Sumário
I – Sem arredar, por princípio e em termos absolutos, a possibilidade de a providência de habeas corpus ser equacionada no âmbito da aplicação de medidas de proteção e promoção, a sua aplicação deve limitar-se a situações limite, equiparáveis às de privação física da liberdade, designadamente em casos de manifesta ilegitimidade, por desvio grosseiro dos seus fundamentos e finalidades ou por manutenção das medidas, em particular da de acolhimento residencial, à revelia ou contra decisão legítima das entidades competentes para o seu decretamento e/ou confirmação.
II - Não estando inequivocamente demonstrada nos autos nem tendo sido reconhecida pelas instâncias a superação do perigo subjacente e legitimador da intervenção estadual, através do tribunal, não pode o STJ, no âmbito da providência de habeas corpus, substituir-se às mesmas no sentido de avaliar e decidir essa questão de natureza substantiva, nem o mérito do juízo que sobre ela o tribunal vem fazendo, ainda que implicitamente, tão pouco sobre os fundamentos da manutenção da medida aplicada ou da verificação dos pressupostos para a sua substituição por outra que a eventual atenuação daquele perigo torne mais adequada à situação concreta sub judice, juízos que extravasam o âmbito da providência e os poderes do STJ na respetiva apreciação, que têm de conter-se em factos certos e concludentes resultantes do processo sobre a inexistência de motivo que permita a aplicação da medida de promoção e proteção em apreço.
III – Não sendo consensual, antes controversa, a natureza perentória ou meramente indicativa dos prazos de duração, revisão e prorrogação das medidas de proteção e promoção, não cabe também ao STJ, no âmbito da providência de habeas corpus, dirimir essa controvérsia e afirmar a ilegalidade da manutenção da medida, por não caber no seu âmbito, mas no dos meios comuns de reação às decisões judicias.
IV - No caso aqui em apreço em que foi decretada e se mantém a medida de acolhimento residencial, atenta a tenra idade das crianças, sem prejuízo de algumas inevitáveis restrições à liberdade, inerente a essa faixa etária e aos direitos de bem-estar, físico e psicológico, que implica a organização dos tempos de descanso e de repouso, de cumprimento das obrigações escolares, de convívio familiar e não separação de irmãos, da prestação de cuidados de higiene e de assistência médica e medicamentosa, por cuja adequada satisfação são responsáveis as instituições e os respetivos profissionais, cabendo-lhes providenciar nesse sentido com regras e métodos previamente definidos, embora flexíveis e sob a vigilância do tribunal, quantas vezes inexistentes no meio natural de vida e que, como aqui parece ter-se verificado, consubstancia o perigo legitimador da intervenção protetora, é evidente que as crianças não se encontram condicionadas na sua liberdade em maior grau do que aquele a que estariam sujeitas naquele meio natural, caso o mesmo estivesse organizado e funcionasse segundo os padrões normais de criação e educação de crianças, pese embora a separação familiar, só por si suficientemente gravosa para justificar que a sua situação seja definida com a máxima celeridade.
V - Não podendo, assim, sustentar-se qualquer equivalência entre a situação em apreço e aquela das referidas situações de privação coerciva da liberdade física, também por esta via se perfila inevitável afastar a ideia de prisão ilegal, muito menos a verificação de qualquer abuso de poder, por prisão ilegal, conforme requerido pela al. c) do n.º 2 do artigo 222º do CPP, mesmo que a questão da natureza dos prazos de duração, revisão e eventual prorrogação das medidas fosse indiscutível, que, como vimos, não o é, no sentido de ser perentória.
VI - Inevitável se torna, assim, concluir pela improcedência dos fundamentos previstos nas als. b) e c) do n.º 2 do artigo 222º do CPP em que a requerente estribou a requerida providência de habeas corpus e pelo seu indeferimento.
Decisão Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I. Relatório
I.1. AA, solteira, nascida a ... de ... de 1989, mãe dos menores BB, nascida a ........2017, CC, nascido a ........2019 e DD, nascida a ........2021, com os demais sinais dos autos, através da sua mandatária, no âmbito do processo de promoção e proteção acima referenciado pendente no juízo de família e menores de ... – J 5, do Tribunal Judicial da comarca de ..., no qual foi decretada a medida de acolhimento residencial dos seus identificados filhos, nos termos dos artigos 31º da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) e 222.º n.ºs 1 e 2, als. b) e c), do Código de Processo Penal (doravante CPP), conjugados com o artigo 92º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (doravante LPCJP), aprovada pela Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, apresentou naquele Juízo, a seguinte petição de habeas corpus:
«No Juízo de Família e Menores de ... Comarca de ..., corre termos o Processo: 2407/22.3T8LSB de promoção e proteção, instaurado em 28 de Janeiro de 2022 a favor das crianças, BB, nascida a ........2017, CC, nascido a ........2019 filhos de AA e de EE e DD, filha de AA, todos referenciados nos autos.
Por despacho proferido em 28.01.2022 foi determinado, de harmonia com os artigos 35.º n.º 1, al. f) e 37.º n.º 1 da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, aplicar aos menores BB, CC e DD a título cautelar, a medida de acolhimento residencial, pelo prazo de 3 (três) meses, para afastar a situação de perigo em que se encontrava, tendo sido as crianças conduzidas a CA de ... /SCML.
Já em 25/05/2022, foi homologado por sentença o acordo dos progenitores na aplicação aos menores, de medida de acolhimento residencial por um prazo de 6 (seis) meses, tendo a progenitora acordado no mesmo por lhe ter sido dito que seria para criar e manter melhores condições habitacionais próprias para os menores.
Em 20/07/2023, foi apresentado pela progenitora requerimento com referência citius 36597610 para entrega imediata dos menores, na medida em que o prazo da medida aplicada em benefício dos menores tinha cessado e onde não foi proferido despacho;
Em 21/12/2023, foi realizado Debate Judicial tendo sido proferido o seguinte despacho: …” --- Defere-se a realização da perícia/exame médico-legal nos exatos termos requeridos e deferidos. --- Oficie com caráter de muita urgência ao INML para a realização de perícia aos progenitores e às Crianças, perícias todas consentidas pelos progenitores”. tendo o douto Tribunal o relatório das mesmas em 03/06/2024
Importa referir, que até à realização do debate judicial não existiram junto aos autos, relatórios periciais, apenas um relatório da SIAT datado de 13/04/2022. ,
Assim, o decurso do prazo de 6 (seis) meses da execução da medida aplicada às crianças continuou a correr, mesmo o prazo tendo terminado em 25/11/2022 conforme o disposto no n.º 1, al. a), do art.º 63.º, da LPCJP, sob a epígrafe “Cessação das medidas”, as medidas cessam quando decorra respetivo prazo de duração ou eventual prorrogação.
DITO ISTO,
Nos termos do artigo 62º, nº 1, da LPCJP, “a medida aplicada é obrigatoriamente revista findo o prazo fixado no acordo ou na decisão judicial, e, em qualquer caso, decorridos períodos nunca superiores a seis meses” (sublinhado nosso).
