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Jurisprudência
N.º de Processo:
29923/23.7T8LSB.L1.S1
www.dgsi.pt Fonte: STJ (DGSI)
Data:
28/05/2025
Meio Processual:
Jurisprudência:
Votação:
Sumário

I. No caso vertente, está assente que se encontram verificados os índices da presunção de laboralidade previstos nas alíneas a), b), c), e) e f) do n.º 1 do art. 12.º-A, do Código do Trabalho, ou seja, um total de cinco elementos em seis possíveis.

II. Para além desta significativa expressão quantitativa, acresce que estão verificados os índices de subordinação previstos nas alíneas a) e c), que são especialmente fortes, uma vez que os poderes de direção, supervisão e controle são elementos essenciais da relação laboral.

III. Sendo certo que a qualificação de determinada situação jurídica exige sempre uma abordagem holística, em que todos os factos e circunstâncias relevantes são tidos na devida conta, a favor de uma relação de trabalho subordinado, há a considerar, desde logo, uma forte inserção do estafeta na organização algorítmica da R., encontrando-se o mesmo, inclusivamente, enquanto elemento do respetivo serviço de entregas, abrangido por um seguro de acidentes pessoais.

IV. Conexamente com este elemento organizacional, também assume especial relevo a circunstância de pertencerem e serem geridas/exploradas pela R. a plataforma digital e aplicações a ela associadas (App), as quais – enquanto intermediário tecnológico no processo de transmissão dos dados relativos aos pedidos formulados pelo utilizador-cliente –são os instrumentos de trabalho essenciais do estafeta.

V. Toda a sua atividade está condicionada pela efetiva ligação/conexão a estas ferramentas digitais, pelo que, neste contexto, não assume relevo decisivo o facto de o estafeta escolher a área em que trabalha, poder recusar serviços e conectar-se/desconectar-se da aplicação sempre que o entenda, sem ter de cumprir qualquer horário predefinido, nem de cumprir qualquer limite mínimo de tempo de disponibilidade.

VI. O estafeta encontrava-se na dependência económica da ré e trabalhou regularmente, em regra, diariamente. A existência de um horário de trabalho não é elemento essencial do contrato de trabalho, tal como nada obsta a que o trabalhador seja pago “à peça”, sendo que esta forma de cálculo da retribuição se reconduz, no fundo, a uma forma modificada do salário por tempo. Também não é de valorizar a circunstância de o estafeta poder alterar o valor base dos serviços mediante a aplicação de um multiplicador, uma vez que esta ferramenta era disponibilizada pela própria ré e dentro dos limites por esta fixados.

VII. Independentemente da margem de liberdade reconhecida ao estafeta no exercício da sua atividade, é indiscutível que esta é desenvolvida num quadro de regras específicas definidas pela empresa, a qual – nos termos que tem por adequados e consentâneos com a prossecução do seu modelo de negócio – também controla e supervisiona a atuação da contraparte, tal como tem a possibilidade de exercer o poder disciplinar, mediante a suspensão ou desativação da respetiva conta.

VIII. Tudo a sugerir, pois, que o estafeta igualmente se encontrava sujeito à autoridade da R., sendo certo que a subordinação pode ser meramente potencial, não sendo necessário que se traduza em atos de autoridade e direção efetiva.

IX. O conjunto de factos provados que de forma mais nítida aponta no sentido de uma relação de trabalho autónomo não é, naturalmente, desvalorizável. Mas, para além de tudo o que já antes ficou dito, impõe-se ter presente que (com maior ou menor expressão) tais elementos são os habitual e tipicamente verificados no plano das relações estabelecidas entre os estafetas e as empresas detentoras de plataformas digitais, elementos já oportunamente ponderados pelo legislador nacional – bem como pelas instâncias e vários países da União Europeia – e que não obstaram à introdução da presunção de laboralidade em apreço no ordenamento jurídico, a qual foi consagrada nos termos tidos por mais adequados e que são obrigatórios para os tribunais.

X. Não pode deixar de reconhecer-se que o facto de o estafeta pagar à R. uma taxa pela utilização da plataforma contrasta especialmente com a matriz típica de uma relação de trabalho subordinado.

XI. Todavia, de forma alguma se pode conferir a este elemento, só por si, relevância decisiva, tanto mais que, como se sabe, o recurso a cláusulas contratuais com características de autonomia se encontra com frequência associado ao abuso do estatuto de trabalhador independente e às relações de trabalho encobertas, flagelo que com a presunção de laboralidade em apreço se visou, precisamente, combater.

XII. Sem deixar de assinalar que, ao invés, no sentido da subordinação, há ainda a considerar o facto de o estafeta não ter qualquer obrigação de resultado para com a contraparte, bem como a circunstância de ele não assumir algum risco financeiro ou económico, conclui-se que a ré não logrou ilidir a presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital.

Decisão Texto Integral

Revista n.º 29923/23.7T8LSB.L1.S1

MBM/DM/PLC


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

I.



1. O MINISTÉRIO PÚBLICO intentou ação declarativa, com processo especial, de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, contra Glovoapp Portugal Unipessoal, Lda., peticionando que seja declarada a existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado entre esta e AA (com início em 1 de junho de 2023, tendo em conta a redução do pedido efetuada no recurso de apelação).

2. Na 1ª Instância, a ação foi julgada improcedente: julgadas verificadas as “características” constantes das alíneas a), b), c), e) e f) do n.º 1 do artigo 12.º-A, do Código do Trabalho (“Presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital”), considerou-se, todavia, que a ré logrou ilidir esta presunção.

3. Depois de no acórdão que decidiu a apelação (interposta pelo autor) observar que, não tendo a ré requerido a ampliação do âmbito do recurso quanto aos mencionados fundamentos da presunção de laboralidade, limitando-se a impugnar a decisão que recaiu sobre a matéria de facto, entendemos que resta apenas apurar se a Ré ilidiu a presunção de laboralidade resultante da verificação daquelas circunstâncias, o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) confirmou aquela decisão, embora com um voto de vencido.

4. O autor interpôs recurso de revista, alegando, em síntese, que os factos provados não permitem concluir pela efetiva autonomia do prestador da atividade de estafeta, razão pela qual se deveria ter reconhecido a existência de um contrato de trabalho.

5. A ré contra-alegou.

6. Em face das conclusões das alegações do recorrente, inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), e sendo certo que a ré não requereu a ampliação do âmbito do recurso [nem quanto aos fundamentos/bases da presunção de laboralidade (à semelhança do que já ocorrera na apelação - cfr. supra nº 3), nem quanto à questão da (in)constitucionalidade do art. 12.º-A, do CT, que apenas foi suscitada pela R. na apelação], a única questão a decidir1 consiste em determinar se foi ilidida a sobredita presunção de laboralidade.

