Sumário
I - Tendo as garantias pré-existentes sobre as acções nacionalizadas caducado, mostra-se inviabilizada a transposição dos efeitos da primazia do penhor previstos no art. 692.º, n.º 1 e n.º 3 do CC.
II - Á data da nacionalização das participações sociais e do arresto preventivo, a pretensão do embargante sobre a indemnização pelo efeito extintivo das suas garantias pignoratícias não ultrapassava a mera expectativa.
III - A avaliação de direito a indemnização em situação de nacionalização de participações sociais, estabelece-se de acordo com o valor dos respetivos direitos, avaliados à luz da situação patrimonial e financeira da empresa à data da nacionalização, que no caso o Estado veio a declarar de valor “Nulo”.
Decisão Texto Integral
Acordam os Juízes da 2ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça
I. Relatório
1. Banco BPI, S.A. deduziu embargos de terceiro contra o Estado Português, requerendo o levantamento do arresto preventivo, ordenado a rogo do Estado de Angola, sobre o direito à indemnização de que a WINTERFELL 2 LIMITED é titular, por força da nacionalização das 9.971.832 acções da E..., S.A.
Em suporte da pretensão alega, que emprestou à sociedade WINTERFELL 2 LIMITED o montante total de € 25.000.000,00, destinado à aquisição de participações sociais na E..., S.A., entretanto, nacionalizada pelo Réu, tendo aquela constituído a favor do embargante dois penhores financeiros sobre 9.343.187 das Acções EPS Iniciais e 628.645 Acções EPS Adicionais, que lhe foram entregues livres de quaisquer ónus ou encargos, de acordo com os instrumentos contratuais juntos.
Afirma, pois que, o arresto deverá ser levantado sobre o direito à indemnização da WINTERFELL 2 LIMITED, emergente da nacionalização das 9.971.832 ações da E..., S.A., empenhadas em primeiro grau ao embargante, em virtude de lesar gravemente o seu direito real de garantia especial que se transferiu para aquela, aportando avultados prejuízos, impossibilitando-o de obter o reembolso do seu crédito, com a preferência de pagamento.
O Estado, representado pelo Ministério Público, na sua contestação pugnou, em suma, pela improcedência dos embargos de terceiro e pela subsistência do arresto preventivo ordenado.
Prosseguindo a instância, o tribunal de primeiro grau julgou improcedentes os embargos de terceiro.
2. Inconformado, o embargante interpôs recurso de apelação.
O Tribunal da Relação definiu o objecto do recurso como se extrata - “ a questão que importa apreciar consiste em saber se o Embargante tem direito à indemnização consagrada no n.º1 do art.º 5.º do Decreto – Lei n.º 33-A/2020 de 2 de Julho, enquanto titular de um ónus que incidia sobre as acções nacionalizadas, ou no caso de tal indemnização ser atribuída à WINTERFEEL 2 LIMITED, na qualidade de credor preferente, por força do disposto no art.º 692.º do Código Civil ex vi do art.º 678.º do mesmo Código.”
No desenvolvimento da apreciação, julgou procedente a apelação, conforme o douto acórdão que antecede e culmina no seguinte dispositivo - « Em face do exposto, acordamos neste Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar procedente o recurso e, em consequência, julgando procedente os embargos de terceiro, determinar que o direito real de garantia (penhor), de que era titular o ora Apelante e que incidia sobre 9.971.832 das referidas 41.525.275 acções EPS arrestadas, se transmita para a indemnização devida pela nacionalização das mesmas ações, nessa parte ficando excluída do arresto preventivo. Sem custas.» 1
3. Discordante, agora o Estado Réu, pede revista, no sentido da revogação do acórdão e da confirmação do julgado de improcedência dos embargos de terceiro.
Da motivação exposta nas doutas alegações o recorrente extraiu a final as conclusões que se transcrevem:
« 1 - O apelo aos casos decididos pela jurisprudência como critério orientador da decisão, com vista à uniformização do direito, nos termos previstos no n.º 3 do art.º 8.º do Código Civil, não se afigura ajustado no caso dos autos, dado que, para além do acórdão de 14-09-2021 (proferido no apenso O destes autos, a cuja argumentação jurídica se aderiu no acórdão sob recurso), foi decidido em sentido contrário no acórdão de 22-09-2021, igualmente proferido num apenso destes autos (o apenso P).
