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Jurisprudência
Sumário

I – Estando em causa um processo de falência instaurado e decidido no Luxemburgo, a lei que define os efeitos da sua instauração sobre a acção declarativa instaurada contra o falido é a lei luxemburguesa, tendo em conta o disposto no Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Maio de 2015, relativo aos processos de insolvência.

II - O pedido de cancelamento das hipotecas constituídas sobre imóveis pertencentes à Autora, com sede em Portugal, país onde se localizam esses imóveis, só pode ser conhecido pelos Tribunais Portugueses, por força da competência exclusiva que é atribuída pelo art.º 24.º, n.º 1 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de Dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial.

Decisão Texto Integral

Recorrente: Cenaro Capital, S.A.,, ré

Recorrida: Illustrious Cottage, Ld.ª, autora


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I – Relatório

I.1 –

Cenaro Capital, S.A., empresa declarada insolvente apresenta recurso de revista do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 19 de Março de 2024 que, revogando parcialmente a sentença ali recorrida, proferida pelo Juízo Central Cível de ... que julgara extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, veio a determinar “o prosseguimento da tramitação em 1.ª instância limitada ao pedido deduzido pela Autora sob a respectiva alínea a).

A recorrente apresentou alegações que terminam com as seguintes conclusões:

A. O presente recurso tem por objeto o Acórdão de 19.03.2024 que revogou a Sentença do Tribunal de Primeira Instância e determinou o prosseguimento da ação quanto à pretensão formulada pela Autora na alínea a) do petitório, que consiste na apreciação da resolução de “contrato de mútuo hipoteca celebrado entre a A. e a R. em 9.03.2022, com o consequente cancelamento dos registos de hipoteca (…)”.

B. Contrariamente ao que vinha sustentado pelo Tribunal de Primeira instância e que constituiu fundamento para determinara extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, o Tribunal a quo, através do Acórdão de que se recorre, apesar de não perfilhar do entendimento da Autora e considerar estar perante uma questão contratual, entendeu que a declaração de insolvência da Recorrente, não tornou inútil o prosseguimento dos autos.

C. Tendo concluído não ser de “acompanhar a decisão recorrida quando afirma que a utilidade que, para a Autora, podia advir da presente ação, era apenas a de vir a ser pagados montantes referentes a créditos que possua”, que “O interesse da Autora (…) vai muito para além do exercício do direito de se ver paga de montantes pecuniários pela Ré.”, e que a pretensão da Autora “jamais poderia (…) resultar satisfeita por via da reclamação de créditos no processo de insolvência da Ré.”.

D. É desse entendimento do Tribunal a quo que a Recorrente discorda e que constitui objeto do presente recurso, que tem por fundamento a alínea a) do n.º 1 do artigo 674.º do CPC, estando em causa a errada interpretação e aplicação da lei substantiva no caso concreto.

E. Considerando que à data em que a ação foi proposta a Recorrente havia sido declarada insolvente por sentença transitada em julgado proferida pelo Tribunal Judicial do Luxemburgo (no âmbito do processo n.º TAL-2023....24), a lei luxemburguesa é aplicável ao processo de insolvência da Recorrente, nos termos do disposto no n.º 1 e nas alíneas g) e h) do n.º 2 do artigo 7.º do Regulamento 2105/848.

F. O direito insolvencial luxemburguês, à semelhança do português, consagra o processo de insolvência como processo universal (o que resulta dos artigos 452.º a 454.º do Código Comercial do Luxemburgo), pelo que, a competência para admitir ou rejeitar o reconhecimento de créditos sobre a massa insolvente da Recorrente pertence, em exclusivo, ao Tribunal Judicial da Comarca do Luxemburgo, como melhor demonstrado nos artigos 24.º a 45.º da contestação (que se dão por reproduzidos, dado que a presente revista sobre nos próprios autos).

G. Apesar de, em tese, parecer inócuo o prosseguimento da lide quanto à pretensão formulada pela Recorrida na alínea a) do petitório, a sua eventual procedência poderia ter como consequência direta e imediata a exoneração de um devedor da massa insolvente da Recorrente.

H. A desoneração de um devedor relativamente a um crédito (garantido por hipoteca) detido sobre a massa insolvente é, pelo menos, equivalente e, de facto, mais relevante, do que o efeito de reconhecimento de um crédito sobre a massa insolvente sendo que, em qualquer caso, o que verdadeiramente se destaca (e é comum às duas situações) é o impacto patrimonial sobre a massa insolvente.