Decidindo.


II.


7. Com relevo para a decisão, mostra-se fixada a seguinte matéria de facto:

1) A ré Glovoapp Portugal Unipessoal, Lda.”, é uma sociedade que tem como objeto social, “desenvolvimento e exploração de uma plataforma tecnológica, comércio a retalho por via eletrónica, comércio não especializado de produtos alimentares e não alimentares, bebidas e tabaco e, de um modo geral, de todos os produtos de grande consumo, comercialização de medicamentos não sujeitos a receita médica, produtos de dermocosmética, prestação e desenvolvimento de todos os tipos de serviços complementares das atividades constantes do seu objeto social. Realização de atividades de formação, consultoria, assistência técnica, especialização e de pesquisa de mercado relacionadas com o objeto social. Qualquer outra atividade que esteja direta ou indiretamente relacionada com as atividades acima identificadas”.

2) A ré tem como única sócia a sociedade “Glovoapp23, S.L. (…).

3) A ré explora uma plataforma tecnológica designada “glovoapp” através da qual estabelecimentos comerciais oferecem os seus produtos que podem ser solicitados por qualquer interessado que à mesma aceda através da internet.

4) Para efetuar a recolha dos produtos nos estabelecimentos comerciais aderentes e realizar o transporte e a entrega desses produtos aos utilizadores clientes, a Ré utiliza os serviços de estafetas que se encontram registados na sua plataforma, para esse efeito;

5) As funções desempenhadas pelos estafetas consistem na recolha dos bens nos estabelecimentos aderentes e no seu transporte até ao cliente final.

6) Para proteção dos mesmos em caso de lesão ou óbito, durante os serviços de recolha e entrega, a Ré tem um contrato de seguro com a Chubb European Group SE, Sucursal Em Espanha, apólice n.º ...12;

7) Para lhe serem distribuídas tarefas/pedidos na plataforma da Ré, o estafeta tem que criar uma conta na plataforma, efetuando o respetivo registo na modalidade de utilizador/estafeta.

8) Para tanto tem que demonstrar:

- Ser maior de idade;

- Ter meio de transporte próprio, no caso concreto, bicicleta elétrica;

- Ter documento de identificação;

- Ter comprovativo da atividade aberta nas finanças;

- Aceitar os termos e condições de utilização da plataforma;

9) Mais tem que comprovar perante a Ré a posse de uma mochila térmica, com os requisitos específicos que exige.

10) Ativada a conta, o estafeta descarrega então no seu telemóvel a aplicação Glovo Courriers, através da qual recebe da Ré a indicação do pedido, do estabelecimento onde tem que levantar a encomenda, o valor do serviço, o cliente final e a morada de entrega.

11) A atribuição do pedido é determinada essencialmente em função do critério de distância entre aquele, o estabelecimento e o consumidor.

12) Ao aceitar o pedido de entrega da Ré, o estafeta concorda em realizar a entrega em troca do pagamento do valor proposto na aplicação, designado de “taxa de entrega”.

13) O estafeta recebe da ré, como contrapartida da sua atividade, um valor por cada pedido/entrega que efetua.

14) Valor esse que a Ré fixa tendo em conta os critérios que elegeu, que são os seguintes: - a distância (número de quilómetros do ponto de recolha até ao ponto de entrega);

- O tempo de espera (tempo de espera do estafeta na recolha do pedido).

- O horário (sendo os de maior afluxo mais bem pagos);

- E outras variáveis (no caso de condições meteorológicas adversas, feriados, períodos de alta procura, etc…)

15) A ré exige que o estafeta faça uso de uma mochila térmica para transporte dos pedidos e que cumpra com os padrões de higiene para transporte de alimentos;

16) Mais exigindo que chegado ao cliente final e se este não estiver na morada tenha que esperar 10 minutos e dar nota disso ao suporte técnico da Ré, sendo esses dez minutos contabilizados através de um temporizador que existe na aplicação, e que conta os dez minutos desde o momento em que chegou ao local da entrega, ao que a Ré tem acesso através do GPS que o estafeta liga.

17) A Ré entra em contacto com o cliente final que toma a decisão final quanto à ação a tomar pelo estafeta relativamente àquela entrega.

18) A partir do momento em que o estafeta se coloca na aplicação em modo de disponibilidade a plataforma fica a saber qual é a sua localização, através de um sistema de geolocalização, sendo este indispensável ao exercício da atividade para a atribuição dos pedidos dos clientes da Ré e para cálculo do valor do serviço.

19) Pois a partir dessa via a Ré sabe onde o estafeta se encontra à espera de algum pedido.

20) Se o estafeta mantiver a geolocalização ligada, é possível à Ré controlar o tempo de entrega dos pedidos e o percurso efetuado pelo estafeta.

21) A Ré pode avaliar a qualidade da atividade prestada através de um sistema denominado “sistema de reputação”, no qual os clientes finais avaliam os serviços, através de meios eletrónicos inseridos na aplicação, conforme resulta do ponto 9.5 dos “TERMOS E CONDIÇÕES DE UTILIZAÇÃO DA PLATAFORMA GLOVO PARA ESTAFETAS.”.

22) Sendo que o estafeta não tem qualquer intervenção na escolha dos clientes finais, que são clientes da Ré, e dos respetivos pedidos que surgem na aplicação móvel.

23) Podendo a Ré, temporariamente, restringir o acesso à aplicação, ou mesmo desativar a conta em definitivo, no caso de suspeita de violação das obrigações assumidas pelo estafeta ao vincular-se aos termos gerais de utilização da aplicação, designadamente, se permitir a utilização de conta por terceiros, sem prévia comunicação, ou for efetuada queixa contra o mesmo relacionada.

24) No dia 27.09.2023, pelas 20:10 horas, AA aguardava no Centro Comercial ..., em ..., que a Ré efetuasse alguma encomenda a partir dos estabelecimentos comerciais sitos no Centro Comercial em causa, ..., a fim de a entregar no cliente final.

25) Para o efeito, tinha uma bicicleta elétrica com o que faria a entrega, uma mala térmica, onde transportaria a encomenda, o telemóvel acima referenciado, com a aplicação da Ré ativada.

26) Como ocorreu no caso, em que através do telemóvel e da conta criada para o efeito recebeu o pedido que se prestava a levantar.

27) O que lhe iria ser pago por transferência bancária e quinzenalmente.

