Sumário
I. O acidente in itinere consiste numa extensão do conceito de acidente de trabalho cuja justificação reside no risco a que o trabalhador se expõe pela necessidade de se deslocar para e do trabalho.
II. Tanto a doutrina como a jurisprudência têm vindo a ampliar as situações que cabem nas interrupções ou desvios que não obstam à consideração do acidente como de trabalho, numa interpretação alargada do conceito que, sem ultrapassar a letra da lei, radica no sentido teleológico das pertinentes normas.
III. A sinistrada fez parte do itinerário que habitualmente cumpria de autocarro caminhando a pé, portanto, no âmbito do trajeto normalmente utilizado: para além de o trabalhador ter a liberdade de escolher o meio como circula, desde que não seja desrazoável, nos tempos de hoje é crescente a tendência para as pessoas fazerem total ou parcialmente os seus percursos do dia-a-dia a pé, pelas mais diversas razões (exercício físico, preocupações com o ambiente, redução de custos, etc.).
IV. São atendíveis as necessidades que estiveram na base das interrupções/desvios que in casu se verificaram ao longo ou muito proximamente daquele trajeto: paragem numa loja para comprar uma toalha de mãos, onde ficou cerca de 20 minutos a falar ao telemóvel; e entrada num supermercado para fazer compras para o jantar, tudo isto de acordo com necessidades pessoais/familiares que claramente se revelam consentâneas com os modelos de vida normalmente praticados pela generalidade das pessoas.
V. Acresce que o acidente em causa ocorreu quando a trabalhadora já tinha retomado o percurso de autocarro, portanto já no âmbito da esfera do risco inerente à deslocação em autocarro, pelo que nos encontramos perante um acidente in itinere
Decisão Texto Integral
Revista n.º 22380/22.7T8LSB.L1.S1
MBM/DM/PLC
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça
I.
1.1. Autora (recorrida): AA.
1.2. Ré (recorrente): Companhia de Seguros Allianz Portugal S.A.
X X X
2. A autora intentou a presente ação especial emergente de acidente de trabalho, alegando que sofreu uma queda quando regressava do seu local de trabalho e se dirigia para casa.
3. Ao contrário do decidido na 1ª Instância, o Tribunal da Relação de Lisboa, concedendo provimento ao recurso de apelação interposto pela A., julgou a ação procedente.
4. A R. interpôs recurso de revista, não tendo sido apresentadas contra-alegações.
5. O Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido do provimento do recurso, em parecer a que apenas respondeu a recorrida, em linha com as posições por assumidas anteriormente nos autos.
6. Em face das conclusões da alegação de recurso, e inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), a única questão a decidir1 consiste em determinar se o acidente em causa deve ser qualificado como acidente de trabalho (in itinere).
Decidindo.
II.
7. Com relevo para a decisão do litígio, mostra-se fixada a seguinte matéria de facto:
1. A 24 de junho de 2021 a autora exercia as funções (…) ao serviço da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa no Centro de acolhimento ..., em ...;
2. Residia na Avenida ..., em ...;
3. Recorria habitualmente a autocarros da Carris nos trajetos de ida de casa para o local de trabalho e regresso do local de trabalho para casa;
4. Utilizava os autocarros n.ºs 755 e 736, trocando de autocarros na zona do ...;
5. (Eliminado pelo TRL)
6. No dia referido em 1., a autora cumpriu o horário de trabalho das 08h00 às 16h00;
7. Terminado o seu horário de trabalho, saiu do estabelecimento da empregadora e foi, como habitualmente, a pé, para a paragem do autocarro;
8. A autora apanhou o autocarro n.º 755, na paragem Av. ...;
9. A autora saiu do autocarro n.º 755 na paragem Largo ..., em ...;
10. A autora aproveitou para fazer uma caminhada;
11. Depois de sair na Paragem do Largo ..., a autora desceu a pé a rua, até à Praça ..., onde fez compras para o jantar no supermercado Pingo Doce de ...;
12. A autora para para compras de última hora no supermercado e no percurso de regresso a casa;
13. Por vezes no supermercado Pingo Doce, em ...;
14. Do largo ... para a Praça ... implica passar pela Av. ..., conhecida por lojas, cafés e restaurantes;
15. Na sequência de duas cirurgias aos meniscos, em 2011 e 2018, a autora ficou com limitações de mobilidade;
16. E com indicação para realizar marcha diariamente;
17. No percurso para o supermercado Pingo Doce sito na Praça ..., e antes deste, a autora parou na loja VIVA para comprar uma toalha de mãos;
18. … E ficou cerca de 20 minutos a falar ao telemóvel, antes de prosseguir para o Pingo Doce;
19. Já com as compras, dirigiu-se à paragem de autocarro na Praça ... (Escola ...) e apanhou novamente o autocarro n.º 755 até ao .... A Autora saiu no ..., na paragem ... – Av. ... (755), atravessou a rua e deslocou-se a pé até à paragem do ... – Av. ... (736).
