Sumário
A alegação da infracção de um caso julgado apenas torna sempre admissível o recurso, designadamente para o Supremo, se o obstáculo à recorribilidade consistir na alçada do tribunal ou no valor da sucumbência do recorrente, pelo que a admissibilidade do recurso pelo fundamento específico da ofensa de um caso julgado não prevalece sobre a regra que excluiu incondicionalmente a recorribilidade, ainda que relativa, da decisão.
Decisão Texto Integral
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça;
1. Relatório.
Por sentença proferida no dia 20 de Fevereiro de 2021, o Sr. Juiz de Direito do Juízo Central Cível do ..., do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, julgou improcedente a acção declarativa de condenação, com processo comum, proposta por AA e BB contra CC e DD e condenou os primeiros nas custas.
Os autores interpuseram desta sentença recurso ordinário de apelação para o Tribunal da Relaçáo de Lisboa que por acórdão de 13 de Julho de 2021, deliberou determinar que o Tribunal de 1.ª instância fundamentasse as respostas aos factos não provados sob 2.2.1. a 2.2.9, devendo previamente exaurir a prova pericial mediante esclarecimento por escrito e verbais e condenou os apelados nas custas, na vertente de custas de parte.
O Sr. Juiz de Direito do Juízo Central Cível do ..., por sentença de 9 de Janeiro de 2023, reiterou a decisão de improcedência da acção e a condenação dos autores nas custas.
Os autores interpuseram desta sentença novo recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 20 de Junho de 2023, foi julgado parcialmente procedente, tendo condenado os réus a indemnizar os autores no valor de € 2 000,00 e, uns e outros, nas custas, na vertente das custas de parte, na proporção de 96% para os primeiros e de 4% para os últimos, respectivamente.
Os autores interpuserem deste acórdão recurso ordinário de revista, que, porém, o Sr. Juiz Desembargador Relator não admitiu. Este Tribunal Supremo, conhecendo da reclamação deduzida contra a decisão de rejeição do recurso, deliberou por acórdão proferido no dia 25 de Janeiro de 2024, confirmar o despacho reclamado e determinar a baixa do processo ao Tribunal da Relação de Lisboa para que este fixasse em definitivo o decaimento das partes para efeitos das custas de parte.
Por acórdão proferido no dia 5 de Março de 2024, o Tribunal da Relação de Lisboa, com fundamento em que tendo a apelação sido julgada parcialmente procedente, condenando os réus a pagar aos autores € 2 000,00, se verifica (aplicando uma regra de três simples) que os autores decaem em 93.05% e obtêm vencimento em 6.95% do petitório, deliberou reformar o acórdão proferido em 20 de Junho de 2023, fixando-se as custas pelos apelantes e pelos apelados, na vertente das custas de parte, na proporção de 93.05% e 6,95%, respectivamente.
Regressado o processo à 1.ª instância, autores e réus apresentaram as respectivas notas discriminativas e justificativas das custas de parte. Os primeiros pediram, na sua nota, face ao acórdão proferido no dia 13 de Julho de 2021, a quantia líquida de € 4 142,00, relativa à taxa de justiça paga pela apresentação da petição inicial, encargos e taxa de justiça paga por aquele recurso e, por referência aos acórdãos proferidos nos dias 20 de Junho de 2023 e 5 de Março de 2024, por aplicação da percentagem de 6,95%, fixada no último acórdão a quantia líquida de € 106,33, concluindo que têm direito a haver dos réus, a título de custas de parte, a quantia total de € 4 248,533; os segundos por aplicação da percentagem de 93,05% da responsabilidade a cargo dos autores e de 6,95% a seu cargo, pediram que os autores fossem notificados para lhes pagar, a titulo de custas de parte, a quantia de € 5 599,75. Cada uma das partes reclamou contra a nota apresentada pela contraparte.
