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Jurisprudência
Sumário

I. Cabe nas competências do STJ aquilatar se a Relação cumpriu os poderes-deveres que lhe são cometidos pelo art.º 662.º do CPC.

II. Cumpridos os ónus que impendem sobre a parte que impugne a decisão de facto, a Relação procederá à apreciação da decisão de facto recorrida, para o que deverá analisar os elementos probatórios indicados pelo recorrente e, se houver resposta ao recurso, pelo recorrido, assim como, oficiosamente, aqueloutros que para o efeito se mostrem relevantes.

III. Exige-se, assim, que, dentro do quadro delimitado pelo recurso, a Relação analise criticamente as provas, de forma a formular um juízo próprio acerca da matéria de facto em questão, assim confirmando ou infirmando, total ou parcialmente, a decisão de facto alvo do recurso, e disso dando conta no julgamento do recurso.

IV. Não corresponde ao padrão supra descrito uma mera declaração de adesão à fundamentação da decisão de facto recorrida, mesmo que acompanhada da asserção de que se apreciou a prova.

Decisão Texto Integral

Acordam os juízes no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. Em 20.9.2017 Gavepart – Imobiliário e Turismo, S.A. instaurou ação declarativa de condenação com processo comum (ação de reivindicação) contra AA.

A A. alegou ser proprietária de uma determinada fração autónoma, que identificou, localizada em ..., concelho de .... Em 25.11.2011 a A., então denominada “C..., S.A.”, celebrou com a R. um contrato-promessa de compra e venda da dita fração autónoma. Após a A. ter dado conta de que o contrato-promessa padecia de um erro, por nele constar que a A., no momento da assinatura do contrato-promessa, havia dado quitação total do preço, acordou com a R. substituir aquele documento por um contrato de arrendamento com opção de compra, celebrado em 30.12.2011 e com produção de efeitos reportada a 01.12.2011. Esse contrato permitiu legitimar a ocupação do imóvel pela R., enquanto não fosse transmitida a propriedade da fração, uma vez verificadas as condições refletidas no contrato-promessa, nomeadamente o pagamento do preço acordado. Na altura foi acordado afetar o valor de € 25 000,00, já liquidados pela R., a título de cinco anos de rendas. Mais foi clausulado que a A. poderia opor-se à renovação do contrato para novo período de vigência, com uma antecedência mínima de um ano sobre a data do termo. A A. fez uso dessa faculdade, tendo enviado à R. carta de oposição à renovação em 07.8.2015, cessando o contrato de arrendamento com opção de compra todos os seus efeitos em 30.11.2016, devendo a R. restituir o imóvel à A.. Em 14.10.2016 a A. reiterou o que já havia comunicado à R.. Não tendo a R. restituído o imóvel à A., esta intentou uma ação de despejo no Balcão Nacional de Arrendamento, a qual veio a correr os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Cível de .... Nessa ação, a A. não logrou provar a existência do dito contrato de arrendamento com opção de compra. Assim, restou à A. intentar a presente ação de reivindicação e peticionar indemnização pelos danos que o comportamento da R. lhe causou e causa, que a A. especificou.

A A. terminou peticionando a declaração de que a A. é dona e legítima proprietária da fração autónoma que a A. identificou, a condenação da R. a reconhecer o direito de propriedade da A. sobre o aludido imóvel e a restituí-lo à A. completamente limpo, livre e devoluto de pessoas e bens, a condenação da R. a ressarcir a A. do prejuízo pelo não arrendamento do imóvel, que a A. computou, em 30.12.2017, em € 5 400,00, acrescidos de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, a contar de 30.11.2016, até à efetiva entrega do imóvel reivindicado, sendo que à data da propositura da ação os mesmos, segundo a A., ascendiam a € 179,90, a condenação da R. a pagar à A. uma indemnização por todos os danos que a R. viesse a provocar no imóvel, a liquidar em execução de sentença, a condenação da R., a título de sanção pecuniária compulsória, no pagamento da quantia diária de € 50,00, desde 30.11.2016 até que o imóvel fosse definitivamente entregue à A..

2. A R. contestou e reconveio. Muito em síntese, negou ter outorgado o invocado contrato de arrendamento, alegando que o mesmo foi forjado pela A.. Mais alegou a veracidade do que consta no contrato-promessa de compra e venda celebrado entre as partes, nomeadamente o que diz respeito ao pagamento integral do respetivo preço, no valor de € 125 000,00. Em reconvenção, a R. invocou a celebração do contrato-promessa de compra e venda da aludida fração, para reclamar a execução específica desse contrato e, subsidiariamente, a condenação da A. no pagamento do sinal em dobro, isto é, a quantia de € 250 000,00, ou, caso assim se não entendesse, a condenação da A. a restituir à R. o montante de € 125 000,00, acrescido dos juros vencidos e vincendos. Mais alegou que a A. litigava com má-fé.

A R. terminou concluindo pela sua absolvição do pedido e pela procedência da reconvenção, peticionando, consequentemente, que fosse “proferida sentença substitutiva da declaração da A. faltosa proveniente do contrato da promessa de compra e venda da fração identificada” e, subsidiariamente, que a A. fosse condenada a devolver à R. em dobro o sinal recebido em virtude do incumprimento definitivo que lhe é imputado do contrato promessa de compra e venda da fração, no valor de € 250 000,00 ou, caso assim se não entendesse, que a A. fosse condenada a restituir à R. o valor por esta prestado, no montante de € 125 000,00, acrescido dos juros vencidos e vincendos. Mais pediu a R. que a A. fosse condenada, como litigante de má-fé, em multa a fixar pelo tribunal e em indemnizar a R. a título de danos patrimoniais e não patrimoniais no montante global de € 7 000,00 – acrescidas, as quantias, de juros à taxa legal em vigor.

3. A A. replicou, pugnando pela improcedência da reconvenção e da alegada litigância de má-fé.

4. Foi admitida a reconvenção, fixou-se à causa o valor de € 193 779,90, foi proferido saneador tabelar, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

Realizou-se audiência final.

Em 12.4.2021, na sequência de despacho judicial, a R. depositou à ordem dos autos, ao abrigo do disposto no n.º 5 do art.º 830.º do Código Civil, a quantia de € 125 000,00.

Em 15.11.2021 foi proferida sentença, que culminou com o seguinte dispositivo:

Nos termos supra expostos, julga-se a presente acção parcialmente procedente, por provada, e reconvenção totalmente procedente, e em consequência, decide o Tribunal:

A. Declarar que a A. GAVEPART – IMOBILIÁRIO E TURISMO, S.A. é dona e legítima proprietária da fracção autónoma designada pela letra “C”, para habitação, situada no piso zero ao nível do rés-do chão, com arrecadação da cave -2, identificada com a letra C, e 2 lugares de estacionamento localizados na cave -2, identificados com os números 55 e 56, do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...13-C e inscrito na matriz predial urbana da citada freguesia sob o artigo 4915, condenando a R. a reconhecer tal direito;

B. Condenar a Ré AA no pagamento à A. de uma indemnização de € 540,00 por mês, calculada desde Dezembro de 2016 até à data da prolação da presente sentença, acrescida de juros de mora à taxa de 4% desde a data do seu vencimento e até efectivo e integral pagamento;

C. Absolver a R. do demais contra si peticionado;

D. Decretar a execução específica do contrato-promessa celebrado entre a A., GAVEPART – IMOBILIÁRIO E TURISMO, S.A., e a R., AA, referido no ponto C. da factualidade provada, pelo que, suprindo a declaração de vontade da A., declaro vendido por esta à R. a fracção referida em A), pagando-se a A. do preço mediante o levantamento de € 125 000,00 depositado à ordem dos autos pela R.;

E. Absolver a A. do pedido de condenação como litigante de má-fé;

F. Condenar A. e R. nas custas devidas, na proporção de 1/3 para a A. e 2/3 para a R..

Registe e notifique.


*


Configurando-se a possibilidade de condenar a R. como litigante de má-fé, ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, notifique as partes para, querendo, se pronunciarem no prazo de 10 dias”.

5. Em 03.11.2021 e 06.11.2021 as partes pronunciaram-se acerca da eventual condenação da R. como litigante de má-fé, tendo a A. sufragado tal condenação e a R. pugnado pela inexistência de má-fé da sua parte.

6. Em 11.12.2021 a R. apelou da sentença.

7. Em 13.12.2021 foi proferida decisão, na qual se condenou a R., como litigante de má-fé, na multa de 10 UC.

8. A R. apelou da decisão referida em 7, a qual foi recebida e tramitada separadamente da apelação referida em 6.

9. Em 06.01.2022 a A. contra-alegou na apelação referida em 6.

10. Tendo os autos subido à Relação de Lisboa, em 30.6.2022 o Exm.º relator proferiu decisão sumária, na qual julgou a apelação da sentença improcedente e confirmou a decisão recorrida.

11. Em 01.9.2022 a recorrente reclamou da decisão sumária, para a conferência.

12. Em 29.11.2022 a Relação de Lisboa julgou procedente a apelação suprarreferida em 7 e 8 (condenação da R. como litigante de má-fé), e consequentemente, revogou a decisão recorrida.

13. Em 25.5.2023, a Relação confirmou, em conferência, a decisão sumária referida em 10 e 11, julgando a apelação improcedente.

14. A R. interpôs recurso de revista do acórdão referido em 13, tendo apresentado alegação em que formulou as seguintes conclusões:

I. A ora recorrida instaurou contra a recorrente a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, pedindo a final que fosse declarada a dona e legítima proprietária da fração autónoma que identifica, a condenação da ré a entregá-la livre de pessoas e bens e ainda a ressarci-la do prejuízo pelo não arrendamento do imóvel, reclamando a este título, por referência a 30 de Setembro de 2017, €5 400,00, juros vencidos e vincendos, bem como a condenação da demandada no pagamento de indemnização por todos e todos e quaisquer danos e prejuízos que, injustificadamente, tenha ou venha a provocar no imóvel, a liquidar.

II. Em fundamento alegou, em apertada síntese, ser a dona do imóvel que identifica, tendo celebrado com a ré contrato de arrendamento com opção de compra que denunciou oportunamente, mantendo-se a ré desde então ilicitamente a ocupar a fracção. Mais alegou que tal contrato se destinou, por acordo entre A. e Ré, a substituir um anterior contrato promessa de compra e venda pelas mesmas partes celebrado relativo à mesma fração e no qual, por erro, deu quitação da totalidade do preço.

III. A ré e ora recorrente contestou, tendo impugnado a factualidade alegada pela autora, designadamente, e para o que aqui releva especialmente, a celebração do dito contrato de arrendamento, documento cuja falsidade arguiu, posto que nunca o viu o assinou. Nesta conformidade, pugnou pela improcedência da acção, com a sua consequente absolvição dos pedidos contra si deduzidos, e formulou pedido reconvencional, tendo pedido a título principal que fosse proferida sentença substitutiva da declaração da A. faltosa proveniente da celebração de contrato promessa que teve por objecto a promessa de compra e venda da fração reivindicada.

IV. Instruída a causa, teve lugar a audiência de discussão e julgamento, finda a qual foi proferida Sentença que, na parcial procedência da acção e da reconvenção, i. declarou a A. GAVEPART - IMOBILIÁRIO E TURISMO, S.A. dona e legítima proprietária da fracção autónoma (…), condenando a R. a reconhecer tal direito; ii. condenou a Ré, ora recorrente, no pagamento à A. de uma indemnização de €540,00 por mês, calculada desde Dezembro de 2016 até à data da prolação da sentença, acrescida de juros; iii. Decretou a execução específica do contrato-promessa celebrado entre a A. e a Ré, referido no ponto C. da factualidade provada, pelo que, suprindo a declaração de vontade da A., declarou vendido por esta à R. a fracção referida em A), pagando-se a A. do preço mediante o levantamento de€ 125 000,00 depositado à ordem dos autos pela R.;

V. Tendo para tanto julgado provado que “K) O preço de compra do imóvel constante do documento referido em C) nunca foi recebido pela A.” e como não provado que “1. A A., tendo-se apercebido de um erro no Contrato Promessa de Compra e Venda que referia ter existido quitação total do preço no momento da sua assinatura, acordou com a Ré substituir aquele documento, pelo Contrato de Arrendamento com Opção de Compra, celebrado em 30 Dezembro de 2011, cfr. doe. 5 junto com a petição inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para os legais efeitos”.

VI. Do assim decidido interpôs a ora recorrente recurso de apelação, o qual foi julgado improcedente por douta decisão singular, posteriormente confirmada por acórdão proferido na sequência de reclamação apresentada pela apelante nos termos do art.º 643.ºdo CPC, sendo desse acórdão que traz perante o Colendo STJ a presente revista.

VI. O presente recurso de revista ordinária é admissível nos termos do n.º 1 do artigo 629.º do Código de Processo Civil, por se encontrarem reunidos os pressupostos gerais da sua admissibilidade: o valor da causa é superior à alçada do Tribunal da Relação e a decisão em crise é desfavorável à Recorrente em valor superior a metade desse valor.