Decorre também do art.25º da Convenção sobre os Direitos da Criança que a criança que foi objeto de uma medida de acolhimento em instituição, para fins de assistência, proteção ou tratamento físico ou mental, tem direito à revisão periódica do tratamento a que foi submetida e de quaisquer outras circunstâncias ligadas à sua colocação.
Volvidos quase 2 (dois) anos, da aplicação da medida de acolhimento residencial a favor dos menores, não obstante a natureza dos autos e o caráter “URGENTÍSSIMO” dos mesmos.
Tudo sob a censurável inércia da titular do processo que, não obstante o longo tempo já decorrido, não só não ouviu os menores, como só passados 2 (dois) anos é que foi ordenado a realização das perícias há muito aguardadas, tudo sob a custódia e o sofrimento dos menores e junção aos autos do único relatório da SIAT datado de 14/04/2022.
Enquanto isso, os menores, permanecem acolhidos, sem poderem sair com a mãe da CA, sem nunca se ter realizado a audição das crianças .
Mas, pior, encontram-se neste momento, decorrido mais de um ano após o dia 25/05/2022 (data em que foi homologado por sentença o acordo dos progenitores na aplicação aos filhos de medida de acolhimento residencial pelo prazo de seis meses), sem revisão periódica de seis meses, nem no final do prazo fixado para a medida de acolhimento, o que é manifestamente ilegal, atenta a sua obrigatoriedade, nos termos do artigo 62º, nº 1, da LPCJP e art. 25º da Convenção sobre os Direitos da Criança.
Não obstante a medida de promoção e proteção prevista no art. 35.º, n.º 1, al. f), da LPCJP, ter por finalidade o afastamento do perigo em que a criança se encontra e proporcionar-lhe as condições favoráveis ao seu bem-estar e desenvolvimento integral, ela não deixa de traduzir uma restrição de liberdade e, nessa medida, mesmo que não caiba nos conceitos de “detenção” e de “prisão” a que aludem os arts. 220.º e 222.º do CPP, configura uma privação da liberdade merecedora da proteção legal concedida pela providência extraordinária de “habeas corpus”, sob pena das ilegais situações de excesso da sua duração, por decurso do seu prazo máximo de duração, no caso fixado em um ano, ou por omissão de revisão (findos os 6 meses), ficarem desigualmente protegidas em relação aos casos de detenção ou prisão ilegais.
Embora o CPP, nos seus arts. 220.º e 222.º, n.º 1, preveja apenas a medida de habeas corpus para a detenção e prisão ilegais, atenta a filosofia subjacente a estas normas, conforme jurisprudência dominante deste STJ, tem-se por adequado aplicar, ao abrigo do disposto no art. 4.º do CPP e por analogia, o regime do “habeas corpus” previsto no citado art. 222.º ao caso dos autos, ou seja, à medida de provisória de acolhimento residencial do menor, sob pena de situações análogas gozarem de tratamento injustificadamente dissemelhante, com a consequente violação do princípio da igualdade consagrado no art. 13.º da CRP – cfr. STJ 18-01-2017, processo 3/17.6YFLSB, STJ 15-02-2018, processo 1980/17.2T8VRL-A.S1, STJ 16-11-2022, processo 2638/22.6T8LRA-A.S1, STJ 23-07-2021, processo 2943/20.6T8CBR-A.S1, STJ 1.09.2022, processo n.º 14079/21.8T8SNT-D.S1todos in www.dgsi.pt.
Vale isto dizer que a medida aplicada aos menores BB, CC e DD, além da total falta de proporcionalidade, necessidade e adequação para mitigar a fonte do perigo identificado (criar e manter melhores condições habitacionais próprias para os menores), não tem hoje qualquer legitimidade formal, perante a ausência de revisão imperativamente fixada por lei e o decurso do prazo máximo da sua duração (seis meses) fixado por sentença homologatória de 25/05/2022, tendo caducado.
Decorrido todo este tempo de institucionalização, compete ao tribunal a imperativa, cuidada e urgente verificação sobre o modo como a medida está a ser executada.
Orientado pelo concreto superior interesse dos menores há muito o tribunal se deveria ter questionado e avaliado, em vez de seguir de forma acrítica — como tem feito - as informações da progenitora junto aos atos, nomeadamente as alterações efetuadas na residência, e do relatório de perícias forenses realizados aos progenitores e as crianças já junto aos autos, se o concreto perigo decorrente da reintegração dos menores no seu agregado familiar, no caso o da mãe, único que apela e anseia permanentemente pelo seu regresso, a persistir esse receio, não é bem menos nefasto para o crescimento e desenvolvimento dos menores do que o afastamento da família que lhe continua a ser imposto contra a vontade das crianças, hoje com 6, 5 e 3 anos de idade e da sua mãe.
CA de ... /SCML ,que vêm obstaculizando o ansiado regresso dos menores a sua casa, por ser essa a conhecida vontade dos menores e da sua mãe, o que mais uma vez, à semelhança do natal de 2022, ficou claro no natal de 2023 ao oporem-se de forma lacónica, mais uma vez, ao requerido para passarem o dia de Natal com a família fora da CA, sem que o Tribunal tenha autorizado tal situação, como a recusa em deixarem os menores ao fim de semana passearem com os pais e restantes irmãos.
Situação de acolhimento que a Mma Juiz titular do processo faz perdurar, de forma ilegal sem atender à premência da situação, diferindo para as "calendas gregas", após obter os relatórios periciais,, nos termos do art. l2° da CDC, art. 24° da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais da União Europeia, arts. 3º e 6º da Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos das Crianças, art. l0°, da CEDH, e o Regulamento (CE) N.° 2201/2003 do Conselho, atendendo às motivações 19, 20 e 21, bem como ao disposto no n.° 2 do art.11°, na al. b) do art. 23°, na al. c) do n° 2 do art. 41° e na al. a) do n.° 2 do art. 42.°, e ao art. 84.°, da LPCJP que nos reconduz-nos para os arts. 4.° e 5.° do RGPTC.
O informado aos autos pela assistente social da CA ... / SCML E à revelia de crivo científico, bastando-se com a sua mera opinião, a Dra. FF aponta falta de capacidades parentais nos seguintes termos:
"Dra. FF, AA tem conhecimento teórico acerca da forma adequada de estar com os filhos, mas tende a ser inconsistente na sua disponibilidade para com estes ("O problema da AA é a falta de consistência. Hoje tenho disponibilidade e na semana seguinte já estou menos disponível. Ela tem outra questão: uma intervenção muito longa em meio natural de vida. Usava termos extremamente técnicos e consegue adaptar com alguma facilidade e não consegue manter e continua sem reconhecer que existiam problemas." "Acho que são um bocadinho passivos na sua prática parental. Não são punitivos. Mais na teoria da manipulação. Se te portares bem, a mãe traz-te gomas. Eles levam, sempre gelatina, gomes, batatas, McDonald's."
