Sumário
I. O Tribunal da Relação não pode proceder à ampliação da matéria de facto, aditando-lhe factos complementares e concretizadores de outros alegados, sem informar as partes de que assim vai proceder e de lhes dar a oportunidade de se pronunciarem.
II. O Tribunal da Relação não pode conhecer, oficiosamente, da exceção de abuso de direito, suportado, também, na factualidade ampliada, sem ter dado oportunidade às partes de se pronunciarem (art. 3º do CPC), não tendo a questão sido colocada na 1ª instância, nem em sede de recurso de apelação.
III. O Fundo de Garantia Automóvel intervém como garante do pagamento das indemnizações devidas a terceiro pelo sujeito da obrigação de segurar, mas que não tenha cumprido essa obrigação.
IV. Tem uma função social garantística, mitigada pela natureza subsidiária da sua intervenção, bem como pelo funcionamento das causas de exclusão previstas relativamente à seguradora (arts. 14º e 52º, nº 1), as previstas especificamente em relação ao Fundo de Garantia Automóvel (art. 52º, nº 2), e a possibilidade de sub-rogação nos direitos do lesado após o pagamento da indemnização.
V. A taxatividade das cláusulas de exclusão de garantia do FGA não obsta, em abstrato, à aplicação do instituto de abuso de direito, face à função corretiva que lhe está associada.
VI. Para que seja aplicado o instituto do abuso de direito é necessário que os factos provados sejam inequívocos no sentido de demonstrarem que o exercício do direito pelo autor excede o fim social e económico que constitui a sua razão de ser.
Decisão Texto Integral
Acordam na 6ª secção do Supremo Tribunal de Justiça
RELATÓRIO
Em 19.9.2019, AA intentou contra BB, CC, e Fundo de Garantia Automóvel (doravante FGA), ação declarativa de condenação, com processo comum, pedindo a condenação solidária dos RR. a pagarem-lhe a quantia €300.000,00, a título de incapacidade, e quantia nunca inferior a €50.000,00, a título e pelo «quantum doloris», dano estético, rebate profissional e prejuízo de afirmação pessoal, acrescidas de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da citação dos RR. e até efetivo e integral pagamento.
Os RR. FGA e CC contestaram pugnando pela improcedência da ação, invocando, ainda, o primeiro a exclusão da sua responsabilidade, e o último a sua ilegitimidade processual.
Em 15.04.2024, foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência, condenou os RR. BB e Fundo de Garantia Automóvel, solidariamente, a pagar ao A. AA as quantias de €180.000,00, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, a partir da citação e até integral pagamento, e de €40.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, a partir da prolação da sentença e até integral pagamento, e absolveu o R. CC dos pedidos contra este deduzidos.
Não se conformando com o teor da decisão, apelou o R. FGA.
Em 25.11.2024, foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação do Porto que julgou a apelação procedente, e, consequentemente, revogou a decisão recorrida na parte recorrida, e absolveu o R. Fundo de Garantia Automóvel da totalidade do pedido.
Do acórdão do Tribunal da Relação, interpôs recurso de revista o A., formulando, a final, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
1 - O Recorrente, AA, intentou a presente ação com processo comum contra BB, CC e o Fundo de Garantia Automóvel, pedindo a condenação solidária de todos a pagarem-lhe uma indemnização de valor não inferior a € 300.000,00 (trezentos mil euros), a título de incapacidade, assim como quantia não inferior a €50.000,00 (cinquenta mil euros), referente a “quantum doloris”, dano estético, rebate profissional e prejuízo de afirmação pessoal, valores estes acrescidos de juros de mora à taxa legal a partir da citação.
2 - A douta sentença proferida em primeira instância julgou a ação parcialmente procedente, absolvendo o Réu CC dos pedidos contra si deduzidos e condenou solidariamente os Réus BB e o Fundo de Garantia Automóvel (FGA) a pagarem ao Autor: a) a quantia de € 180.000,00 (cento e oitenta mil euros), a título de danos patrimoniais, acrescidos de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento; b) o montante de €40.000,00 (quarenta mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, a partir da prolação da sentença, até efetivo e integral pagamento.
3 - Não conformado, o Réu Fundo de Garantia Automóvel (FGA) interpôs recurso de Apelação, sendo as questões basilares levantadas pelo mesmo nas suas conclusões de recurso as seguintes:
I – Impugnação da matéria de facto, a respeito dos factos considerados (não) provados, mais concretamente, pugnando por deverem «ser considerados provados os factos descritos na sentença como matéria de facto não provada sob as alíneas f), g) e h)»;
II - A exclusão da garantia do FGA, nos termos do disposto nas alíneas b) e c) do artigo 52.º do Dec. Lei n.º 291/2017, de 21 de agosto;
III - Contribuição da conduta do Autor na produção dos danos por si sofridos, a ser considerada para efeitos do disposto no artigo 570º do Código Civil.
4 - O douto Acórdão da Relação de que ora se recorre decidiu nos seguintes termos:
A) Os argumentos invocados pelo Recorrente Fundo de Garantia Automóvel (FGA) não obtiveram acolhimento, indeferindo o requerido pelo Apelante;
B) Aditou oficiosamente novos factos (39, 40, 41, 42 e 43) à factualidade dada como provada;
C) Aplicou, também oficiosamente, o instituto do abuso de direito (artigo 334º do C.C.), revogando a decisão de primeira instância na parte recorrida, assim absolvendo o Réu Fundo de Garantia Automóvel (FGA) da totalidade do pedido.
5 - No presente recurso de Revista, vem o ora Recorrente suscitar a reapreciação do decidido no douto acórdão recorrido a propósito das questões identificadas na alíneas B) e C), ou seja, sobre o aditamento oficioso de novos factos à matéria dada como provada e sobre a absolvição do FGA por força da aplicação, também oficiosa, do instituto do abuso de direito (artigo 334º do C.C.).