I. A pretensão da Recorrida de ver apreciado um pedido de resolução de contrato de mútuo garantido por hipoteca, além de se situar no domínio da responsabilidade contratual (como é reconhecido pelo Tribunal a quo), sempre teria como consequência a alteração dos direitos da massa sobre a Recorrida, bem como a extinção de garantia real que garante um crédito da massa insolvente da Recorrente.

J. Pelo que, à semelhança do que sucederia em caso de reconhecimento de um direito de crédito, também a desoneração da Recorrida perante a massa insolvente da devedora implicaria o reconhecimento judicial de uma pretensão de cariz patrimonial sobre a massa insolvente, cuja apreciação seria da competência exclusiva do Tribunal do Luxemburgo, tribunal onde corre o processo de insolvência da Recorrente.

K. Assim, a prosseguir tal pretensão, e caso esta viesse a ser admitida, estaríamos, s.m.o., perante uma forma de a devedora se exonerar de uma dívida perante a massa insolvente, fazendo extinguir uma garantia real sobre esse mesmo crédito, em prejuízo dos credores da Recorrente, sem qualquer necessidade de com eles concorrer no competente processo de insolvência, em grave violação do princípio par conditio creditorum e, salvo melhor opinião, em manifesta fraude à lei,

L. Com efeito, ao não considerar aplicável o disposto na alínea e) do artigo 277.º do CPC, o Tribunal a quo incorreu, salvo o devido respeito, em erro de aplicação da lei substantiva, uma vez que, tendo a pretensão da Recorrida por objeto um bem compreendido na massa insolvente, e dado que, caso fosse julgada procedente, produziria um resultado com influência direta no valor da massa, a mesma deveria ter sido deduzida contra a massa insolvente da Recorrente perante o Tribunal do Luxemburgo (exclusivamente competente), sendo tramitada por apenso ao respetivo processo de insolvência, como resulta do disposto no n.º 1 do artigo 85.º do CIRE.

M. Afigura-se, assim, correta a decisão proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, que considerou que, transitada em julgado a sentença que declarou a insolvência da R., ora Recorrente, a presente lide perdeu toda e qualquer utilidade, na medida em que a Recorrida só poderia ver o seu direito reconhecido perante o Tribunal onde corre o processo de insolvência da Recorrente.

N. Ao decidir em termos diversos, o Tribunal a quo desconsiderou a competência exclusiva do Tribunal do Luxemburgo e, bem assim, a imposição legal de apensação ao processo de insolvência das ações cujo resultado possa ter influência no valor da massa (sob pena de inutilidade da lide), infringindo o disposto no n.º 1 do artigo 85.º e no n.º 2 do artigo 89.º do CIRE e, bem assim, o disposto no n.º 1 do artigo 62.º do CPC de onde, resulta, a contrario sensu, a falta de competência internacional dos Tribunais Portugueses para a apreciação desta ação.

O. O que deverá determinar a revogação do Acórdão recorrido e a sua substituição por outro que julgue a instância extinta por inutilidade superveniente da lide e/ou por incompetência absoluta, também quanto ao pedido formulado pela Recorrida na alínea a) do petitório.

P. Ainda que assim não se entendesse, a solução que se alcançaria em virtude da aplicação das normas de direito interno português relativas aos efeitos do processo de insolvência sempre impunham que quer a exoneração de uma dívida quer o reconhecimento de um crédito sobre a massa devedora da insolvente fossem necessariamente colocados à apreciação do Tribunal Luxemburguês onde corre a insolvência da Recorrente, conforme resulta da articulação do disposto no artigo 18.º do Regulamento 2015/848 com o disposto nos artigos 285.º e 85.º (e, por maioria de razão, no artigo 89.º), todos do CIRE.

Q. O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2014, trata, s.m.o., a mesma questão de direito – que se discute nos presentes autos, i.e., saber se, transitada em julgado a declaração de insolvência de Recorrente, se torna inútil a ação posteriormente intentada pela Recorrida – no domínio da mesma legislação, i.e., o n.º 1 do artigo 85.º e o n.º 5 do artigo 128.º, ambos do CIRE (uma vez que, como referido, a pretensão da Autora deduzida na presente ação tem efeito equivalente ao reconhecimento de um crédito sobre a massa).

R. Nos termos do referido Acórdão, o Supremo Tribunal de Justiça uniformizou jurisprudência nos seguintes termos: Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.”.