2 - O art. 5.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 33-A/2020 e o art. 4.º do RJAP preveem a possibilidade de não ser devido qualquer direito à indemnização aos titulares das participações sociais nacionalizadas ou aos eventuais titulares de ónus ou encargos constituídos sobre as mesmas.
3 - Quem faz o cálculo da indemnização são duas ou mais entidades independentes, designadas por despacho do membro do Governo responsável pela área das finanças, cfr. art. 5.º n.º 1 do RJAP.
4 - Quem fixa o valor da indemnização é o membro do Governo responsável pela área das finanças, cfr. art. 5.º n.º 3 do RJAP.
5 - O Secretário de Estado do Tesouro, através do Despacho 214/2021-SET de 24/03, fixou o valor da indemnização pela nacionalização das acções EPS, e, que este valor “é nulo”, o que, na prática, significa que não foi reconhecido como devido qualquer direito à indemnização.
6 - Até ser conhecida a decisão do Secretário de Estado do Tesouro, o ora recorrido tinha uma expectativa de atribuição de um direito à indemnização.
7 - O ora recorrido nunca teve um direito à indemnização.
8 - A expectativa não goza da tutela conferida pelo artigo 342.º do CPC.
9 - A letra da lei é clara: a faculdade de reagir por meio de embargos de terceiro é conferida a terceiros detentores de um “direito”.
10 - Um arresto preventivo pode incidir sobre objetos, direitos ou expectativas de aquisição de bens determinados (cfr. o art.º 778.º do CPC, aplicável por força dos arts. 391.º n.º 2 do CPC e 228.º n.º 1 do CPP), mas só os terceiros detentores de um “direito” têm a faculdade de deduzir embargos de terceiro.
11 - A existência de qualquer eventual incompatibilidade da expectativa de aquisição do direito com a realização ou o âmbito de um arresto preventivo decretado não constitui, pois, fundamento dos embargos de terceiro.
12 - O Tribunal a quo interpretou e aplicou incorretamente o artº. 342.º do CPC, o art.º 4.º n.º 1 do RJAP e o art.º 5.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 33-A/2020.
13 - Caso fosse devida alguma indemnização pela nacionalização das 9.971.832 ações EPS (o que não sucede), o ora recorrido não teria sobre essa mesma indemnização a preferência que lhe competia em relação às ações EPS, não sendo aplicável o art.º 692.º do CC.
14 - As assinaláveis diferenças teleológicas entre as figuras da expropriação ou requisição e da nacionalização, com particulares consequências ao nível da existência e da extensão concreta do direito de indemnizar, não podem deixar de conduzir a outra conclusão senão a de que na norma do art.º 692.º do CC não se encontra prevista a indemnização por nacionalização.
15 - O disposto no art.º 692.º do CC não é aplicável ao caso dos autos, dado que a nacionalização não se pode qualificar como uma situação “análoga” à expropriação, pelo que não se verifica qualquer lacuna legal que permita o recurso à aplicação analógica daquela norma.
16 - Por isso, mal andou o Tribunal a quo ao concluir que o art.º 692.º, n.º 3, do CC é aplicável à indemnização devida por nacionalização.
17 - Caso fosse devida alguma indemnização pela nacionalização das 9.971.832 ações EPS (o que não sucede) e caso o ora recorrido fosse titular de um direito real de garantia sobre essa indemnização, não beneficiava da proteção conferida a terceiros pelo art.º 111.º do CPP.
18 - A epígrafe do artigo 111ºdo Código Penal é inequívoca a este respeito – Instrumentos, produtos ou vantagens pertencentes a terceiro – e o n.º 1 e 2 deste artigo são evidentes ao conceder proteção apenas aos sujeitos a quem “pertençam” os “instrumentos, produtos ou vantagens”.