VII. E é admissível porquanto, conforme vem sendo entendimento consistente desse Colendo Tribunal “A dupla conformidade das decisões das instâncias não se verifica quando se pretende reagir contra a violação de disposições processuais no exercício dos poderes de reapreciação da decisão de facto por parte do Tribunal da Relação” (do acórdão do STJ de 4/11/2021, no processo 26069/18.3T8PRT.P1.S1, em www.dgsi.pt).

VIII. Não se encontra assim abrangida pela limitação recursória da dupla conformidade de decisões avaliar se a Relação, ao conhecer da matéria de facto, violou norma de direito processual, designadamente se não usou ou fez um mau uso dos poderes que a lei lhe confere para o efeito, fundamento de revista nos termos do art.º 674.º, n.º 1, al. b), podendo o STJ intervir ainda quando, nos termos do mesmo art.º 674.º, n.º 1, al. a) e n.º 3, se verifica ofensa de disposição de direito probatório material (cf. n.º 2 do art.º 682.º).

IX. A presente revista, dita normal, é ainda admissível porque ocorre violação do caso julgado – vide art.ºs 629.º, n.ºs 1 e 2, al. a), parte final).

Sem prescindir,

Para o caso de assim não se entender

X. Entende ainda a recorrente que sempre seria admissível recurso de Revista Excepcional, nos termos das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil, por se encontrarem preenchidos os requisitos previstos nas citadas alíneas: i. está em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito; ii. o acórdão da Relação de que se recorre está em contradição com o proferido por esta mesma Relação e nestes mesmos autos em 29.11.2022, já transitado em julgado, tendo sido proferido no âmbito da mesma legislação e incidindo sobre a mesma questão essencial de direito.

XI. No que se refere à alínea a), está em causa determinar que características deve revestir o princípio de prova escrita que torne verosímil a realidade do facto contrário a outro plenamente provado por confissão constante de documento particular dotado de força probatória plena, designadamente se basta um qualquer escrito e a invocação do princípio da livre apreciação em ordem a permitir a produção de prova complementar por meio de testemunhas (e também presunções judiciárias – cf. art.ºs 349.º e 351.º), no seguimento da interpretação restritiva que a Doutrina tem feito dos art.ºs 393.º, n.º 2 e 394.º, n.º 1 do CC e a Jurisprudência tem aceitado.

XII. Trata-se de questão que, atendendo à frequência com que surge nos tribunais, designadamente em matéria de direito dos contratos, com destaque para a invocação da simulação, justifica a intervenção do Supremo Tribunal em ordem a definir os critérios de apreciação e ponderação do documento apresentado como princípio da prova escrita que permitam às instâncias maior uniformidade nas decisões, sendo portanto necessária para uma melhor aplicação do direito.

XIII. Entende ainda a recorrente que a revista excecional é de admitir nos termos da al. c) do n.º 1 do citado artigo 672.º do CPC, por ocorrer contradição entre o acórdão ora recorrido e o acórdão da mesma Relação transitado em julgado proferido nestes autos em 29.11.2022, de que foi Relator o Venerando Desembargador Rui Torres Vouga, ambos proferidos no âmbito da mesma legislação, incidindo a divergência sobre a mesma questão fundamental de direito, inexistindo acórdão uniformizador de jurisprudência com aquele conforme.

XIV. Mostram-se verificados os pressupostos fundamento da admissibilidade da revista excecional previstos na al. c) do n.º 1 do art.º 672.º, porquanto: i) Ambos os acórdãos, quer o acórdão fundamento, proferido no apenso D) em 29.11.2022, e já transitado em julgado, quer o acórdão recorrido, partiram exactamente do mesmo quadro fáctico; ii) Foram chamados a resolver a mesma questão de direito, pressuposto da decisão a proferir: num e noutro tiveram que se pronunciar sobre o valor probatório do documento apresentado pela parte autora como princípio de prova escrita em ordem a autorizar a produção de prova testemunhal (e também por presunções judiciais) para contrariar facto plenamente provado; iii. Num e noutro acórdão a mesma questão fundamental foi decidida de forma flagrantemente contraditória: no acórdão fundamento foi decidido que o documento oferecido, não tendo a apresentante logrado convencer da sua autoria e genuinidade, não podia servir como princípio de prova escrita, donde não ser válida a prova testemunhal produzida, porque interdita nos termos do art.º 394.º, n.º 1, dando-se como não escrito o facto contrário ao facto plenamente provado; diversamente, entendeu-se no acórdão recorrido que, apesar de não estar estabelecida a autoria do documento, por apelo ao princípio da livre apreciação o mesmo podia/devia ser considerado válido princípio de prova, conferindo verosimilhança ao facto alegado, tendo sido em consequência validada a prova testemunhal e dado como assente o facto contrário ao plenamente provado; iv. a questão assim decidida foi determinante para a decisão a proferir num e noutro acórdãos e, embora os recursos tivessem diferentes objectos, dependiam da resolução da mesma questão essencial de direito sobre a qual incidiu a controvérsia; v. inexiste acórdão uniformizador que incida sobre a questão enunciada a que o acórdão recorrido tenha aderido.

DOS FUNDAMENTOS DA REVISTA (REGRA)

XV. O acórdão recorrido violou normas de direito adjectivo e de direito probatório material, que constituem o fundamento de revista (dita normal) previsto no art.º 674.º, n.º 1, als. a) e b) e n.º 3 do CPC.

XVI. A ora recorrente apelou da douta sentença proferida pela 1.ª instância, quer quando à decisão proferida sobre os factos, que impugnou com observância dos ónus prescritos pelo art.º 640.º do CPC, quer quanto à interpretação do direito aplicável ao litígio dos autos, imputando à douta sentença erros de facto e de direito.

XVII. Sobre o recurso de apelação interposto recaiu em 30.03.2022 decisão singular, integralmente confirmada por acórdão proferido em 25 de Maio de 2023, ora recorrido, na sequência de reclamação para a conferência que julgou totalmente improcedente a apelação e confirmou na íntegra a douta decisão proferida, o que fez com integral adesão aos seus fundamentos.

XVIII. Ao impugnar a matéria de facto, a recorrente cumpriu, conforme lhe competia, os ónus prescritos no art.º 640.º do C. P. Civil, identificando os concretos pontos de facto que considerava incorretamente julgados, os concretos meios probatórios (prova documental e testemunhal), constantes do processo e da gravação realizada, que, no seu entender, impunham decisão diversa, nomeadamente no que se refere à al. K) dos Factos Provados.

XIX. O douto acórdão de que se recorre inobservou as normas disciplinadoras da reapreciação da matéria de facto contidas nos art.ºs 662.º e 607.º, n.ºs 4 e 5 do Código Processo Civil (ex vi do n.º 2 do art.º 663.º do mesmo diploma legal), tendo-se limitado a aderir acriticamente ao juízo probatório da 1.ª instância, sem ter procedido à reapreciação da prova, quer testemunhal quer documental, indicada pela recorrente, abstendo-se de proceder, como lhe é imposto, a uma apreciação crítica e valoração autónoma da prova produzida.

XX. Ao acolher e fazer sua a motivação explanada pela 1.ª instância, que transcreveu, fazendo consignar que com ela concordava, num exercício meramente formal dos poderes/deveres que por lei lhe são cometidos, o acórdão recorrido violou de forma clara o disposto nos art.ºs 607.º, n.ºs 4 e 5, 662.º e 663.º, n.ºs 1 e 2.

XXI. Estando em causa a violação de disciplina processual que é exclusivamente imputável ao douto Tribunal da Relação, inexiste, como se referiu já, dupla conformidade decisória que obste à intervenção desse Colendo Supremo Tribunal, como decidido no acórdão proferido em 7 de Julho de 2021 (processo 5835/18.5...), ao qual compete sindicar o (mau) uso feito pelo TRL dos assinalados poderes-deveres, uma vez que se demitiu de proceder à reapreciação dos meios de prova indicados e à sua disposição em ordem a formar a sua própria e autónoma convicção sobre os pontos de facto impugnados.

XXII. Verificada a violação do disposto nos art.ºs 607.º, n.ºs 4 e 5, aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 662.º do CPC, deve o acórdão proferido ser anulado, com a consequente remessa ao douto colectivo do TRL para que proceda à efectiva reapreciação da matéria de facto, como imposto pelas normas indicadas.

XXIII. Ocorre ainda que o TRL violou igualmente normas de direito probatório material -na circunstância os art.ºs 374.º, n.º 1, 376.º, n.ºs 1 e 2, 352.º, 358.º, n.º 2, 346.º, 387.º, n.º 2, 393.º, 394.º do CC, e art.º 421.º, este do Código Processo Civil-, a permitir a intervenção do STJ nos termos do n.º 3 do art.º 674.º do último diploma legal.

XXIV. No acórdão agora recorrido recusou o douto colectivo do TRL modificar a decisão da matéria de facto, designadamente quanto ao nuclear ponto vertido na al K), que manteve como facto provado, em flagrante violação de normas de direito material probatório, impondo-se que o STJ, intervindo nos termos dos art.ºs 674.º, n.º 1, al. a) e n.º 3 e 682.º, n.º 2 do CPC, altere o decidido, eliminando o facto do enunciado dos provados.

XXV. A resposta positiva ao aludido facto assenta em ilegal admissão e valoração da prova testemunhal produzida em ordem a contrariar a declaração confessória da autora/recorrida aposta no contrato promessa de compra e venda que celebrou com a aqui recorrente, cuja genuinidade e autoria expressamente reconheceu, encontrando-se portanto revestido de força probatória plena.

XXVI. E assim ocorreu porque aceitou-se no acórdão recorrido como princípio de prova, indiciando a realidade do facto alegado pela autora no sentido de não ter recebido o preço um documento cuja genuinidade e autoria foram impugnadas e sem que tivesse sido feita prova da sua veracidade, como resulta da motivação.

XXVII. Sem controvérsia, considera a recorrente adquirido nos autos que: i. recaía sobre a autora/recorrida o ónus da prova do facto por si alegado e dado como provado na referida al. K), contraditório com o facto confessado na cláusula 2.ª do contrato-promessa celebrado, documento cuja genuinidade não foi questionada, antes expressamente aceite a sua autoria e veracidade pela autora/recorrida que, assim, enfrentava as limitações probatórias impostas pelos art.s 393.°, n.° 2 e 394.° do Código Civil; ii. em ordem a contrariar tais limitações legais, a aqui recorrida fez juntar aos autos uma cópia de um documento, corporizando um alegado contrato de arrendamento com opção de compra celebrado com a R./recorrente, o qual veio a ser considerado válido princípio de prova escrita, autorizando a produção de prova por testemunhas (e também por presunções judiciárias) para contrariar a declaração confessória exarada no contrato promessa; iii. tendo a ora recorrente impugnado tal documento, que nunca vira e não assinou, sobre a autora ora recorrida recaía o ónus da prova da veracidade da assinatura que imputava àquela nos termos inequívocos prescritos pelo art.º 374.°, n.° 2 do Código Civil; iv. a autora/recorrida, conforme expressamente reconhecido no acórdão impugnado - que acolheu integralmente a sentença proferida pela 1.ª instância- não logrou fazer prova da genuinidade do documento, designadamente que a assinatura atribuída à agora recorrente tenha sido por esta nele aposta, não tendo feito prova da celebração do invocado contrato de arrendamento com opção de compra que o mesmo documento alegadamente corporizaria e que se destinaria a substituir o contrato promessa de compra e venda que celebrou com a ré, conforme ficou a constar do facto não provado 1; v. inversamente, foi reconhecida pelo douto Colectivo do TRL a genuinidade do contrato promessa celebrado -facto provado sob a al. C)- assim dotado de força probatória plena, nos termos dos art.ºs 374.º e 376.º do CC, o que fundamentou a procedência da também requerida, em via reconvencional, execução específica, com o tribunal a substituir a declaração do contraente faltoso, no caso a autora.

XXVIII. Resultando não comprovada a genuinidade do documento que alegadamente corporizaria o contrato de arrendamento com opção de compra celebrado entre as partes e não tendo sido, consequentemente, dado como provado o respectivo conteúdo, ainda fazendo apelo ao princípio da livre apreciação da prova, não podia o mesmo servir como princípio de prova escrita, idónea a permitir, em contramão com as interdições constantes do disposto nos art.ºs 393.º n.º 2 e 394.º, n.º 1 do Código Civil, a produção de prova testemunhal contrária à declaração confessória constante de documento dotado de força probatória plena.

XXIX. É o entendimento expresso pelo Ex.mº Sr. Desembargador Pires de Sousa (Prova Testemunhal, Almedina 2013, pág. 229) quando afirma que “o começo da prova por escrito pode ser constituído por um só escrito ou por vários, mesmo que não subscrito. Deve emanar daquele a quem é oposto, não de um terceiro. A letra ou assinatura desse escrito devem ser previamente reconhecidas ou verificadas; “enquanto não é verificado, o escrito discutido não pode servir de começo de prova porque não se sabe de quem emana.”