28) Tendo em vista a prestação dessa atividade, tal como acima referenciado, (…) AA registou-se na plataforma da Ré, escolhendo como área de trabalho a zona da grande Lisboa- Lisboa, Amadora, Oeiras, Cascais e Loures. (redação do TRL)

29) Para o que, como acima se expôs, criou a conta exigida pela Ré na sua aplicação Glovo Couriers, o que fez através do nome de utilizador por si escolhido, bem como do respetivo código de segurança, após ter demonstrado cumprir os requisitos exigidos pela Ré, tal como em supramencionado e remetido cópia de uma fotografia, do seu IBAN, do comprovativo do início da atividade nas Finanças. (redação do TRL)

30) No processo de registo na plataforma, AA aceitou os Termos e Condições de utilização da plataforma GLOVO para estafetas, documento disponível no site Https://glovoapp.com/docs/pt/legal/terms-couriers/ e que foi junto aos autos com a participação e que aqui se dá por reproduzido.

31) Cada encomenda tem um preço base de 0,9 € a 1,10 €, acrescido do montante de 0,24 € por quilómetro percorrido até à entrega.

32) A Ré pagava a AA quinzenalmente, por transferência bancária.

33) Para iniciar a sua rotina de trabalho, o AA pegava na mochila, ia de bicicleta para o local onde pretendia fazer a recolha, ligava a plataforma e aguarda que a Ré lhe enviasse os pedidos de entrega.

34) O que, em regra, faz diariamente.

35) Recebido o pedido, AA dirigia-se para o local indicado para levantar a encomenda, recebia-a e dirigia-se ao local de entrega.

36) O que fazia numa bicicleta que é sua pertença.

37) E com uma mochila térmica que podia ou não ter o nome e o logotipo da Ré, que igualmente é sua pertença.

38) Tal como lhe pertence o telemóvel onde tem a aplicação instalada.

39) AA sustentou-se, pelo menos entre junho de 2023 e até janeiro de 2024, data em que por sua iniciativa deixou de prestar serviços para a ré e passou a trabalhar num armazém, na ..., com os valores que lhe foram pagos pela Ré.

40) Pois que o trabalho que realizava para a Ré era a sua única fonte de rendimento.

41) AA registou-se na plataforma a 23 de fevereiro de 2023 e rejeitou pedidos da Ré desde 28 de fevereiro de 2023.

42) AA procedeu a entregas a pedido da Ré, pelo menos, a partir de junho de 2023.

43) O valor da retribuição de cada entrega depende dos critérios determinados pela Ré: distância, características do pedido e de outros fatores;

44) Tanto a distância como o tempo necessário para a realização do serviço dependem diretamente do ponto de recolha e do ponto de entrega que o cliente selecionar ao efetuar uma encomenda na plataforma.

45) Entre junho e setembro de 2023 AA recebeu da Ré os seguintes valores:

- Em 07-06-2023 AA recebeu da Ré o valor de € 340,53

- Em 21-06-2023 AA recebeu da Ré o valor de € 423,59

- Em 05-07-2023 AA recebeu da Ré o valor de € 667,18.

- Em 24-07-2023 AA recebeu da Ré o valor de € 698,75

- Em 4-08-2023 AA recebeu da Ré o valor de € 452,25

- Em 16-08-2023 AA recebeu da Ré o valor de € 278,68

- Em 31-08-2023 AA recebeu da Ré o valor de € 261,12.

- Em 13-09-2023 AA recebeu da Ré o valor de € 491,45

- Em 28-09-2023 AA recebeu da Ré o valor de € 195,96

46) AA utilizava o multiplicador disponibilizado pela Ré para dentro dos limites fixados diminuir e/ou aumentar o valor base do serviço.

47) Os prestadores de atividade recebem gratificações do cliente.

48) AA pode conectar-se e desconectar-se da aplicação sempre que assim o entender.

49) Não tendo de cumprir qualquer horário predefinido nem de cumprir qualquer limite mínimo de tempo de disponibilidade.

50) É o estafeta que decide quando quer estar disponível para prestar serviços;

51) Entre fevereiro de 2023 e novembro de 2023 AA recusou mais de 2000 serviços solicitados pela Ré. (…)

52) O ponto 9.3 dos termos e condições emitidos pela Ré tem o seguinte teor:

“Geolocalização

Ao utilizar a aplicação fornecida pela GLOVO para a execução da relação e, portanto, para exercer a atividade, a GLOVO pode receber os dados de geolocalização do Estafeta caso o mesmo tenha ativado esta função diretamente no seu telemóvel.

A GLOVO usará os Dados obtidos para prestar os Serviços ao Estafeta e partilhá-los com o Utilizador Cliente e o Estabelecimento Comercial cujo pedido o Estafeta aceitou executar, para que o Utilizador Cliente e o Estabelecimento Comercial possam contactar o Estafeta no caso de algum incidente.

É expressamente indicado que o Estafeta tem total liberdade de decisão em relação ao itinerário e/ou percursos escolhidos para a oferta e especificação dos seus serviços e em nenhum caso a Glovo utilizará esses dados para fins de controlo.”

53. AA pagava uma taxa à Ré pela utilização da plataforma. (facto aditado pelo TRL)


III.


(a) - Quanto à delimitação do objeto do contrato de trabalho, no seu confronto com o contrato de prestação de serviço.

8. Segundo o art. 1152º, do Código Civil, “Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade (…) a outra pessoa, sob a autoridade e direção desta”.

Idêntica noção constava da legislação laboral, até que o Código do Trabalho de 2009, no seu art. 11º, suprimindo o vocábulo “direção” e introduzindo na definição o elemento organizatório, adotou a seguinte redação: “Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas”.

Com esta alteração, ter-se-á pretendido sinalizar a desnecessidade de o trabalhador efetivamente receber “ordens diretas e sistemáticas”, bem como, por outro lado, a conexão em regra existente entre a inserção do trabalhador na organização do empregador e a autoridade deste (cfr. infra nº 11).

9. Ao contrário das relações de trabalho autónomo, nas quais se proporciona um resultado do trabalho, nas de trabalho subordinado (que corporizam uma mera obrigação de meios), uma das partes obriga-se a prestar a outra uma atividade positiva e heterodeterminada, cujo conteúdo preciso é (em maior ou menor medida) unilateralmente fixado pelo empregador (apresentando, à partida, um certo grau de indeterminação, a prestação vai sendo “potestativamente”2 determinada por este).

Todavia, são frequentemente inseparáveis a atividade e o seu resultado, pelo que “os limites operativos deste critério obrigam a considerá-lo como um critério de mera prevalência 3; ou seja, “no contrato de trabalho a atividade tem um valor prevalente para o empregador, enquanto no contrato de prestação de serviço é o resultado dessa atividade que tem mais relevo para o credor” 4.