19 - O titular de um direito real de garantia, designadamente o penhor, não tem legitimidade para evitar que o bem seja confiscado, do mesmo modo que não pode evitar a sua alienação.
20 - Só os proprietários dos instrumentos, produtos ou vantagens poderão ser considerados terceiros para efeitos da previsão do n.º 1 do art. 111.º do CP. Assim, julgando-se o presente recurso procedente e revogando-se o acórdão recorrido, mantendo-se a decisão de primeira instância, será feita JUSTIÇA.»
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Em resposta, o embargante sustentou o acerto do acórdão recorrido e pugnou pela improcedência do recurso.
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Na superveniência da reprivatização da E..., S.A. A, notificadas para se pronunciarem sobre eventual inutilidade da lide, ambas as partes declinaram.
4. Admissibilidade e objecto do recurso
Verificados os pressupostos gerais de recorribilidade do acórdão da Relação, a sua natureza e o fundamento de recurso - cf. artigos 671º, nº1, 674.º, nº1, al) a, 675º, nº1, e 676º, nº1, do CPC – a revista é admissível.
São as conclusões do recurso, salvo matéria de conhecimento oficioso, que fundamentalmente, delimitam a intervenção do tribunal ad quem- cfr. artigos 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, artigo 679º, do CPC.
Presentes tais parâmetros, em interface com o acórdão impugnado, caberá decidir se, como sustenta o recorrente, o tribunal a quo fez errada interpretação da lei, devendo em adverso, concluir-se pela improcedência dos embargos.
As questões recursivas em debate são as seguintes:
• Se o banco embargante não detém direito ou expectativa sobre a invocada indemnização na sequência da nacionalização do Estado Português junto da E..., S.A.;
• Se o penhor sobre (parte) das participações sociais arrestadas não lhe confere preferência sobre eventual indemnização;
• Se na qualidade de titular de direito de garantia não beneficia da protecção legal sobre os instrumentos do crime.
III. Fundamentação
A. Os Factos
Das instâncias vêm provados os factos que seguem:
1 - Na sequência de um pedido de auxílio judiciário em matéria penal formulado pela Justiça Angolana, e por despachos judiciais de 11/03/2020 e de 26/03/2020 foi, além do mais, decretado o arresto preventivo de 67,20% do capital social da E..., S.A. (EPS), correspondente a 41.525.275 acções, detidas diretamente pela acionista WINTERFELL 2 LIMITED e indiretamente pela arguida AA (cfr. fis. 1601-1681 dos autos principais 4.° volume e fis. 2511-2533 - 6.° volume).
2 - Sobre 9.971.832 dessas 41.525.275 acções EPS arrestadas incidiam dois penhores financeiros, constituído a favor do BANCO BPI, S.A., como garantia de um mútuo concedido por este último à WINTERFELL 2 LIMITED.
3 - Posteriormente à decisão de arresto, e através do Decreto-Lei n.° 33A/2020, de 2 de Julho, as acções da EPS detidas pela acionista WINTERFELL 2 LIMITED foram nacionalizadas, livres "de quaisquer ónus ou encargos, para todos os efeitos legais" (art. 4.° n.º 1 do Decreto-Lei n.º 33-A/2020), sem prejuízo do "direito à indemnização, quando devido, nos termos dos artigos 4.° e 5.° do regime jurídico de apropriação pública" aos "titulares da participação social nacionalizada ou aos eventuais titulares de ónus ou encargos constituídos sobre a mesma" (art. 5.° n.º 1 do Decreto-Lei n.° 33-A/2020).
4 - Circunstância que esteve na base de nova decisão proferida nos autos de Carta Rogatória, a fls. 9391 a 9394, desta vez determinando «o arresto preventivo do direito à indemnização devida pela nacionalização de 67,20% do capital social da E..., S.A., detido indiretamente pela arguida AA, através da WINTERFELL 2 LIMITED, para garantia do valor de 1.150.856.279,45 €.».