XXX. Tanto mais que está em causa nestes autos uma fotocópia de uma fotocópia – uma digitalização de tão baixa resolução que tornou impossível a realização da perícia requerida, sendo mesmo ilegível no que se reporta à assinatura imputada à reclamante - sendo o seu valor probatório, posto que desacompanhada da sua conformidade ao original por entidade a tanto autorizada, aquele que lhe é fixado pelo art.º 368.º do CC; ou seja, como lapidarmente consta deste preceito, tendo sido impugnada a sua exatidão –e foi-o, desde logo, por inexistente o original de que a autora alegou ter sido extraída- não tem qualquer valor probatório, não podendo o aludido documento servir como princípio de prova escrita para efeitos de contornar a disciplina dos citados art.ºs 393.º, n.º2 e 394.º, n.º 1 do CC.

XXXI.. Afastado o documento, que não podia servir como princípio de prova, o facto assente em K) foi julgado provado exclusivamente com fundamento na prova por testemunhas e declarações de parte (que não revestiram natureza confessória), como consta da respectiva motivação, em claríssima violação do disposto nos art.ºs 393.º, n.º 2 e 394.º, n.º1 do CC (v. acórdão do STJ de 14/9/2021, no processo 864/18.1...).

XXXII. Verificando-se que ao arrepio das citadas disposições legais, se veio a considerar no acórdão recorrido, não obstante a ausência de prova da veracidade do documento e da sua autoria, que o mesmo se constituía como válido princípio de prova escrita, abrindo a porta à valoração da prova por testemunhas para dar como provado facto contrário aquele que se encontrava plenamente provado por confissão, ocorreu violação de normas de direito probatório material, na circunstância os já citados art.ºs 374.º, 376.º, 358.º, n.º 2, 347.º, 368.º, 393.º e 394.º.

XXXIII. Excluindo o art.º 607.º/5 do CPC da livre apreciação do julgador os factos já provados por confissão (art.º 358.º n.º 2 e 376.º, n.º 2 do CC), e encontrando-se arredado o invocado erro/lapso na declaração invocado pela recorrida, encontra-se plenamente demonstrado o pagamento do preço da fração objecto do contrato prometido por força da declaração confessória constante do contrato promessa.

XXXIV. Ao considerar assente, em confirmação do juízo probatório da 1.ª instância, o facto contrário, com fundamento na prova testemunhal e declarações de parte prestadas pela ré, que não revestiram natureza de confissão, o V. Tribunal da Relação incumpriu mais uma vez com os seus deveres de reapreciação da prova, infringindo o disposto no art.º 607.º, n.º 5, 663.º, n.º 2 e 662.º, n.º1 do CPC.

XXXV. Violou deste modo o TRL no acórdão de que se recorre a disciplina do art.º 607.º, n.ºs 4 e 4, ex vi do n.º 2 do art.º 663.º e 662.º, n.º 1 do CPC; violação que lhe é exclusivamente imputável, abrindo a porta à intervenção desse STJ, por não se verificar o obstáculo da dupla conformidade decisória.

XXXVI. E mostrando-se violadas no mesmo acórdão as regras probatórias de direito material contidas nos art.ºs 393.º, n.º 2 e 394.º, n.º 1, bem como o disposto nos art.s 358.º, 374.º, 376.º e 387.º, todos do CC, que são fundamento de revista nos termos da previsão das als. a) e b) do n.º 1 e n.º 3 do art.º 674.º, pertencendo este ao CPC, impõe-se a intervenção desse Colendo Tribunal, em ordem a determinar a eliminação da al. K dos factos provados (cf. n.º 2 do art.º 682.º).

XXXVII. Consequentemente, deverá ser revogado o acórdão recorrido, no segmento em que determina que a A. será paga do preço mediante o levantamento dos €125 000,00 depositados pela Ré à ordem dos autos para obstar ao juízo de improcedência deste pedido, mas que não é devido.

XXXVIII. Mas ainda num outro ponto se verifica ter ocorrido violação de norma adjetiva.

XXIX [reproduz-se o original, onde, por lapso, se retomou a numeração a partir de XXIX]. A recorrente insurge-se contra o facto de o acórdão recorrido, na sua fundamentação -por via do acolhimento integral do decidido em 1.ª instância- ter importado diversos factos extraídos da sentença a que se alude em I) dos factos provados, em ordem a fundamentar a condenação da ré no pagamento de indemnização pela ocupação da fracção.

XXX. A recorrente nada tem a opor -pese embora, em seu entender, se trate de facto sem relevância- ao teor da al. I), na qual se reproduziu a sentença proferida no processo n.º 1139/17.9... Mas já não pode concordar com a invocação da autoridade do caso julgado para concluir pelo dever de acatamento nestes autos “[d]os factos relativos à relação obrigacional que subjaz entre as partes” (vide pág. 34 da douta sentença recorrida, que o acórdão recorrido acolheu), dela tendo sido extraídos e autonomizados os factos que se vieram a revelar essenciais para a condenação do recorrente no pedido cível formulado, discriminados na respectiva fundamentação.

XXXI. O caso julgado, ainda que na sua vertente positiva ou de autoridade, forma-se sobre o dispositivo de uma decisão - aquele concreto pedido, enformado por aquela concreta causa de pedir - e não sobre os fundamentos de facto, estando vedado às instâncias considerar como assente a factualidade elencada e dela extrair quaisquer efeitos (cf., a título meramente exemplificativo, acórdãos desse mesmo STJ de 8/11/2018, processo 478/08.4 TBASL.E1.S1, e de 20/11/2019, no processo 841/13.9TJVNF.G2.S1, em www.dgsi.pt).

XXXII. Atento o exposto, estava vedada a consideração da transcrita factualidade, que esse tribunal ad quem deverá ter por excluída, na medida em que a lei não permite a sua “importação” para os presentes autos em violação do disposto no art.º 421.º do CPC, não podendo servir de suporte fáctico à decisão de condenar a ré em indemnização pela privação do uso da fracção,

XXXIII. Estando em causa, uma vez mais, preterição dos deveres impostos ao TR pelos art.ºs 607.º, n.ºs 4 e 5 e 662.º do CPC na reapreciação dos factos, não se verifica o obstáculo da dupla conformidade, estando autorizada por via do antes mencionado art.º 674.º, n.º 1, al. b), a intervenção desse ST, em ordem a determinar a desconsideração dos factos indevidamente importados da sentença proferida no processo identificado na al. I) dos factos provados, com a consequente absolvição da recorrente do pedido de indemnização pela ocupação da fracção, assim sem qualquer suporte factual

XXXIV. Nos termos do art.º 629.º, n.º 2, al. a) do CPC, é sempre admissível recurso com fundamento na ofensa de caso julgado.

XXXV. Não estando em causa a excepção dilatória do caso julgado, estamos perante a autoridade do caso julgado formado pelo acórdão antes proferido no apenso D, o qual se mostra transitado em julgado e cuja ofensa também pode fundamentar a interposição de revista ao abrigo do citado art.º 629.º, n.º 2, al. a), na sua parte final, conforme entendeu já o STJ em acórdão de 11/11/2020 (processo 214/17.4 T8MNC.G1.C1, Sr.ª C.ª Graça Trigo).

XXXVI. A chamada autoridade do caso julgado “implica o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreva, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação posterior, obstando a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa” (cf. acórdão do STJ de 26/11/2020, processo 7597/15.9 T8LRS.C1.S1, em www.dgsi.pt).

XXXVII. Visa, portanto, “(…) garantir a vinculação dos órgãos jurisdicionais e o acatamento pelos particulares de uma decisão judicial transitada, na circunstância de se verificar diversidade entre os objectos processuais e funcionar o objecto processual anterior como condição prejudicial dependente para a apreciação do objecto processual posterior (efeito vinculativo à não repetição e à não contradição da decisão anterior em processo subsequente com diverso objecto) (acórdão do STJ de 9/3/2921, processo 1242/05.8TBBCL-Y.G1.S1, acessível no mesmo sítio).

XXXVIII. No acórdão de que agora se recorre considerou-se, secundando o juízo feito pela 1.ª instância, que o denominado contrato de arrendamento com opção de compra junto pela recorrida, apesar do reconhecimento de que a autora não tinha cumprido o encargo probatório que sobre ela recaía, não tendo logrado convencer da genuinidade e autoria do mesmo documento, autorizava ainda assim, quando sujeito ao princípio da livre apreciação da prova, a produção de prova testemunhal, permitindo que se desse como provado que a ora recorrente não tinha pago o preço, contrariando declaração confessória da recorrida constante de documento com força probatória plena – vide a já muito falada al. K) dos factos provados.

XXXIX. E com base na afirmada realidade desse facto, foi a agora recorrente condenada como litigante de má fé na multa de 10 Ucs já depois de proferida se sentença final, por se ter então considerado que alegara falsamente ter a autora recebido, aquando da assinatura do contrato promessa de compra venda, sinal no montante de €125 000,00, que correspondia à totalidade do peço convencionado, tendo deduzido pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar (vide decisão proferida em 12/12/2021).

XL. Tendo a agora recorrente interposto recurso dessa decisão, veio a ser proferido pelo TRL o acórdão de 29/11/2022, transitado em julgado (apenso D) destes autos, curiosamente também subscrito pelo Ex.mº Sr. Juiz Desembargador relator do acórdão agora recorrido na qualidade de 2.º adjunto), que revogou a decisão recorrida, absolvendo a recorrente.

XLI. E para o que aqui releva, considerou-se no acórdão proferido naquele apenso D, que se mostra transitado em julgado, que estando assente por documento particular dotado de força probatória plena (arts. 374.º, n.º 1, e 376.°, n.ºs 1 e 2, do Código Civil), no caso o contrato-promessa reduzido a escrito no documento particular assinado pelo legal representante da Autora e pela Ré em 25-11-2011, dado por integralmente reproduzido na al. C) dos Factos considerados Provados na sentença final, que a autora, promitente vendedora, confessara ter recebido o preço da fracção, de que dava a competente quitação, era inadmissível a prova testemunhal dum facto contrário ao conteúdo desse documento, nos termos do art.º 394.°, nº 1, do Código Civil, irrelevando a excepção à regra geral, reconhecida pela doutrina e que a jurisprudência tem seguido, uma vez que “no caso em apreço, o documento invocado pelo tribunal "a quo" como constituindo um princípio de prova documental do facto contrário a um facto de índole confessória plenamente provado por documento particular (…) “é um documento particular cuja autoria e genuinidade não foi minimamente provada” pelo que “ nunca poderia invocar-se um tal documento para considerar que já existe, no caso dos autos, um princípio de prova documental que toma verosímil o facto contrário à declaração confessória contida na cláusula 2ª do contrato-promessa (quanto ao recebimento, pela promitente-vendedora, da totalidade do preço estipulado para a venda do imóvel).

XLII. Concluindo-se no mesmo acórdão que “A esta luz, o segmento da decisão sobre matéria de facto contida na sentença que considerou provado que "O preço de compra do imóvel constante do documento referido em C) nunca foi recebido pela Autora" (alínea K) dos factos tidos por provados) sempre teria de considerar-se "não escrito".

XLIII. A mesma questão -saber se podia ser validamente considerada a prova testemunhal para efeitos da demonstração do facto vertido em K) face ao documento apresentado como princípio de prova escrita, sendo este um documento particular impugnado, sem estar demonstrada a sua genuinidade- que se colocava como precedente necessário da decisão a proferir no apenso D) e também nos autos principais, colocou-se exactamente nos mesmos termos em cada um dos acórdãos, apesar dos diferentes themas decidendum, tendo recebido respostas contraditórias.

XLIV. Assim sendo, e verificando-se que o acórdão proferido no apenso D) se mostrava transitado em julgado aquando da prolação do acórdão agora recorrido, impunha-se, no entender da recorrente, o acatamento nos autos principais do ali decidido, sob pena de violação da autoridade do caso julgado.

XLV. Tendo o acórdão sob recurso decidido divergentemente a mesma questão em violação do caso julgado que se formara, verifica-se nos autos a inexplicável situação de o mesmo facto se ter simultaneamente como provado e não provado no mesmo processo: não provado para efeitos de condenação da agora recorrente como litigante de má fé; provado para efeitos de a obrigar ao depósito do preço como condição da substituição da declaração da promitente faltoso, resultado que não pode manter-se, devendo acatar-se o primeiro julgamento, eliminando-se a al. K e absolvendo-se em consequência a ora recorrente da condenação no pagamento dos €125 000,00 relativos ao preço.

Sem conceder:

DA REVISTA EXCEPCIONAL

XLVI. Doutrina e Jurisprudência têm aceitado uma interpretação restritiva das interdições probatórias consagradas nos artigos 393.º e 394.º do Código Civil quando exista um princípio de prova documental que torne verosímil a realidade do facto alegado contrário, admitindo-se prova complementar por meio de testemunhas ou presunções judiciárias, que passam a ser autorizadas (arts.º 349.º e 351.º do mesmo diploma legal), então já não os únicos meios de prova.