O Sr. Juiz de Direito, por despacho de 8 de Agosto de 2024, com fundamento em que a decisão definitiva quanto a custas de parte foi determinada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 5 de Marços de 2024, na proporção de € 93,05% para os autores/apelantes e 6,95% para os réus/apelados, e que a nota discriminativa de custas apresentada pelos autores a 02.04.2024, não respeita esta proporção de responsabilidade, razão pela qual não pode ser admitida, julgou procedente a reclamação contra ela deduzida pelos réus e improcedente a deduzida pelos autores contra a nota apresentada pelos réus.
Os autores interpuseram deste despacho recurso de apelação, pedindo a sua revogação e se julgue procedente a reclamação que formularam contras as notas das custas de parte apresentados pelos réus e improcedente a reclamação que estes deduziram contra a sua.
Porém, o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão proferido no dia 19 de Dezembro de 2024, com fundamento em que a condenação em custas feita a última decisão proferida, em caso de recurso, é a que prevalece e abarca todas as instâncias, que na elaboração da conta há que fazer prevalecer o sentido da decisão proferida pelos tribunais superiores, sendo que o dispositivo de mérito do acórdão (que encerra o processo) se projecta necessariamente, na responsabilidade final pelas custas, incluindo as custas de parte, pelo que o regime do caso julgado formal não é pertinente em sede de custas de parte, havendo que atender ao último acórdão proferido (2024) e não ao de 2021, julgou improcedente a apelação e confirmou a decisão recorrida.
É este acórdão que os autores impugnam através do recurso ordinário de revista, comum ou normal, no qual pedem a sua revogação ou anulação e se julgue procedente a sua reclamação contra a nota das custas de parte apresentada pelos réus e improcedente a que estes formularam contra a nota dessas custas que eles mesmos apresentaram.
Os fundamentos da revista, expostos nas conclusões, são os seguintes:
15.º É certo e tal como resulta do disposto no art.s 30 n.º 1 do RCP e art.ª 527 n.º1 do CPC, que também em matéria de custas de parte e no que concerne ao seu apuramento global e imputação das mesmas (aos AA., ou RR., ) há que ter em consideração o decidido em última instância.
16.º Mas tal não significa de per se, que para tais efeitos (também), não deva respeitar a força de caso julgado que sobre as mesmas venha a ocorrer, como foi o presente caso.
17.º Ou tão-pouco, possa aceitar-se o errado e ilegal entendimento, segundo o caso, “o caso julgado formal não é pertinente em sede custas de parte”, como erraticamente e com manifesta violação da força de caso julgado, o acórdão ora recorrido, afinal vem subscrever.
18.º Donde, não tendo o acórdão ora recorrido, respeitado o então decidido, pelo acórdão proferido por tal mesmo Tribunal (TRL) - o qual havia transitado em julgado - em matéria de custas de parte, violou assim o dito acórdão a força de caso julgado formal, e por conseguinte, violou o preceituado nos art.º s 620 n.º 1 e 628, ambos do CPC.
19.º Impondo-se assim ao TRL que na contabilização total das custas de parte devidas pelos AA., aos RR., tenha-se também em consideração o então decidido e transitado em julgado com o acórdão proferido em 13/03/2021 e pelas mesas razões tenha em consideração o montante das custas de parte que são devidas pelos RR., aos AA.
Os recorridos, na resposta – depois de observarem que a decisão que transitou em julgado foi a que se contém no acórdão de 5 de Março de 2024 e não a contida no acórdão datado de 13 de Julho de 2021 – concluíram pela improcedência do recurso.
O Sr. Juiz Desembargador Relator admitiu a revista.
Por despacho de 3 de Abril de 2025, suscitou-se, ex-offício, a questão da inadmissibilidade da revista, por força de norma de exclusão incondicional do recurso, e facultou-se às partes o exercício do seu direito de audição prévia sobre a questão.
Os recorrentes declararam que, tratando-se do caso julgado e, em especial, por razões de ordem pública, o legislador, a fim de reprimir ilegalidades, permite sempre o recurso de revista,, pelo que só uma leitura apressada e sem qualquer fundamento legal, poderia acolher a posição ora perfilhada pelo relator; os recorridos nada disseram.