Resulta ainda assente e interesse para a decisão:
- A Direção- Geral do Tesouro e das Finanças ( Ministério das Finanças) através de ofício da Senhora Diretora -Geral, datado de 29.06.2021, informou- «(…) na sequência da conclusão do procedimento de avaliação realizado à E..., S.A., para efeitos de determinação do valor da indemnização a atribuir aos anteriores titulares da participação social objeto de nacionalização através do Decreto-Lei n.2 334/2020, de 2 de julho, assim como aos beneficiárias de ónus ou encargos constituídos sobre a mesma, o Senhor Secretário de Estado do Tesouro emitiu o Despacho n.9 214/2021 —SET, de 24 de março, através do qual determinou, ao abrigo do disposto no I do artigo 52 do citado diploma, bem como do n.9 1 do artigo 42 e dos n.25 3 e 4 do artigo 59 do Regime Jurídico da Apropriação Pública, aprovado em anexo à Lei n.2 624/2008, de 11 de novembro, que o valor da indemnização a atribuir nos termos supramencionados é nulo.»2
- Foi concretizada a reprivatização do capital social da E..., S.A. objecto da nacionalização, nos termos da Resolução do Conselho de Ministros nº133-A/20023 de 26.10 (DR nº08/2023, 1ºSuplemento, Série I.
B. O Direito
1. Sinopse do litígio
A pedido do Estado de Angola foram arrestadas preventivamente as participações sociais que a sociedade Winterfell 2 Limited detinha na E..., S.A. e indiretamente pertencentes a AA, como garantia patrimonial da responsabilidade criminal que lhe era imputada naquele país.
O Estado Português nacionalizou, entretanto, 71,3% do capital social da E..., S.A. e detido pela Winterfell 2.
Nessa sequência, Angola solicitou o arresto preventivo do direito à indemnização pela nacionalização do capital social detido na E..., S.A. por AA, através da Winterfell 2; pedido de auxílio judiciário que se concretizou.
Para a aquisição daquela posição no capital social da E..., S.A., a Winterfell2 celebrara com o Banco ora embargante contrato de mútuo garantido por dois penhores financeiros sobre 9.971.832 das respetivas acções.
Invocando esse direito real de garantia, o BPI deduziu embargos de terceiro contra o Estado Português, por apenso à carta rogatória, e requereu o levantamento parcial do arresto, na medida da sua garantia, sobre o direito da Winterfelll2 à indemnização pela nacionalização.
Os embargos foram julgados improcedentes pelo Senhor Juiz de Instrução Criminal.
Interposto recurso de apelação pelo embargante, o Tribunal da Relação de Lisboa revogou a decisão, e determinou o levantamento do arresto preventivo conforme peticionado.
O Ministério Público pede revista.
2. O arresto preventivo e o processo-crime subjacente
No nosso ordenamento jurídico o arresto que se encontra traçado como providência para a conservação de garantia patrimonial de obrigações civis e comerciais (artigos 619º a 622º do Código Civil e 391º a 396º do CPC) estende a sua função de garantia de direitos de crédito, v.g., em sede de responsabilidade criminal, tal como o arresto preventivo previsto no artigo 228.º do Código de Processo Penal, que remete para o processo civil.
O arresto preventivo estatuído na lei adjectiva penal portuguesa constitui uma medida de garantia patrimonial autónoma, sendo subsidiariamente aplicável a lei do processo civil em tudo o que a lei adjectiva penal não preveja e se harmonize com os princípios gerais do processo penal, tendo em vista o cumprimento efectivo das obrigações patrimoniais que venham a constar de decisão final condenatória proferida em processo penal.
A sua natureza penal congrega a tutela dos interesses de ordem pública prosseguidos com o arresto para garantia da perda das vantagens do crime, e o valor estimado da vantagem da actividade criminosa.
A oposição por embargos de terceiro constitui uma das modalidades de oposição cujas regras gerais estão previstas nos artigos 342.º e ss. do CPC.
Parece não controvertida a qualidade de terceiro do banco embargante, apesar das medidas preventivas respeitarem a processo criminal que Angola move contra AA e a sua concretização nos autos principais a rogo daquele país, estando a empresa E..., S.A. sediada em Portugal.