Como nota Monteiro Fernandes, “a referenciação do vínculo à atividade indica que o trabalhador não suporta o risco da eventual frustração do resultado pretendido pela contraparte” 5; mas, apesar de a obtenção do resultado não estar, em regra, “dentro do círculo do comportamento devido pelo trabalhador”, “esse resultado ou efeito pode, todavia, constituir elemento referencial necessário ao próprio recorte do comportamento devido”, pois, independentemente de o trabalhador conhecer, ou não, o “escopo global e terminal” visado pelo empregador, “o processo em que a atividade (...) se insere é naturalmente pontuado por uma série de objetivos imediatos, (...) fins técnico-laborais, os quais, ou uma parte dos quais (...), se pode exigir – presumir – sejam nitidamente representados pelo trabalhador” 6.

Em especial, não são de fácil integração na dicotomia atividade-resultado aqueles casos em que, sendo contratualizado o próprio trabalho (e não o seu resultado), ele se desenvolve com elevado grau de independência e autonomia técnica, embora no âmbito do quadro organizativo do outro contraente, que – com maior ou menor nitidez, ainda que apenas potencialmente – orienta/dirige o seu trabalho.

Paradigmáticas destas dificuldades são as múltiplas situações em que a atividade é suscetível de ser levada a cabo, indistintamente, quer num quadro de subordinação, quer em termos autónomos, como é o caso das profissões liberais (médicos, enfermeiros, arquitetos, engenheiros, advogados, etc.), dos jornalistas, de alguns artistas (v.g. os profissionais de espetáculos, como é o caso dos músicos) ou dos estafetas que prestam atividade laborativa no âmbito de plataformas digitais e aplicações associadas.

10. Enquanto elemento basilar do contrato de trabalho, a subordinação jurídica corporiza-se: (i) na posição de desigualdade/dependência do trabalhador que é inerente à sua inserção, em maior ou menor grau, numa estrutura organizacional alheia (estrutura que não se reconduz necessariamente a uma empresa, podendo até ser muito rudimentar7) , dotada de regras de funcionamento próprias; (ii) na correspondente posição de domínio do empregador, traduzida na titularidade do poder de direção (que implica o dever de obediência às ordens e instruções do empregador, maxime no tocante ao modo de cumprimento/execução da prestação, bem como às regras organizacionais e de conduta estabelecidas) e do poder disciplinar.

Diferentemente da “atividade” e da “retribuição”, categorias presentes em vários tipos contratuais, é na “subordinação jurídica” – elemento que no essencial o caracteriza e demarca de realidades fronteiriças – que reside a especificidade mais típica do contrato de trabalho.

11. Não obstante, a nova economia colaborativa e digital (acarretando substituição do trabalho humano por tecnologia, hiperconectividade e teletrabalho e, em geral, exigências organizativas das empresas muito distanciadas do modelo taylorista/fordista) está a provocar profundas mudanças nos modelos de organização do trabalho e do emprego.

Assistimos a toda uma panóplia de manifestações de flexibilidade laboral (temporal e espacial) e de fragmentação e externalização do processo produtivo, ganhando expressão a dependência organizativa, bem como a dependência económica a ela associada. Aumentando muito significativamente as margens e expressões de autonomia no campo do trabalho subordinado, esbate-se a oposição tradicionalmente existente entre o trabalho subordinado e o trabalho autónomo.

Deste modo, enquanto fator identificativo do contrato de trabalho, a subordinação perspetiva-se atualmente como elemento dotado de grande plasticidade, munido de “novos rostos”, e, nessa medida, num “identificador problemático”8.

Na verdade, uma vez que aumentaram, de forma significativamente relevante, por um lado, as margens e expressões de autonomia no campo do trabalho subordinado (...), mas também foi possível verificar, por outro lado, que o próprio domínio do trabalho independente ou autónomo passou a conhecer, de forma crescente, expressões de tutela e enquadramento que são mais próprias do típico trabalho subordinado”, a oposição tradicionalmente existente entre o trabalho subordinado e o trabalho autónomo vai-se esbatendo e diluindo, “através de um processo de metamorfose das formas jurídicas de exercício do poder por parte do empregador”.9

Por seu turno, Júlio Gomes, chamando a atenção para as implicações da “automatização” e da “informatização”, que “permitem a integração à distância e novas modalidades” de trabalho10, sinaliza que “a malha” da subordinação jurídica não é atualmente, porventura, a mais adequada para “filtrar” ou selecionar os casos que mais carecem de tutela11.

Por conseguinte, nem sempre estando presentes alguns dos seus traços tradicionais e mais característicos, a subordinação deve perspetivar-se enquanto conceito de “geometria variável”, que comporta graus de intensidade diversos, em função, nomeadamente, da natureza da atividade e/ou da confiança que o empregador deposita no trabalhador, assumindo natureza jurídica e não técnica, “no sentido em que é compatível com a autonomia técnica e deontológica (...) e se articula com as aptidões profissionais especificas do próprio trabalhador e com a autonomia inerente à especificidade técnica da (...) atividade”12, sendo, deste modo, consentânea, designadamente, com atividades profissionais altamente especializadas ou que tenham uma forte componente académica ou artística13 (realidade específica que, evidentemente, não é a do caso dos autos e que apenas se menciona para contextualizar o conjunto desta problemática), tal como pode ser meramente potencial, bastando a possibilidade de exercício dos inerentes poderes pelo empregador.

Na verdade, como paradigmaticamente refere sobre esta problemática Monteiro Fernandes:14

«A subordinação pode não transparecer em cada instante do desenvolvimento da relação de trabalho. Muitas vezes, a aparência é de autonomia do trabalhador, que não recebe ordens diretas e sistemáticas (…).

Um dos motivos pelos quais a aparência das situações concretas pode ser enganadora consiste no facto de ser suficiente, para que haja subordinação, um estado de dependência potencial do trabalhador (conexo à disponibilidade que o patrão obteve pelo contrato), não sendo necessário que essa dependência se manifeste ou explicite em atos de autoridade e direção efetiva.(…) A ausência de ordens resulta da desnecessidade ou mesmo do interesse do empregador em beneficiar plenamente das aptidões do empregado. Isto é tanto mais real quanto mais se avança na sofisticação e diferenciação das qualificações profissionais. Muitos trabalhadores conhecem melhor o trabalho que têm que realizar do que o empregador. No entanto, este conserva o poder de, se quiser ou lhe convier, dar ordens e instruções (…).