Por despacho proferido no dia 5 de Maio de 2025, o relator concluiu pela inadmissibilidade da revista e declarou-a finda por não haver que conhecer do seu objecto, tendo adiantado, para justificar a rejeição do recurso a fundamentação seguinte:
(..) 2. Fundamentos.
A questão que, nesta sede liminar, importa decidir enuncia-se com facilidade: é a de saber se a revista é admissível, e, consequentemente, se se deve, ou não, recusar o conhecimento do seu objecto, considerando, de um aspecto, a regra de que o relator deve apreciar, designadamente, se alguma circunstância obstacula ao conhecimento, no todo ou em parte, do recurso e de, outro, a de que essa apreciação não é condicionada pelo conteúdo do despacho proferido pelo tribunal recorrido sobre o requerimento de interposição do recurso, porque este último não é vinculativo para o tribunal superior (art.ºs 641.º, n.º 5, 652.º, n.º 1, do CPC).
Em acatamento pontual do dever de colaboração ou de cooperação, na vertente do dever de consulta, que vincula este Tribunal, facultou-se às partes o exercício do seu ineliminável direito de audição sobre este problema e, logo por aplicação de um princípio de lealdade processual, com indicação detalhada das razões ou fundamentos que inculcam a conclusão da não recorribilidade da decisão impugnada no recurso (art.ºs 3.º. n.º 3, 7.º, n.º 1, e 655.º, n.º 1, do CPC).
E a verdade é que a exactidão daqueles fundamentos – e, em consequência, daquela conclusão – permanece intocada dado que os recorrentes, parte a quem aquela conclusão prejudica e dela, naturalmente, discorda, não adiantaram um qualquer argumento que, devidamente apreciado, convença, concludentemente, da sua incorrecção. Outra atitude não resta, pois, que reiterar os fundamentos contidos naquele despacho.
Como se observou no apontado despacho, a decisão contestada no recurso de apelação, e que constitui o objecto do acórdão impugnado na revista, é a que se contém no despacho do Sr. Juiz de Direito que apreciou as reclamações deduzidas por ambas as partes contra a nota justificativa das custas de parte apresentada pela outra.
A irrecorribilidade de uma qualquer decisão pode resultar, designadamente, de exclusão expressa do recurso. Nos recursos ordinários, a exclusão expressa da recorribilidade pode referir-se a uma espécie de decisões, o que sucede quando a lei exclui a recorribilidade de decisões específicas. É o que resulta, nomeadamente, do art.º 26-A, n.º 3 do Regulamento das Custas Processuais, aditado pela Lei n.º 27/2019, de 28 de Março: da decisão do juiz que aprecie a reclamação deduzida contra a nota justificativa das custas de parte só cabe recurso em um grau e desde que o valor da nota exceda 50 UC. Assim, da decisão da 1.ª instância que aprecie a reclamação deduzida contra a nota justificativa, e desde que o seu valor seja superior a 50 UC, apenas cabe recurso para o Tribunal da Relação, estando, portanto, excluído o recurso para o Supremo. Da decisão que conheça da reclamação formulada contra a nota justificativa só cabe recurso para o Supremo se aquela decisão tiver sido proferida, ex-novo, pela Relaçáo, o que só sucede, evidentemente, nos casos em que a Relação funcione como tribunal de 1.ª instância (art.º 652.º, n.º 1, f), do CPC e 67.º, n.º 1, da LOSJ). Trata-se, portanto, de uma exclusão expressa, relativa – dado que se admite o recurso mas apenas em um grau, desde que, cumulativamente, a nota justificativa, exceda o valor de 50 UC – e incondicional – i.e., não dependente do fundamento da impugnação – da recorribilidade. A restrição pode justificar-se tanto pelo objecto da impugnação – uma questão relativamente subalterna ou acessória relativamente ao objecto essencial do processo – e quer pela suficiência e a adequação da actividade do tribunal, que – numa perspectiva abstracta e formal - parte do princípio de que é suficiente a decisão de dois tribunais e abstrai da importância da decisão para as partes, em especial, para o eventual recorrente, e da relevância dos fundamentos da sua impugnação – quer pela falta de interesse processual do recorrente: a parte que viu a sua pretensão ser julgada por duas instâncias, não carece mais de interesse processual.