S. Os fundamentos que estão na génese deste entendimento pautam-se no princípio par conditio creditorum e, bem assim, no facto que a sentença que viesse a ser proferida - após o trânsito em julgado da sentença que declara a insolvência - apenas produziria efeitos inter partes, não dispensando o exercício do respetivo direito no processo de insolvência, não subsistindo, por isso, qualquer utilidade na prossecução da lide.

T. Considerando o impacto patrimonial significativo que a pretensão da Recorrida poderia implicar na massa insolvente da Recorrente (com a exoneração da Recorrida relativamente a um crédito detido sobre a massa insolvente e com a extinção de uma garantia real que garante um crédito da massa insolvente da Recorrente), tal pretensão é equiparada ao “reconhecimento do crédito peticionado” (a que se alude supra em S.), sobre pena de, a assim não se considerar, se incorrer, s.m.o. numa violação do princípio par conditio creditorum e em fraude à lei.

U. Estando a pretensão da Recorrida sujeita a apreciação no âmbito do processo de insolvência da Recorrente, afigura-se patente que a presente ação terá perdido toda e qualquer utilidade com o trânsito em julgado da sentença que declarou a insolvência da Recorrente, pelo que, também por este motivo, a aplicação do direito, pelo Tribunal a quo, no caso concreto se mostra, salvo o devido respeito, incorreta.

V. O Acórdão recorrido contraria ainda Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto no âmbito do processo n.º 2153/08.0TVLSB.L1, nos termos do qual, em situação muito idêntica à dos presentes autos, se tratou a mesma questão de direito, no domínio da mesma legislação.

W. As diferenças do Acórdão recorrido para o Acórdão proferido no âmbito do referido processo prendem-se, exclusivamente, com o seguinte:

i. no caso dos autos, a ação ter por objeto a resolução de um contrato de mútuo garantido por hipoteca, ao passo que, na jurisprudência citada, a ação tinha por objeto o cumprimento de obrigação pecuniária;

ii. no caso dos autos, à data em que foi proposta a ação, a sentença proferida pelo Tribunal do Luxemburgo que declarou a Recorrente insolvente já havia transitado em julgado, ao passo que, na situação subjacente ao referido Acórdão, a insolvência foi declarada pelo Tribunal do Luxemburgo em momento posterior à propositura da ação.

X. Considerando, por um lado, que ambas as situações se situam no puro domínio da responsabilidade contratual e as consequências que delas resulta em termos de impacto patrimonial que se poderia repercutir sobre a massa insolvente são também muito similares e, por outro lado, que os fundamentos que numa situação determinaram a extinção da instancia por inutilidade superveniente da lide se aplicam, por maioria de razão, ao caso dos autos, e ainda que tal entendimento jurisprudencial é aplicável a ações declarativas pendentes em Portugal, independentemente da insolvência ser decretada por tribunal português ou de algum estado-membro da união europeia, é de concluir que o meio adequado para tutela dos interesses da Recorrida seria a apresentação da sua pretensão no processo de insolvência da Recorrente.

Y. Ao decidir em termos diversos, o Tribunal a quo procedeu, salvo o devido respeito, à errada aplicação da lei substantiva, contrariando jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça e jurisprudência do Tribunal da Relação do Porto (confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça) sobre a mesma questão e no domínio da mesma legislação, tratando de forma desigual situações materialmente idênticas, o que deverá determinar a revogação do Acórdão recorrido e a sua substituição por outro que determine a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide e/ou a incompetência absoluta dos tribunais portugueses para apreciar o pedido formulado pela Recorrida.

Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, deve o Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que julgue a instância extinta, por inutilidade superveniente da lide e/ou incompetência absoluta dos tribunais portugueses para apreciar a pretensão formulada pela Recorrida na alínea a) do petitório, nos termos do disposto na alínea e) do artigo 277.º do CPC.

Não foram apresentadas contra-alegações.


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I.2 – Questão prévia - admissibilidade do recurso

O recurso de revista é admissível ao abrigo do disposto no art.º 671.º, n.º1 do Código de Processo Civil.

Estando verificados os requisitos gerais de admissibilidade da revista por a causa ter valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada ser desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, em conformidade com o art.º 629.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, é objecto do presente recurso um acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que põe termo ao processo.


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I.3 – O objecto do recurso

Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar a seguinte questão:

1. Consequência da declaração da insolvência da ré, quanto ao pedido de resolução do contrato de mútuo com hipoteca formulado sob a alínea a) da p.i..