"Achar" é uma conjugação verbal que não se compadece nem destrona um relatório pericial que claramente a desmente categoricamente." "Em sessão de avaliação, a progenitora adotou uma atitude responsiva e de sensibilidade em relação às necessidades dos filhos, respondendo às solicitações dos três menores e utilizou práticas educativas positivas, como o elogio, o suporte aos filhos e a explicação da forma como deveriam realizar as tarefas ("Este é o A. O que falta filho?", ((Isso é uma cama, DD.").
As afirmações são simples, baseadas nas suas próprias convicções e jamais podem ser realizadas por assistentes sociais e/o sociólogos) e mesmo o douto Tribunal muniu do relatório de perícia forense os menores continuem institucionalizados.
Não existem úvidas da capacidade parental da mãe para o exercício das responsabilidades parentais como, e bem, o Tribunal solicitou no âmbito de perícias medico- legais, em Instituição Publica dotada de competência e legitimidade para o efeito.
Naturalmente o receio de perder os seus filhos , deparada com a possibilidade de encaminhamento para a adoção, informação que lhe é constantemente transmitida pelas assistentes sociais da CA a progenitora luta, isso sim, diariamente, pelo bem-estar dos seus filhos, o que passa pela imediata cessação da medida ilegal de acolhimento.
A retirada dos menores do ambiente familiar é neste momento uma medida ilegal, desajustada e desproporcional, merecendo como noutros casos a oportuna condenação do Estado Português pelo TEDH, por violação do direito ao respeito pela vida familiar (artigo 8º da CEDH), como sucedeu, nos seguintes:
- Caso Pontes c. Portugal, queixa n° 19554/09, acórdão de 10 de abril de 2012;
- Caso Soares de Melo c. Portugal, queixa n° 72850/14, acórdão de 16 de fevereiro de 2016.
- Caso Manteigas c. Portugal, queixa n° 22179/15, acórdão de 22 de fevereiro de 2022.
- Caso Neves Caratão Pinto c. Portugal, queixa n° 28443/19, acórdão de 13 de julho de 2021
No contexto do art. 8.° da CEDH, que proíbe as ingerências arbitrárias na vida familiar, o TEDH já se pronunciou várias vezes sobre a aplicação ou manutenção arbitrária de medidas de proteção das crianças que envolveram a separação da família (cfr. Jorge Duarte Pinheiro in Direito ao respeito pela vida familiar", in Comentário da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, coord. Paulo Pinto de Albuquerque, 2019, vol. II, pg.153.
Decorre da jurisprudência assinalada um escrutínio mais apertado no que toca ao prolongamento ou renovação da medida de promoção e proteção.
Esta maior exigência é justificada com o entendimento de que a extensão no tempo de medidas de separação entre pais e filhos pode levar a um corte profundo na vida familiar.
Assim, a margem de apreciação dos Estados diminui à medida que estas medidas se prolongam no tempo, devendo os mesmos apoiar-se em razões mais fortes para justificar tal prolongamento.
Conforme escreve Ana Rita Gil, in "A garantia de Habeas Corpus no contexto de aplicação de medida de promoção...",]ULGAROnline, outubro de 2017, pg.27-8: "Se considerarem que a duração da medida de acolhimento já se prolongou para além do prazo, ou que deixou de ser necessária, os titulares dos direitos fundamentais à unidade familiar - criança, progenitores, ou outros membros da família — deverão pedir a cessação ou revisão da medida no tribunal competente, de forma a que este possa analisar holisticamente a situação em causa, e ponderar a eventual aplicação de medidas subsequentes
Tal direito deriva aliás do artigo 25.° da CDC, que será a norma relevante no presente contexto. Importa, assim, terminar por sublinhar a importância do respeito pelos prazos das medidas, de forma a que a situação futura da criança possa ser ponderada em sede própria e de forma atempada, havendo espaço para se analisar o seu superior interesse".
No caso o prazo legal de revisão da medida e o prazo da sua duração encontra-se largamente ultrapassado.
É urgente devolver aquelas crianças ao seu seio familiar, que tanto a estima e luta diariamente por ela, conforme consta dos autos - veja-se os incessantes pedidos de visita, aniversários, natal, fins de semana, o afeto demonstrado pela mãe.
A medida aplicada é completamente desproporcional e, por isso, manifestamente ilegal.
Alias entendimento plasmado no acórdão do STJ - processo n° 685/15.3T8CBR-L.S1 - 5a Secção Criminal :"E, mesmo tratando-se de medida de promoção e proteção prevista no art.° 35.°, n.° 1, ai. f), da LPCJP, que visa o afastamento do perigo em que a criança se encontra e proporcionar-lhe as condições favoráveis ao seu bem estar e desenvolvimento integral, esta não deixa de se traduzir numa restrição de liberdade e, nessa medida, mesmo que não caiba nos conceitos de "detenção"e de "prisão" a que aludem os art°s. 220.° e 222.°, do CPP, configura uma privação da liberdade merecedora da proteção legal concedida pela providência extraordinária de "habeas corpus" sob pena das ilegais situações de excesso da sua duração e de ficarem desigualmente protegidas em relação aos casos de detenção ou prisão ilegais - Ac. do STJ de 18/01/2017, Proc. n.°3/17.6YFLSB, emwww.dgsi.pt.
Efectivamente, tal pode ocorrer, no caso das medidas cautelares — art. ° 37. °,n.° 3, da LPCJP -por decurso do seu prazo máximo de duração (6 meses) ou por omissão de revisão (findos os 3 meses), ou no caso das medidas aplicadas por acordo ou por decisão judicial - art. °s 61. ° e 62. °,da LPCJP -por decurso do prazo fixado, pois, são obrigatoriamente revistas findo esse prazo, e ,em qualquer caso, decorridos períodos nunca superiores a seis meses, inclusive as medidas de acolhimento residencial e enquanto a criança aí permaneça - conforme o n.° l, do art.°62. ° da LPCJP."
Nestes termos e nos melhores de Direito que Vossa Excelência doutamente suprirá, ao abrigo do art.222 °, n.° 2 alínea b) e c), e art.223°, n°4, al.s b), c) e d), do Código de Processo Penal, e ainda do artigo 31.°, n°s 1, 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa , conjugado com o art.92° da Lei n.° 147/99, de 01 de Setembro, deve:
a) declarar-se ilegal a atual manutenção do acolhimento residencial das crianças BB, CC e DD, situação em que se encontram nesta data;
b) determinar-se a imediata cessação da medida de acolhimento residencial e libertação da criança (art.223°, n° 4, d), do Código Processo Penal);
Subsidiariamente,
c) se mande colocar as crianças BB, CC e DD à ordem deste Supremo Tribunal de Justiça, em local a indicar pelo mesmo, nomeando um juiz para proceder a averiguações, incluída a audição das crianças, no prazo que lhe for fixado, sobre as condições de legalidade da medida de acolhimento residencial e decidir em conformidade (art.223°, n°4, b), do Código Processo Penal);
d) determinar-se que a Mm.a Juíza titular do processo no Juízo de Família e Menores de ... - J5, no mais curto prazo possível, sem exceder 48 horas, ouvida imediatamente as crianças, proceda à revisão da medida de acolhimento residencial que lhe foi aplicada (art.223°, n° 4, c), do Código Processo Penal).