6 - Dessarte, torna-se imperioso transcrever os factos aditados à matéria assente pelo douto acórdão recorrido: Facto 39 - O A., o R. e os demais ocupantes do veículo constituíam um grupo de amigos que na noite do sinistro se encontrava em área em que vinha ocorrendo uma vaga de crimes contra a propriedade, perpetrados por quatro indivíduos com o respetivo perfil. Facto 40 - No interior da viatura foi encontrado o material descrito no auto de notícia elaborado pela G.N.R., conforme doc. carreado para os autos pelo R. Fundo de Garantia Automóvel, e fotografado conforme doc. 4 junto com a petição inicial, assinaladamente lanternas, luvas, gorro, máscara, alicates, chaves estrela, chaves de fendas, pé de cabra, marretas e ponteiros de pedreiro. Facto 41 - A vaga de criminalidade existente na zona cessou após o sinistro. Facto 42 - O A. emitiu declaração, que entregou ao R. BB, com o seguinte teor: AA, B.I. ...66, NIF ...92, detido no Estabelecimento Prisional ..., declara para todos os devidos e legais efeitos que, na hipótese de receber uma indemnização superior a € 100 000, 00 (cem mil euros) no âmbito do P.º 3087/19.9T8AVR, a correr termos pelo Juiz Central Cível de Aveiro (J...), se compromete a entregar a BB a quantia de € 20 000, 00 (vinte mil euros), por cheque à ordem deste e emitido por forma a poder ser levantado; na hipótese de a indemnização for inferior àquele valor, a entrega será apenas de 10% do valor recebido, a pagar nos mesmos termos anteriormente referidos. Facto 43 - A declaração termina com a assinatura do A., o local (Porto) e a data, 18- 1-2023.
7 – Da violação pelo Tribunal da Relação da lei processual civil, mais concretamente dos artigos 5º, nº 1 e nº 2, al. b) e 3º, nº 3 do NCPC: Perante os factos supra transcritos, a questão técnico-jurídica que se levanta é a de saber se o Tribunal da Relação podia ter aditado tais factos à factualidade dada como provada, sem mais, neles se baseando para aplicar o instituto do abuso de direito (artigo 334º do C.C.).
8 - A resposta está na definição e distinção feita pelo legislador do que são factos essenciais (nucleares e complementares/concretizadores) e factos instrumentais (artigo 5º do NCPC), assim como do que tem vindo a ser preconizado doutrinal e jurisprudencialmente a esse propósito. Estatui o artigo 5º do NCPC o seguinte:
1 - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas. 2 - Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções. 3 - O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
9 - Como se refere in «Introdução ao Estudo e Aplicação do Código de Processo Civil de 2013», João Correia, Paulo Pimenta, Sérgio Castanheira, pág.19: “ Antes de mais, é de notar que, muito intencionalmente, este preceito, tal como a sua epígrafe induz, trata em simultâneo duas vertentes que sempre estiverem reguladas em preceitos distintos: o ónus de alegação das partes e os poderes de cognição do tribunal.//Depois, o art. 5º torna claro que o ónus de alegação se circunscreve aos factos essenciais, isto é, àqueles de cuja verificação depende a procedência das pretensões deduzidas.// (…)// O confronto do nº1 do art. 5º com a alínea a) do nº 2 mostra que não há qualquer ónus de alegação quanto a factos instrumentais (isto é, factos que permitem a prova indiciária dos factos essenciais), menos ainda qualquer preclusão, devendo o juiz deles conhecer quando «resultem da instrução da causa».// Além disso, o teor da alínea b) do nº 2 art.5º revela que não há preclusão quanto a factos que, embora essenciais, sejam complementares ou concretizadores de outros inicialmente alegados. Neste contexto, são complementares ou concretizadores os factos que, embora necessários para a procedência das pretensões, não têm uma função individualizadora do tipo legal. Acerca da consideração destas duas categorias de factos, importa notar que o juiz pode e deve deles conhecer quando “resultem da instrução da causa” e “desde que sobre eles as partes tenham tido a oportunidade de se pronunciar”. (negrito e sublinhado nossos)
10 - Voltando ao douto acórdão de que ora se recorre, podemos concluir que foram os factos 39, 40, 41, 42 e 43, aditados oficiosamente pelo Tribunal «a quo», que serviram de fundamentação – ainda assim incorreta, salvo o nosso modesto entendimento - para «fazer acionar» o instituto do abuso de direito (artigo 334º do CC): “Será ainda correto concluir que é o que se verifica no caso concreto. O A., lesado em acidente de viação em que o veículo causador daquele não dispunha de seguro válido, pretende exercer o direito a ver-se indemnizado em situação em que seguia na viatura acompanhado por um grupo de amigos, todos eles referenciados como suspeitos numa vaga de assaltos que vinham sucedendo na zona em que circulavam. Ademais, transportavam no veículo uma plêiade de apetrechos adequados a perpetrar crimes contra o património. E é ao serem desrespeitadas as ordens legítimas de paragem com origem na autoridade policial, que circulava em carro devidamente caraterizado, no contexto de condução perigosa e na fuga à perseguição policial, que o A. sofre os danos cuja reparação visa através da presente ação. Assinala-se ainda que o A. se propôs mesmo partilhar, nas condições que bem explicitou na declaração que entregou ao R. BB, também por si demandado, a indemnização que viesse a perceber. Tal pacto é altamente indiciador do nível de entendimento pelo menos daqueles dois ocupantes do veículo e da aceitação pelo A. do risco em que se viu envolvido no contexto assinalado e de que o R. conduzisse da forma perigosa em que o fez. No caso concreto, o exercício do direito à reparação operaria, a ser acomodado, à margem do seu objetivo natural e da razão que presidiu à existência de legislação nesse sentido, contrariando, quanto a nós ostensivamente, o pulsar jurídico dominante. Face às específicas circunstâncias verificadas, o acolhimento da pretensão do A., ainda que emergente do exercício de um direito legalmente conferido, conduziria a uma situação de injustiça chocante e reprovável para o sentimento ético-jurídico comummente aceite e partilhado na comunidade. É, por isso, de julgar a presente apelação totalmente procedente, revogando-se a sentença proferida na parte sob recurso.
11 - Nessa medida, salvaguardando sempre o devido respeito por diverso entendimento, afigura-se-nos estarem em causa factos essenciais, nucleares, que o Tribunal «a quo» não podia ter aditado oficiosamente.