O embargante documentou em suficiência de indícios a invocada operação bancária de mútuo celebrada com a sociedade Winterfell 2 Limited e a garantia contratual do penhor financeiro sobre parte das acções adquiridas na E..., S.A..
Resta indagar se poderá alcançar a tutela inerente aos embargos de terceiro, correspondente ao direito de preferência pignoratícia no pagamento do crédito sobre a Winterfell 2 Limited – que no caso, consiste no levantamento do arresto preventivo do direito da indemnização da nacionalização pelo Estado Português da posição social que aquela detinha na E..., S.A., arrestada a pedido do Estado de Angola.
3. A nacionalização e a reprivatização
A operação de nacionalização pelo Estado Português junto da E..., S.A. foi concretizada pelo Decreto-Lei 33-A/2020 de 2 de julho.
O respetivo objecto está definido no artigo 1º - «O presente decreto-lei procede à apropriação pública da participação social detida pela Winterfell 2 Limited na E..., S.A. A. (E..., S.A.), por via de nacionalização do respetivo controlo acionista, com vista à salvaguarda do interesse público nacional, nos termos do regime jurídico de apropriação pública, aprovado em anexo à Lei n.º 62-A/2008, de 11 de novembro.»
No seu preâmbulo estão identificadas as seguintes razões e objectivos para a intervenção do Estado Português:
«A E..., S.A. A. (E..., S.A.) é uma empresa nacional, com sede em ..., constituída há mais de 70 anos e com atividade empresarial nos setores da En..., com enorme relevância estratégica para a economia nacional. A repercussão dos acontecimentos relacionados com a estrutura acionista da E..., S.A. e, particularmente, do arresto de ativos de alguns dos seus acionistas, incluindo as contas onde estão depositadas as ações da empresa, levaram à impossibilidade de exercício dos direitos inerentes às participações que correspondem à maioria do capital da empresa, gerando diversas dificuldades no plano comercial e operacional e, em consequência, comprometeu a situação financeira desta, que se tem vindo a deteriorar substancialmente e a um ritmo acelerado, agravada ainda mais em virtude do impacto da pandemia COVID-19.(..)Atendendo aos efeitos do arresto determinado pelo Tribunal, de posição acionista maioritária e contas bancárias relacionadas, à consequente rejeição de quem detém essa posição acionista, quanto à eventual venda da mesma em termos compatíveis com o citado arresto, e à impossibilidade de encontrar solução alternativa - tentada durante meses.(…) Impõe-se, então, uma intervenção do Estado que garanta a estabilidade do seu valor financeiro e operacional, permitindo a salvaguarda dos postos de trabalho, da valia industrial, do conhecimento técnico e da excelência em áreas estratégicas, assim assegurando a prossecução do interesse público.(..)»
E, mais adiante:
«Atendendo à natureza transitória da intervenção, à abertura imediata de processo de reprivatização da posição agora objeto de intervenção pública, ou seja, a não ser nem dever ser entendido este passo como nacionalização duradoura, antes como solução de passagem entre soluções duradouras de mercado. (..)presente decreto-lei procede à apropriação pública da participação social detida pela Winterfell 2 na E..., S.A., por via de nacionalização do respetivo controlo acionista, com vista à salvaguarda do interesse público nacional, nos termos do regime jurídico aprovado em anexo à Lei n.º 62-A/2008, de 11 de novembro (Regime Jurídico da Apropriação Pública).»
4. O direito real de garantia e a indemnização
O douto acórdão recorrido concluiu que o penhor bancário de que o banco embargante mostrou ser titular sobre 9.971.832 das 41.525.275 acções arrestadas, que se extinguiu com a nacionalização, transmitiu-se para a respetiva e devida indemnização, que nessa parte, excluiu do arresto preventivo.