(…)»
I. 2. O Juiz em serviço de turno naquele Juízo 5, por despacho de 29 de agosto de 2024, mandou remeter a petição ao Supremo Tribunal de Justiça (doravante STJ), instruída com certidão de tal despacho e da informação prevista no artigo 223º, n.º 1, do CPP, nele contida, e de certidão de todo o processado, em que se incluem as peças processuais ilustrativas da marcha processual e o atual estado dos autos, designadamente o requerimento inicial do Ministério Público, a decisão que decretou, a título provisório e cautelar, a medida de acolhimento residencial, despacho da sua revisão e manutenção, ata da sessão em que foi obtido o acordo dos pais no sentido da aplicação daquela medida pelo período de seis meses judicialmente homologado, ata do Debate Judicial, relatório produzido pelo STAT, relatório social e relatórios periciais de avaliação psicológica aos pais e às crianças e diversos requerimentos apresentados pela ora peticionante, incluindo aqueles em que pediu a obtenção de relatório social atualizado e aqueloutro em que peticionou a imediata cessação da medida, por decurso do prazo legal e as crianças lhe fossem imediatamente entregues.
A informação prestada é do seguinte teor:
«(…) Requerimento de 22.8.2024:
Considerando a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça quanto à abrangência da providência de Habeas Corpus à medida de acolhimento residencial e em obediência ao ofício do Supremo Tribunal de Justiça de 29.8.2024, desentranhe de imediato o requerimento de 22.8.2024 e autue como apenso de Habeas Corpus, juntando ao mesmo certidão de todo o processado, incluindo do presente despacho.
Em obediência ao disposto no artigo 223°, n.º 1 do Código de Processo Penal, informa-se que:
Aos menores BB, DD e CC, foi aplicada em 28.1.2022, a medida de acolhimento residencial, a título cautelar, por 3 (três meses), tendo as crianças sido conduzidas à Casa de Acolhimento de .../SCML.
A 13.4.2022 foi junto relatório social pelo SIAT.
Posteriormente, por sentença homologatória de acordo de promoção e protecção celebrado em 25.5.2022, foi aplicada a medida de acolhimento residencial aos menores, por 6 (seis) meses, prorrogável por mais seis meses, tendo sido determinada a realização de perícia médica psicológica à Progenitora.
Por requerimento de 20.7.2023 veio a progenitora requerer a entrega dos menores por entender ter cessado o prazo de aplicação da medida.
A 13.9.2023 foi proferido despacho a designar data para realização de debate judicial.
A 21.12.2023 iniciou-se debate judicial, no decurso do qual foi determinada a realização de perícia psicológicas aos progenitores e aos menores e obtenção de informação sobre o estado de processo de investigação da paternidade em curso e relativo à menor IRIS e realização de relatório de avaliação às actuais condições de vida, profissionais e habitacionais da progenitora, determinando-se que o prosseguimento do debate judicial ficaria dependente da obtenção das aludidas diligências.
Em 4.1.2024 foi solicitada a realização do relatório social.
Junto a 3.1.2024 relatório social datado de 23.5.2023, foram, a 4.1.2024, os progenitores notificados, nos termos do artigo 85º da LPCJP, para se pronunciarem sobre a revisão ou cessação da medida de promoção e protecção aplicada.
A 11.1.2024 pronunciou-se a progenitora pela elaboração de relatório actualizado, na medida em que o relatório junto datava de Maio de 2023.
Foram juntos os relatórios das perícias médicas efectuadas aos progenitores e menores a 3.6.2024, dos quais foram os progenitores notificados.
Por despacho de 20.8.2024 foi determinada notificação do NATT-PP dos relatórios/perícias constantes dos autos e dos pedidos formulados pela mãe em requerimentos com as referências ......91 e ......31, com nota de urgência, atentas as datas dos convívios e que se pronunciasse quanto à execução/manutenção/revisão das MPP aplicadas em benefício das crianças.
A 20.8.2024 determinou-se pela insistência, com carácter de muita urgência, junto do NATT-PP, das informações solicitadas.
A 26.8.2024 o NATT-PP solicitou a prorrogação do prazo para se pronunciar sobre a revisão da medida de promoção e protecção.
Os autos encontram-se, assim, em sede de revisão, ainda em fase de avaliação da medida aplicada, não contendo todos os elementos para o efeito.
*
Autuado o apenso, remeta de imediato ao Supremo Tribunal de Justiça.
(…)»
***
Convocada a secção criminal, notificados o Ministério Público e a mandatária da requerente, realizou-se audiência, tudo em conformidade com o disposto nos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 223.º do CPP.
Terminada a audiência, a secção reuniu para deliberar (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP), fazendo-o nos termos que se seguem.
II. Fundamentação
II. 1. Os factos relevantes e necessários para apreciação e decisão da providência sub judice mostram-se enunciados na própria petição e na informação judicial antes transcritas, suportados e em conformidade com o teor da certidão junta.
II. 2. Como a generalidade da doutrina e da jurisprudência vêm repetidamente afirmando, o habeas corpus, segundo o seu atual desenho constitucional e legal estabelecido nos artigos 31º da CRP e 220º a 224º do CPP, consubstancia uma providência fundamentalmente destinada a garantir o direito à liberdade consagrado no artigo 27º da CRP.
Não se confunde com os meios ordinários de reação e de impugnação das decisões judiciais, nomeadamente com o recurso, mas pode com eles coexistir, destinando-se unicamente a resolver e reverter as situações de detenção ou prisão grosseiramente ilegais, ostensivas, evidentes e atuais, ou seja, que traduzam um abuso de poder por detenção ou prisão ilegal.
No que à prisão ilegal concerne, as situações cabíveis na providência são as que se encontram taxativamente elencadas nas três alíneas do n.º 2 do artigo 222º do CPP, cuja apreciação e conhecimento é da competência das secções criminais do STJ, mediante requerimento da própria pessoa privada da liberdade ou de qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, em procedimento caraterizado pela simplicidade e celeridade do qual estão excluídas as questões de natureza processual e material que extravasem daquele circunscrito objeto.
Tudo como melhor pode ver-se, v. g., nos acórdãos do STJ, de 20.10.2022, proferido no processo n.º 801/10.1JDLSB-G.S1, relatado pelo Conselheiro António Gama, e de 22.03.2023, proferido no processo n.º 22/08.3JALRA-I.S1, relatado pela Conselheira Ana Barata Brito1.