(…)

Há, pois, uma progressiva desvalorização dos comportamentos diretivos na caracterização do trabalho subordinado (…) [sob pena de se deixar] à margem da regulamentação laboral um número crescente de situações de verdadeiro “emprego”, em tudo merecedoras do mesmo tratamento.

Na verdade, a subordinação consiste, essencialmente, no facto de uma pessoa exercer a sua atividade em proveito de outra, no quadro de uma organização de trabalho (…) concebida, ordenada e gerida por essa outra pessoa. O elemento organizatório implica que o prestador de trabalho está adstrito a observar os parâmetros de organização e funcionamento definidos pelo beneficiário, submetendo-se, nesse sentido, à autoridade que ele exerce no âmbito da organização de trabalho, ainda que execute a sua atividade sem, de facto, receber qualquer indicação conformativa que possa corresponder à ideia de “ordens e instruções” (…).

O elemento-chave de identificação do trabalho subordinado há de, pois, encontrar-se no facto de o trabalhador não agir no seio de uma organização própria, antes se integrar numa organização de trabalho alheia, dirigida à obtenção de fins igualmente alheios (…), o que implica, da sua parte, a submissão às regras que exprimem o poder de organização do empregador – à autoridade deste, em suma, derivada da sua posição na mesma organização.

É nesta perspetiva que (…) se entende o enunciado, nessa parte, da definição legal do contrato de trabalho adotada no Código revisto: a (muito) antiga referência à “direção” do empregador é substituída pela alusão ao facto de o trabalhado ser executado “no âmbito de organização” dele, e, naturalmente, sob a sua “autoridade”.»

12. Efetivamente, há várias situações profissionais em que é muito estreita a fronteira entre subordinação e autonomia e, nessa medida, entre o contrato de trabalho e outros tipos contratuais (maxime, o contrato de prestação de serviço), realidade que vem suscitando acrescidas dificuldades de enquadramento jurídico no contexto atual, marcado pelas novas tecnologias e por novas formas de organização do trabalho, traduzidas, nomeadamente, nas mais diversas modalidades de flexibilidade e mobilidade laboral, maior autonomia técnica dos trabalhadores e pela diluição de vários dos elementos tradicionalmente presentes numa abordagem rígida do conceito de subordinação jurídica.

Estas zonas cinzentas estão cada vez mais presentes nas relações que se estabelecem entre as empresas e os seus colaboradores; e as relações de emprego atípicas vão-se tornando cada vez mais típicas.

Com frequência, trabalhadores ditos independentes são economicamente dependentes da empresa em que desenvolvem a sua atividade, não raro ao longo de vários anos e em situação de exclusividade. Acresce que em muitos casos eles trabalham na esfera da organização empresarial, utilizam equipamentos desta e executam tarefas semelhantes às de “colegas” seus formalmente assalariados, relativamente aos quais nem sempre se evidencia uma diferença nítida em termos de inserção na estrutura organizativa.

Todo um campo privilegiado, pois, para relações de trabalho pouco claras, ambíguas ou encobertas.

(b) - Quanto à “presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital”.

13. O art. 12.º-A, do CT, epigrafado “Presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital, foi introduzido na nossa ordem jurídica pela Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, no contexto da agenda do trabalho digno e de toda uma série de desafios suscitados pela chamada “economia das plataformas”, que é uma das manifestações mais visíveis e significativas das profundas alterações que a digitalização – pondo em crise os parâmetros tradicionais da qualificação do trabalho como subordinado e potenciando falsas situações de autonomia – introduziu no plano da organização e execução do trabalho.

Nos termos do nº 1 deste artigo:

“(…) presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre o prestador de atividade e a plataforma digital se verifiquem algumas das seguintes características:

a) A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela;

b) A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade;

c) A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica;

d) A plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma;

e) A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta;

f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação.”

14. Esta presunção legal implica a inversão do ónus da prova, ficando o trabalhador dispensado de fazer a prova dos elementos constitutivos da relação laboral (art. 350º, nº 1, do C. Civil), embora seja admitida prova em contrário para a ilidir (nº 2 do mesmo artigo), mediante a prova pela contraparte de “factos positivos excludentes da subordinação”15, ou seja, da existência de trabalho autónomo ou da falta de qualquer elemento essencial do contrato de trabalho16 [elementos que, reafirma-se, à luz do art. 11º, do CT, são: i) obrigação de prestar uma atividade a outrem; ii) retribuição: e iii) subordinação jurídica].

Prova em contrário consistente, numa formulação feliz de um Acórdão do TRL de 11.02.2015, citado por Milena da Silva Rouxinol e Teresa Coelho Moreira,17 na ocorrência de (contra)indícios que, “pela quantidade e impressividade, imponham a conclusão de se estar perante outro tipo de relação jurídica.

Com efeito, basicamente nas palavras das mesmas autoras, verificados dois ou mais elementos elencados no art. 12º, nº 1, apenas deverá afastar-se o resultado presuntivo se o interessado lograr fazê-lo, dissipando não apenas convicção de que o contrato em análise é um contrato de trabalho como a dúvida sobre se o será18 (não bastando, pois, a simples contraprova, que apenas tem o alcance de tornar duvidoso o facto presumido).

15. Refira-se que esta disposição legal foi aditada ao Código do Trabalho por imposição da Diretiva (UE) 2024/2831 do Parlamento Europeu e do Conselho de 23 de outubro de 2024, cuja transposição antecipou, a qual, exprimindo o empenhamento das instituições da União Europeia no combate ao abuso do estatuto de trabalhador independente e às relações de trabalho encobertas (em linha com a Recomendação nº 198 (2006) da OIT), e visando, precisamente, a melhoria das condições de trabalho em plataformas digitais19, assenta, entre outros, nos seguintes considerandos/pressupostos que importa destacar:

– O artigo 31.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia prevê que todos os trabalhadores têm direito a condições de trabalho justas e equitativas que respeitem a sua saúde, segurança e dignidade.

– Os trabalhadores têm direito a um tratamento justo e equitativo em matéria de condições de trabalho.

– A digitalização está a mudar o mundo do trabalho, a melhorar a produtividade e a flexibilidade, mas comporta também alguns riscos para o emprego e as condições de trabalho.