XLVII. Esta prova, contudo, tem que tornar verosímil a convicção do legislador sobre a existência do facto contrário, reservando um papel secundário ou meramente complementar à prova testemunhal ou por presunções.

XLVIII. No entanto, este princípio de prova escrita não pode, no entender da ora recorrente, ser qualquer documento relativamente ao qual as instâncias, mediante invocação do princípio da livre apreciação, tiveram como válido, impondo-se reconhecer ao STJ margem para intervir e sindicar a valoração desse princípio de prova escrita e a ponderação dada à prova por testemunhas (e também por presunções judiciárias), na mesma medida em que controla a prova por presunções judiciárias.

XLIX. Não pode admitir-se como princípio de prova um escrito que, conforme se reconhece no acórdão recorrido, não tem a sua autoria reconhecida, não tendo sido feita prova de que tenha sido subscrito pela recorrente, logo, não lhe podendo ser imputadas as declarações dele constantes.

L. Impõe-se a intervenção desse Supremo Tribunal em ordem a definir que um documento particular cuja autoria e genuinidade não foi minimamente provada não pode ser considerado princípio de prova documental que torna verosímil o facto contrário à declaração confessória contida em documento particular revestido de força probatória plena, em ordem a autorizar a produção de prova testemunhal e por presunções judiciárias, não valendo aqui a invocação do princípio da livre apreciação da prova em ordem a suprir o fracasso da parte apresentante, onerada com a prova da genuinidade e autoria daquele documento.

LI. Com incidência no caso dos autos, tal entendimento implica que o Supremo Tribunal de Justiça determine que seja desconsiderada a prova por testemunhas e também por declarações de parte (que não revestiram natureza confessória) produzida em violação das disposições legais dos art.ºs 393.º, n.º 2 e 394.º, n.º 1 do CC, eliminando, em consequência, a al. K) dos factos provados, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 674.º, n.º 3 e 682.º, n.º 2 do CPC, com a consequente revogação do segmento final da al. D) do dispositivo do douto Acórdão que determina que o preço pago à A./recorrida seja feita através do levantamento da quantia depositada nos autos. Acresce ainda que,

LII. Verificada a evidenciada contradição de acórdãos, deve ser acolhida a posição explanada e perfilhada no acórdão fundamento (proferido pelo TRL no apenso D) e transitado em julgado).

LIII. A indevida valoração feita no acórdão recorrido do documento junto pela autora, o dito contrato de arrendamento com opção de compra, como válido princípio de prova escrita, teve como consequência a validação de proibida prova por testemunhas e declarações de parte, de natureza não confessória, na qual assentou exclusivamente a decisão de dar como provado facto contrário a declaração confessória constante de documento com força probatória plena, em clara violação de normas de direito material probatório, os sempre invocados art.ºs 393.º, n.º 2 e 394.º, n.º 1 do CC.

LIV. A contradição de julgados sobre a enunciada questão, que se revelou essencial para a decisão proferida nos acórdãos contraditórios, deve ser resolvida pelo STJ com a afirmação de que um documento particular impugnado, cuja autoria e genuinidade não se mostram estabelecidas, não pode ser validado, nem por apelo ao princípio da livre apreciação da prova, como princípio de prova escrita em ordem a permitir o uso de prova por testemunhas (e por presunções judiciárias) nas situações prevenidas nos citados preceitos.

LV. Consequentemente, deve ser, ainda aqui, por intervenção desse STJ nos termos do art.º 682.º, n.º 2 do CPC, eliminada a al. K) dos factos provados, subsistindo a confissão da autora no sentido de ter recebido o preço, do que deu válida quitação, com a consequente revogação do acórdão recorrido quando autoriza a recorrida a pagar-se do montante de €125 000,00 pelo depósito efectuado nos autos.

Formuladas as conclusões, a recorrente terminou a alegação pela seguinte forma:

Termos em que e, nos demais de Direito que V.Ex.ª não deixarão de suprir

Deve a presente revista ser julgada procedente e, em consequência:

a) eliminar-se a al. K) dos factos provados, revogando o acórdão recorrido no segmento final da al. D) do dispositivo, quando determina que o preço seja pago à autora/recorrida mediante o levantamento da quantia depositada nos autos, a qual deve antes ser restituída à recorrente, por não ser devida;

b) absolver a A. do pedido indemnizatório em que foi condenada.

Quando assim se não entenda,

Deve a presente revista ser julgada procedente e, verificada a violação do disposto nos art.ºs 607.º, n.ºs 4 e 5, aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 662.º do CPC, deve o acórdão proferido ser anulado, com a consequente remessa ao douto Colectivo do Tribunal da Relação de lisboa para que proceda à efectiva reapreciação da matéria de facto, como impõem as normas indicadas.”

15. A R. contra-alegou, rematando com as seguintes conclusões:

O objeto dos presentes recursos de revista e de revista excecional

1. Vêm os presentes recursos de revista e de revista excecional interpostos do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 26.05.2023 que confirmou, na íntegra, a Decisão singular de 30.06.2022 a qual, julgando improcedente o recurso de apelação interposto pela recorrente, confirmou a Sentença proferida pela 1ª instância, de 15.10.2021.

Sinopse do processo

2. Em 25 de novembro de 2011, recorrente e recorrida assinaram um contrato-promessa de compra e venda relativo à fração autónoma em causa nestes autos (vd. doc.4 junto com a Petição Inicial).

3. A recorrida, tendo-se apercebido de um erro constante daquele contrato que referia ter existido quitação total do preço no momento da sua assinatura, acordou com a recorrente substituir tal documento pelo contrato de arrendamento com opção de compra, celebrado em 30 dezembro de 2011, cuja cópia constitui o doc.5 junto com a Petição Inicial.

4. O aludido contrato de arrendamento com opção de compra, com data de início de produção de efeitos em 1 de dezembro de 2011, permitiu à recorrente ocupar o imóvel reivindicado a título de arrendatária.

5. O montante de 25.000,00 Euros afeto a título de antecipação de cinco anos de rendas é demonstrado pelo recibo cujo original foi junto aos autos em 18.10.2018 (cf. requerimento com a referência Citius 30402454).

6. Ao abrigo do disposto na cláusula 2.ª, n.º 3, do referido contrato de arrendamento com opção de compra, a recorrida opôs-se à renovação do contrato para novo período de vigência, através de carta remetida à recorrente em 7 de agosto de 2015 (cf. docs.6 e 7 juntos com a Petição Inicial).

7. Considerando que o imóvel não foi devolvido à recorrida, apesar das várias solicitações nesse sentido, a mesma intentou uma ação de despejo no Balcão Nacional de Arrendamento, que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Cível de ... – Juiz ... (Proc. n.º 1139/17.9...), no âmbito da qual foi considerado como provado que a fração em causa foi cedida pela recorrida à recorrente, não tendo esta pago qualquer quantia pela sua cedência.

8. O preço que consta no contrato de promessa de compra e venda nunca foi pago pela recorrente, limitando-se a mesma a permanecer na fração, sem a liquidação de qualquer quantia a título de renda, IMI, seguro multirriscos ou outro.

9. Não obstante terem ficado provados os factos melhor descritos nos artigos 15º a 17º da Petição Inicial, não foi possível obter o despejo requerido em virtude de a recorrida não ter conseguido localizar o original do aludido contrato de arrendamento com opção de compra (vd. doc.10 do cit. articulado).

10. A recorrente continuava a recusar-se a entregar o imóvel à recorrente, sua legítima proprietária, comportamento que justificou a instauração da presente ação de reivindicação.

11. A recorrente contestou e deduziu pedido reconvencional, tendo a recorrida deduzido réplica, na qual respondeu espontaneamente às exceções – não expressamente identificadas – deduzidas na Contestação, além de se ter defendido por impugnação quanto à reconvenção deduzida.

12. Em sede de despacho saneador (cf. referência Citius ...91), o Tribunal definiu o objeto do litígio e os temas da prova, tendo decidido quanto à prova documental o seguinte: «Admite-se a junção aos autos da prova documental oferecida pelas partes».

13. Por força de não ter sido possível à recorrida localizar o original do referido contrato de arrendamento, o Tribunal notificou a mesma para vir juntar aos autos a «cópia original» do mesmo (cf. despacho com 40/49 a referência Citius ...65), o que esta cumpriu através do requerimento com a referência Citius 31672007.

14. Do ofício junto aos autos pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária (LPC) – vd. referência Citius ...84 – resulta que «A zona da fl. 170, onde estão reproduzidas as assinaturas dos contraentes, não revela qualquer vestígio de montagem, pelo que não é possível inferir se a assinatura da segunda contraente, aposta no original utilizado na reprodução do contrato de arrendamento, foi, ou não, alvo de qualquer manipulação» (sublinhado nosso) – vd. referência Citius 14609984.

15. Insatisfeita, a recorrente, em 05.11.2019, cerca de 17 (dezassete) meses após a prolação do despacho saneador que admitiu a junção aos autos da prova documental oferecida pelas partes (cf. referência Citius ...91) e, também, após a realização das perícias por si solicitadas, entendeu vir requerer a não admissão do aludido contrato de arrendamento (cf. requerimento com a referência Citius 33912208), pretensão que não foi acolhida pelo Tribunal de 1ª instância.

A sentença proferida pela 1ª instância

16. A ação foi julgada parcialmente procedente, por provada, e a reconvenção totalmente procedente, e em consequência, decidiu o Tribunal de 1ª instância, em súmula, condenar a recorrente no pagamento à recorrida de uma indemnização de € 540,00 por mês, calculada desde dezembro de 2016 até à data da prolação da presente sentença, acrescida de juros de mora, e decretar a execução específica do contrato-promessa celebrado entre recorrente e recorrida, declarando vendido por esta àquela a fração em causa nestes autos, pagando-se a recorrida do preço mediante o levantamento de € 125 000,00 depositado à ordem dos autos pela recorrente.

A decisão singular proferida no âmbito do recurso de apelação interposto pela recorrente

17. Da aludida Sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância interpôs a recorrente recurso de apelação, o qual foi julgado totalmente improcedente pela Decisão singular proferida em 30.06.2022.

Do Acórdão recorrido

18. O Acórdão recorrido confirmou a Decisão singular impugnada, sendo, então, desse Acórdão que a recorrente decidiu interpor os presentes recursos de revista e de revista excecional.

O recurso de revista

19. O Acórdão recorrido confirmou, em absoluto, a referida Decisão singular que, por sua vez, também já havia confirmado, na sua plenitude, a Sentença proferida pela 1ª instância, verificando-se uma dupla conformidade entre as decisões das instâncias, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente.

20. Ressalta do enunciado pela recorrente que a mesma questiona o juízo fáctico realizado, quer pela aludida Decisão singular, quer pelo Acórdão recorrido, na sequência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, patenteando-se uma discordância quanto à articulação dos meios de prova constantes dos autos.

21. Estamos perante uma discordância em termos do factualismo apurado e tomado em consideração pela Relação, que para além de não sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, como resulta do n.º 4 do art.º 662 do CPC, também não se consubstancia numa realidade que possa afetar a existência da dupla conforme.

22. Todas a decisões proferidas assentaram exatamente no mesmo enquadramento jurídico, interpretando as normas jurídicas aplicáveis no mesmo sentido e extraindo idênticas consequências no que respeita à situação em apreço.

23. Sendo inequívoca a verificação da dupla conforme no presente caso, não pode deixar de entender-se que não é admissível o presente recurso de revista, pelo que não deve o Supremo Tribunal de Justiça conhecer do respetivo objeto, e assim considerar-se o mesmo findo, nos termos do art.º 652, n.º1, b), por força do constante no art.º 679, todos do CPC.

24. Ainda que assim não se entenda, o que por mera cautela de patrocínio se pondera, mas não se concede, sempre se dirá que inexistem motivos para que o presente recurso de revista possa proceder, desde logo por não ser verdade que o Acórdão recorrido tenha violado as normas disciplinadoras da matéria de facto contidas nos artigos 662º e 607º, nºs 4 e 5 do CPC, ao contrário do alegado pela recorrente.

25. A propósito da alínea K), como facto assente, a fundamentação elaborada pela 1ª instância foi devidamente considerada e confirmada, quer pela aludida Decisão singular (apesar de a recorrente ter posto em causa a fiabilidade de documento autêntico e a fiabilidade e honestidade das pessoas nele intervenientes, «o que é de lamentar7» - Vd. pág-10 da cit. Decisão singular), quer pelo Acórdão recorrido.

26. A recorrente invoca erro na apreciação da prova por parte do Tribunal recorrido, algo que extravasa os poderes do Supremo Tribunal de Justiça em sede de recurso de revista.

