação jurídica, bem como a função e o regime jurídico do contrato de locação financeira fazem com que este contrato não possa ser equiparado à venda ou a uma transmissão a qualquer título, para o efeito do exercício de um direito de preferência, seja qual for a fase do contrato de locação – a obrigacional ou a real – em que o preferente invoque o direito. Apesar do caráter amplo dos pressupostos do direito de preferência convencional, reportado a transmissões do bem “a qualquer título”, tem que se ler a palavra “transmissão”, de acordo com o critério da impressão do declaratário consagrado no artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil, no seu sentido jurídico, como qualquer contrato com efeito translativo imediato do direito de propriedade, sem abranger figuras de natureza obrigacional destinadas a proporcionar o gozo do imóvel, ainda que acompanhadas, como o caso da locação, de uma cláusula acessória de opção de compra. O efeito translativo, antes do exercício da opção de compra, é meramente hipotético, e só se torna certo quando esta opção for efetivamente exercida e outorgada a escritura pública de compra e venda de bem imóvel (artigo 875.º e 879.º, al. a), ambos do Código Civil), o que não se verificou no caso dos autos, nem houve ainda qualquer decisão de a outorgar suscetível de fundamentar um dever de comunicação para preferir dirigido ao preferente, Cascaishopping, nos termos do artigo 416.º do Código Civil.

De todo o modo, entendemos que o contrato de locação, quer pela sua estrutura complexa, dividida em duas fases – uma obrigacional e outra real – normalmente distantes uma da outra em termos temporais, quer pela sua função – permitir o gozo da coisa e servir como um modo de financiamento – não se pode equiparar à compra e venda ou a uma transmissão de direitos reais, pois se destina a prosseguir um conjunto de interesses específicos e estranhos a um contrato de compra e venda (artigo 874.º do Código Civil).

Como refere Canaris (Systemdenken und Systembegriff in der Jurisprudenz, tradução portuguesa de Menezes Cordeiro, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1996, p. 32), quando o intérprete se encontra perante duas soluções alternativas para um pleito, ambas com argumentos técnicos a sustentá-las, a decisão é uma opção baseada num pensamento decisivo.

Em relação à locação financeira importa ponderar uma panóplia de interesses, desde logo considerar que se trata de um contrato útil para quem não tem poder de compra a pronto de um imóvel e pretende um meio alternativo de financiamento em relação ao empréstimo bancário, e útil para quem pretende a obtenção de um rendimento através da aplicação de um capital.

A possibilidade de exercício de direitos de preferência contra os locatários, para além de não decorrer da cláusula contratual em litígio nos autos, fragiliza a sua posição jurídica (mesmo que os direitos de preferência sejam logo exercidos no momento da celebração do contrato de locação) e reduz a utilidade ou o interesse social e económico destes contratos, que deixariam de ser vantajosos para os agentes económicos, resultado que não pode ter sido querido pelo legislador, que, ao regular estes contratos na lei, pretendeu promover a sua utilização, considerada vantajosa para o dinamismo do comércio e para a internacionalização da economia.

15. A ideia, invocada pelo recorrente, de que a interpretação jurídica do acórdão recorrido permitiria fraudes, suscetíveis de impedir o exercício dos direitos de preferência, legais ou convencionais, bastando que comprador e vendedor encobrissem uma venda por uma locação financeira, acompanhada do exercício antecipado de opção de compra, não colhe como critério de decisão. Em primeiro lugar, o contrato de locação é um expediente muito utilizado por motivos financeiros e para fomentar a atividade económica, nada permitindo presumir que estes contratos são simulados ou visam contornar obstáculos à livre contratação; em segundo lugar, não se pode resolver um caso ou assumir posições jurídicas baseadas na probabilidade futura de fraude ou numa presunção de fraude: para os tribunais, a fraude ou a simulação de negócios sempre será uma questão casuística a decidir em função do que for alegado e provado em cada caso. E, no presente caso, o autor da ação não alegou qualquer acordo simulatório ou fraudulento entre a Caixa e a P..., Lda., nem da factualidade provada resulta qualquer indício nesse sentido.

Seria contraditório que o contrato de locação financeira, uma figura criada pelos agentes económicos no exercício da sua liberdade contratual de criar contratos novos, atípicos ou mistos (artigo 405.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil), e que veio a posteriori a ser regulada pelo legislador, reconhecendo-lhe utilidade social e económica, viesse afinal a ser posta em causa ou até a ser “morta” pela possibilidade de oponibilidade de direitos de preferência legais ou convencionais pensados para a compra e venda clássica como aliás resulta da interpretação dos artigos 414.º e 416.º do Código Civil que se reportam à mera venda. Interpretações extensivas destas disposições (ou de cláusulas contratuais que conferem direitos de preferência convencionais) criam insegurança jurídica no investimento e na exploração dos bens que os tribunais têm de ponderar cuidadosamente nas suas decisões.

Os direitos de preferência constituem sempre um limite à liberdade de um sujeito celebrar contratos como quiser, com quem quiser e pelos montantes que bem entender. Mesmo que livremente consentida uma obrigação de preferência, pelo sujeito que se vincula por contrato, não deve ser dado a esse pacto de preferência um alcance que esteja para além da vontade presumível do obrigado à preferência, se esse significado não tem na letra do contrato uma formulação expressa, precisa e clara.

16. Concluímos, pois, a esta luz, que o contrato de locação não viola o pacto de preferência subscrito pela Caixa Geral de Depósitos e pelo Cascais Shopping, e que a presente ação deve improceder.

17. Anexa-se sumário elaborado nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do CPC:

I – Um contrato de locação financeira sobre um imóvel é um contrato duradouro, que apesar de conjugar normas do arrendamento e da compra e venda, surge como um tipo legal autónomo, sui generis, que prossegue finalidades específicas, constituindo uma facti species de formação progressiva, inicialmente obrigacional, com potencialidade de evolução para a transmissão real.

II – A produção do efeito real surge como meramente eventual e não necessária, porque estritamente dependente de um poder potestativo ou faculdade do locatário.

III - A expressão do pacto de preferência - «transmissão a qualquer título» - remete, na linguagem jurídica e na linguagem corrente, para um contrato com efeitos reais, destinado a produzir como efeito principal a transmissão, tendencialmente imediata, de direitos reais de um sujeito para outro, e não para contratos que tenham como obrigação principal proporcionar o gozo de uma coisa, sem que esse gozo seja acompanhado necessariamente da transferência ou constituição de direito reais, como o caso do contrato de locação com opção de compra.

IV - Analisando o resultado prático do exercício do direito de preferência, em relação a um contrato de locação, constata-se que o direito de preferência restringiria, de modo intenso, o direito de o proprietário-locador explorar o bem e o direito de o locatário gozar as suas utilidades, rompendo-se o equilíbrio das prestações na relação tripartida entre o preferente, o locador e o locatário, pelo que, também por este motivo, a expressão «transmissão a qualquer título» não é idónea a abranger um contrato de locação financeira com opção de compra.

V - Os direitos de preferência constituem sempre um limite à liberdade de um sujeito celebrar contratos como quiser, com quem quiser e pelos montantes que bem entender. Mesmo que livremente consentida uma obrigação de preferência, pelo sujeito que se vincula por contrato, não deve ser dado a esse pacto de preferência um alcance que esteja para além da vontade presumível do obrigado à preferência, se esse significado não tem na letra do pacto uma formulação expressa, precisa e clara.

III – Decisão

Pelo exposto, decide-se na 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 28 de janeiro de 2024

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Anabela Luna de Carvalho (1.ª Adjunta)

Jorge Leal (1.º Adjunto)