É certo que a revista tem como fundamento a invocação da, pelo acórdão impugnado, de um caso julgado. Dado que se quis proteger até ao extremo limite da hierarquia judicial o respeito pelo caso julgado - porque os interesses que protege são de ordem pública - elevou-se ao máximo a sua tutela: o recurso de revista interposto com fundamento no caso julgado é sempre admissível, seja qual for o valor da causa e ainda que se verifique a duae conforme sententiae (art.º 629.º, n.º 2, a), do CPC)1. Simplesmente, aquele fundamento específico do recurso, apenas torna absolutamente irrelevante a alçada, i.e., a regra da irrecorribilidade das decisões proferidas nos processos cujo valor não exceda a alçada do tribunal judicante. Dito doutro modo: a invocação da infracção de um caso julgado apenas torna sempre admissível o recurso, designadamente para o Supremo, se o obstáculo à recorribilidade consistir na alçada do tribunal ou no valor da sucumbência do recorrente, pelo que a admissibilidade do recurso pelo fundamento específico da ofensa de um caso julgado não prevalece sobre a regra que excluiu incondicionalmente a recorribilidade, ainda que relativa, da decisão. Ora, no caso, a inadmissibilidade da revista não resulta da alçada do tribunal de que provém o recurso, ou da sucumbência do recorrente – mas de uma exclusão legal expressa específica de recorribilidade da decisão, que restringe o recurso a um grau ou instância, sem fazer qualquer ressalva, como sucede em casos paralelos de irrecorribilidade expressa, dos casos em que o recurso é sempre admissível (v.g., art.ºs, 671.º, n.ºs 2, a) e 3, e 854.º do CPC).
A letra da lei, que tem um valor próprio que não pode ser ignorada pelo intérprete, impõe dois limites. O primeiro é o que decorre das presunções de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas – o que decorre do chamado principle of charity 2– e a de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art.º 9.º, n.º 3, do Código Civil); o segundo limite consiste na impossibilidade de ser considerado pelo intérprete um significado que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, limite por força do qual, por um lado, o significado que não encontra uma correspondência mínima na letra da lei está para além do seu significado possível e por outro, que não pode ser qualificada como interpretação a conclusão do intérprete que não for compatível com a letra da lei (art.º 9.º, n.º 2, do Código Civil). E, no caso, a letra da lei - que constitui um limite para todos os outros elementos da sua interpretação, limitando especial e substancialmente o que pode ser considerado no âmbito do elemento sistemático - é terminantemente clara e cristalina em declarar que o recurso é irrestritamente admissível, se o seu fundamento consistir no alegado desrespeito de um caso julgado - mas apenas se a causa da irrecorribilidade consistir na alçada do tribunal de que provém ou na sucumbência do recorrente. É o que ex-littera resulta da norma reguladora daquela admissibilidade: independentemente do valor da causa e da sucumbência do recorrente (…) (art.º 629.º, n.º 1, proémio, do CPC).
Razão que explica que, sempre que a causa da irrecorribilidade resulta de causa diversa da alçada ou da sucumbência do recorrente, como por exemplo, de exclusão específica expressa da recorribilidade, a lei se sinta na necessidade de ressalvar os casos em que o recurso é sempre admissível, designadamente quando o seu fundamento consista na invocação do desrespeito de um caso julgado. Exemplo acabado, entre outros, disto mesmo é o representado pela inadmissibilidade da revista no caso da chamada duae conformes sententiae: se não fosse a ressalva expressa dos casos em que o recurso é sempre admissível, contida no início do n.º 3 do art.º 671.º do Código de Processo Civil, o recurso de revista não o seria, ainda que o seu fundamento assentasse na alegação da ofensa de um caso julgado, dado que o fundamento da irrecorribilidade não deriva aqui da alçada ou da sucumbência do recorrente – mas de causa bem diversa ou distinta: a chamada dupla decisão conforme (…).