– As tecnologias baseadas em algoritmos, incluindo os sistemas automatizados de monitorização e os sistemas automatizados de tomada de decisões, permitiram o aparecimento e o crescimento de plataformas de trabalho digitais. Se forem devidamente regulamentadas e aplicadas, as novas formas de interação digital e as novas tecnologias no mundo do trabalho podem criar oportunidades de acesso a empregos dignos e de qualidade para pessoas que tradicionalmente não teriam tal acesso. No entanto, se não forem regulamentadas, podem também resultar numa vigilância baseada em meios tecnológicos, aumentar os desequilíbrios de poder e a opacidade na tomada de decisões, bem como pôr em risco condições de trabalho dignas, a saúde e a segurança no trabalho, a igualdade de tratamento e o direito à privacidade.

– O trabalho em plataformas digitais pode resultar numa imprevisibilidade dos horários de trabalho e pode dificultar a distinção entre “relação de trabalho” e “atividade independente”, bem como a separação de responsabilidades dos empregadores e trabalhadores. A classificação incorreta do estatuto

profissional tem consequências para as pessoas afetadas, na medida em que pode restringir o acesso aos direitos laborais e sociais existentes. Além disso, gera condições injustas de concorrência para as empresas que classificam corretamente os seus trabalhadores e tem implicações nos sistemas de relações laborais dos Estados-Membros, na sua base tributável e na cobertura e sustentabilidade dos seus sistemas de proteção social.

– A fim de combater o falso trabalho independente no trabalho em plataformas digitais e facilitar a determinação do estatuto profissional correto das pessoas que trabalham em plataformas digitais, os Estados-Membros deverão dispor de procedimentos adequados para prevenir e eliminar a classificação incorreta do estatuto profissional das pessoas que trabalham em plataformas digitais.

(c) – Se, no caso dos autos, foi ilidida a presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital.

16. In casu está assente nos autos, como antes se referiu (cfr. supra nºs 3 e 6), que se encontram verificados os índices da presunção de laboralidade previstos nas alíneas a), b), c), e) e f) do n.º 1 do sobredito art. 12.º-A, ou seja, um total de cinco elementos em seis possíveis.

Para além desta significativa expressão quantitativa, acresce que estão verificados os índices de subordinação previstos nas alíneas a) e c), que são especialmente fortes20, uma vez que os poderes de direção, supervisão e controle são elementos essenciais da relação laboral.

Aliás, bem vistas as coisas, como nota Leal Amado21: “[A]ludir, na base da presunção, como elemento indiciário do qual se infere (…) a existência de um contrato de trabalho, ao exercício de “poder de direção” (al. b) e de “poder disciplinar” (al. e) por parte da plataforma digital, constitui uma autêntica petição de princípio (…). Ora, convenhamos, se o prestador de atividade provar que a plataforma digital exerce sobre ele tanto o poder de direção como o poder disciplinar não parece que tenha nada mais a provar para que o tribunal conclua, diretamente e sem dar um salto no desconhecido, que está perante um contrato de trabalho. Não há, aqui, qualquer ilação, o que há é um mero raciocínio circular.».

17. Não obstante, o Tribunal da Relação concluiu que o estafeta desenvolveu a sua atividade com efetiva autonomia, considerando, assim, ilidida a presunção de laboralidade, com base na seguinte argumentação:

“Invoca o Recorrente que a Ré paga quinzenalmente, mediante transferência bancária, diretamente ao estafeta (…).

Sucede, porém, que dos factos provados também se retira que o prestador de atividade aceitava os serviços de entrega que bem entendesse, que recebia, em contrapartida da sua atividade, um valor por cada pedido, isto é, recebia “à peça” e que a remuneração que auferia quinzenalmente dependia do número de serviços que entendesse realizar para a Ré, além de que podia alterar o valor proposto pela Ré mediante a aplicação de um multiplicador. Ou seja, não obstante a definição de critérios por parte da Ré para determinar o valor de cada entrega, no fim de contas, era o prestador da atividade que determinava o valor que a Ré lhe iria pagar quinzenalmente, aceitando realizar mais ou menos entregas (cfr. factos provados 12, 13, 45, 47 a 51). Donde, o facto índice da alínea a) esbateu-se face aos mencionados factos negativos de laboralidade provados pela Ré.

Mais invoca o Recorrente que é a Ré quem determina as regras específicas quanto à prestação da atividade por parte do estafeta e que os termos e condições de utilização da plataforma para os estafetas foram e estão predefinidos pela Glovoapp.

É certo que para exercer a atividade para a Ré, AA teve de aderir aos Termos e Condições de Utilização da Paltaforma Glovo para Estafetas. Mas, salvo o devido respeito, tal conclusão é insuficiente para se concluir pela existência de um contrato de trabalho, pois o exercício de qualquer atividade exige um mínimo de regulação. E também os utilizadores clientes e utilizadores parceiros aderem a condições definidas pela Ré, o que não determina que com ela tenham estabelecido um contrato de trabalho.

Alega ainda o Recorrente que a plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade do estafeta incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica, que a atuação do estafeta é controlada em tempo real através de GPS e que a localização exata do prestador de atividade é conhecida pela plataforma da Glovoapp através do sistema de geolocalização.

Porém, dos factos provados 18), 19), 20,) 48), 50) e 52), resulta que o prestador de atividade não é obrigado a ter o sistema de geolocalização ligado, conecta-se e desconecta-se quando bem entende, pelo que, a afirmação do Recorrente vale apenas no caso de o prestador de atividade optar por manter aquele sistema de geolocalização ligado. É certo que se pode argumentar no sentido de que se o prestador de atividade não estiver ligado à plataforma não pode receber pedidos. Mas não é menos certo que, durante a execução da atividade, não está obrigado a estar ligado à plataforma, o que evidencia autonomia na execução da atividade.

Quanto à possibilidade de avaliação, por parte da Ré, do prestador de atividade, nada se provou quanto aos fins da mesma, o que torna tal índice inócuo para a qualificação do contrato.

No que concerne à invocação de que a plataforma digital exerce o poder disciplinar mediante a suspensão ou desativação da conta, há que atentar no que estipula o ponto 5.4.2. dos “Termos e Condições de Utilização da Plataforma GLOVO para Estafetas”: “A GLOVO pode, mas não é obrigada, a monitorizar, rever e/ou editar a sua Conta. A GLOVO reserva-se o direito de, em qualquer caso, eliminar ou desativar o acesso a qualquer Conta por qualquer motivo ou sem motivo, até mesmo se considerar, a seu critério exclusivo, que a sua Conta viola os direitos de terceiros ou direitos protegidos pelos Termos e Condições”.

(…)

[A] cláusula em causa revela a possibilidade de a Ré resolver o contrato e desativar a conta quer de utilizadores clientes, quer de utilizadores prestadores, pelo que esta paridade não nos permite concluir pela existência de um poder disciplinar, mas sim de um poder de resolver o contrato no caso de violação das cláusulas contratuais, como é permitido a qualquer contratante.