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I.4 - Os factos

As instâncias suportaram as suas decisões na prova documental constante dos autos:

1. Informação junta aos autos a 22.05.2023 (com cópia da decisão proferida e respectiva tradução), indicativa de a ré ter sido declarada insolvente por sentença proferida em Tribunal do Luxemburgo a 06 de Março de 2023, no processo n.º TAL2023-...24, transitada em julgado.

2. A ré mostra-se representada nestes autos por AA e BB, na sua qualidade de Administradores Judiciais designados pelo Tribunal da Comarca do Luxemburgo (Juiz...), no proc. n.º TAL2023-...24.


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II – Fundamentação

1. Consequência da declaração da insolvência da ré, quanto ao pedido de resolução do contrato de mútuo com hipoteca formulado sob a alínea a) da p.i..

A autora, na sua petição inicial, alegou que no dia 27.01.2022, celebrou com a ré por escritura pública, um contrato de mútuo com hipoteca, onde declararam que:

« a A., na qualidade de Mutuária, e a R., na qualidade de Mutuante, celebram “entre ambas um contrato de mútuo no montante inicial de capital de dezassete milhões de euros, com vencimento em vinte e quatro de Janeiro de dois mil e vinte e quatro, quantia essa que será entregue pela mutuante à mutuária até trinta de Março de dois mil e vinte e dois, mediante transferência bancária ordenada a partir da conta com o número internacional de identificação de conta bancária LU................39, titulada pela mutuante junto do Banque J. Safra Sarasin (Luxembourg) S.A., para a conta com o número internacional de identificação de conta bancária PT.....................05, titulada pela mutuária junto do Banco Comercial Português, S.A.

(…)

Para garantir o pontual e integral pagamento da quantia mutuada, respetivos juros remuneratórios, cláusula penal e despesas, a A. constituiu a favor da R. “hipoteca voluntária sobre os seguintes prédios, (…)

“(…) em cumprimento do estipulado naquela escritura, as hipotecas foram registadas pela A. a favor de R., mas, ao contrário do disposto no contrato de mútuo com hipoteca, a R. apenas entregou à A. parte do valor do mútuo acordado, nomeadamente, no montante global de €6.893.000,00 (seis milhões oitocentos e noventa e três mil euros).

Formulou o pedido:

a. Ser declarado como resolvido o contrato de mútuo com hipoteca celebrado entre A. e R. em 9.03.2022, com o consequente cancelamento dos registos de hipoteca que se encontram referidos no artº 23º supra desta p.i., mediante a correspondente restituição do valor mutuado no montante de € 6.893.000,00.

O Tribunal de 1.ª instância, considerando a declaração de insolvência da ré, determina a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, dado que a autora terá que no processo de insolvência reclamar o seu crédito.

Em recurso de apelação a autora defende a competência exclusiva dos tribunais portugueses para conhecerem do pedido formulado sob a alínea a) e supra transcrito, tendo o acórdão recorrido considerado que a acção deveria prosseguir para conhecimento do pedido formulado na alínea a) da petição inicial.

Estamos, assim perante um pedido de declaração de resolução de um contrato de mútuo, com a devolução do capital mutuado à ré insolvente, e a consequente extinção dos direitos reais de garantia que oneram bens da autora, e, foram dados como garantia do cumprimento do contrato de mútuo que se pretende resolver com fundamento em incumprimento por parte da ré insolvente. Em termos abstractos, desta acção pode resultar uma diminuição patrimonial para a massa insolvente da ré na medida em que poderá deixar de receber juros, nomeadamente remuneratórios, e perderá os direitos reais de garantia – hipotecas – que incidem sobre os 3 imóveis da autora o que pode ter/ou não, um valor inferior ao montante mutuado a devolver.

Estando em causa um processo de falência instaurado e decidido no Luxemburgo, a lei que define os efeitos da sua instauração sobre a acção declarativa objecto de recurso em que o insolvente é parte, é a lei luxemburguesa, e não a lei portuguesa, como entenderam as instâncias, tendo em conta o disposto no Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Maio de 2015, relativo aos processos de insolvência, aplicável genericamente a partir de 2017, nos termos seu art.º 92.º. Neste regulamento se define, como regra geral – art.º 7.º -

«1. Salvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável ao processo de insolvência e aos seus efeitos é a lei do Estado-Membro em cujo território é aberto o processo («Estado de abertura do processo»).»