O Tribunal da Relação partiu, assim, da premissa segundo a qual, por efeito da nacionalização do capital social da Winterfell 2 Limited na E..., S.A., assiste ao embargante o direito a indemnização devida pelo Estado Português, enquanto titular de ónus que incidia sobre as acções nacionalizadas, e agora sobre a indemnização na qualidade de credor preferente, por força do disposto no artigo 692.º do Código Civil ex vi do artigo 678.º do mesmo Código.
Ressalvado o merecido respeito, não se comunga da verificação daquele pressuposto por três ordens de razões.
Em primeiro lugar, decorre expressamente do regime legal instituído na nacionalização pelo Estado Português da participação social detida pela Winterfell 2Limited - 71,3%- do capital social da E..., S.A., que as acções foram transmitidas livres de quaisquer ónus ou encargos, para todos os efeitos legais:
Artigo 4º, nº1, in fine do Decreto-Lei n.º 33-A/2020, de 2.07:
«Por efeito do disposto no n.º 1 do artigo anterior e independentemente de quaisquer formalidades, consideram -se transmitidas para o Estado, através da Direção-Geral do Tesouro e Finanças, as ações representativas da participação no capital social da E..., S.A. nacionalizada ao abrigo do presente decreto-lei, livre de quaisquer ónus ou encargos, para todos os efeitos legais.» (..)
Nessa decorrência, as garantias pré-existentes sobre as acções nacionalizadas caducaram e, por conseguinte, o embargante não é titular da invocada garantia de priorização no pagamento, assente no penhor financeiro sobre as acções, que afirma transferido para o seu direito de indemnização e alegadamente comprometida pelo arresto.
Ao não conservar o embargante a garantia creditícia sobre as acções nacionalizadas, com ela incompatível, mostra-se inviabilizada a transposição dos efeitos da primazia do penhor estabelecidos no artigo 692º, nº1 e nº3 do Código Civil.
Por outro lado, o arresto decretado a rogo do Estado de Angola incide sobre o direito de indemnização da titular das participações sociais- a Winterfell 2Limited/AA - em resultado da respetiva nacionalização, e o embargante não era o titular das acções, apenas detinha um direito de garantia sobre as mesmas.
A prossecução do recebimento ou dificuldade de liquidação do seu crédito sobre a Winterfell subsiste no domínio das relações internas do contrato de mútuo que com aquela celebrou.
Neste conspecto, o embargante não demonstra ser titular de direito cuja execução seja atingida pelo arresto preventivo em apreço que lhe permita beneficiar da tutela estabelecida no artigo 342º do CPC.
Em segundo lugar, caso se equacione a pretensão do embargante quanto à indemnização pelo efeito extintivo das suas garantias pignoratícias, a mesma não ultrapassava a mera expectativa à data da nacionalização e do arresto.
Finalmente, a nacionalização de participações sociais não implica o reconhecimento pelo Estado do direito a indemnização, seja aos titulares ou a eventuais titulares de ónus ou encargos.
Dispõe a propósito o Regime Jurídico da Apropriação Pública:3
Artigo 4.º - Indemnização
«1 - Aos titulares das participações sociais da pessoa colectiva, bem como aos eventuais titulares de ónus ou encargos constituídos sobre as mesmas, é reconhecido o direito a indemnização, quando devida, tendo por referência o valor dos respectivos direitos, avaliados à luz da situação patrimonial e financeira da pessoa colectiva à data da entrada em vigor do acto de nacionalização.
2 - No cálculo da indemnização a atribuir aos titulares das participações sociais nacionalizadas, o valor dos respectivos direitos é apurado tendo em conta o efectivo património líquido.»
Justamente, na nacionalização levada a cabo na E..., S.A., concretizada a reprivatização, com a venda das acções representativas da participação no capital social, e que foram objecto da transitória apropriação pública, até ao momento, o Estado não reconheceu ou atribuiu indemnização aos anteriores titulares ou, aos titulares de ónus ou encargos.
Por seu turno, a avaliação de direito a indemnização - “quando devida “- em situação da nacionalização de participações sociais, estabelece-se de acordo com o valor dos respetivos direitos, avaliados à luz da situação patrimonial e financeira da empresa à data da nacionalização – artigo 4º, nº1 e nº2, da Lei 62-A/2008 de 11.1.1 do Anexo.