Dos factos provados ainda resulta que AA escolheu como área de trabalho a zona da grande Lisboa-Lisboa Amadora, Cascais e Loures (facto provado 28). Ou seja, o prestador de atividade definiu, unilateralmente, o seu local de trabalho, o que não é próprio de uma relação laboral.

E se, como refere a sentença recorrida, a plataforma é um instrumento de trabalho essencial ao exercício da atividade, também o são o telemóvel e a mochila que pertencem ao prestador da atividade.

Por outro lado, face ao facto provado 48) podemos afirmar que é o prestador de atividade quem define a sua disponibilidade para exercer a atividade, pois é ele que decide quando conectar-se e desconectar-se da aplicação, sem que se tenha provado qualquer consequência que dai advenha.

Mais, AA não tinha que cumprir um horário (facto provado 49), não estando, pois, sujeito aos deveres de assiduidade e de pontualidade, próprios do contrato de trabalho. E não vemos que, pelo facto de uma das partes no contrato ser uma plataforma digital esses deveres se esvaziem. Acresce que também se provou que o prestador de atividade não tem de cumprir qualquer limite mínimo de tempo de disponibilidade (facto provado 49), o que significa que trabalha quando quer, o tempo que quer e nas horas que melhor lhe dão jeito, o que não se compadece com uma relação laboral.

E provou-se que é o prestador de atividade quem decide quando quer estar disponível para prestar serviços (facto provado 50), o que vem confirmar a conclusão anterior.

Outro elemento negativo de laboralidade que resultou provado é o que se refere à circunstância de entre Fevereiro de 2023 e Novembro de 2023, AA ter recusado mais de 2000 serviços solicitados, o que significa que o prestador de atividade é livre de não aceitar serviços para determinados utilizadores clientes da Ré, recusa que não se enquadra numa relação laboral.

Por fim, ficou provado que, para aceder à aplicação da Ré e serem-lhe propostos serviços, AA pagava a denominada taxa de utilização (facto provado 53), o que é inconcebível numa relação laboral; nenhum trabalhador paga para trabalhar.”

18. Desde já se adianta que não se acompanha o juízo decisório assim alcançado na decisão recorrida, pois afigura-se-nos que os factos provados não permitem afirmar – em termos inequívocos, como se impunha – que a relação estabelecida entre as partes não reveste natureza laboral.

Sendo certo que a qualificação de determinada situação jurídica exige sempre uma abordagem holística, em que todos os factos e circunstâncias relevantes são tidos na devida conta, a favor de uma relação de trabalho subordinado, há a considerar no caso vertente, desde logo, uma forte inserção do estafeta na organização algorítmica da R. (v.g. nºs 3 a 5, 7, 10, 11, 12, 15 a 23, 28, 29, 30, 31, 33 e 52 da matéria de facto), encontrando-se o mesmo, inclusivamente, enquanto elemento do respetivo serviço de entregas, abrangido por um seguro de acidentes pessoais (nº 6 da matéria de facto).

Conexamente com este elemento organizacional, também assume especial relevo a circunstância de pertencerem e serem geridas/exploradas pela R. a plataforma digital e aplicações a ela associadas (App), as quais – enquanto intermediário tecnológico no processo de transmissão dos dados relativos aos pedidos formulados pelo utilizador-cliente – são os instrumentos de trabalho (absolutamente) essenciais do estafeta.

Toda a sua atividade está condicionada pela efetiva ligação/conexão a estas ferramentas digitais (“A partir do momento em que o estafeta se coloca na aplicação em modo de disponibilidade a plataforma fica a saber qual é a sua localização, através de um sistema de geolocalização, sendo este indispensável ao exercício da atividade para a atribuição dos pedidos dos clientes da Ré e para cálculo do valor do serviço – nº 18 da matéria de facto), pelo que, neste contexto, não assume relevo decisivo o facto de o estafeta escolher a área em que trabalha, poder recusar serviços e conectar-se/desconectar-se da aplicação sempre que o entenda, sem ter de cumprir qualquer horário predefinido, nem de cumprir qualquer limite mínimo de tempo de disponibilidade (nºs 48 a 51 da matéria de facto).

A existência de um horário de trabalho não é elemento essencial do contrato de trabalho, tal como nada obsta a que o trabalhador seja pago “à peça”, sendo que esta forma de cálculo da retribuição se reconduz, no fundo, a uma forma modificada do salário por tempo. Também não é de valorizar a circunstância de o estafeta poder alterar o valor base dos serviços mediante a aplicação de um multiplicador, uma vez que esta ferramenta era disponibilizada pela própria ré e dentro dos limites por esta fixados (cfr. ponto 46º da matéria de facto).

A verdade é que o estafeta se encontrava na dependência económica da R. (nºs 39 e 40 dos factos provados) e trabalhou regularmente (em regra, diariamente – nº 34 dos factos provados) nos meses de junho a janeiro de 2024, tendo recebido, de 15 em 15 dias, até setembro de 2023 (período relativamente ao qual os autos fornecem registos), importâncias que variaram entre 195,96 € e 698,75 € (nº 45 dos factos provados), notando-se que o presente processo apenas abrange um curto período, pois o pedido de reconhecimento da existência de contrato de trabalho reporta-se a 01.06.2023, tendo a ação sido proposta em 22.12.2023.

Independentemente da margem de liberdade reconhecida ao estafeta no exercício da sua atividade, é indiscutível que esta é desenvolvida num quadro de regras específicas definidas pela empresa (v.g. nºs 15, 16, 31 e 43 dos factos provados), a qual – nos termos que tem por adequados e consentâneos com a prossecução do seu modelo de negócio – também controla e supervisiona a atuação da contraparte (v.g. nºs 18 a 21 e 23 dos factos provados), tal como tem a possibilidade de exercer o poder disciplinar, mediante a suspensão ou desativação da respetiva conta (cfr. ponto 5.4.2. dos “Termos e Condições de Utilização da Plataforma GLOVO para Estafetas”, citado pela decisão recorrida e transcrito em supra nº 17).

Tudo a sugerir, pois, que, nesta medida, o estafeta em causa igualmente se encontrava sujeito à autoridade da R., cabendo aqui recordar que a subordinação pode ser meramente potencial, não sendo necessário que se traduza em atos de autoridade e direção efetiva, como aprofundadamente se referenciou em supra nº 11.