O mesmo artigo concretiza que:

«2. A lei do Estado de abertura do processo determina as condições de abertura, tramitação e encerramento do processo de insolvência. A lei do Estado de abertura do processo determina, nomeadamente:

(…)

f) Os efeitos do processo de insolvência nas ações instauradas por credores singulares, com excepção das acções pendentes».

Esta acção, instaurada em Portugal por um credor individual depois de estar instaurado o processo de insolvência da ré no Luxemburgo, e declarada a sua insolvência, tem enquadramento no disposto no art.º 7.ª, n.º 2, f), não sendo possível considerar a presente acção como uma acção pendente para este efeito, à luz do disposto no art.º 18.º deste Regulamento. No sentido desta interpretação indicam-se os acórdãos do TJUE de 09-11-2016 (ENEFI, n.º 32), e de 06-04-2018 (Tarragó da Silveira, n.º 26), consultáveis em https://curia.europa.eu.

A legislação respeitante ao processo de falência no Luxemburgo consta do Code de Commerce publicado no Journal officiel du Grand-Duché de Luxembourg, consultável, em

https://legilux.public.lu/eli/etat/leg/code/commerce/20230201#book_3.

Dessa legislação decorre que:

– art.º 444.º-

«Le failli, à compter du jugement déclaratif de la faillite, est dessaisi de plein droit de l'administration de tous ses biens, même de ceux qui peuvent lui échoir tant qu'il est en état de faillite. Tous paiements, opérations et actes faits par le failli, et tous paiements faits au failli depuis ce jugement sont nuls de droit”, isto é, numa tradução livre para português: o falido, a partir da data da sentença declaratória de falência fica inibido, de pleno direito, de administrar todos os seus bens, mesmo os que lhe são devidos enquanto se encontrar em situação de falência. Todos os pagamentos, operações e actos realizados pelo falido, e todos os pagamentos feitos ao falido após a sentença são nulos.

– art.º 452.º -

A partir du même jugement, (jugement déclaratif de la faillite) toute action mobilière ou immobilière, toute voie d'exécution sur les meubles ou sur les immeubles ne pourra être suivie, intentée ou exercée que contre les curateurs de la faillite”, isto é, numa tradução livre para português: a partir da declaração de insolvência, qualquer acção móvel ou imobiliária, ou acção executiva sobre bens móveis ou imóveis só poderá prosseguir, ser instaurada ou exercida contra os administradores da falência

- art.º 496.º- “Les créanciers du failli sont tenus de déposer au greffe du tribunal d’arrondissement siégeant en matière commerciale la déclaration de leurs créances avec leurs titres, dans le délai fixé au jugement déclaratif de la faillite.”, isto é, numa tradução livre para português: Os credores do falido são obrigados a apresentar na secretaria do tribunal de comarca que trata de matéria comercial a declaração das suas dívidas com os seus títulos, no prazo fixado na declaração de falência.

- art.º 497-. “S'il existe des créanciers, résidant ou domiciliés hors du Grand-Duché, à l'égard desquels le délai fixé par le jugement déclaratif de la faillite serait trop court, le juge-commissaire le prolongera à leur égard selon les circonstances; il sera fait mention de cette prolongation dans les circulaires adressées à ces créanciers, conformément à l'article 496”, isto é, numa tradução livre para português: Se existirem credores, residentes ou domiciliados fora do Grão-Ducado, para os quais o prazo fixado pela sentença de falência seja demasiado curto, o juiz síndico prorrogá-lo-á em função das circunstâncias; será feita menção a esta prorrogação nas circulares dirigidas a estes credores, nos termos do artigo 496.º.

Assim verificamos que, numa regulamentação muito próxima do direito insolvencial português, a falência no direito Luxemburguês apresenta-se como um processo de execução, tendencialmente universal dos bens presentes e futuros do falido, integrados numa massa falida, administrada por administradores de falência, acompanhada da inibição do falido de praticar actos que possam repercutir-se na massa falida, e, passando a sua representação judiciária a competir igualmente àqueles administradores. Os credores do falido para obterem o pagamento dos seus créditos terão de apresentar uma reclamação de créditos junto do processo de falência.

O pedido formulado sob a alínea a) da petição inicial é um pedido declarativo formulado numa acção instaurada depois da declaração de falência da ré, onde a ré se mostra representada pelos administradores da falência, nomeados pelo Tribunal da falência Luxemburguês, e, não é uma reclamação de créditos nem pretende substituí-la. Eventualmente terá como finalidade obter um título que vá permitir a formulação de uma reclamação de crédito na falência, ou, pelo menos provar a existência de tal crédito.