27. A recorrente continua a insistir que o Tribunal estava impedido de valorar a prova testemunhal produzida e as suas declarações de parte, pela simples razão de que ficou absolutamente claro e patente que o preço que consta no contrato de promessa de compra e venda nunca foi pago.

28. Já a propósito da reclamação do despacho saneador, a ora recorrente abordara a questão do ónus da prova quanto à matéria do ponto 4 dos temas da prova, referindo que à recorrida estava vedado o recurso à prova testemunhal, tendo a 1ª instância, através do despacho de 8.10.2018, decidido o seguinte o seguinte:

«É certo que nos termos do disposto nos art°s. 374°, nº 1, 376°, nºs 1 e 2, 352° e 358°, n° 2 do C.C. a declaração constante do contrato promessa quanto ao pagamento do preço, documento não impugnado quanto à autoria e assinatura, reveste natureza confessória, pelo que oposta à contraparte do contrato, a ora A., incumbe a esta a prova do contrário (art° 347° do C.C.).

Estamos perante normas que estipulam a força probatória de documentos e impõem a prova do contrário — isto é, normas de direito probatório material, que pela sua natureza prevalecem sobre as normas (gerais) invocadas na resposta pela A..

Todavia, como defende parte significativa da jurisprudência, entendimento que perfilhamos, a prova do contrário, que incumbe à A., poderá ser feita por qualquer meio probatório (designadamente testemunhal), uma vez que foi junto um contrato de arrendamento celebrado entre as partes, em data posterior e próxima do contrato promessa. Só assim não será se se vier a provar a sua falsidade, uma vez que foi impugnado.

Neste sentido v. entre outros, Ac. STJ de 09-07-2014, in www.dgis.pt:

"Quando há «um começo de prova por escrito que torne verosímil o facto alegado, a prova testemunhal já não é o único meio de prova do facto, justificando-se a exceção, por então o perigo da prova testemunhal ser eliminado em grande parte, visto a convicção do tribunal se achar já formada parcialmente com base num documento. Também no nosso direito se o facto a provar já está tomado verosímil por um começo de prova escrito, a prova de testemunhas é de admitir, pois não oferece os perigos que teria quando desacompanhada de tal começo de prova» (conf. mesmo autor, in RLJ, ano 107°, pág 312) e Mota Pinto/Pinto Monteiro, in Parecer publicado em CJ, Ano X, tomo. III, pág 11 e ss."»

29. Na sessão de julgamento realizada em 7.10.2020, e finda a produção de prova, o Tribunal, face às declarações prestadas pela recorrente, decidiu determinar oficiosamente a inquirição do pai da mesma, despacho do qual a recorrente interpôs recurso, que veio a ser julgado improcedente pelo Tribunal da Relação de Lisboa nos seguintes termos:

«…toda a argumentação desenvolvida agora no recurso em que assenta a defesa da impossibilidade de inquirição oficiosa da testemunha em questão foi já suscitada na causa e devidamente apreciada, concluindo-se, à partida, pela viabilidade da produção de prova testemunhal sobre a matéria em questão.

Por conseguinte, tendo sido mencionado pela Ré, ao prestar em audiência declarações de parte, que o seu pai, não indicado como testemunha, teria conhecimento de facto que integrava um dos temas de prova, conforme resulta da fundamentação do despacho impugnado, nenhuma razão se vislumbra para que o Tribunal ouvisse preambularmente as partes sobre a pertinência da sua inquirição à luz do art. 526, nº 1, do C.P.C. […]

Como é também sabido, a doutrina e a jurisprudência têm realizado uma interpretação restritiva dos limites à utilização da prova testemunhal consagrados no art. 394 do C.C., defendendo que será de admitir a prova testemunhal como meio de prova complementar de outro meio admissível que constitua um começo de prova, como um princípio de prova por escrito. Assim, existindo prova documental (princípio de prova por escrito), pode ser admitida a prova testemunhal que a complete» (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4ª ed., pág. 344, Mota Pinto, “Arguição da Simulação pelos Simuladores – Prova testemunhal”, parecer publicado em CJ, Ano X, 1985, T. 3, págs. 10 e ss., e Luís Pires de Sousa, “Prova Testemunhal”, Almedina, 2016, págs. 223 a 234; ver, ainda, os Acs. do STJ de 17.12.2020, Proc. 3815/16.4T8AVR.P1.S1, de 21.3.2019, Proc. 2639/13.5TBVCT.G1.S2 e de 9.7.2014, Proc. 28252/10.0T2SNT.L1.S1, em www.dgsi.pt.).

30. A propósito (da falta) do pagamento do preço que consta do contrato-promessa de compra e venda depuseram, com clareza, sinceridade e consistência, as testemunhas BB e CC, as quais demonstraram ter conhecimento direto desta matéria.

31. Conforme se pode ler na sentença da 1ª instância, «a testemunha BB explicou que foi administradora da A., conhecendo o pai da R. por ser fornecedor da A., tendo explicado o contexto adjacente à entrega da fração em causa nos autos à R. Assim, por força da deslocação dos pais da R. para o ... por volta de 2008/2009, o engenheiro DD emprestou a fracção em causa nos autos para a R. habitar, deslocando-se da zona onde anteriormente se encontrava, para estar mais protegida. Posteriormente, em ordem a formalizar a dita situação – conjuntamente com outras situações semelhantes – decidiram outorgar contratos promessa de compra e venda. Atentas as funções que exercia, sabe que o preço que consta do contrato promessa celebrado entre as partes não foi pago, tratando-se de lapso quanto à quitação. Explicou ainda esta testemunha que o mencionado lapso terá resultado da circunstância de ter sido utilizada a minuta que foi utilizada no outro caso semelhante existente na Quinta ..., com a diferença em que, nesse, o preço havia sido efetivamente pago. Foi perentória em afirmar que da análise que fez das contas da empresa, das mesmas não constava o pagamento do preço constante do contrato promessa» (realce e sublinhado nossos).

32. Por seu turno, prestou declarações de parte a ora recorrente, a qual referiu, a propósito do pagamento do preço, «de forma muito comprometida, que julgava que o preço tinha sido pago. Instada a esclarecer se conhecia o objeto da presente ação, afirmou que sim, mais declarando que não conhecia como e quando o preço foi pago, tendo referido de forma muito evasiva que foi tudo tratado pelos pais. Por fim, transmitiu que não chegou a pedir um empréstimo bancário porque a escritura final não aconteceu» (vd. sentença recorrida).

33. A recorrente confirmou que não pagou qualquer quantia relativa ao preço acordado no contrato-promessa de compra e venda, além de também ter referido, de forma manifestamente comprometida, que desconhecia de que forma os seus pais teriam pago o preço.

34. Considerando as declarações de parte da recorrente, o Tribunal de 1ª instância determinou oficiosamente a inquirição do pai daquela, o qual disse expressamente que não entregou qualquer dinheiro por conta do preço do contrato-promessa em causa nos autos.

35. Da análise de tudo quanto acima se deixa exposto resulta uma conclusão óbvia: «…se a R. diz desconhecer as circunstâncias de tempo e modo do pagamento de € 125 000,00, nem demonstra sequer conhecimento da sua efetiva ocorrência (apesar de resultar evidente, relembramos que não se trata de uma módica quantia), relegando tal conhecimento para o seu pai que, por sua vez, afirma expressamente não ter ocorrido o mesmo, pensamos que sem grande esforço de raciocínio lógico-dedutivo resulta inelutável a conclusão de que a R. não pagou o preço de € 125 000,00» – realce e sublinhado nossos (vd. sentença da 1ª instância).

36. Devidamente aquilatado do sentido dos aludidos depoimentos, alcance intrínseco e razão sustentada de ciência, é inatacável que o Tribunal fez uma correta apreciação e valoração de toda a prova testemunhal produzida e, bem assim, das declarações de parte da recorrente, resultando inequívoco que não merece qualquer discussão ou dúvida que «O preço de compra do imóvel constante do documento referido em C) nunca foi recebido pela A» (vd. alínea K) dos factos provados).

37. Com efeito, «…em julgamento, não só o pai da R. referiu expressamente não ter entregue tal quantia como, instada, a R. desconhecia de que forma o valor do preço enunciado no contrato-promessa havia sido satisfeito à A. Ora, cremos que ofende os padrões de rectitude de consciência comum, peticionarse a condenação de uma parte no pagamento de uma quantia tão avultada como o é a de € 250 000,00, alegando-se, para o efeito, já se mostrar cumprido o pagamento do preço, quando tal manifestamente 45/49 não sucedeu. Por se tratar de facto pessoalíssimo, não tinha a R. como ignorar não ter sido pago o sinal do contrato-promessa, tendo adoptado uma conduta processual em ordem a querer fazer-se valer da força probatória plena do referido documento para evitar o recurso à prova testemunhal, nos termos do artigo 392.º, n.º 2 do Código Civil» (realce e sublinhado nossos) – vd. despacho de 13.12.2021, com a referência Citius ...93.

38. É patente que, “in casu”, existe nos autos documento a constituir princípio de prova permissiva do recurso à prova testemunhal, designadamente o aludido contrato de arrendamento com opção de compra celebrado em 30 dezembro de 2011 (ou seja, em data posterior e próxima do contrato promessa junto aos autos), a que acresce o recibo cujo original foi junto aos autos em 18.10.2018 (cf. requerimento com a referência Citius 30402454), comprovativo da afetação do montante de 25.000,00 Euros a título de antecipação dos cinco anos de rendas.

39. Ressalta com toda a evidência das conclusões da alegação da recorrente que a mesma se limita a discordar da posição da Relação no que tange à decisão havida sobre a deduzida impugnação da matéria de facto, discordando da apreciação de tal matéria pela Relação, da convicção que a Relação formou com base na prova produzida nos autos.

40. Quanto à alínea I) dos factos provados, e como bem se refere na Decisão singular da qual a ora recorrente reclamou «O que ocorreu na alínea I) dos factos assentes não foi uma transferência dos factos apurados numa causa para a outra. Tanto assim é que o que Exma. Senhora Juiz fez constar, foi: - “… Da decisão proferida no processo nº 1139/17.9YLPRT (…)” Foi, pois, a reprodução integral dados segmentos relevantes do conteúdo de uma sentença reputada pertinente. Ora isso não implica destacar partes, mormente factos, como assentes autonomamente».

41. Ainda a este respeito, pode ler-se no Acórdão recorrido, com o qual se concorda: «é entendimento jurisprudencial pacífico que: - A força de caso julgado de uma decisão de mérito não abrange o julgamento da matéria de facto. A força probatória de uma decisão judicial coincide com a extensão do caso julgado material respetivo. A certidão de uma sentença apenas prova que foi emitida uma decisão judicial com certo conteúdo; não faz prova, nem dos factos, nem dos direitos reconhecidos na decisão. O que ocorreu na alínea I) dos factos assentes não foi uma transferência dos factos apurados numa causa para a outra. Tanto assim é que o que a Exma. Senhora Juiz fez constar foi: -“… Da decisão proferida no processo n.º 1139/17.9YLPRT que correu termos no Juízo Local Cível de ..., Juiz ..., junta como doc.10 e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, consta que…” Foi, pois, a reprodução integral dados segmentos relevantes do conteúdo de uma sentença reputada pertinente. Ora, isso não implica destacar partes, mormente factos, como assentes autonomamente».

42. Tendo procedido à apreciação crítica e valoração a prova produzida, decidiu a Relação não alterar a matéria de facto dada por assente, não se vislumbrando a violação de qualquer norma ou regra de direito adjetivo atinente à (re)apreciação da matéria de facto.

43. O Tribunal não estava impedido de valorar a prova testemunhal produzida, mais se concluindo que a apreciação global feita, nomeadamente no que concerne aos meios de prova atendidos e respetiva valoração, não merece qualquer reparo.

44. Por outro lado, considerando o objeto do Apenso D e o objeto do presente recurso (totalmente distintos), não faz sentido falar-se aqui em autoridade do caso julgado.

45. Não tendo sido proferida qualquer decisão de mérito no aludido Apenso D relativamente ao objeto do Douto Acórdão recorrido, somos levados a concluir que nada ali foi decidido que pudesse ser de molde a impedir a decisão de que a recorrente ora vem recorrer.

46. Ao contrário do que alega a recorrente, não é verdade que o Acórdão recorrido tenha decidido divergentemente a mesma questão, do mesmo modo que também não verdade que estejamos perante uma situação de o mesmo facto se ter simultaneamente como provado e não provado no mesmo processo.

47. A decisão proferida no Apenso D não tem a virtualidade de alterar os factos assentes constantes da sentença proferida pela 1ª instância e que, não obstante os diversos recursos interpostos pela recorrente, se mantiveram inalteráveis, ou seja, inexistiu, em ambos os Acórdãos, qualquer modificação pela Relação da factualidade dada como provada.

48. Tendo a decisão de condenação da recorrente como litigante de má fé objeto materialmente autónomo em relação à decisão de mérito, a revogação daquela decisão não afeta a dupla conformidade formada em relação a esta (a este respeito, cf. Ac. do STJ de 11.11.202, proferido no processo 214/17.4T8MNC.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt).