12 - Pode ainda ler-se in «Introdução ao Estudo e Aplicação do Código de Processo Civil de 2013», João Correia, Paulo Pimenta, Sérgio Castanheira, pág.20, que: «No âmbito dos factos essenciais, é possível distinguir dois planos, isto é, factos essenciais nucleares e factos essenciais complementares e concretizadores. Os “nucleares” constituem o núcleo primordial da causa de pedir ou da exceção, desempenhando uma função individualizadora ou identificadora, a ponto de a respetiva omissão implicar a ineptidão da petição inicial ou a nulidade da exceção. Já os “complementares” e os “concretizadores”, embora também integrem a causa de pedir ou a exceção, não têm já uma função individualizadora. Assim, os factos complementares são os completadores de uma causa de pedir (ou de uma exceção) complexa, ou seja, uma causa de pedir (ou uma exceção) aglutinadora de diversos elementos, uns constitutivos do seu núcleo primordial, outros complementando aquele. Por sua vez, os factos concretizadores têm por função pormenorizar a questão fáctica exposta, sendo exatamente essa pormenorização dos factos anteriormente alegados que se torna fundamental para a procedência da ação (ou da exceção).» (negrito e sublinhado nossos)
13 - Face ao ali explanado, dúvidas não sobejam de que os factos 39, 40, 41, 42 e 43, na perspetiva da fundamentação dada pelo Tribunal da Relação, no douto acórdão recorrido, para «fazer acionar» o abuso do direito e assim absolver o Fundo de Garantia Automóvel, são factos essenciais nucleares na medida em que exercem a referida função individualizadora e identificadora do mencionado instituto jurídico (isto, no contexto do raciocínio lógico-dedutivo gizado no douto acórdão, a nosso ver também inadmissível, nos termos que justificaremos um pouco mais tarde).
14 - Sendo factos essenciais nucleares nunca o Tribunal da Relação os poderia ter aditado à factualidade dada como provada, pelo que ao fazê-lo violou o disposto no artigo 5º, nº 1 do NCPC.
15 - Mas ainda que por mera hipótese de raciocínio se considere estarem em causa factos essenciais complementares ou concretizadores, também nunca o Tribunal da Relação os poderia ter aditado à matéria de facto assente, assim ampliando a matéria de facto, sem notificar as partes para o exercício do contraditório.
16 - É o que estatui o artigo 5º, nº 2, al. b) do NCPC, supra transcrito, assim como é o que tem vindo a ser preconizado jurisprudencialmente. Veja-se a título exemplificativo:
17 - Acórdão do STJ, de 06.11.2022 (processo 3714/15.7T8LRA.C1.S1), in www.dgsi.pt: “I – A artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do CPC, ao estatuir a necessidade de o tribunal possibilitar as partes de se pronunciarem acerca da consideração dos factos complementares ou concretizadores decorrentes da instrução da causa, prevê o cumprimento de um contraditório mais exigente, que não se compraz na simples notificação dos meios de prova produzidos de que emerge o facto, antes exigindo, igualmente, a prévia notificação das partes para se pronunciarem sobre a incorporação oficiosa dos novos factos.// II - No âmbito da própria atividade instrutória que a lei lhe atribui, o tribunal da Relação não se encontra cerceado nos poderes de cognição oficiosa para efeitos do artigo 5.º, n.º 2, do CPC. Contudo, atenta a interpretação a dar ao preceito no que toca à exigência acrescida de prévia notificação da pretensão de aditamento dos factos, não se mostra viável que, sem a anuência das partes, a Relação, em sede de conhecimento do recurso de matéria de facto, possa valorar a prova produzida quanto aos novos factos, ampliando a matéria de facto, sem previamente permitir que as partes possam ser alertadas para o efeito e, nessa medida, facultar a possibilidade de as mesmas produzirem a prova que entenderem por conveniente.
18 - Ora, ao aditar à factualidade provada os factos 39 a 43, sem a prévia audição das partes, o Tribunal da Relação violou a lei processual civil, mais concretamente o princípio do contraditório, plasmado nos artigos 5º, nº 2, al. b) e 3º, nº 3 do NCPC, pelo que se impõe a revogação do douto acórdão recorrido.
19 - Não obstante, na eventualidade de assim não se entender, o que não se concede, e por imperioso dever de patrocínio, dir-se-á também que:
20 – Da NULIDADE do acórdão nos termos do artigo 615º, nº 1, als. c) e d) e da insuficiência cabal da factualidade (erroneamente) aditada (factos 39, 40, 41, 42 e 43) para a aplicação do instituto do abuso de direito (artigo 334º do CC).
21 - Afastadas que foram todas as questões levantadas pelo Fundo de Garantia Automóvel (FGA) pelo douto acórdão recorrido, termina o Tribunal «a quo» com a questão oficiosa de se saber se o direito do Autor à indemnização deveria ser travado pelo abuso de direito (artigo 334º do CC).
22 - Sim, porque escalpelizados todos os pressupostos do direito do Autor a ser indemnizado pelos graves danos sofridos, não sobejaram dúvidas de que os mesmos se verificam e que, no fundo, a decisão de primeira instância não mereceria censura, condenando solidariamente o Réu FGA ao pagamento das indemnizações arbitradas.
23 - Recorde-se: a) a quantia de € 180.000,00 (cento e oitenta mil euros), a título de danos patrimoniais, acrescidos de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento; b) o montante de € 40.000,00 (quarenta mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, a partir da prolação da sentença, até efetivo e integral pagamento.
24 - Estamos a falar de um «quantum indemnizatório» bem representativo da gravidade dos danos sofridos pelo Autor, constantes dos pontos 5 a 32 da factualidade provada.
25 - Os interesses objeto de ponderação no caso «sub judice», face à questão levantada oficiosamente pelo Tribunal da Relação, são: por um lado, o direito ao ressarcimento destes danos, por outro lado, a alegada violação dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, quando exercido pelo Autor.
26 - Sucede que, salvaguardando sempre, com humildade, entendimento contrário, afigura-se-nos de todo em todo inadmissível considerar possível que os pontos aditados à factualidade dada como provada tenham a mínima virtualidade de permitirem a aplicação do instituto do abuso do direito (artigo 334º do Código Civil), pela sua natureza vaga, imprecisa, intuitiva, do comummente designado «senso comum».
27 - Não é de esperar que, depois de o douto acórdão recorrido escalpelizar com rigor técnico todas as questões levantadas pelo Recorrente FGA, acabe por «resvalar» para considerações genéricas, baseadas em «factos» vagos e inconsistentes e desse modo, sem mais, deixar totalmente desprotegido um lesado (gravemente lesado) em acidente de viação e que não vai poder obter o ressarcimento dos seus avultados prejuízos junto de uma seguradora.