Para obtenção de pagamento pela massa falida os credores terão de reclamar os seus créditos nos termos constantes do procedimento constante dos artigos 498 a 505, daquele diploma. Porém, nada se mostra regulado quando à possibilidade conhecimento judicial do crédito que terá de ser reclamado no processo de faillite.

O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2014, de 25 de Fevereiro que uniformizou Jurisprudência, fixando o seguinte entendimento:

«Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.», não tem aplicação à presente situação por se reportar a uma situação inteira e exclusivamente regulada pelo direito português, sendo diversa a situação destes autos, como passará a demonstrar-se.

Invocou a autora no recurso de apelação que os tribunais portugueses têm competência internacional exclusiva para conhecimento do pedido formulado na alínea a), o que foi rejeitado pelo Tribunal recorrido. Nas alegações de revista, invoca a recorrente, ré insolvente, que a competência para decidir a presente causa é exclusiva dos tribunais do Luxemburgo, suportada no regime previsto nos arts. 85.º/1 e 89.º/2 do CIRE e 62.º do CPC.

O pedido em análise de resolução de um contrato de mútuo, em princípio poderia ser conhecido pelo Tribunal do Luxemburgo, tendo em conta a sede do réu, porém o pedido de cancelamento das hipotecas constituídas sobre imóveis pertencentes à Autora, com sede em Portugal, país onde se localizam esses imóveis, só pode ser conhecido pelos Tribunais Portugueses, por força da competência exclusiva que é atribuída pelo art.º 24.º, n.º 1 do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de Dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, em matéria de direitos reais aos tribunais do Estado-Membro onde se situa o imóvel.

Ainda que a jurisprudência do TJUE assente a distinção entre um direito real e um direito pessoal no facto de o primeiro, incidindo sobre um bem corpóreo, produzir os seus efeitos “erga omnes”, e o segundo só poder ser invocado contra o devedor (acórdão de 16-11-2016, Schmidt , n.º 31 e jurisprudência aí referida - Processo n.º C‑417/15, disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/ALL/?uri=CELEX%3A62015CJ0417), no que respeita ao pedido de cancelamento da inscrição de uma hipoteca no registo predial, o TJUE considerou que “a hipoteca, depois de devidamente constituída segundo as regras de forma e de fundo impostas pela regulamentação nacional na matéria, é um direito real que produz efeitos erga omnes”. Concluindo, que tal pedido “que visa a salvaguarda das prerrogativas relativas a um direito real, está abrangido pela competência exclusiva dos tribunais do Estado‑Membro onde se situa o imóvel, nos termos do artigo 24.º, ponto 1, primeiro parágrafo, do Regulamento n.º 1215/2012 (Acórdão de 16 de Novembro de 2016, Schmidt, C‑417/15, EU:C:2016:881, n.º 41).”

Conferindo o referido regulamento aos tribunais portugueses competência exclusiva para conhecer do pedido de cancelamento do registo das hipotecas constituídas sobre os imóveis pertencentes à Autora, o art.º 8.º n. 4 do mesmo Regulamento permite que a ré, pessoa colectiva com sede no Luxemburgo seja demandada, em matéria contratual, no tribunal do Estado-Membro em cujo território está situado o imóvel se a acção puder ser apensada a uma acção em matéria de direitos reais sobre imóveis dirigida contra o mesmo requerido, sendo certo que a cumulação do pedido de resolução do contrato de mútuo e o pedido de cancelamento das hipotecas são legalmente cumuláveis na mesma acção em Portugal.

Tendo em conta que, para conhecer do pedido de cancelamento das hipotecas têm competência exclusiva os tribunais portugueses, o que impede que os tribunais do Luxemburgo dele possam conhecer, devendo mesmo, caso a acção tivesse sido proposta naquele estado-Membro declarar-se, oficiosamente incompetentes, por força do art.º 27.º deste Regulamento, importa que seja conhecido o pedido formulado sob a alínea a) da petição inicial e, eventualmente declarar o crédito que a autora possa ter sobre a ré com vista à sua reclamação no processo de falência da ré.

Improcede, pois a revista, devendo o processo prosseguir os seus termos, como indicado pelo tribunal recorrido, embora com suporte em diferente fundamentação jurídica.


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III – Deliberação

Pelo exposto, acorda-se em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.


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Lisboa, 31 de Outubro de 2024

Ana Paula Lobo (relatora)

Isabel Salgado

Paula Leal Carvalho