Em suma, trata-se de uma providência de natureza excecional e não recursiva, reservada para situações de flagrante, ostensiva e inequívoca ilegalidade da prisão, passíveis de apreciação e decisão céleres - 8 dias, nos termos do artigo 31º, n.º 3, da C.R.P. -, por isso incompatíveis com o escrutínio do mérito da ou das decisões judiciais subjacentes e das questões de facto e jurídicas que não se mostrem incontroversas, é dizer que não estejam estabilizadas e não sejam consensuais, outrossim dos eventuais vícios geradores de irregularidades ou nulidades do processo ou de algum dos seus atos, aspetos, em princípio, reservados para os meios ordinários de impugnação das decisões judiciais, como são os recursos, as reclamações e a simples arguição, como se observou no acórdão do STJ, de 01.02.2007, proferido no processo 353/07, citado por Maia Costa, in ob. e loc. referenciados em rodapé 2 3.
II. 3. Vejamos então se, no caso em apreço, estão verificados os pressupostos necessários à concessão do habeas corpus peticionado pela requerente, mãe das três crianças sujeitas a uma medida de promoção e proteção dos seus direitos, no caso a de acolhimento residencial prevista no artigo 35º, n.º 1, al. f), da LPCJP, que perdura desde Janeiro de 2022, primeiro como medida de emergência adotada pela CPCJ territorialmente competente, e, depois por decisões judiciais do J 5 do Juízo de Família e Menores de ... de, respetivamente, 28 de janeiro e 25 de maio de 2022, como medida cautelar e provisória, revista e prorrogada por mais 3 meses, em 28 de abril de 2022, e na sequência da homologação judicial do acordo alcançado na fase da decisão negociada do processo judicial de promoção e proteção, por 6 meses, prorrogável por igual período, sem que esta última tivesse sido até ao momento objeto de revisão e prorrogação formal e materialmente expressa.
O caso convoca antes de mais a questão de saber se a providência de habeas corpus, com o figurino constitucional e legal antes sucintamente descrito é ou não passível de equiparação às demais situações de privação da liberdade previstas 27º, n.º 3, da CRP, por apelo ao disposto na sua alínea e),, em conjugação com o disposto no artigo 31º da mesmo diploma fundamental, de molde a abranger no seu âmbito objetivo de aplicação as medidas de promoção e proteção estabelecidas no artigo 35º da LPCJP, em particular as de colocação e, dentro destas, a de acolhimento residencial, prevista na al. f) do n.º 1 deste último preceito.
A questão não logrou ainda uma resposta definitiva e muito menos consensual na jurisprudência do STJ.
Em linha com o que constituía orientação dominante do STJ até 2017 no sentido da recusa de aplicação da providência às medidas de promoção e proteção, podem ver-se acórdãos recentes, como os relatados pelos Conselheiros Raúl Borges e Gabriel Catarino, de 12.7.2018 e 4.7.2019, proferidos nos processos n.ºs 50/18.0YFLSB.S1 e 2199/17.8T8PRD-F:S1, respetivamente, ambos disponíveis no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/4.
Diferentemente, ´na sequência do acórdão de 18.7.2017, proferido no processo n.º 3/17.6YFLSB.S1, relatado pelo Conselheira Rosa TChing, veio ganhando preponderância uma corrente jurisprudencial no sentido da admissibilidade de princípio da providência em caso de aplicação de medidas de promoção e proteção, em particular da de acolhimento residencial, que aqui está em causa, numa leitura aplicativa lata do disposto nos artigos 31º e 27º, n.º 3, al. e), da CRP, como a requerente bem exemplifica, equiparando-as às demais situações de privação da liberdade previstas nas diferentes alíneas do segundo dos referidos preceitos em termos de permitir a sua abrangência no âmbito objetivo de aplicação da providência de habeas corpus, verificada que se mostre alguma das situações taxativamente previstas nas alíneas do n.º 2 do artigo 222º do CPP, apesar de nalguns desses arestos se afirmar uma particular exigência quanto à análise da situação factual concreta, de molde a poder equipará-la à privação da liberdade que se entende suposta no artigo 31º da CRP, ou seja, a da privação da liberdade física, “de ir e vir”, de locomoção, por confinamento ou aprisionamento num espaço circunscrito e fechado determinado coativamente por uma autoridade pública,
Orientação que persiste, pese embora, a doutrina logo tenha assumido uma posição crítica discordante da expressa naquele primeiro acórdão, como pode ver-se no comentário de Ana Rita Gil, intitulado “A garantia do Habeas Corpus no contexto de aplicação da medida de promoção e proteção de acolhimento residencial”, publicado na revista Julgar Online, outubro de 2017, que, muito sucintamente, salienta as diferenças substantivas e finalísticas da detenção e prisão relativamente às restrições passíveis de ocorrer por aplicação daquela medida de proteção e promoção – prevenção ou punição pela prática de ilícitos criminais versus proteção de crianças em situação de perigo e promoção dos respetivos direitos, nomeadamente a um são e integral desenvolvimento da personalidade – bem como por evidente diferenciação entre as providência passíveis de aplicação no âmbito tutelar educativo e aquelas aplicáveis no domínio da proteção e promoção, claramente delimitados, embora com pontos de interceção, no seu objeto e finalidades, com a integração do primeiro no sistema de justiça e o segundo no de proteção, diferenciação que o artigo 27º, n.º 3, al. e), cuja redação é anterior àquela reforma, ainda não reflete e cuja redação ampla deve ser lida restritivamente à sua luz, por oposição à anterior organização tutelar de menores, que tratava em globo situações de perigo e de prática por menores de 16 anos de factos qualificados pela penal como crime.
Desta corrente, apesar das referidas nuances quanto ao maior ou menor grau de exigência sobre a situação de facto concreta evidenciada nos autos e a sua possível equiparação à referida privação da liberdade física, ambulatória, coativamente imposta no âmbito da jurisdição criminal, podem ver-se, a título meramente exemplificativo, os acórdãos de 26.3.2024, proferido no processo n.º 30657/23.8T8LSB-A.S1, relatado pela Conselheira Ana Brito, de 24.1.2024, proferido no processo n.º 348/23.6T8OHP-B.S1, relatado pelo Conselheiro Lopes da Mota, e de 29.2.2024, proferido no processo n.º 685/15.3T8CBR-I.S1, relatado pela Conselheira Leonor Furtado.
Apesar de o aqui relator ter votado como adjunto e sem qualquer declaração o acórdão referido em último lugar, após melhor e mais aturado estudo e ponderação, propende-se para uma posição intermédia semelhante à sufragada pelo Conselheiro Lopes da Mota, se bem lemos o acórdão por ele relatado antes referenciado, em sentido próximo ao da corrente contrária e à citada posição doutrinária, sem arredar, por princípio e em termos absolutos a possibilidade de a providência ser equacionada também em casos limite no âmbito da aplicação de medidas de proteção e promoção, designadamente em casos de manifesta ilegitimidade, por desvio grosseiro dos seus fundamentos e finalidades ou por manutenção das medidas, em particular da de acolhimento residencial, à revelia ou contra decisão legítima das entidades competentes para o seu decretamento e/ou confirmação após intervenção de outras autoridades em contexto de emergência.