49. Sendo consabido que a autoridade do caso julgado tem, essencialmente, a ver com ocorrência de uma relação de prejudicialidade entre o objeto da segunda ação e o objeto da primeira, é inequívoco que o objeto do aludido Apenso D não se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objeto dos presentes autos, pelo que a autoridade de caso julgado formado pela decisão proferida naquele Apenso não abrange, como é evidente, os pedidos formulados na presente ação.

50. Tal resulta, aliás, evidente do próprio Acórdão proferido no aludido Apenso, no qual se pode ler que «a apreciação da questão e saber se a Ré ora Apelante litigou ou não de má fé (que constitui o objeto do presente recurso) não está afinal dependente da sorte do recurso de Apelação que a Ré também interpôs da sentença final».

51. Atento o que, sempre terá de ser negada a presente revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

O recurso de revista excecional

52. Entende a recorrida que é de rejeitar liminarmente o presente recurso de revista excecional interposto pela recorrente, em virtude de esta não ter concretizado, relativamente à alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, quaisquer razões que permitam a caracterização da questão suscitada como uma questão que, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

53. A questão invocada reconduz-se, apenas, a interesses privados da ora recorrente e ao seu inconformismo e discordância face ao acórdão recorrido, não sendo, pois, de admitir a revista excecional quando as razões invocadas para a sua admissão se limitam às consequências e impacto negativo particulares da recorrente.

54. O Acórdão recorrido decidiu a questão de fundo, confirmando, em absoluto, a aludida Decisão singular que, por sua vez, também já havia confirmado, na sua plenitude, a sentença proferida pela 1ª instância.

55. Por seu lado, o acórdão-fundamento limitou-se a revogar o despacho da 1ª instância que considerou que a recorrente litigou de má fé, tratando-se, pois, de recursos com objetos completamente diferentes, no âmbito dos quais foram, pois, proferidas decisões sobre questões totalmente distintas, não estando em causa, sequer, uma questão fundamental de direito.

56. É inequívoco que a decisão a proferir num e noutro acórdão não estava dependente da resolução de uma mesma questão essencial de direito, sendo patente que as situações em causa nos dois acórdãos não apresentam qualquer semelhança, inexistindo qualquer conexão entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento sobre uma questão fundamental de direito, pelo que entende a ora recorrente ser de rejeitar liminarmente o presente recurso de revista excecional interposto pela recorrente.

57. Ainda que assim não se entenda, o que por mera cautela de patrocínio se pondera, mas não se concede, sempre se dirá que deverá ser acolhida a posição explanada e perfilhada no Acórdão recorrido e, por consequência, na referida Decisão singular e na Sentença proferida pela 1ª instância.

58. Se por um lado, seja na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, seja na doutrina autorizada, poucas questões haverá que reúnam tamanha aceitação pacífica e uniformidade de interpretação como a que aqui está em causa, ou seja, a admissibilidade de prova testemunhal face a um princípio de prova escrita/documental que torne verosímil o facto a provar, por outro lado é inequívoco que, “in casu”, existe nos autos documento a constituir princípio de prova permissiva do recurso à prova testemunhal.

59. A jurisprudência dos tribunais superiores tem entendido que quando houver determinado circunstancialismo, por exemplo um princípio de prova por escrito, que tornem verosímil o facto a provar, contrário à declaração confessória, ficará aberta a possibilidade de complementar esse circunstancialismo, mediante testemunhas, de modo a fazer a prova do facto contrário ao constante dessa declaração, ou seja, no caso, a prova de onde resulte não corresponder à realidade o afirmado recebimento do preço.

60. Assim, refere-se, por exemplo, no Acórdão do STJ de 7/2/20088 : «[…] Aceita-se que a regra do n.° 1 do art. 394° do C, se aplicada sem restrições, poderá dar lugar a situações iníquas, havendo, por isso, que ressalvar certas hipóteses em que a prova testemunhal deverá ter-se por admissível mesmo tendo por objecto uma convenção contrária ou adicional ao conteúdo do documento».

61. Indo mais longe, poderá igualmente afirmar-se – ainda em sintonia com o ensinamento do Prof. Vaz Serra – que se um começo de prova por escrito que torne verosímil o facto alegado permite a prova testemunhal, o mesmo parece dever acontecer com qualquer outra circunstância que o torne verosímil. «Efetivamente, se as circunstâncias do caso concreto tornam verosímil a convenção, a prova testemunhal desta não tem já os mesmos perigos que a regra dos artigos 394° e 395° se destina a conjurar, dado que o tribunal se não apoiará, para considerar provada a convenção, apenas nos depoimentos das testemunhas, mas também nas circunstâncias objectivas que tornam verosímil a convenção: nesta hipótese, a convicção do tribunal está já parcialmente formada com base nessas circunstâncias, e a prova testemunhal limita-se a completar essa convicção, ou antes, a esclarecer o significado de tais circunstâncias[…]».

62. O acima transcrito reflete o entendimento largamente maioritário dos tribunais superiores, com que, humildemente, a recorrida concorda, impondo-se, desde modo, que seja negado provimento ao recurso de revista excecional interposto pela recorrente, confirmando-se a decisão ínsita no Acórdão recorrido.

Formuladas as suas conclusões, a recorrida terminou a alegação pela seguinte forma:

Termos em que, e nos mais de Direito que V. Exas., Venerandos Conselheiros, doutamente suprirão, deverá o presente recurso de revista ser julgado inadmissível e, em consequência, o Supremo Tribunal de Justiça abster-se de conhecer do respetivo objeto, considerando-se o mesmo findo, nos termos do art.º 652º, n.º 1, alínea b), por força do constante no art.º 679º, ambos do CPC. Caso assim não se entenda, sempre deverá ser negado provimento à presente revista, confirmando-se, na íntegra, o acórdão recorrido.

Por outro lado,

Deverá ser rejeitado liminarmente o recurso de revista excecional interposto pela recorrente ou, caso assim não se entenda, sempre deverá ser negado provimento a este recurso, confirmando-se a decisão ínsita no Acórdão recorrido.”

16. Preliminarmente, a revista foi recebida como revista normal ou ordinária, na medida em que se funda, em primeira linha, na violação, pelo acórdão recorrido, do disposto no art.º 662.º do CPC, o que arreda o obstáculo da dupla conforme, previsto no art.º 671.º n.º 3 do CPC.

17. Foram colhidos os vistos legais.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. O presente recurso tem por objeto as seguintes questões: se a Relação violou disposições processuais no exercício dos poderes de reapreciação da decisão de facto; violação de caso julgado; verificação dos requisitos para a apresentação dos autos à Formação prevista no art.º 672.º n.º 3 do CPC, tendo em vista a avaliação dos requisitos da revista excecional, prevista no art.º 672.º n.º 1 do CPC.

2. Primeira questão (violação, pela Relação, dos poderes de reapreciação da decisão de facto).

2.1. A 1.ª instância deu como provada, sem dissentimento por parte da Relação, a seguinte

Matéria de facto

A. Mostra-se registada a aquisição a favor da A. da fracção autónoma para habitação designada pela letra “C”, situada no piso zero ao nível do rés-do chão, com arrecadação da cave -2, identificada com a letra C, e 2 lugares de estacionamento localizados na cave -2, identificados com os números 55 e 56, do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...13-C e inscrito na matriz predial urbana da citada freguesia sob o artigo 4915, pela AP ... de 2001/06/15, cfr. doc. 1 e 2 juntos com a petição inicial e cujo teor se dá integralmente por reproduzido.

B. A A. teve, em tempos, a denominação social de “C..., S.A.”, cfr. doc. 3 junto com a petição inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais.

C. Do documento particular datado de 25 de Novembro de 2011 e denominado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, outorgado entre C..., S.A., na qualidade de promitente vendedor e a R., na qualidade de promitente compradora, junto como doc. 4 com a petição inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais, consta, designadamente que:

CONSIDERANDO QUE:

A) A PROMITENTE VENDEDORA é legítima proprietária da fracção autónoma designada pela letra “C”, para habitação, situada no piso zero ao rés-do-chão, com arrecadação na cave -2, identificada com a letra C, e 2 lugares de estacionamento, localizados na cave -2, identificados com o n.º 55 e 56 do prédio urbano sito na Rua ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ...34, e inscrito na matriz predial urbana da citada freguesia sob o artigo 3822, adiante designada por fracção;

B) A PROMITENTE COMPRADORA manifestou interesse em adquirir a FRACÇÃO e a PROMITENTE VENDEDORA intenção de a vender, tendo a PROMITENTE COMPRADORA liquidado integralmente, na presente data, o preço convencionado para a compra e venda da fracção.

C) Não foi possível celebrar, na presente data, a escritura pública de compra e venda da fracção em virtude de as não terem conseguido obter toda a documentação necessária para a outorga da mesma, designadamente as declarações fiscais exigíveis, tendo as partes acordado que a mesma seria celebrada assim que tal fosse possível.

Cláusula Primeira

(Objecto)

1. Pelo presente contrato, a PROMITENTE VENDEDORA promete vender, e a PROMITENTE COMPRADORA promete adquirir para si ou para quem vier a indicar para o efeito, pelo preço e demais condições previstas no presente contrato promessa, a fracção autónoma identificada no Considerando A) supra.

2. A prometida venda será efectuada livre de quaisquer ónus, hipotecas ou quaisquer outros encargos e/ou responsabilidade quer particulares quer ao estado.

Cláusula Segunda

(Preço e pagamento)

O preço acordado para a venda da fracção é de EUR 125 000,00 (cento e vinte e cinco mil euros), que a Promitente vendedora declara ter recebido na presente data e do qual o presente contrato dá a competente quitação.

Cláusula Terceira

(Escritura Pública)

1. A escritura pública de compra e venda da FRACÇÃO será celebrada assim que as partes obtenham toda a documentação necessária e exigível, não podendo a mesma ser outorgada depois de decorridos 180 (cento e oitenta) dias a contar da data da celebração do presente contra promessa, competindo à promitente vendedora notificar a promitente compradora da data, hora e local da sua celebração, com a antecedência mínima de 10 (dez) dias sobre a data da sua realização.

(…) Cláusula Quarta

(Incumprimento)

1. A Promitente vendedora poerá resolver o presente contrato promessa se a promitente compradora faltar à outorga da escritura pública de compra e venda do prédio ou por outro modo impossibilitar a sua realização.

2. No caso do incumprimento ser imputável à promitente vendedora, terá a promitente compradora direito a exigir a execução especifica do presente contrato promessa nos termos do artigo 830.º do Código Civil, ou em alternativa à restituição da quantia liquidada no âmbito do presente contrato.

(…)

Cláusula Sétima

(Notificações)

1. As notificações ou comunicações a efectuar nos termos do presente Contrato considerar-se-ão validamente efectuadas por correio registado para as moradas das Partes constantes do presente Contrato ou para o endereço que tenha sido comunicado pelo destinatário ao remetente.

(…)

D. Por missiva datada de 7 de Agosto de 2015 enviada e recebida pela R., junta como doc. 6 com a petição inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais, a A. comunicou, designadamente, que:

Ao abrigo do disposto na cláusula segunda do contrato de arrendamento acima identificado (de que se anexa cópia), e ainda no uso da faculdade expressamente prevista no art. 1097.º do Código Civil e respeitando o período de pré-aviso legal, a sociedade GAVEPART – Imobiliário e Turismo SA, na qualidade de senhoria, vem, pela presente, proceder à denúncia de tal contrato com efeitos a partir de 30 de Novembro de 2016, opondo-se, ainda, a que o mesmo se renove automaticamente por um novo período de vigência.

Deste modo, tal contrato cessará, impreterivelmente, todos os seus efeitos no próximo dia 30 de Novembro de 2016, deve devendo, nessa mesma data, o locado ser-nos entregue em perfeitas condições, totalmente limpo e integralmente devoluto de pessoas e bens.

E. Por missiva datada de 14 de Outubro de 2016 enviada e recebida pela R., junta como doc. 8 com a petição inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais, a A. comunicou, designadamente, que:

Destina-se a presente a reiterar a comunicação por nós enviada em 7 de Agosto de 2015, na qual denunciámos, e nos opusemos a renovação para novo período de vigência, o Contrato de arrendamento celebrado com a sociedade “C..., S.A.”, actualmente com a denominação GAVEPART - IMOBILIÁRIO E TURISMO, S.A., melhor identificada em epígrafe.

Assim, reitere-se, no próximo dia 30 de Novembro de 2016, data de cessação do Contrato, deverá o Imóvel ser-nos entregue em perfeitas condições, totalmente limpo e integralmente devoluto de pessoas e bens.