28 - E isto porque, erradamente, percute-se, foram aditados à factualidade dada como provada os seguintes pontos: Facto 39 - O A., o R. e os demais ocupantes do veículo constituíam um grupo de amigos que na noite do sinistro se encontrava em área em que vinha ocorrendo uma vaga de crimes contra a propriedade, perpetrados por quatro indivíduos com o respetivo perfil. Facto 40 - No interior da viatura foi encontrado o material descrito no auto de notícia elaborado pela G.N.R., conforme doc. carreado para os autos pelo R. Fundo de Garantia Automóvel, e fotografado conforme doc. 4 junto com a petição inicial, assinaladamente lanternas, luvas, gorro, máscara, alicates, chaves estrela, chaves de fendas, pé de cabra, marretas e ponteiros de pedreiro. Facto 41 - A vaga de criminalidade existente na zona cessou após o sinistro. Facto 42 - O A. emitiu declaração, que entregou ao R. BB, com o seguinte teor: AA, B.I. ...66, NIF ...92, detido no Estabelecimento Prisional ..., declara para todos os devidos e legais efeitos que, na hipótese de receber uma indemnização superior a € 100 000, 00 (cem mil euros) no âmbito do P.º 3087/19.9T8AVR, a correr termos pelo Juiz Central Cível de Aveiro (J...), se compromete a entregar a BB a quantia de € 20 000, 00 (vinte mil euros), por cheque à ordem deste e emitido por forma a poder ser levantado; na hipótese de a indemnização for inferior àquele valor, a entrega será apenas de 10% do valor recebido, a pagar nos mesmos termos anteriormente referidos. Facto 43 - A declaração termina com a assinatura do A., o local (Porto) e a data, 18- 1-2023.
29 - Mas o Autor e o Réu BB eram os quatro indivíduos que perpetravam os referidos crimes contra a propriedade? Essa factualidade foi discutida em algum processo-crime, com sentença transitada em julgado? Quando? Qual ou em quais processos? E ainda que o tivesse sido, foi discutida e demonstrada nos presentes autos? Não!!!
30 - Aliás, o douto acórdão recorrido nega provimento ao entendimento do FGA de que se deveriam dar como provados os factos g) (todos os ocupantes do veículo de matrícula ..-..-LI se dedicavam à prática de ilícitos criminais, designadamente crimes de furto e roubo) e h) (o veículo de matrícula ..-..-LI era utilizado pelo grupo na execução de todas essas atividades ilícitas, pelo que, todos os membros que compunham esse grupo, tinham interesse na circulação desse veículo e retiravam vantagens económicas dessa circulação).
31 - Além da manifesta contradição e incoerência do acórdão recorrido quanto a esta matéria, que se vem a revelar fulcral para a decisão final, e que acarreta a sua NULIDADE, nos termos no artigo 615, nº 1, al. c) do N.C.P.C., a qual desde já se invoca para todos os devidos e legais efeitos, constata-se que o Tribunal «a quo» «deixou entrar pela janela o que não deixou entrar pela porta»!
32 - A vaga de assaltos cessou efetivamente? Pois se nada se demonstrou quanto aos pontos antecedentes, terá sido mera coincidência? Ficou demonstrado estatisticamente? Quais as motivações subjacentes à declaração subscrita pelo Autor? Nada ficou demonstrado a propósito destas questões, para as quais mais do que uma resposta é possível alinhavar.
33 - Dando por (naturalmente) adquiridos todos os argumentos expendidos a propósito do instituto do abuso do direito e do fim social do Fundo de Garantia Automóvel (FGA), afigura-se-nos líquido que a vaguidade, incerteza e inconsistência da factualidade dada como provada pelo Tribunal da Relação não permite subsumi-la ao instituto do abuso de direito (artigo 334º do C.C.).
34 - Como se menciona no Acórdão da Relação do Porto, datado de 27.06.2018, in www.dgsi.pt: «I - O abuso de direito tem carácter extraordinário, cuja aplicação não visa extinguir direitos, mas suscitar o seu exercício limitado ou moderado, sendo um instrumento de correção com uma vocação subsidiária e fragmentária, que só deve ser utilizado como uma última ratio e para situações de flagrante excesso no exercício de um direito subjetivo. II - A boa-fé no comportamento abusivo tem uma formulação objetiva, surgindo como um princípio de tráfico jurídico, sendo um standard aberto de comportamentos de franqueza e de confiabilidade, impondo específicas regras de conduta (lealdade, fidelidade, confiança, cooperação e informação). III - Os bons costumes contemporâneos são aqueles valores ou princípios, com carácter moral e validade jurídica, reconhecidos ou assumidos pela comunidade, estabelecendo um mínimo de exigências éticas de conduta ou convivência, no âmbito de uma sociedade decente, respeitando a laicidade, a pluralidade, a diversidade e a multiculturalidade. IV - O exercício ilegítimo de um direito subjetivo privado, por abuso de direito, só será manifesto e censurável, quando esse desempenho, para além de contrariar um dos seus critérios específicos (boa fé, bons costumes, finalidade económica ou social), conduzir, em concreto e atendendo à globalidade dos acontecimentos, a uma injustificada desproporção entre o benefício decorrente desse direito e a desvantagem resultante do correspondente dever para a contraparte, não surgindo aquele ou este, como necessários, adequados, na justa medida e para assegurar um interesse legítimo.»
35 - O único fim que o Autor pretende atingir com a propositura da presente ação judicial é o de obter uma indemnização para ressarcimento dos danos e prejuízos de que foi vítima na sequência de um acidente de viação, a qual teve que propor contra o FGA pela circunstância de o veículo não ter seguro, circunstância relativamente à qual era totalmente alheio e que desconhecia.
36 - Ao ressarcir tais danos e prejuízos, o Fundo de Garantia Automóvel está a cumprir o fim social para o qual foi criado.
37 - Pretender «aniquilar» tal direito, legítimo e cabalmente demonstrado, apenas com base em meras «intuições» e /ou «especulações», traduzidas em factualidades genéricas, vagas e inconsistentes, constituiria uma clamorosa e chocante injustiça material, essa, sim, atentatória do social e comunitariamente esperado.
38 - Para finalizar, e ainda este propósito, de realçar o facto de o legislador ter previsto situações específicas e concretas para a exclusão da responsabilidade do FGA, plasmadas no artigo 52º, nº 2, do DL nº 291/2017, de 21 de Agosto.
39 - Nenhuma delas ficou demonstrada nos presentes autos, mormente as previstas nas alíneas b) e c) do nº 2 do referido normativo.
40 - Reportando-nos muito especificamente à alínea c) do nº2 do artigo 52º do DL nº 291/2017, de 21/08, que exclui da garantia do Fundo os danos de autor, cúmplice, encobridor e recetador de roubo de veículo, furto de veículo ou furto de uso de veículo que intervenha no acidente, manifestamente inaplicável neste caso concreto, de realçar que o douto acórdão da Relação não se pronuncia quanto ao mesmo, não obstante tenha sido uma das questões levantadas pelo Réu Fundo de Garantia Automóvel nas suas conclusões de recurso, havendo também NULIDADE do acórdão por omissão de pronúncia, nesta parte, nos termos do artigo 615º, nº 1, al. d) do C.P.C., a qual desde já se invoca para todos os devidos e legais efeitos.