Realizada a avaliação a que se refere o nº2 do artigo 4º e artigo 5º do Anexo àquela lei, o Estado Português no âmbito dos poderes de soberania instituídos, veio a declarar de valor “nulo” a indemnização, através do despacho do Secretário de Estado do Tesouro nº214/2021 de 24 de março.
Declaração de valor nulo que de resto o embargante impugnou oportunamente no foro administrativo, a correr termos, conforme deu notícia nos autos.4
Circunstância regulatória que parece estar em alinhamento com o procedimento específico a que obedece a intervenção do Estado por via da nacionalização, traçada por decreto-lei que define em cada situação quais os interesses que motivam a apropriação pública - cfr. artigos 2º e 3º, nº1 da Lei nº62-A/ 2008 de 11 de novembro - Regime Jurídico de Apropriação Pública por Via da Nacionalização.
Acresce que, o considerável valor do investimento do Estado Português na empresa aponta para a situação de liquidez negativa, conforme os dados do conhecimento público veiculados pela auditoria do Tribunal de Contas.
Por fim, desconhecemos os termos do contrato de compra e venda das acções representativas do capital social da E..., S.A., entre a P..., SGPS, S.A., enquanto vendedora, e a M...GmbH e a M...GmbH, enquanto compradoras, e a M...& CO, enquanto acionista das compradoras e da M...... ......, no que concerne aos efeitos convencionados no tocante à posição jurídica dos credores dos anteriores accionistas.
Daí que, salvo melhor opinião, não se afigura que o arresto preventivo rogado e decretado no âmbito de pedido de cooperação judiciária de Angola, tenha, a um tempo a virtualidade de impedir o embargante de vir a satisfazer o invocado crédito sobre a Winterfell, e por outro, não estar atribuído ao embargante pelo Estado Português qualquer valor indemnizatório pela nacionalização das participações sociais sobre as quais incidia os (2) penhores financeiros, extintos por efeito da transmissão operada pela apropriação pública.
A nacionalização diverge do regime jurídico da expropriação no que se prende com a indemnização devida, a segunda tem assento constitucional no artigo 62º, nº2, da CRP, enquanto na nacionalização rege o disposto no artigo 83ºda CRP, que confere ao legislador ordinário margem de liberdade na definição dos critérios da indemnização. 5
Concedendo que o embargante pretenda ainda assim demandar o Estado Português para reclamar indemnização pela nacionalização, o pedido e a sede processual não se enquadram na natureza dos presentes autos.
Em suma, o embargante não logrou prova de direito incompatível com o arresto preventivo executado a rogo de Angola, no âmbito da responsabilidade criminal que imputa à arguida AA.
O recurso terá de proceder.
Mostra-se prejudicada a apreciação das demais questões.
IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes do Supremo Tribunal em julgar procedente a revista, e em consequência, revogar o acórdão da Relação, e em substituição, julgam improcedentes os embargos de terceiro, subsistindo o arresto decretado.
As custas são a cargo do recorrido.
Lisboa, 12.12.2024
Isabel Salgado (relatora)
Emídio Francisco dos Santos
Maria da Graça Trigo
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1. A fundamentação condensada no sumário : “O direito real de garantia (penhor), de que era titular a Embargante, ora Apelante, e que incidia sobre 9.971.832 das 41.525.275 acções EPS objecto de arresto preventivo, transmitiu-se para a indemnização devida pela nacionalização das mesmas ações, impondo-se a exclusão do arresto preventivo da indemnização devida pela nacionalização daquelas 9.971.832 ações, na medida em que esse arresto impeça o embargante de executar o direito real de garantia de que era titular em relação àquelas ações. “
2. Cfr fls. 2802 da certidão da CR 210/20.4TELSB; ofício notificado às partes.
3. Lei n.º 62-A/2008, de 11 de novembro
4. Cfr. Requerimento de 3.05.2022.
5. Cfr. anotação ao artigo 83º da CRP de J.J. Gomes Canotilho /Vital Moreira, Vol., 2007.