20. A autora seguia num autocarro Carris 736 do qual, pelas 18.40h, se atravessou à frente um veículo;
21. Em consequência do referido em 20., porque o autocarro onde seguia travou bruscamente, a autora caiu e embateu com a barriga.
(…)
III.
8. Nos termos do art. 9º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (LAT), considera-se acidente de trabalho o ocorrido no trajeto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, nos trajetos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador, sendo que não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajeto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito.
O acidente in itinere ocorre fora do local e do tempo de trabalho, consistindo, pois, numa extensão do conceito de acidente de trabalho que releva para o direito infortunístico pela sua conexão com a prestação do trabalho. Mais concretamente, a sua justificação reside no risco a que o trabalhador se expõe pela necessidade de se deslocar para e do trabalho.
Tanto a doutrina como a jurisprudência têm vindo ao longo do tempo a ampliar as situações que cabem nas interrupções ou desvios que não obstam à consideração do acidente como de trabalho, numa interpretação alargada do conceito que, sem ultrapassar a letra da lei, radica no sentido teleológico das pertinentes normas.
9. Como sustenta Júlio Manuel Vieira Gomes2, no conceito de trajeto normalmente utilizado, “mais do que uma ideia de habitualidade, o que está em jogo é antes o carácter normal do trajeto como um trajeto razoável, racional”, sendo que, por exemplo, “o trabalhador pode (…) não ter local fixo para tomar a sua refeição” e “não existirá trajeto habitual nos primeiros dias de trabalho de uma pessoa, sem que, obviamente, tal deva determinar a exclusão de tutela”.
Concomitantemente, nota ainda o mesmo Autor:
“É] quase escusado dizer que, não sendo o trabalhador um pássaro, muito menos se exige uma linha reta”.3
«[F]requentemente existirão vários trajetos normais ou “normalmente utilizados” (…). O trajeto normal não será necessariamente o mais curto e poderá variar em função das condições meteorológicas, da situação do trânsito, do meio de locomoção utilizado, da situação física ou do estado do próprio trabalhador. (…) No nosso ordenamento, como na generalidade dos ordenamentos (…) afirma-se a liberdade do trabalhador escolher o meio de transporte, o meio como circula, desde que não seja desrazoável. O trabalhador pode, assim, optar por por deslocar-se a pé, de comboio, no seu automóvel particular, sem que essa opção prejudique, em princípio, a tutela a que tem direito por força da lei.» 4
Quanto à pluralidade de trajetos normais, decidiu o Ac. do STJ de 05.05.2004 (Mário Pereira) que, «tendo o sinistrado ao seu dispor três trajetos com distâncias aproximadas (…) e com semelhantes condições de piso, a opção por qualquer deles não envolvia acréscimo de risco relevante, podendo todos ser considerados percurso normal”.5
10. No tocante ao elemento temporal, afigura-se-nos que ele deverá considerar-se verificado quando ao período que normalmente seria gasto pelo trabalhador no trajeto de ida ou regresso do local de trabalho acresça o tempo correspondente às interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, tudo a considerar em função de critérios de razoabilidade e de adequação social e à luz da evolução dos costumes sociais.
E, segundo Carlos Alegro6, “atendível será a necessidade que de algum modo pode ser evitada ou adiada, muito embora, se o não for, seja facilmente desculpável ou aceitável, de acordo com os critérios dominantes em determinado momento, local e circunstâncias”.