41 - A importância de este normativo ter sido apreciado pelo Tribunal «a quo» é tanto maior quanto, tendo o legislador especificamente regulado as situações de exclusão da responsabilidade do FGA, sendo uma delas (a alínea c)), relativa a uma situação de natureza criminal, seria de esperar que se a pretensão fosse a de a exclusão se verificar nas situações em que o acidente ocorresse num contexto de atividade criminosa (que não ficou demonstrada, saliente-se), a redação da referida alínea seria forçosamente diferente.
42 - Não estando prevista essa exclusão de garantia do Fundo no normativo especificamente criado para o efeito, não pode ser afastada pela intervenção de um instituto de aplicação residual, como é o caso do abuso de direito (art. 334º do C.C.) ou, ainda que assim não se entenda, a subsunção ao referido instituto jurídico terá ser escrupulosa e cirurgicamente ponderada, concluindo-se pela sua inaplicabilidade no caso em apreço.
43 - O douto acórdão recorrido violou os seguintes normativos: artigos 5º, nº 1 e nº 2, al. b) e 3º, nº 3 do NCPC; artigo 615º, nº 1, als. c) e d) do NCPC; 334º do C.C.
Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido.
O R. contra alegou, pugnando pela improcedência do recurso de revista interposto pelo A.
QUESTÕES A DECIDIR
Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões do recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), as questões a decidir são:
a) violação do disposto no art. 5º, nºs 1 e 2, al. b), e 3º, nº 3, do CPC;
b) nulidades do acórdão;
c) da (in)existência de abuso de direito.
Cumpre decidir, corridos que se mostram os vistos.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Vêm dados como provados os seguintes factos:
1 - O ora R. BB foi condenado, por sentença proferida a 15/11/2018, no processo comum singular n.º 202/17.0..., transitada em julgado a 17/12/2018, pela prática, como autor material, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 14.º, n.º 1, 15.º, b), 26.º, 1.ª proposição, e 291.º, 1, b), e 2, todos do C. Penal, na pena de 10 meses de prisão, pena esta cuja execução foi suspensa pelo período de um ano, mediante sujeição a regime de prova - fls. 112/121 (A).
2 - Na sentença proferida no processo comum singular n.º 202/17.0... foram dados como provados (além do mais que não interessa reproduzir) os seguintes factos:
1. No dia 29 de março de 2017, pelas 02,10 horas, no cruzamento da Rua ..., na freguesia de ..., o arguido BB conduzia o veículo automóvel ligeiro de marca Rover, matrícula ..-..-LI, seguindo consigo no interior do automóvel os passageiros DD, EE e AA.
2. No mesmo momento, aproximou-se daquele cruzamento um automóvel da GNR, devidamente caracterizado, conduzido pelo Guarda FF, acompanhado pelo Guarda GG.
3. O automóvel conduzido pelo arguido iniciou a sua marcha na direção de Albergaria-a-Velha, seguindo na sua retaguarda o automóvel da GNR.
4. Após cerca de 300 metros, o veículo da GNR acionou os sinais de emergência rotativos, com vista à imobilização da viatura conduzida pelo arguido, mais tendo efetuado pelo menos dois sinais sonoros.
5. Nessa altura, o arguido passou a assumir um comportamento inconstante na condução do veículo, tanto abrandando a marcha a dar impressão de que iria parar, como acelerando a velocidade.
6. Ato contínuo, o arguido acelerou de forma brusca o automóvel que conduzia, virou repentinamente à direita, entrando na EN 533, e de imediato foi seguido pelo automóvel da GNR.
7. O veículo conduzido pelo arguido circulou então durante sensivelmente um quilómetro, em velocidade concretamente não determinada, mas não inferior a 120 km/hora, numa zona onde a velocidade máxima permitida é de 50 km/hora.
8. Ao efetuar uma curva apertada à direita, de reduzida visibilidade, o automóvel conduzido pelo arguido despistou-se e embateu frontalmente contra o muro da residência propriedade de HH, imobilizando-se de imediato.
9. Como consequência da colisão, o ocupante DD foi projetado para o pavimento e os demais passageiros ficaram retidos no interior do automóvel, tendo os mesmos sofrido as seguintes lesões, que necessitaram de tratamento hospitalar:
- EE: lesão no eixo sagital da face à direita, com necessidade de sutura; lesão na região frontal direita, com necessidade de sutura; lesão na coxa esquerda; fratura da linha média da mandíbula, com deslocamento antero-posterior; fratura com desalinhamento do arco zigomático direito, atingindo também as paredes do seio maxilar desse lado e o pavimento orbitário;
- DD: lesão na região frontal direita, com cerca de 3 cm e necessidade de sutura; lesão na região frontal esquerda, com cerca de 2 cm e necessidade de sutura; lesão na região occipital à direita; hematoma epicraniano frontal com predomínio direito e extensão periorbitária e malar desse lado;
- AA: fratura exposta do antebraço esquerdo; escoriação do joelho esquerdo; lesão mesencefálica e do globo ocular.
10. Devido aos ferimentos sofridos, todos os passageiros foram transportados ao hospital, sendo DD e EE concretamente ao “Centro Hospitalar 1”.
11. O arguido sabia que não podia conduzir naquela via pública à velocidade a que seguia, por dessa forma poder colocar em perigo a vida ou integridade física de passageiros do seu veículo ou de outros utentes da via, assim como de bens patrimoniais alheios de valor elevado, perigo esse que apenas por imprevidência não chegou sequer a representar;
12. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, sem usar do cuidado que lhe era exigível e de que era capaz.
13. Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
25. Possui as seguintes condenações:
- Um crime de condução de veículo sem habilitação legal, praticado em 24 de janeiro de 2006, pelo qual foi condenado na pena de 120 dias de multa, por decisão proferida no PS n.º 45/06.7..., do ....º Juízo Criminal de ..., transitada em julgado em 8 de fevereiro de 2006;
- Um crime de furto qualificado, praticado em 7 de janeiro de 2008, pelo qual foi condenado na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período, por decisão proferida no PCC n.º 30/08.4..., da ....ª Vara Mista de ..., transitada em julgado em 12 de março de 2009;
- Um crime de condução de veículo sem habilitação legal, praticado em 15 de abril de 2013, pelo qual foi condenado na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, por decisão proferida no PS n.º 314/13.0..., do ....º Juízo Criminal de ..., transitada em julgado em 15 de maio de 2013;
- Um crime de dano, praticado em 14 de junho de 2013, pelo qual foi condenado na pena de 150 dias de multa, por decisão proferida no P. Sumaríssimo n.º 403/13.0..., do ....º Juízo Criminal de ..., transitada em julgado em 30 de janeiro de 2014;
- Um crime de consumo de estupefacientes, praticado em 25 de janeiro de 2013, pelo qual foi condenado na pena de 40 dias de multa, por decisão proferida no PCC n.º 41/13.8..., da Instância Central Criminal do Porto - J..., transitada em julgado em 5 de março de 2015;
- Um crime de burla, praticado em 22 de dezembro de 2014, pelo qual foi condenado na pena de 9 meses de prisão, substituída por 270 horas de PTFC, por decisão proferida no PCS nº 233/15.5..., da Instância Local Criminal de Coimbra - J..., transitada em julgado em 13 de fevereiro de 2017;
- Um crime de desobediência, praticado em 28 de maio de 2015, pelo qual foi condenado na pena de 8 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano, por decisão proferida no PCS nº 538/15.5..., da Instância Local Criminal de ... - J..., transitada em julgado em 24 de abril de 2017;
- Um crime de detenção de arma proibida, praticado em 14 de julho de 2014, pelo qual foi condenado na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período, por decisão proferida no PCS nº 1251/14.6..., da Instância Local Criminal de ... - J..., transitada em julgado em 10 de julho de 2017;
- Um crime de falsas declarações, praticado em 16 de dezembro de 2014, pelo qual foi condenado na pena de 60 dias de multa, por decisão proferida no P. Sumaríssimo n.º 856/15.2..., da Instância Local Criminal de ... - J..., transitada em julgado em 22 de fevereiro de 2018 (B).
3 - O veículo de marca Rover e matrícula ..-..-LI encontra-se registado na Conservatória do Registo Automóvel em nome do ora R. CC desde 15/06/2015 - fls. 37 (C).
4 - O veículo de matrícula ..-..-LI circulava no dia 29/03/2017 sem beneficiar de seguro automóvel válido e eficaz (D).
5 – O A., AA, nasceu a .../.../1992 – fls. 259.
6 – O A., após o acidente, foi conduzido, de urgência, para o Centro Hospitalar 2, tendo sido admitido no Serviço de Urgência pelas 05,39 horas do dia 29/03/2017.
7 – Da documentação clínica do Centro Hospitalar 2 consta:
"(...) Cirurgia. Politraumatizado. Acidente de viação (lugar pendura). Apresentava anisocoria, estado de consciência flutuante e crise convulsiva tendo sido entubado e ventilado no local. # exposta do MSE # arcos costais à direita (...) A: Entubado e ventilado. Via aérea patente com proteção cervical. B: Sem desvio aparente da traqueia, diminuição da expansibilidade torácica à direita. Percussão parenquimatosa. AP: MV + simétrico, bilateralmente. SaO2 (aa): 100%. C: Palidez cutânea. Hemodinamicamente estável (TA 107/64 mmHg; FC 87 bpm); Pulso regular. Tempo de perfusão capilar discretamente aumentado. Abdómen mole e depressível. # exposta do MSE e escoriação anterior do joelho esquerdo. Sem sinais de instabilidade pélvica à compressão L-L ou A-P. Escoriação frontal sob o couro cabeludo. Hematoma peri-orbitário direito e aparentemente retro-ocular. D: EG 6-8, anisocoria, sem sinais de lateralização motora. E: Sem hipotermia, sem lesões aparentes de qualquer outra parte anatómica. Sem lesões perineais. (...).Ortopedia. Doente vítima de acidente de viação. Do ponto de vista ortopédico, apresenta # exposta do antebraço esquerdo grau II gustilo-anderson e escoriação do joelho esquerdo. (...).
Medicina intensiva. Politraumatizado (...). No local teria escala de Glasgow de 15 com mobilização dos membros (...) RX tórax e TAC tórax sem evidência de hemopneumotorax ou fratura de costelas. ECOfast não mostra derrame peritoneal. Bacia, coluna dorsal e lombar aparentemente sem lesões. Cervical sem lesões. TC CE com suspeita de lesão axonal difusa. (...).
Neurocirurgia (...) Ao EO: sedado e ventilado. Colar de Philadelphia. Anisocoria OD>OE. TC-CE: Pequenas coleções hemorrágicas dispersas, nomeadamente mesencefálicas e alta convexidade. Sulcos patentes, sem estigmas de edema cerebral. Proptose do globo ocular direito. TC cervical sem aparentes fraturas. Plano: De momento sem necessidade de terapêutica neurocirúrgica. Anisocoria em relação com provável lesão mesencefálica e/ou lesão do globo ocular. (...).
Medicina Intensiva» Vai ao bloco pela ortopedia e posteriormente será internado no SMI.
Oftalmologia (...) Anisocoria poderá ser explicada por lesão axonal e hipotropia ligeira do OD por possível fratura do pavimento da órbita. (...).
Ortopedia» Doente com # exposta dos ossos do antebraço esquerdo. Para tratamento cirúrgico (...).
Alta em 29/03/2017 pelas 08h30 para o Serviço de Internamento.
8 - Da documentação clínica do Centro Hospitalar 3 consta:
- Relatório de Alta - Serviço de Ortopedia e Traumatologia.
Data de admissão 07/04/2017 e data de alta 10/04/2017
"Doente internado no Centro Hospitalar 2 em 29/03/2017 (onde esteve internado até dia 7 de abril (...). Vítima de politraumatismo com TCE em contexto de acidente de viação de que resultou fratura dos ossos do antebraço esquerdo. Foi intervencionado em ... onde foi submetido a desbridamento cirúrgico e osteossíntese de fratura dos ossos do antebraço esquerdo. No dia 07/04/2017 foi transferido erradamente para o Hospital 1. Internado nesta instituição de 07 a 10.04.2017 para vigilância, por ser área de residência do utente. (...)
- Consulta de Ortopedia.
08/05/2017 - "Fratura dos ossos do antebraço esquerdo operada a 28 03 (desbridamento e osteossíntese com placa e parafusos). Défice marcado nos movimentos dos dedos da mão esquerda. Clinicamente alterações sugestivas de lesão do nervo mediano. Cicatrizes bem (...)".
03/07/2017 - "Queixas dolorosas ocasionais. Iniciou fisioterapia há 2 semanas. Sente-se a melhorar. EMG - muito severa lesão radial esquerda, mediano esquerdo (incompleta). Lesão acentuada do nervo cubital. Mantém fisio. (...)".