Argumenta o TRL que a possibilidade de a R. resolver o contrato e desativar a conta não permite concluir pela existência de um poder disciplinar, em virtude de o poder de resolução, em caso de violação de cláusula contratuais, ser “permitido” a qualquer contratante. É certo que em qualquer contrato as partes gozam do direito à respetiva resolução. Mas, no âmbito do contrato de trabalho, a resolução contratual em que se traduz o despedimento por justa causa, corporiza e pressupõe, precisamente, o exercício do poder disciplinar.

O conjunto de factos provados que de forma mais nítida aponta no sentido de uma relação de trabalho autónomo não é, naturalmente, desvalorizável. Mas, para além de tudo o que já antes ficou dito, impõe-se ter presente que (com maior ou menor expressão) tais elementos são os habitual e tipicamente verificados no plano das relações estabelecidas entre os estafetas e as empresas detentoras de plataformas digitais, elementos já oportunamente ponderados pelo legislador nacional – bem como pelas instâncias e vários países da União Europeia – e que não obstaram à introdução da presunção de laboralidade em apreço no ordenamento jurídico, a qual foi consagrada nos termos tidos por mais adequados e que são obrigatórios para os tribunais.

Não pode deixar de reconhecer-se que o facto de o estafeta pagar à R. uma taxa pela utilização da plataforma (nº 53 da factualidade assente) contrasta especialmente com a matriz típica de uma relação de trabalho subordinado.

Todavia, de forma alguma se pode conferir a este elemento, só por si, relevância decisiva, tanto mais que, como se sabe, o recurso a cláusulas contratuais com características de autonomia se encontra com frequência associado ao abuso do estatuto de trabalhador independente e às relações de trabalho encobertas, flagelo que com a presunção de laboralidade em apreço se visou, precisamente, combater.

Sem deixar de assinalar que, ao invés, no sentido da subordinação, há também a considerar o facto de o estafeta não ter qualquer obrigação de resultado para com a contraparte, bem como a circunstância de ele não assumir algum risco financeiro ou económico, reitera-se, pois, que a ré não logrou ilidir a presunção de laboralidade cuja verificação foi reconhecida nos autos.

Sem necessidade de outros desenvolvimentos argumentativos, procede, pois, a revista.


IV.


19. Em face do exposto, concedendo a revista, acorda-se, revogando o acórdão recorrido, em declarar o reconhecimento do contrato de trabalho por tempo indeterminado celebrado entre AA e a ré, com início em 1 de junho de 2023 e até janeiro de 2024 (data em que por sua iniciativa deixou de prestar serviços para a ré).

Custas da revista, bem como nas instâncias, a cargo da recorrida.

Lisboa, 28.05.2025

Mário Belo Morgado, relator

Domingos Morais

Paula Leal de Carvalho (voto a decisão conforme declaração junto em anexo).

-*-

Declaração de voto

Voto a decisão, pois discordando embora, em parte, da fundamentação aduzida, afigura-se-me que, estando, como estão, assentes cinco elementos da presunção da existência de contrato de trabalho (matéria que não está em discussão nos autos), afigura-se-me, tudo sopesado, que não foi feita, pela Ré, prova suficiente no sentido de tal presunção ter sido ilidida, pelo que deverá esta prevalecer.

Lisboa, 28.05.2025

Paula Leal de Carvalho

_____________________________________________




1. O tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, 663.º, n.º 2, e 679º, CPC], questões (a resolver) que, como é sabido, não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais não vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.º, n.º 3, do mesmo diploma.↩︎

2. Menezes Cordeiro, Manual de Direito do Trabalho, Almedina, 1994, p. 125.↩︎

3. Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, II, 9ª edição, 2023, p. 26.↩︎

4. Ibidem.↩︎

5. Direito do Trabalho, 22ª edição, 2023, p. 131.↩︎

6. Ibidem, p. 133.↩︎

7. Cfr. Maria do Rosário Palma Ramalho, ob. cit., p. 42.↩︎

8. Cfr. Rui Assis, O poder de direção do empregador, Coimbra Editora, 2005, pp. 44 e 176.↩︎

9. Ibidem pp. 176 – 177, invocando Alain Supiot.↩︎

10. Direito do Trabalho, Volume I, Relações Individuais de Trabalho, Almedina, 2007, p. 108.↩︎

11. Ibidem, p. 113.↩︎

12. Maria do Rosário Palma Ramalho, ob. cit., p. 39.↩︎

13. Ibidem.↩︎

14. Ob. cit., pp. 137 – 140.↩︎

15. Na expressão de Monteiro Fernandes, ob. cit., p. 155.↩︎

16. Cfr. ainda Maria do Rosário Palma Ramalho, ob. cit., p. 53.↩︎

17. Direito do Trabalho, Relação Individual, 2ª edição, Almedina, 2023, p. 100.↩︎

18. Ibidem, p. 99.↩︎

19. A Diretiva dispõe no seu art. 5º, sob a epígrafe “Presunção legal”:

1. A relação contratual entre uma plataforma de trabalho digital e uma pessoa que trabalha em plataformas digitais através dessa plataforma é legalmente presumida como uma relação de trabalho quando se verificarem factos que indiciem a direção e o controlo, nos termos do direito nacional, das convenções coletivas ou das práticas em vigor nos Estados-Membros e tendo em conta a jurisprudência do Tribunal de Justiça. Se a plataforma de trabalho digital pretender ilidir a presunção legal, cabe à plataforma de trabalho digital provar que a relação contratual em causa não constitui uma relação de trabalho, tal como definida pelo direito, por convenções coletivas ou pelas práticas em vigor nos Estados-Membros, tendo em conta a jurisprudência do Tribunal de Justiça.

2. Para efeitos do n.º 1, os Estados-Membros estabelecem uma presunção legal ilidível eficaz de uma relação de trabalho que constitua uma facilitação processual em benefício das pessoas que trabalham em plataformas digitais. Além disso, os Estados-Membros asseguram que a presunção legal não tem por efeito aumentar o ónus dos requisitos para as pessoas que trabalham em plataformas digitais, ou para os seus representantes, nos processos para determinar o seu estatuto profissional correto.

(…)

6. No que diz respeito às relações contratuais que entraram em vigor antes de 2 de dezembro de 2026 e que estejam ainda em vigor nessa data, a presunção legal prevista no presente artigo só é aplicável ao período iniciado a partir dessa data.↩︎

20. Cfr. Milena da Silva Rouxinol e Teresa Coelho Moreira, ob. cit., pp. 118 – 119.↩︎

21. Supremo Tribunal de Justiça, XII COLÓQUIO DE DIREITO DO TRABALHO, OS NOVOS DESAFIOS DO DIREITO DO TRABALHO, Novembro 2022, p. 124, https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2024/02/livro-digital-direito-do-trabalho-2022.pdf↩︎