F. Por missiva datada de 8 de Setembro de 2015 enviada pela R. e recebida pela A., junta como doc. 1 com a contestação e cujo conteúdo se dá por integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais, a R. comunicou que:

Na sequência da comunicação que me foi dirigida relativa a contrato de arrendamento alegadamente por mim celebrado sociedade C..., S.A., venho solicitar a V, Exas se dignem confirmar se têm em seu poder o respectivo original. Com efeito, não tendo jamais outorgado tal contrato, impõe-se o apuramento da respectiva falsidade com a responsabilização dos seus autores. Elo exposto, desejando alcançar a instauração de procedimento criminal e requerer perícia de letra e assinatura, muito agradeço a prestação da informação ora solicitada com a brevidade possível.

G. Por missiva datada de 26 de Outubro de 2016 enviada pela R. e recebida pela A., junta como doc. 4 com a contestação e cujo conteúdo se dá por integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais, a R. comunicou, designadamente, que:

(…)

Face ao que não posso deixar de reiterar a minha comunicação de 8 de Setembro e recepcionada por V. Ex.ªs em 9 de Setembro de 2015, conforme A/R que me foi devolvida pelos CTT, informando novamente V.Ex.as que não outorguei com a V/representada qualquer contrato de arrendamento. Bem como, a solicitada comunicação, para que V.Exas se dignem informarme se têm em vosso poder o original do contrato em causa, de nodo a ser apurada a sua falsidade e a consequente responsabilização dos seus autores, solicitação que apesar de ter sido solicitada com a brevidade possível, continuo a aguardar para poder instaurar o competente procedimento criminal.

H. Por missiva datada de 11 de Novembro de 2016 enviada pela R. e recebida pela A., junta como doc. 11 com a contestação e cujo conteúdo se dá por integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais, a R. comunicou que:

Na sequência do contrato promessa de compra e venda da fracção sita na Quinta ..., Rua ..., ..., que celebrei com a sociedade C..., S.A., que passou a designar-se GAVEPART- IMOBILIÁRIO E TURISMO, S.A, conforme apresentação n,° ...04 do registo comercial, venho proceder à interpelação da v/ representada e à fixação do prazo de 15 dias para proceder à marcação da respectiva escritura pública, dado estarem reunidas as condições para a sua realização.

I. Da decisão proferida no processo n.º 1139/17.9YLPRT que correu termos no Juízo Local Cível de ..., Juiz ..., junta como doc. 10 e cujo conteúdo se dá por integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais, consta que:

1. No presente procedimento especial de despejo que Gavepart – Imobiliário e Turismo, SA intentou contra AA, veio esta opor-se, alegando não ter celebrado qualquer contrato de arrendamento. Requereu ainda a condenação da Requerente como litigante de má fé.

2. Notificada da oposição, a Requerente defendeu a sua improcedência.

3. Procedeu-se a inquirição de testemunhas.


*


O tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.

O processo mostra-se isento de nulidades que o invalidem.

As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente patrocinadas.

Não há outras nulidades, excepções ou outras questões prévias que cumpra conhecer e obstem ao conhecimento do mérito da causa.


*


Dos elementos constantes dos autos, resultam assentes os seguintes factos:

1. Desde data não concretamente apurada mas anterior a 2010, foi cedida à Requerida, para sua habitação, o gozo e fruição da fracção autónoma designada pela letra “C”, para habitação, situada no piso zero ao nível do résdo chão, com arrecadação da cave -2, identificada com a letra C, e 2 lugares de estacionamento localizados na cave -2, identificados com os números 55 e 56, do prédio urbano sito na Rua ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...34, e inscrito na matriz predial urbana da citada freguesia sob o artigo 3822;

2. A Requerida não paga qualquer quantia pela cedência da fracção autónoma referida em 1.;

3. Entre o proprietário da fracção referida em 1. e a Requerida foi celebrado, em 2011, contrato-promessa de compra e venda da mesma fracção.


*


Não se lograram provar quaisquer outros factos com interesse para a discussão da causa.

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Para dar como assente a factualidade descrita fundou-se o Tribunal na conjugação dos documentos constantes dos autos com as declarações de parte da Requerida e com o depoimento das testemunhas inquiridas, as quais depuseram com isenção.

Assim, de todo este conjunto probatório ficou o Tribunal esclarecido quanto à permanência da Requerida na fracção em causa nos autos em virtude de uma cedência do seu anterior proprietário e no âmbito da relação laboral existente entre aquele e o pai da Requerida. Mais ficou o Tribunal esclarecido que a mesma reside na referida pagamento sem efectuar nem nunca ter efectuado o pagamento de qualquer quantia a título de renda ou outra.

Com efeito, estes factos foram relatados de forma credível e coincidente pelas testemunhas CC, BB, ambos trabalhadores da empresa cedente, e EE, mãe da Requerida.

Refira-se que as testemunhas FF e GG não tinham qualquer conhecimento concreto sobre a matéria dos autos, não tendo, por esse motivo, sido valorados pelo Tribunal.

De igual modo, as declarações de parte da Requerida revelaram-se inúteis, por não terem contribuído em nada para a matéria a provar.

Importa ainda referir que o Tribunal não deu como assente a existência de um contrato de arrendamento entre as partes, porquanto não ficou inteiramente esclarecido quanto à existência do mesmo.

Na verdade, e considerando a situação anómala de vida trazida aos autos, incumbia à A., no âmbito do ónus da prova que sobre si incumbe, trazer elementos de prova bastantes da existência de um contrato de arrendamento celebrado com a Requerida, o que não fez. Na verdade, e pese embora as declarações das testemunhas CC e BB quanto à existência do mesmo, não foi trazido aos autos o respectivo original ou qualquer recibo comprovativo, apenas sabendo o Tribunal que a Requerida ali tem residido, há mais de seis anos, sem efectuar o pagamento de qualquer quantia.

Acresce ainda que a celebração de um contrato promessa de compra e venda relativo à fracção dos autos se mostra peculiar face à existência de um contrato promessa, não sabendo o Tribunal qual a verdadeira vontade das partes.

Assim, e na ausência de outros elementos de prova, não deu o Tribunal como assente a celebração de um contrato de arrendamento, a qual se mostrava impugnada.

O Tribunal não deu como assentes quaisquer outros factos com interesse para a discussão da causa por não ter sido feita prova sobre os mesmos.


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Nos termos do art. 15º, nº 1 do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), o procedimento especial de despejo destina-se a efectivar a cessação do arrendamento, quando o arrendatário não desocupe o locado na data prevista na lei ou fixada por convenção entre as partes.

Como decorre da Lei, a existência do procedimento especial de despejo pressupõe a existência de um contrato de arrendamento.

Ora, nos presentes autos, constata-se que a Requerente não logrou provar, tal como lhe competia nos termos gerais de repartição do ónus da prova constantes do art. 342º do CC, provar esse mesmo contrato, pelo que não pode o presente procedimento especial de despejo prosseguir. Importa ainda referir que, embora resulte da matéria de facto assente a inexistência de um título para a Requerida residir na fracção dos autos, tal situação apenas poderá ser resolvida através de uma acção de reivindicação, não podendo o Tribunal extrair quaisquer consequências dos factos provados. Consequentemente, conclui-se pela procedência da oposição deduzida.


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Da condenação das partes como litigantes de má fé:

Por se entender que os factos alegados e provados não permitem concluir pela existência dos requisitos legais previstos no art. 542º do CPC, indefere-se tais condenações.


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Pelo exposto, julga-se a presente oposição procedente e, consequentemente, determina-se o arquivamento dos autos.

Custas pela Requerente.

Registe e notifique.

Valor do presente incidente nos termos do art. 315º, nº 2 do CPC e para efeitos de custas: € 12 500,10.

J. A R. ocupa a fracção referida em A) pelo menos, desde Novembro de 2011.

K. O preço de compra do imóvel constante do documento referido em C) nunca foi recebido pela A.

L. A fracção referida em A) tem um valor de mercado de arrendamento mensal de, pelo menos, € 540,00. M. A A. não procedeu à marcação da escritura de compra e venda da fracção.

M. A A. não procedeu à marcação da escritura de compra e venda da fracção.

A 1.ª instância, sem dissentimento por parte da Relação, enunciou os seguintes

Factos não provados

1. A A., tendo-se apercebido de um erro no Contrato Promessa de Compra e Venda que referia ter existido quitação total do preço no momento da sua assinatura, acordou com a Ré substituir aquele documento, pelo Contrato de Arrendamento com Opção de Compra, celebrado em 30 Dezembro de 2011, cfr. doc. 5 junto com a petição inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para os legais efeitos.

2. Pelas mesmas razões, e porque a Ré bem sabia nada ter pago no momento de celebração do Contrato Promessa de Compra e Venda, acordaram as partes em afectar o valor de €25.000 já liquidados pela Ré a título de antecipação de cinco anos de rendas, conforme disposto na cláusula terceira, n.º 2 do Contrato de Arrendamento com Opção de Compra.

3. No termos da cláusula 2.ª, n.º 3 do identificado Contrato de Arrendamento com Opção de Compra, à A. era facultada a possibilidade de se opor à renovação do contrato para novo período de vigência, mediante carta registada com aviso de receção dirigida à Requerida, com uma antecedência mínima de um ano sobre a data do termo.

4. Por outro lado, tem vindo a A. a suportar o pagamento de todos os impostos inerentes ao imóvel, bem como outros custos de propriedade, designadamente, o prémio do seguro do imóvel, sem qualquer contribuição por parte da Ré.

5. A Ré contactou várias vezes telefonicamente os representantes legais da A. para saber se já era possível procederem à realização da escritura pública, recebendo sempre a resposta de que se estava a tratar da situação.

6. A A. fez passar por documento original uma simples fotocópia, vem A. utilizar nos presentes autos novamente a mesma fotocópia para sustentar a sua pretensão, fazendo também “tábua rasa” da decisão judicial.

7. Sofreu ainda a Ré em consequência do comportamento da A. danos não patrimoniais, passando a viver constantemente em sobressalto e angustiada, passou a dormir mal e sempre em pânico, tendo perdido a paz e o sossego.

2.2. O Direito

Em regra, à exceção dos casos previstos na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de direito (art.º 46.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário – LOSJ – Lei n.º 62/2013, de 26.8).

Não assim as Relações, que em regra são os tribunais de segunda instância (art.º 67.º n.º 1 da LOSJ), conhecendo de facto e de direito.

Assim, enquanto tribunal de recurso, nos termos do n.º 1 do art.º 662.º do CPC “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”

Pretendendo o recorrente impugnar a decisão relativa à matéria de facto, deverá, nos termos do art.º 640.º do CPC, sob pena de rejeição, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Cumpridos os referidos ónus que impendem sobre a parte que impugne a decisão de facto, a Relação procederá à apreciação da decisão de facto recorrida, para o que deverá analisar os elementos probatórios (necessariamente constantes dos autos, incluindo o registo dos depoimentos gravados) indicados pelo recorrente e, se houver resposta ao recurso, pelo recorrido, assim como, oficiosamente, aqueloutros que para o efeito se mostrem relevantes (cfr. alínea b) do n.º 2 do art.º 640.º). No exercício desse poder-dever, a Relação deverá ordenar a renovação da produção de prova, se considerar haver “dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento” (alínea a) do n.º 2 do art.º 662.º do CPC). Deverá, também, ordenar a produção de novos meios de prova, se se deparar com “dúvida fundada sobre a prova realizada” (alínea b) do n.º 2 do art.º 662.º do CPC). Para tal, a Relação atuará como tribunal de instância, que, conhecendo a matéria de facto, deve analisar criticamente as provas (art.º 607.º n.º 4 do CPC, ex vi art.º 663.º n.º 2 do CPC), apreciando-as livremente, segundo a sua prudente convicção, ressalvados “os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial”, bem como “aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes” (n.º 5 do art.º 607.º do CPC), de tudo dando conta de forma especificada.

Exige-se, assim, que, dentro do quadro delimitado pelo recurso, a Relação analise criticamente as provas, de forma a formular um juízo próprio acerca da matéria de facto em questão, assim confirmando ou infirmando, total ou parcialmente, a decisão de facto alvo do recurso, e disso dando conta, no julgamento do recurso.

Conforme é jurisprudência reiterada do Supremo Tribunal de Justiça, não corresponde ao padrão supra descrito uma mera declaração de adesão à fundamentação da decisão de facto recorrida, mesmo que acompanhada da asserção de que se apreciou a prova.

Tal como se sumariou no acórdão do STJ, de 24.9.2013, processo 1965/04.9TBSTB.E1.S1, “[a]o afirmar que a Relação aprecia as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios, o legislador pretende que a Relação faça novo julgamento da matéria de facto impugnada, vá à procura da sua própria convicção, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise; [a] Relação não pode remeter para o juízo de valoração da prova feito na 1.ª instância, pois tem de fazer, com autonomia, o seu próprio juízo de valoração que pode ser igual ao primeiro ou diferente dele; [a] reapreciação das provas não pode traduzir-se em meras considerações genéricas, sem qualquer densidade ou individualidade que as referencie ao caso concreto; [s]e o aresto impugnado se limitou a aderir à decisão sobre a matéria de facto proferida em 1.ª instância, sem proceder à indispensável análise crítica e respectiva fundamentação das respostas, de modo a justificar a sua própria e autónoma convicção, foi violado o art. 712.º, n.º 2, do CPC [CPC de 1961, na redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 303/2007, de 24.8, correspondente ao art.º 662.º do CPC de 2013], impondo-se a anulação do acórdão recorrido”.