11/12/2017 - "Mantém queixas dolorosas no punho e mão esquerda. Parestesias nos dedos da mão e marcadas alterações da sensibilidade (mais marcada do mediano). Flexão preservada nos 4.º e 5.º dedos. Deformidade em flexão de D2 e D3. Pouco melhor com fisio. (...)".
- Relatório Médico - Neurologia - fevereiro de 2018 "Jovem de 25 anos, avaliado por mim aquando do internamento no S. Ortopedia em abril de 2017 e, posteriormente, em Consulta Externa em Maio do mesmo ano. Faltou à consulta agendada bem como aos exames auxiliares de diagnóstico solicitados (RM Coluna Cervical e Plexo Braquial + EMG/VC) e à consulta de Medicina Física e Reabilitação. Assim, transcrevo as minhas notas da consulta de maio de 2017 (...) Jovem de 24 anos de idade. Teve acidente de viação em abril deste ano, com TCE e com fratura do rádio e do cúbito esquerdos. Inicialmente assistido no Centro Hospitalar 2, onde foi submetido a cirurgia ortopédica ao antebraço esquerdo. Transferido para o A. Ortopedia do Centro Hospitalar 3 (...) Observado no internamento, por alterações cognitivas e ataxia. Transcreve-se a avaliação dessa data: "Sentado no cadeirão, colaborante e orientado no espaço. Não se lembra do acidente, nem da cronologia exata dos acontecimentos até hoje mas reconhece a cirurgia ao antebraço e fornece dados da anamnese. Diz estar assintomático agora. Não tem alterações da linguagem nem hemianópsia. Ao exame dos pares cranianos: discreta anisocoria por maior diâmetro da pupila direita (sem ptose mas talvez com uma discreta limitação da supraversão do olho direito) + sugestão de parésia facial direita, central, involuntária; sem qualquer outra alteração, nomeadamente diplopia, aprésia de pares cranianos mais baixos. Sem défices motores. Sugestão de dismetria na prova dedo-nariz-dedo à direita (à esquerda é impossível de avaliar pela limitação ortopédica atual). Marcha com base alargada." Por suspeita de Lesão Axonal Difusa fez RM CE após a alta, cujo resultado se transcreve: "coleções subdurais frontais anteriores bilaterais, mais extensa à direita, onde apresenta cerca de 10 mm (5 mm de espessuara, à esquerda) (...) sugerindo hematomas subdurais crónicos, em relação com os antecedentes traumáticos conhecidos. Condicionam atenuação do parenquima subjacente, mas sem desvio das estruturas da linha média. Admite-se descontinuidade óssea na região frontal anterior à direita (orifício de trépano?). Observa-se provável contusão no pedúnculo cerebral esquerdo, vertente lateral (...) sugerindo componente hemático. Existe ainda contusão hemorrágica subcortical frontal esquerda, pericentimetrica, sem efeito de massa associado. (...) múltiplos focos de hipossinal dispersos na substância branca subcortical frontal, bilateralmente e mais escassos na região temporal direita e na vertente anterior e medial do pedúnculo cerebral esquerdo, sugerindo hemorragias petequiais, evocando lesão axonal difusa/múltiplos focos contusionais. O sistema ventricular tem dimensões normais, sem evidência de hidrocefalia." Atualmente: Muito melhor do ponto de vista cognitivo e sem ataxia da marcha. Persistem queixas de diplopia e de dormência do hemicorpo direito. Retirou gesso e apresenta hipoestesia nos 3 dedos (polegar, 1º e 2º dedo) da mão esquerda. Limitação na extensão do punho, nos movimentos de oponência do polegar e sugestão de atrofia da eminência tenar. Reflexos: abolido o C6. Impressão: - não se confirma a lesão axonal difusa; tem alguns focos de contusão que justificam as queixas de diplopia e de dormência do hemicorpo direito, neste momento sem necessidade de reabilitação cognitiva. - perda de função da mão, com possível dano neurológico que só agora é possível avaliar (estava com gesso) - peço RMN Cervical (raízes) e do plexo braquial esquerdo + EMG/VC".
- Registos de Consulta:
MFR 21/08/2017 – “Melhoria parcial. Já não refere dor. EO: Cotovelo: -5/130º. Mantém restantes alterações. Fez EMG: muito severa lesão incompleta do radial esquerdo + muito severa mas incompleta lesão do nervo mediano + lesão acentuada mas comparativamente mais moderada do nervo cubital. Plano: continua reabilitação”. MFR 26/10/2017 – “Tem faltado aos tratamentos, recusou fazer a tala prescrita. EO: Rigidez acentuada do punho, 3º, 4º e 5º dedos (…)”.
Neurologia 30/11/2018 – “# Sequelas de TCE e de lesão de nervos periféricos do MS esquerdo. O 2º EMG confirmou a lesão grave do radial, mediano e cubital do MS esquerdo. (…) Sem mais a propor por Neurologia uma vez que as sequelas cognitivas estão muito melhoradas, espontaneamente”.
Ortopedia 26/11/2018 - “Mantém marcada deformidade e impotência funcional da mão esquerda (…).
9 - O A. apresenta marcha normal, sem apoio nem claudicação.
10 - O A. apresenta as seguintes sequelas relacionáveis com o acidente dos autos:
- Membro superior esquerdo: cicatriz com 19cm na face antero-lateral do antebraço. Cicatriz com 15cm na face posterior do antebraço. Cicatriz com 1.5cm na face anterior do terço médio do antebraço. Cicatriz com 5cm na face anterior do punho. Perda marcada de massa muscular no braço e antebraço. Hipossensibilidade e sensação de parestesias ao toque do antebraço e mão. Dor na palpação das regiões cicatriciais. Mobilidade dos ombro e cotovelo mantidos. Rotação interna da metade inferior do antebraço. Punho em flexão de 40º. Amplitude de movimento ativo do punho de 5º. Todos os dedos em flexão. Quarto e quinto dedos com flexão e extensão possíveis, estando a extensão limitada nos últimos graus. Primeiro dedo em extensão, com amplitude de movimentos residual. Segundo e terceiro dedos com articulação metacarpofalangica em extensão e interfalângicas em flexão com amplitude de movimentos residual. Diminuição da força muscular do antebraço, punho e mão.
- Membro inferior esquerdo: cicatriz com 3cm por 2cm na face medial do joelho.
11 – A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 15/05/2019
12 – O período de défice funcional temporário total é fixável num período de 13 dias (entre 29/03/2017 e 10/04/2017).
13 – O período de défice funcional temporário parcial é fixável em 765 dias (entre 11/04/2027 e 15/05/2019).