A esta luz, não restam dúvidas quanto à tempestividade da petição, considerando que as crianças continuam sob a medida de acolhimento residencial adotada no referido acordo de 25.5.2022, judicialmente homologada, à ordem do processo judicial de promoção e proteção e sob acompanhamento permanente do tribunal, nem quanto à legitimidade da peticionante para requerer a providência, pois, além de ser a sua mãe e representante legal, é maior e goza na plenitude dos seus direitos políticos, como resulta do teor literal dos artigos 31º, n.º 2, da CRP e 222º, n.ºs 1 e 2, do CPP,.
*
II. 3. 1. Decorre da petição apresentada que a ilegalidade da medida de acolhimento residencial em que a requerente funda o pedido de concessão da providência abrange as situações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 2 do citado artigo 222º do CPP, excluindo-se, por conseguinte, a da correspondente alínea a) respeitante à incompetência da entidade que a determinou.
Circunstância cuja não verificação no caso em apreço se afigura indiscutível, uma vez que a medida, quer a título cautelar e provisório, quer na sequência do acordo de promoção e proteção, foi decretada e homologada pelo tribunal material e territorialmente competente e pelo juiz titular do processo, tal qual sucedeu com a sua antecedente adoção como medida de emergência pela CPCJ, e vem sendo executada pela instituição de acolhimento em cumprimento daquelas decisões e acompanhada pelo tribunal e respetivos serviços técnicos de apoio, nos termos previstos e consentidos pelos artigos 2º, 3º, 8º, 11º, 15º, 37º, 38º, 56º a 59º e 101º da LPCJP, conjugados com as pertinentes normas da Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26.08.
Assim sendo e considerando a natureza taxativa da previsão legal quanto às situações que admitem o habeas corpus por prisão ilegal ou situação equiparável, importa apreciar o pedido à luz das alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 222º do CPP, cuja redação é a seguinte:
“Artigo 222.º
Habeas corpus em virtude de prisão ilegal
1 – (…)
2 - A petição é formulada (…) ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos (…) e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:
a) (…);
b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou
c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.
(…)”.
II. 3. 2. Apreciemos, pois, os factos acima considerados apurados e estabilizados em resultado dos fundamentos da petição e da informação e certidão com que foi instruído o processo.
A requerente funda a sua pretensão na circunstância de o prazo legal de duração da medida de acolhimento residencial e da respetiva revisão prorrogação se ter esgotado, por terem decorrido os seis meses estabelecidos no acordo de 25 de maio de 2022 e mesmo os seis meses nele previstos para eventual revisão e prorrogação, que nunca tiveram lugar, em termos formais e substanciais, é dizer sem decisão judicial expressa no processo, devendo, por isso, considerar-se cessada ou caducada, em conformidade com o disposto nos artigos 61º a 63º da LPCJP.
Por outro lado, reclama a extinção da medida e a imediata libertação das crianças, que lhe devem ser entregues, por já não se verificar o motivo que a fundamentou, ou seja, a situação de perigo para o bem-estar e desenvolvimento integral das crianças, tal como definido nos artigos 1º e 3º da LPCJP,
Será que lhe assiste razão?
Vejamos.
A requerente não discute a legitimidade da intervenção do tribunal na sequência do procedimento de urgência requerido pelo Ministério Público em virtude da retirada das crianças do meio familiar de origem e seu posterior acolhimento na instituição onde ainda se encontram, nem a existência do aludido perigo nessa ocasião, janeiro de 2022, que o fundamentou e legitimou a decisão judicial cautelar e provisória que, tempestivamente, validou e confirmou a retirada e o acolhimento residencial, assim como a sua posterior revisão e manutenção.
Tão pouco a questionou aquando do acordo celebrado já na fase da decisão negociada do processo judicial de promoção e proteção, oportunamente homologado por decisão judicial da mesma data, 25.05.2022.
Também não o fez em 10 de janeiro de 2023, quando apresentou um requerimento de alteração da medida, propondo a substituição da medida de acolhimento residencial pela de apoio junto dos pais, baseada na circunstância de as suas condições pessoais, familiares e socioeconómicas se terem alterado, passando a viver sozinha e fora do contexto de violência doméstica de que era vítima pelo homem com quem vivia e pai das duas crianças mais velhas, BB e CC, sendo que a DD é sua filha apenas. A esse novo contexto acresceria o facto de ter, entretanto, adquirido melhores competências para o exercício das responsabilidades parentais, podendo, ainda, assim, contar com o auxílio de serviços técnicos especializados.
O Tribunal, porém, não decidiu esse pedido, relegando a sua apreciação e decisão para momento posterior, por falta de outros elementos que confirmassem essa alegação e contrariassem a apreciação da instituição de acolhimento, mantendo-se a situação anterior a aguardar outras informações que tardavam, por incapacidade de resposta célere dos serviços de apoio, a qual só teve desenvolvimento quando foi agendada a realização do debate judicial para 21 de dezembro de 2023, ainda assim, antecedido por um moroso período para alegações, contraditório e outras incidências entorpecedoras do célere andamento do processo, a que a requerente, na verdade, é completamente alheia e, tal como as crianças tem direito, face à indiscutível delicadeza do caso, como são todos aqueles que envolvem crianças, mais ainda quando retiradas do seu núcleo familiar, que só excecionalmente deve acontecer, nos termos dos artigos 67º a 69º da CRP.
Seja como for, continuou sem reagir à não decisão do requerimento antes apresentado no sentido da alteração da medida, arguindo irregularidade ou nulidades processuais que lhe possibilitassem a posterior interposição de recurso, nos termos dos artigos 123º e 124º da LPCJ.
Também não discutiu a manutenção do perigo fundamentador e legitimadora da intervenção estadual/judicial, que, de resto, constitui obrigação da sociedade e do Estado consagrada no referido artigo 69º da CRP, aquando da realização do debate judicial, cuja efetivação viria a frustrar-se em virtude da constatação de que o processo não estava instruído com elementos probatórios indispensáveis a uma boa e definitiva decisão, nomeadamente relatório social e perícias atualizadas de avaliação psicológica dos pais e das crianças, a realizar pelo INML, aliás pedidas pela própria requerente, sendo que, tanto quanto se alcança da representação eletrónica do processo de promoção e proteção, o relatório social atualizado ainda não se mostra junto e os das perícias apenas o foram em junho de 2024, entretanto submetidas ao contraditório.
De novo sem questionar a manutenção do referido perigo, ainda que esbatido, ou reagir ao arrastar do processo, que o facto de ser de jurisdição voluntária não explica, nem justifica, mais ainda porque a lei lhe confere também natureza urgente, em homenagem aos interesses em jogo, nomeadamente o superior interesse das crianças na definição e execução de um projeto de vida que lhes garanta o bem-estar e o desenvolvimento integral.