É esta decisão que os recorrentes impugnam através da reclamação para conferência, na qual pedem que a revista seja admitida.
Reiteraram, como fundamento da reclamação, que a revista, dado que tem por fundamento a ofensa do caso julgado, é sempre admissível, e que num caso paralelo, em que a revista tinha por fundamento a violação de um caso julgado, não obstante se tratar de matéria atinente de custas de parte a um procedimento cautelar, o Supremo, por acórdão proferido no dia 29 de Maio de 2025, no processo 1627/19.2T8VRL-C.G1.S1, a ter admitido por entender que o recurso de revista é sempre admissível
Os reclamados não responderam.
O relator determinou que o processo fosse levado à conferência para se decidir a reclamação.
2. Objecto da reclamação e individualização da questão concreta a solucionar.
A questão colocada à atenção da conferência é a de saber se a decisão do relator que rejeitou in limine, a revista e a declarou finda por não haver que conhecer do seu objecto, é ou não correcta e, portanto, se deve ou não ser revogada e logo substituída por acórdão que admita a revista rejeitada.
3. Fundamentos.
3.1. Fundamentos de facto.
Os factos, puramente procedimentais, relativos ao objecto e ao fundamento da revista rejeitada são os que, em síntese apertada, o relatório documenta..
3.2. Fundamentos de direito.
Sempre que considere que a decisão singular do relato é correcta, que as razões que aduziu para justificar a sua decisão são convincentes e sensatas e que não se justifica dizer mais nem melhor, nem o esforço, inglório e deprimente, de repisar e repetir aquilo que o relator escreveu, à conferência é lícito limitar-se, simplesmente, a manifestar a sua adesão ao que foi escrito pelo relator. Realmente, quando a considere exacta, não se vê vantagem alguma em forçar a conferência a repetir a motivação adiantada pelo relator para justificar a sua decisão, em vez de, simplesmente, dar a sua adesão ou exprimir a sua concordância.
As proposições fundamentais de que o relator extraiu a conclusão da irrecorribilidade da revista e, consequentemente, da sua inadmissibilidade são as seguintes:
- A irrecorribilidade de uma qualquer decisão pode resultar, designadamente, de exclusão expressa do recurso, como sucede com o art 26-A, n.º 3 do Regulamento das Custas Processuais, aditado pela Lei n.º 27/2019, de 28 de Março, que determina que: da decisão do juiz que aprecie a reclamação deduzida contra a nota justificativa das custas de parte só cabe recurso em um grau e desde que o valor da nota exceda 50 UC;
- Por força dos termos literais da lei de processo, a invocação da infracção de um caso julgado apenas torna sempre admissível o recurso, designadamente para o Supremo, se o obstáculo à recorribilidade consistir na alçada do tribunal ou no valor da sucumbência do recorrente, pelo que a admissibilidade do recurso pelo fundamento específico da ofensa de um caso julgado não prevalece sobre a regra que excluiu incondicionalmente a recorribilidade, ainda que relativa, da decisão (art.º 629.º, n.º 2, 1.ª parte, do CPC);
- Como, no caso, a inadmissibilidade da revista não resulta da alçada do tribunal de que provém o recurso, ou da sucumbência do recorrente – mas de uma exclusão legal expressa específica de recorribilidade da decisão, que restringe o recurso a um grau ou instância, sem fazer qualquer ressalva, como sucede em casos paralelos de irrecorribilidade expressa, dos casos em que o recurso é sempre admissível, a decisão impugnada na revista, apesar de esta ter por fundamento a invocação da ofensa de um caso julgado, é irrecorrível (v.g., art.ºs, 671.º, n.ºs 2, a) e 3, e 854.º do CPC).