Também Júlio Manuel Vieira Gomes considera que, para efeitos de tutela legal das interrupções ou desvios, “necessidades atendíveis (…) serão, desde logo, necessidades da vida pessoal e familiar do trabalhador que a nossa Lei, aliás, não exige sequer que sejam urgentes ou de satisfação imprescindível”. E, exemplificando, acrescenta: Pode tratar-se de necessidades fisiológicas, de tomar um café ou um pequeno-almoço no caminho para o trabalho ou de almoçar findo o trabalho e antes de regressar a casa, de comprar medicamentos numa farmácia ou enviar uma carta registada, de levar ou de ir buscar os filhos à escola ou ao jardim-de-infância” 7.
Nesta perspetiva, por exemplo, lê-se no sumário do Ac. da Rel. de Coimbra de 16.10.2008, CJ 2008, IV, p. 69 e ss., que “em caso de acidente in itinere o facto de o sinistrado (…) não ter regressado à sua residência imediatamente após o trabalho, por ter estado cerca de 15 minutos num café a conversas com um amigo não afasta o seu direito à reparação do acidente”, isto porque, como consta da sua expressiva fundamentação:
“[N]ão é razoável nem se pode exigir a qualquer trabalhador que, logo após o fim do seu trabalho, inicie de imediato o seu regresso a casa, ou seja, passando a expressão, desate a correr para casa. Fere a sensibilidade de qualquer pessoa que no espírito da lei se encontre essa exigência, sendo de aceitar que entre o fim da jornada laboral e o início do regresso possa mediar algum tempo desde que este não se mostre excessivo”.
11. Quanto ao caso dos autos:
A sinistrada fez parte do itinerário que habitualmente cumpria no autocarro n.º 755 caminhando a pé, na Av. ..., ..., portanto, no âmbito do trajeto normalmente utilizado. Com efeito – para além de o trabalhador ter, como vimos, a liberdade de escolher o meio como circula, desde que não seja desrazoável –, nos tempos de hoje, como se sabe, é crescente a tendência para a articulação/integração das vertentes pessoal (desde logo, em matéria de vida familiar e espaços de lazer) e profissional da vida das pessoas, que, com frequência, fazem total ou parcialmente a pé os seus percursos do dia-a-dia (pelas mais diversas razões, como exercício físico, preocupações com o ambiente, contenção de despesas, etc.).
Em face dos parâmetros supra expostos, também consideramos atendíveis as necessidades que estiveram na base das interrupções/desvios que in casu se verificaram ao longo ou muito proximamente daquele trajeto: paragem numa loja para comprar uma toalha de mãos, onde ficou cerca de 20 minutos a falar ao telemóvel; e entrada num supermercado para fazer compras para o jantar, tudo isto de acordo com necessidades pessoais/familiares que claramente se revelam consentâneas com os modelos de vida normalmente praticados pela generalidade das pessoas.
Acresce que o acidente em causa ocorreu quando a trabalhadora já tinha retomado o percurso de autocarro, agora com o n.º 736, que apanhara, como habitualmente, na zona do ..., portanto já no âmbito da esfera do risco inerente à deslocação em autocarro, sendo certo que, mesmo perante um desvio que seja tido por injustificado (o que não é o caso), é sustentável que, retomado o trajeto normal, um acidente neste percurso voltaria a ser considerado acidente de trabalho8.
Deste modo, encontrando-nos perante um acidente in itinere, improcede a revista.
IV.
12. Em face do exposto, confirmando o acórdão recorrido, acorda-se em negar a revista.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 02.04.2025
Mário Belo Morgado, relator
Domingos Morais
Paula Leal de Carvalho
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1. O tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, 663.º, n.º 2, e 679º, CPC], questões (a resolver) que, como é sabido, não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais não vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.º, n.º 3, do mesmo diploma.↩︎
2. O acidente de trabalho – O acidente in itinere e a sua descaracterização, Coimbra Editora, 2013, p. 171.↩︎
3. Ob. cit., p. 172, nota 397.↩︎
4. Ob. cit., pp. 171 – 173.↩︎
5. Como se refere na mesma obra, p. 171 – 172, nota 394.↩︎
6. Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime Jurídico Anotado, Almedina, 2 ª edição, P. 185.↩︎
7. Ob. Cit., pp. 188 – 190.↩︎
8. Cfr. Júlio Manuel Vieira Gomes, ob. cit. p. 185.↩︎