Tão pouco o fez quando, já no dia 9 de agosto de 2024, requereu a imediata cessação da medida de acolhimento residencial, por cessação/caducidade em virtude do esgotamento do prazo máximo da sua duração, e a entrega das crianças ao seu cuidado.
Do antecedente excurso se pode concluir que a alegada superação do perigo subjacente e legitimador da intervenção estadual, através do tribunal, não está inequivocamente demonstrada nos autos nem foi reconhecida pelas instâncias, pelo que não pode o STJ, no âmbito da providência de habeas corpus, substituir-se às mesmas no sentido de avaliar e decidir essa questão de natureza substantiva, nem o mérito do juízo que sobre ela o tribunal vem fazendo, ainda que implicitamente, tão pouco sobre os fundamentos da manutenção da medida aplicada ou da verificação dos pressupostos para a sua substituição por outra que a eventual atenuação daquele perigo torne mais adequada à situação concreta sub judice, juízos que, como acima afirmado, extravasam o âmbito da providência e os poderes do STJ na respetiva apreciação, que têm de conter-se em factos certos e concludentes resultantes do processo sobre a inexistência de motivo que permita a aplicação da medida de promoção e proteção em apreço.
Improcede, pois, a pretensão da requerente de concessão da providência baseada na alínea b) do n.º 2 do artigo 222º do CPP, é dizer na inexistência de facto que, nos termos da lei aplicável, motive e legitime a medida de acolhimento decretada, pois, como dito, ele existe e tem cobertura legal, impondo mesmo a intervenção estadual/judicial no sentido de o prevenir e superar.
*
Analisemos de seguida a alegada ilegalidade da manutenção da medida por extinção ou caducidade da mesma em virtude do esgotamento do respetivo prazo de duração máxima, a que se reporta a alínea c) do n.º 2 do artigo 222º.
Tanto quanto se alcança da petição, a requerente afirma aquela ilegalidade no pressuposto de que os prazos de duração inicial e máxima das medidas de proteção e promoção estabelecidos na LPCJP, assim como para a sua revisão e eventual prorrogação são perentórios e, como tal, ultrapassados que sejam, implicam a caducidade das medidas aplicadas.
Por outro lado, como equipara a situação atual das crianças à de qualquer cidadão preso, sustenta e peticiona, que a ultrapassagem daqueles prazos tem como consequência necessária a imediata libertação das crianças e a sua entrega à mãe, apesar de, quanto às duas mais velhas não se saber se também o pai pretende a sua guarda, apresentando ainda pedidos subsidiários ou alternativos a essa pretensão.
Ora, quanto ao primeiro pressuposto, sendo certo que há jurisprudência dos Tribunais da Relação a reconhecer aos ditos prazos aquela natureza perentória e resultado pretendido pela requerente, considerando mesmo que só assim se conciliam os interesses em jogo, nomeadamente o superior interesse das crianças na definição célere de um projeto de vida cujo adiamento pode comprometer o efeito pretendido com a intervenção protetora e promotora dos seus direitos ao bem-estar e a um desenvolvimento integral, não o é menos que outras decisões dos tribunais superiores, incluindo o STJ, lhes atribuem natureza meramente indicativa e não perentória, sem embargo de nelas se reconhecerem as inegáveis vantagens de uma rápida definição e estabilização do projeto de vida das crianças sujeitas a medidas de proteção e promoção e o dever de a respetiva revisão e prorrogação ser especialmente fundamentado.
Uma interessante resenha dessa jurisprudência pode ver-se no acórdão deste STJ de 13.8.2024, proferido no processo n.º 268/24.7T8TVD-B.S1, relatado pelo Conselheiro Jorge Gonçalves, ainda inédito, de que aqui se destacam, no sentido da sua natureza meramente indicativa, os deste STJ de 11.7.2019, proferido no processo n.º 3404/18.3T8VFR-I.P1, relatado pela Conselheira Rosa Ribeiro Coelho, e de 15.5.2024, proferido no Processo n.º 268/24.7T8TVD-A.S1, relatado pelo Conselheiro Vasques Osório.
Em ambos, à semelhança do que assinala Paulo Guerra em anotação aos correspondentes preceitos da LPCJP, in Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo – anotada, 6ª edição revista, aumentada e actualizada, Almedina, 2024, se enfatiza a paradoxal contradição em que a intervenção protetora e promotora dos direitos das crianças incorreria se, de modo automático, pelo simples decurso de um prazo, as crianças a proteger fossem largadas ao sabor das circunstâncias, quaisquer que elas fossem, submetendo-os, afinal, a maiores perigos do que aqueles que inicialmente a haviam justificado, em clara violação daquela fundamental obrigação estadual consagrada no artigo 69º da CRP.
Claro que, como salienta Paulo Guerra, cuja posição, não sendo evidente, parece também rumar no mesmo sentido, há outras formas de acautelar aquele perigo e imprimir maior celeridade aos processos de promoção e proteção, cujas medidas serão sempre, por natureza provisórias, qual seja a de evitar fases do processo que se afiguram desnecessárias, como por exemplo, o debate judicial quando na fase da decisão negociada já se obteve um acordo, como aconteceu neste caso, e, em simultâneo com eles e, se necessário, em processos paralelos instaurados ao abrigo do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8.9, forem adotadas as providências aptas à definição, estabilização e consolidação do projeto de vida das crianças, como aqui, por exemplo, poderia já ter acontecido quanto ao exercício das responsabilidades parentais relativamente à BB e ao CC.
Seja como for, do exposto resulta que a natureza dos prazos de duração, revisão e prorrogação das medidas de proteção e promoção não é consensual, antes se mostra controversa, o que, como acima se consignou, inibe o STJ, no âmbito desta providência, de dirimir essa controvérsia a afirmação da ilegalidade da manutenção da medida, por não caber no seu âmbito, mas no dos meios comuns de reação às decisões judicias.
Tudo sem embargo de se reconhecer a ocorrência de algumas entropias na desejável e recomendável fluidez e celeridade da marcha processual, que podiam e deviam evitar-se, outrossim a não apreciação de questões suscitadas pela requerente, cuja omissão pode consubstanciar irregularidades ou mesmo nulidades processuais que, como suprarreferido, também aqui não cabe dilucidar, por não caberem no objeto da providência, mas que o tribunal pode e deve suprir, acelerando os procedimentos e decidindo o que lhe é submetido pela requerente e esta pode e deve suscitar, arguindo-as no processo judicial de proteção e promoção e, se for o caso, recorrer das decisões que sobre elas recairem.
Disso mesmo é também exemplo o facto de esta providência só ter sido instruída e remetida ao STJ depois de recebido deste um ofício nesse sentido, como se reconhece na informação judicial prestada.