No mesmo sentido, cfr., v.g., o acórdão do STJ, de 11.02.2016, processo n.º 907/13.5TBPTG.E1S1 e o acórdão do STJ, de 26.5.2021, processo n.º 3277/12.5TBBLL2-F.E2.S1.

A violação de tais deveres processuais, por parte da Relação, é fundamento de revista (uma vez verificados os requisitos gerais de recorribilidade), não havendo, nessa parte, dupla conforme obstativa do recurso, nos termos do art.º 671.º n.º 3 do CPC. Esse é entendimento uniforme do STJ (cfr., v.g., o citado acórdão de 11.02.2016 e o acórdão proferido em 28.9.2023, processo n.º 690/19.0T8VRL.G1.S1).

Com efeito, cabe nas competências do STJ, nos termos do art.º 674.º n.º 1 alínea b), aquilatar se a Relação cumpriu os poderes-deveres que lhe são cometidos pelo art.º 662.º do CPC (cfr., neste sentido, v.g., os citados acórdãos do STJ, datados de 28.9.2023 e de 26.5.2021, e bem assim o acórdão datado de 10.9.2020, processo n.º 4794/16.3T8GMR.G1.S1).

Revertamos ao caso destes autos.

Na apelação a R. impugnou a decisão de facto.

Primeiramente e no essencial, a recorrente pugnou pela não prova do facto dado como provado sob a alínea K), que tem a seguinte redação:

O preço de compra do imóvel constante do documento referido em C) nunca foi recebido pela A.”

Para tal, a recorrente invocou a força probatória plena da declaração constante do contrato-promessa que constitui o documento referido em C), onde os outorgantes fizeram constar que a promitente vendedora dava quitação, por o ter recebido, do preço do imóvel objeto do contrato, no valor de € 125 000,00. E, além de invocar esse elemento documental e a sua força probatória, a recorrente concatenou-o com o teor das declarações de parte da R. e, bem assim, com o teor do depoimento das testemunhas CC, HH, II e JJ.

A recorrente também reagiu contra o que considerou ser a omissão de resposta, pelo tribunal da 1.ª instância, aos temas da prova n.ºs 5, 7, 8 e 9, que têm a seguinte redação:

5. Da impossibilidade de a A. juntar o original do contrato de arrendamento”,

7. Apurar se a A. apôs a sua assinatura no documento n.º 5 anexo à p.i.”,

8. Apurar da reação da R. às cartas remetidas pela A. (doc. n.ºs 6 a 9 anexos à pi. e doc. 1 a 6 da contestação) e da postura da A. perante a mesma”,

9. Das razões que levaram a A. a não responder à carta que constitui o documento n.º 11 anexo à contestação nem a marcar a escritura.”

Entendia a recorrente que, quanto aos temas da prova n.ºs 5 e 7, a resposta devia ser negativa, por o documento original, aí referido, segundo a recorrente, não existir.

Quanto aos temas da prova n.ºs 8 e 9, a recorrente entendia que a prova produzida, nomeadamente as declarações da R. e o depoimento da testemunha II, permitia responder-lhes (embora a recorrente não concretizasse em que termos).

A recorrente também se insurgiu contra a circunstância de, na sentença, se terem dado como provados factos igualmente dados como provados na sentença transcrita sob a alínea I, para tal se fazendo apelo, na sentença recorrida, ao caso julgado. Entende a recorrente que a sentença transcrita em I. não faz caso julgado quanto aos factos nela dados como provados.

Vejamos como a Relação lidou com estas questões.

Primeiramente, o relator proferiu decisão sumária, nos termos do art.º 656.º do CPC, julgando a apelação improcedente.

Tendo a recorrente reclamado para a conferência, a Relação confirmou a decisão sumária, que reproduziu.

Assim, o acórdão recorrido consiste na transcrição integral da fundamentação da decisão de facto, a que se acrescentou as seguintes considerações:

“Embora esteja posto em causa a fiabilidade de documento autêntico e a fiabilidade e honestidade das pessoas nele intervenientes (o que é de lamentar), concordamos com a fundamentação elaborada pela Exma. Senhora Juiz a quo, quer na sua vertente factual, quer jurídica.

- Quanto à 2.ª Questão: A instrução do processo civil “…tem por objeto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, aos factos necessitados de prova…” (art.º 410.º do C.P.Civil). Em consonância: estabelece o art.º 596.º, n.º 1, do C. P. Civil, “…Proferido o despacho saneador, quando a acção houver de prosseguir, o juiz profere despacho destinado a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova…”. A enunciação dos «temas da prova» constitui um instrumento ou ferramenta processual que permite orientar os sujeitos processuais no desenvolvimento da fase de produção da prova, com vista a que se alcance o verdadeiro fim desta: - o apuramento da verdade e a justa composição do litígio, conforme plasmado no art.º 411.º do C. P. Civil. Tal instrumento, no entanto, assume-se como orientador do rumo da instrução, das questões factuais que importa demonstrar, sem prejuízo de, por respeito à realidade histórica, em fase de elementos e dados entretanto adquiridos, ou por via de uma mais criteriosa análise das posições e alegações das partes plasmadas nos articulados apresentados no processo, tal instrumento admita alterações e adaptações em conformidade à perspectiva então alcançada. Neste conspecto, os «temas da prova» configuram-se como numa ferramenta ao serviço do apuramento da verdade e à justa composição do litígio, não revestindo um cariz estanque, castrador ou limitativo dos factos a submeter a instrução, o que não fez advir, não sendo rigorosamente seguidos, nenhuma sanção. Demonstração inequívoca que assim é: - a inobservância dos temas de prova na sentença, não a flagela de nulidade (art. 615.º do C.P.Civil).

- Quanto à 3.ª Questão: é entendimento jurisprudencial pacífico que: - A força de caso julgado de uma decisão de mérito não abrange o julgamento da matéria de facto. A força probatória de uma decisão judicial coincide com a extensão do caso julgado material respetivo. A certidão de uma sentença apenas prova que foi emitida uma decisão judicial com certo conteúdo; não faz prova, nem dos factos, nem dos direitos reconhecidos na decisão. O que ocorreu na alínea I) dos factos assentes não foi uma transferência dos factos apurados numa causa para a outra. Tanto assim é que o que a Exma. Senhora Juiz fez constar foi: -“… Da decisão proferida no processo n.º 1139/17.9YLPRT que correu termos no Juízo Local Cível de ..., Juiz ..., junta como doc.10 e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, consta que…” Foi, pois, a reprodução integral dados segmentos relevantes do conteúdo de uma sentença reputada pertinente. Ora, isso não implica destacar partes, mormente factos, como assentes autonomamente”.

E, com esta fundamentação, a Relação julgou a apelação improcedente e manteve a decisão recorrida.

Cremos ser patente que, no que concerne à impugnação da decisão de facto que versou o facto dado como provado sob a alínea K) (“O preço de compra do imóvel constante do documento referido em C) nunca foi recebido pela A.”) a Relação não cumpriu o que se lhe exigia, nos termos do art.º 662.º do CPC. Com efeito, a Relação limitou-se a reproduzir o texto da fundamentação da decisão de facto, acrescentando que estava de acordo com ela. Não procedeu a um exame autónomo da prova, não deu a conhecer as razões por que, afinal, concluía pela mesma forma que o tribunal a quo, na apreciação desse relevantíssimo ponto da matéria de facto.

Também no que concerne aos factos dados como provados pela 1.ª instância a partir da sentença proferida em sede de procedimento de despejo, a Relação ficou aquém da indagação que lhe era exigível, atento o objeto da apelação.

É certo que, como se diz no acórdão recorrido, na alínea I) da matéria de facto apenas se procede à transcrição da sentença que julgou improcedente o procedimento especial de despejo que havia sido instaurado pela ora A./recorrida contra a ora R./recorrente.

Porém, na sentença recorrida, em sede de “Enquadramento Jurídico”, e reportando-se à aludida sentença proferida no procedimento especial de despejo, a dado passo exarou-se o seguinte:

“Não obstante não se tratar da repetição de uma causa, sobre os factos que naquela acção judicial foram apreciados, está o Tribunal impedido de sobre eles novamente se debruçar. Trata-se, pois, da autoridade de caso julgado que determina que a decisão de determinada questão não pode voltar a ser discutida - Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 20-12-2012, processo n.º 374/2000.E1, disponível em www.dgsi.pt.

Com efeito, o Tribunal deve proferir uma decisão, obstando, contudo, a situações em que se encontre na posição de contradizer o anteriormente decidido por outro Tribunal.

Por assim ser, ocorrendo autoridade de caso julgado, os factos relativos à relação obrigacional que subjaz entre as partes devem ser acatados neste processo – neste sentido, Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-07-2011, processo n.º 129/07.4TBPST.S1, disponível em www.dgsi.pt..

Face ao exposto, constitui ponto assente que a A. entregou à R. a fracção em causa nos autos em data não concretamente apurada mas anterior ao ano de 2010 para sua habitação, gozo e fruição, sem que tenha pago qualquer quantia sobre tal cedência.” (sublinhado nosso).

Isto é, a 1.ª instância não se limitou a dar como reproduzida a aludida sentença, invocou-a como fundamento para dela extrair a prova de factos. Ora, sobre este aspeto da decisão de facto a Relação também nada disse, apesar de para tal ter sido solicitada pela recorrente.

No que concerne à alegada omissão de pronúncia, pela 1.ª instância, sobre alguns dos temas da prova, a Relação apreciou-a, nos termos supratranscritos, que se reputam suficientes. De resto, quanto a este segmento da apelação (e do acórdão recorrido) a recorrente nada disse na revista, pelo que dela queda excluído.

Nestes termos, conclui-se que a Relação não cumpriu o disposto no art.º 662.º do CPC, com as consequências que adiante se determinarão.

3. Segunda questão (violação de caso julgado)

Em sede de revista a recorrente invocou o caso julgado que, a seu ver, decorre do acórdão da Relação de Lisboa, datado de 29.11.2022 (supramencionado no Relatório, em I.12), que revogou o despacho que condenara a R. como litigante de má-fé. Segundo a recorrente, neste acórdão decidiu-se, como fundamento da revogação da imputação à R. de litigância de má-fé, que o documento que, na sentença recorrida, com o beneplácito do acórdão recorrido, havia sido aceite como princípio de prova que, em interpretação restritiva dos artigos 393.º e 394.º do Código Civil, sustentava a admissibilidade da produção de prova testemunhal a fim de infirmar a prova plena formalizada no contrato-promessa junto aos autos no que concerne ao pagamento do preço, não possuía essa virtualidade, face à não demonstração da genuinidade do aludido documento.

A existência desse suposto caso julgado é questão nova, que não foi suscitada perante a Relação. Aliás, o aludido acórdão não havia sido emitido à data da apelação e, bem assim, aquando da reclamação para a conferência da decisão sumária do relator. Mas, constituindo o caso julgado exceção de conhecimento oficioso (artigos 577.º alínea f) e 578.º do CPC), e tendo o aludido acórdão sido proferido em 29.11.2022, data anterior à prolação do acórdão ora recorrido (que data de 25.5.2023) poderia ter sido oficiosamente conhecido pela Relação – uma vez cumprido o contraditório, nos termos do art.º 3.º n.º 3 do CPC – caso desse acórdão o coletivo tivesse tomado conhecimento e considerasse que se verificava a referida relação de caso julgado entre os dois arestos.

Constituindo o teor do aludido acórdão da Relação, na tese da recorrente, um elemento que interfere na determinação do conteúdo da matéria de facto a considerar na resolução do litígio, e devendo os autos retornar à Relação, a fim de que, nos termos do art.º 662.º do CPC, conheça da impugnação da decisão de facto nos termos reiterados pela recorrente na revista, caberá à Relação ajuizar da relevância do acórdão, para esse efeito.

4. Terceira questão (revista excecional)

Confirmada a admissibilidade da revista normal e, bem assim, nos termos expostos, a sua procedência, fica prejudicada a questão da admissibilidade da revista excecional, prevista no art.º 672.º do CPC.

III. DECISÃO

Pelo exposto, julga-se a revista procedente e, consequentemente, revoga-se o acórdão recorrido e determina-se que os autos retornem à Relação recorrida, a fim de que aí se aprecie a impugnação da decisão de facto, nos termos supra expostos, e se aplique o direito em conformidade.

As custas da revista, na vertente das custas de parte, são a cargo da recorrida, que nela decaiu (artigos 527.º n.º s 1 e 2, 533.º, do CPC).

Lx, 28.11.2023

Jorge Leal (Relator)

Pedro de Lima Gonçalves

António Magalhães