Para inculcar a falta de bondade destes fundamentos, os recorrentes convocam um acórdão deste Tribunal Supremo que, numa revista que assentava na violação, pela decisão recorrida, relativa a custas de parte, de res judicata, proferida em procedimento cautelar, a admitiu com o argumento de que, dado o seu fundamento, o recurso é sempre admissível. Os recorrentes convirão, porém, que aquele acórdão, como concludentemente, decorre dos seus fundamentos, não ponderou a exclusão expressa incondicional de recorribilidade disposta art.º 26-A, n.º 3 do Regulamento das Custas Processuais, tendo-se limitado a aferir a recorribilidade da decisão pelas regras gerais dispostas no Código de Processo Civil, no tocante às decisões proferidas em processos cautelares. E relativamente à admissibilidade do recurso de decisões proferidas em matéria de reclamação contra a nota discriminativa das custas de parte a ponderação – e a observância – daquela exclusão expressa extravagante do recurso não pode, evidentemente, deixar de ser considerada. De um aspecto, porque por decisões proferidas em procedimentos cautelares se devem entender as decisões relativas ao objecto desse procedimentos, não compreendendo, por não se referirem a esse objecto específico, as decisões que incidam sobre o objecto lateral da reclamação contra a nota discriminativa das custas de parte; de outro, porque as regras relativas à recorribilidade das decisões proferidas sobre aquela reclamação, são, segundo um critério material, especiais mesmo relativamente às regras da recorribilidade das decisões proferidas em procedimentos cautelares, dado que regulam uma situação que se insere na categoria da situação prevista na regra geral.
Aliás, as regras da (ir)recorribilidade das decisões proferidas em procedimentos cautelares para o Supremo inculcam a correcção de um dos fundamentos utilizados pelo relator para concluir pela inadmissibilidade da revista. Das decisões proferidas nos procedimentos cautelares cabe sempre recurso – que em princípio, estaria excluído – para o Supremo, se o seu fundamento consistir em desrespeito de um caso julgado. Mas isso só é assim porque a lei, depois de dispor que daquelas decisões não cabe revista, ressalva expressamente os casos em que o recurso é sempre admissível (art.º 370.º, n.º 2, in fine, do CPC), Não fora uma tal ressalva o recurso para o Supremo, ainda que com fundamento na violação de coisa julgada seria, comprovadamente - inadmissível. Trata-se, portanto, de mais um dos casos paralelos, em que o recurso de revista só é – sempre – admissível, mas por força de ressalva expressa.
O legislador está perfeitamente ciente que são múltiplos os casos em que exclui a recorribilidade de decisões específicas, por fundamentos completamente distintos da alçada do tribunal recorrido ou da sucumbência do recorrente, portanto, em casos em que o valor da causa e da sucumbência do recorrente permitiria o recurso. É o que sucede, v.g., quanto à decisão sobre a escusa e a suspeição do juiz (art.ºs 119.º, n.º 5, 123.º, n.º 3 e 129.º do CPC), quanto ao despacho que manda citar o réu ou requerido (art.º 322.º, n.º 2, quanto à admissibilidade da intervenção acessória provocada (art.º 322.º, n.º 2, do CPC), quanto à decisão que indefere o pedido de inversão do contencioso nos procedimentos cautelares (art.º 370.º, n.º 1, do CPC), quanto às decisões proferidas sobre impedimentos e suspeição dos peritos (art.º 471.º, n.º 3, do CPC), quanto à decisão sobre a audiência em tribunal de pessoa que goza de prerrogativa de inquirição (art.º 505º, n.º 4, do CPC) quanto à admissibilidade da inquirição de testemunhas para além do limite legal (art.º 511.º, n.º 4, do CPC), quanto ao despacho de prorrogação do prazo de contestação (art.º 590.º, n.º 7) ou quanto às decisões da Relação sobre matéria de facto (art.º 662.º, n.