Por fim, quanto ao segundo pressuposto em que assenta a pretensão formulada, qual seja a de que as crianças sujeitas à medida de acolhimento residencial estão em situação equiparada à das pessoas detidas ou presas no suprarreferido sentido de limitados na sua liberdade física, ambulatória, e coercivamente confinados ou aprisionados num espaço circunscrito em processos da jurisdição criminal, afigura-se que essa equiparação não se verifica in casu.
Com efeito, considerando a idade das crianças, que aquando do seu acolhimento cautelar e provisório tinham cinco anos, 2 anos e apenas alguns meses de idade, pouco compatíveis com o discernimento e maturidade suposta como condição da sua audição, que, aliás, de acordo com os relatórios de avaliação psicológica entretanto realizados, mesmo agora, só a BB parece reunir, o facto de já virem a ser acompanhadas anteriormente pela CPCJ, que pressupõe o consentimento dos pais e que, após o procedimento de urgência e a decisão judicial cautelar e respetiva revisão, vieram a celebrar o acordo de promoção ainda em execução, assim como as regras legais a que este deve obedecer, os direitos das crianças que nele devem ficar consignados e os deveres e regras a observar pela instituição, sempre sob acompanhamento e avaliação pelo tribunal, como tem efetivamente acontecido, redundam necessariamente numa decisão partilhada e corresponsabilizante, de autocomposição, digamos, e não hétero e coercivamente imposta, substancial e formalmente diferenciada daquela privação da liberdade, conforme evidenciam os artigos 56º a 59º da LPCJP, por oposição às regras estipuladas no CEPMPL e os demais preceitos relacionados com a reclusão ou encarceramento preventivo ou em cumprimento de pena, ainda que em regime de permanência na habitação, medida de segurança ou tutelar educativa e mesmo no âmbito do internamento compulsivo, da cooperação judiciária e da entrada e permanência ilegal em território nacional.
Em todas estas situações a pessoa é efetivamente privada daquela liberdade ambulatória, “de ir e vir” ao sabor da suas conveniências e interesses, ficando confinado a espaços circunscritos e limitados, eventualmente partilhados e muitas vezes sem salvaguarda das condições indispensáveis à salvaguarda da sua dignidade.
Pelo contrário, no acolhimento residencial, em particular no caso aqui em apreço, atenta a tenra idade das crianças, sem prejuízo de algumas inevitáveis restrições à liberdade, inerente a essa faixa etária e aos direitos de bem-estar, físico e psicológico, que implica a organização dos tempos de descanso e de repouso, de cumprimento das obrigações escolares, de convívio familiar e não separação de irmãos, da prestação de cuidados de higiene e de assistência médica e medicamentosa, por cuja adequada satisfação são responsáveis as instituições e os respetivos profissionais, cabendo-lhes providenciar nesse sentido com regras e métodos previamente definidos, embora flexíveis e sob a vigilância do tribunal, quantas vezes inexistentes no meio natural de vida e que, como aqui parece ter-se verificado, consubstancia o perigo legitimador da intervenção protetora, é evidente que as crianças não se encontram condicionadas na sua liberdade em maior grau do que aquele a que estariam sujeitas naquele meio natural, caso o mesmo estivesse organizado e funcionasse segundo os padrões normais de criação e educação de crianças, pese embora a separação familiar, só por si suficientemente gravosa para justificar que a sua situação seja definida com a máxima celeridade.
Não podendo, assim, sustentar-se qualquer equivalência entre a situação em apreço e aquela das referidas situações de privação coerciva da liberdade física, também por esta via se perfila inevitável afastar a ideia de prisão ilegal, muito menos a verificação de qualquer abuso de poder, por prisão ilegal, conforme requerido pela al. c) do n.º 2 do artigo 222º do CPP, mesmo que a questão da natureza dos prazos de duração, revisão e eventual prorrogação das medidas fosse indiscutível, que, como vimos, não o é, no sentido de ser perentória.
*
Em face de tais factos e considerações, inevitável se torna concluir pela improcedência dos fundamentos previstos nas als. b) e c) do n.º 2 do artigo 222º do CPP em que a requerente estribou a requerida providência de habeas corpus.
Nenhuma ilegalidade enquadrável nas situações taxativamente previstas nas alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 222º do CPP se verifica, portanto, no presente caso, devendo, por isso, recusar-se a concessão da providência requerida, por falta de fundamento bastante, sem embargo de se lembrar a obrigação e urgência de o tribunal decidir as questões que lhe foram colocadas pela mãe das crianças, aqui requerente, assim como decidir em definitivo a situação das mesmas, cujo projeto de vida vem sendo adiado há tempo demasiado, com os inerentes e consabidos prejuízos para o seu bem-estar e desenvolvimento integral que é suposto a intervenção do sistema de proteção e promoção prevenir e garantir.
III. Decisão
Em face do exposto, acorda-se em:
a) Indeferir, por falta de fundamento bastante, a providência de habeas corpus requerida pela mãe das crianças, BB, CC e DD, AA (artigo 223.º, n.º 4, al. a), do CPP);
b) condenar a requerente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (artigos 1º, 2º, 6º e 8º, n.º 9, do RCP, aprovado pelo DL n.º 34/2008, de 26.02, e Tabela III ao mesmo anexa), ressalvado eventual benefício de apoio judiciário.
Lisboa, d. s. certificada
(Processado e revisto pelo relator e digitalmente assinado pelos subscritores)
João Rato (Relator)
Celso José das Neves Manata (1º Adjunto)
Jorge Gonçalves (2º Adjunto)
Helena Moniz (Presidente da Secção)
______
1. Ambos disponíveis no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.
2. No mesmo sentido, vide acórdão do STJ, de 26.06.2003, proferido no processo n.º 03P2629, relatado por Simas Santos, também disponível no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/. .
3. Para maiores desenvolvimentos sobre a origem, natureza, pressupostos, fins e âmbito de aplicação do habeas corpus, podem ver-se, em acréscimo aos acórdãos antes mencionados e à doutrina e jurisprudência neles referenciada, Maia Costa, Habeas corpus: passado, presente, futuro, Revista Julgar n.º 29, Maio-Agosto de 2016, pg. 219 e ss., e comentários aos artigos 219º a 224º no Código de Processo Penal Comentado, de Henriques Gaspar et al., 3ª Edição Revista, 2021 Almedina, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1993, pg. 260 e ss., Pedro Branquinho Ferreira Dias, Comentário a um acórdão, Revista do Ministério Público, Ano 28, n.º 110, pg. 216 e ss., Tiago Caiado Milheiro, anotações aos artigos 220º a 224º, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, António Gama... [et al.]. —2º ed. — v. 3: Almedina, 2022, e Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, 2007, em anotações aos artigos 31º e 27º, e os acórdãos do TC e do STJ neles resenhados, assim como nos referidos comentários de Maia Costa.
4. Sítio no qual estão disponíveis os demais acórdãos referenciados no texto sem outra menção.