º 4 do CPC). Em todos estes casos, e semelhantes, o fundamento da irrecorribilidade não é constituído pela relação entre o valor processual da causa e a alçada do tribunal ou pelo valor da sucumbência do recorrente, mas só nos casos em que o fundamento relevante da irrecorribilidade é aquela alçada ou o valor desta sucumbência é que o legislador optou por considerar o recurso sempre admissível, se o seu fundamento específico consistir na ofensa de um caso julgado (art.º 629.º, n.º 2, do CPC). Ou, noutra formulação: a lei não diz que se o fundamento do recurso consistir no desrespeito de um caso julgado, aquele é irrestritamente ou sempre admissível; diz, isso sim, que o recurso é sempre admissível por aquele fundamento, se a razão da irrecorribilidade consistir tão somente ou apenas na alçada do tribunal recorrido e na sucumbência do recorrente. E nos casos em que exclui a recorribilidade, por motivo diverso da relação do valor da causa com a alçada do tribunal recorrido ou do valor da sucumbência do recorrente, mas quer tornar admissível o recurso com fundamento na violação de um caso julgado, ressalva os casos em que o recurso é sempre admissível – o que, comprovadamente, não ocorre no tocante à decisão que aprecia a reclamação contra nota discriminativa das custas de parte. Entendimento contrário só seria admissível, recorrendo a uma interpretação ab-rogante do n.º 2, 1.ª parte, do art.º 629.º do CPC, que, considerando a vinculação dos tribunais à lei, que constitui uma importante garantia do Estado de Direito e da separação de poderes – vinculação que não só assegura a prevalência da lei sobre qualquer intuição ou sentimento do juiz, com obsta, decisivamente, à substituição do legislador pelo juiz – só deve ser admitida em casos limite, quando a norma não é inteligível em si mesma, impossibilitando, em absoluto, que lhe seja atribuído qualquer significado, o que, patentemente, não é o caso (art.ºs 111.º, n.º 1, e 203.º da Constituição da República Portuguesa, 8.º n.º 2 e 9.º do Código Civil).
O conclusum da irrecorribilidade da revista e da inadmissibilidade consequente, encontrado pelo relator é, pois, correcto. E face a essa correcção, a improcedência da reclamação é meramente consequencial.
Da argumentação exposta extrai-se, como proposição conclusiva mais saliente, a seguinte:
- A alegação da infracção de um caso julgado apenas torna sempre admissível o recurso, designadamente para o Supremo, se o obstáculo à recorribilidade consistir na alçada do tribunal ou no valor da sucumbência do recorrente, pelo que a admissibilidade do recurso pelo fundamento específico da ofensa de um caso julgado não prevalece sobre a regra que excluiu incondicionalmente a recorribilidade, ainda que relativa, da decisão.
Os reclamantes sucumbem na reclamação. Essa sucumbência torna-os objectivamente responsáveis pela satisfação das respectivas custas (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC). Considerando, de um aspecto, a simplicidade do objecto da reclamação e, de outro, a patente falta de razão dos reclamantes, julga-se adequado e proporcional fixar a taxa de justiça devida pela reclamação em 2,5 UC (art.º 7.º, n.º 1, 2.ª parte, do RC Processuais, e Tabela II Anexa).
4. Decisão.
Pelos fundamentos expostos, julga-se improcedente a reclamação deduzida pelos recorrentes, AA e BB, contra o despacho do relator que rejeitou o seu recurso de revista e o julgou findo por não haver que conhecer do seu objecto.
Custas pelos reclamantes, com 2,5 UC de taxa de justiça.
2025.06.17
Henrique Antunes (relator)
António Magalhães
António Domingos Pires Robalo
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1. Por força do art.º 671.º, n.º 3, do CPC que ressalva as hipóteses em que o recurso é sempre admissível.
2. Miguel Teixeira de Sousa, Introdução ao Direito, Almedina, Coimbra, 2016, pág. 355.