14 – O período de repercussão temporária na atividade profissional total é fixável num período de 778 dias (entre 29/03/2017 e 15/05/2019).
15 – O quantum doloris é fixável no grau 5/7.
16 - O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica é fixável em 36 pontos.
17 – É de perspetivar a existência de dano futuro, por ser certa a perda funcional do pouco movimento ainda presente e a necessidade de correção posicional através de cirurgia.
18 – As sequelas descritas são, em termos de repercussão permanente na atividade profissional, impeditivas do exercício da sua atividade profissional habitual, bem assim como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional.
19 – Dano estético permanente: é fixável no grau 4/7.
20 – Repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer fixável no grau 3/7.
21 - Repercussão permanente na atividade sexual: é fixável no grau 2/7.
22 – Dependências permanentes de ajudas: ajuda de terceira pessoa para atividades que necessitem impreterivelmente da mão esquerda ou do uso das duas mãos, como, por exemplo, vestir/despir, apertar cordões, alimentação.
23 – Do atestado médico de incapacidade multiuso junto a fls. 51, datado de 15/05/2019, consta que o ora A. é portador de incapacidade que lhe confere uma incapacidade permanente global de 62,23%.
24 – O A. trabalhou durante um curto período de tempo como jardineiro.
25 – O A. gozava, à data do acidente, de boa saúde.
26 – As lesões que sofreu no acidente causaram-lhe e causam-lhe, pela deficiência de que ficou a padecer, uma profunda e enorme tristeza e dor, bem como um permanente sentimento de revolta e frustração.
27 – E sente-se profundamente desgostoso por ver o seu corpo deformado.
28 – O acidente provocou no A. medo e angústia.
29 – E teve incómodos e muitas dores com os transportes para os hospitais e os diversos tratamentos médico-cirúrgicos a que teve de ser submetido.
30 – Durante todo o longo período de incapacidade, o A. sentiu medo e sentiu-se angustiado atentas as dores inerentes às lesões que sofreu e às intervenções e tratamentos a que foi sujeito.
31 – Sentiu e sente grande ansiedade, fácil irritabilidade e angústia não só pelas dores, mas também pela impossibilidade de realizar bastantes gestos e executar inúmeras tarefas.
32 – E de necessitar para muitos atos da vida quotidiana da assistência de terceira pessoa.
33 - Todos os ocupantes do veículo de matrícula ..-..-LI estavam referenciados pela prática de crimes, designadamente contra o património.
34 - Motivo pelo qual, naquele dia e àquela hora, o condutor do veículo de matrícula ..-..-LI decidiu encetar uma fuga quando este veículo foi intercetado por uma brigada da GNR.
35 - Após o acidente, os agentes da autoridade vieram a apreender vários objetos e ferramentas que se encontravam no interior do veículo de matrícula ..-..-LI, que se encontram discriminados no “auto de notícia” junto a fls. 93/97v. e que eram suscetíveis de serem utilizados na execução dos mencionados crimes contra o património.
36 - O R. CC vendeu o veículo automóvel da marca Rover com a matrícula ..-..-LI ao co-R. BB em março de 2016.
37 - O co-R. BB celebrou um contrato de seguro com a C.A. Seguros, tendo sido emitida a Apólice n.º AP- ...27, com data de emissão de 20-05-2016, através do qual transferiu para esta seguradora os riscos decorrentes da circulação do veículo com matrícula ..-..-LI
38 - Posteriormente, a 10-02-2017, celebrou novo contrato de seguro, para o mesmo veículo, com a seguradora Caravela Seguros, S.A., tendo sido emitida a Apólice n.º ...38, que se manteve em vigor até 10-03-2017, tendo sido anulado a pedido do segurado BB em 10-03-2017.
39 - 1 O A., o R. e os demais ocupantes do veículo constituíam um grupo de amigos que na noite do sinistro se encontrava em área em que vinha ocorrendo uma vaga de crimes contra a propriedade, perpetrados por quatro indivíduos com o respetivo perfil.
40 - No interior da viatura foi encontrado o material descrito no auto de notícia elaborado pela G.N.R., conforme doc. carreado para os autos pelo R. Fundo de Garantia Automóvel, e fotografado conforme doc. 4 junto com a petição inicial, assinaladamente lanternas, luvas, gorro, máscara, alicates, chaves estrela, chaves de fendas, pé de cabra, marretas e ponteiros de pedreiro.
41 - A vaga de criminalidade existente na zona cessou após o sinistro.
42 - O A. emitiu declaração, que entregou ao R. BB, com o seguinte teor: AA, B.I. ...66, NIF ...92, detido no Estabelecimento Prisional ..., declara para todos os devidos e legais efeitos que, na hipótese de receber uma indemnização superior a € 100 000, 00 (cem mil euros) no âmbito do P.º 3087/19.9T8AVR, a correr termos pelo Juiz Central Cível de Aveiro (J...), se compromete a entregar a BB a quantia de € 20 000, 00 (vinte mil euros), por cheque à ordem deste e emitido por forma a poder ser levantado; na hipótese de a indemnização for inferior àquele valor, a entrega será apenas de 10% do valor recebido, a pagar nos mesmos termos anteriormente referidos.
43 - A declaração termina com a assinatura do A., o local (Porto) e a data, 18-1-2023.
*
E foram dados como não provados os seguintes factos:
a) os passageiros do ..-..-LI – entre os quais o ora A. – advertiram e avisaram o aqui R. BB de que não havia qualquer necessidade de conduzir da forma referida em 2 dos Factos Provados, sendo que este, não obstante, não acatou tais pedidos, prosseguindo a sua marcha, em nada alterando o seu comportamento e/ou conduta;
b) o A., à data do acidente, tinha a profissão de mecânico de automóveis;
c) o A., à data do acidente, vivia de forma alegre e harmoniosa, sendo um jovem feliz e dinâmico;
d) o A. perdeu a vontade de viver;
e) o R. BB conduzia o ..-..-LI com o conhecimento, autorização, sob as ordens, por conta e direção efetiva do R. CC, proprietário de tal viatura;
f) o A. tinha conhecimento de que a circulação do veículo automóvel de matrícula ..-..-LI não se encontrava garantida por qualquer contrato de seguro;
g) todos os ocupantes do veículo de matrícula ..-..-LI se dedicavam à prática de ilícitos criminais, designadamente, crimes de furto e roubo;
h) o veículo de matrícula ..-..-LI era utilizado pelo grupo na execução de todas essas atividades ilícitas, pelo que, todos os membros que compunham esse grupo, tinham interesse na circulação desse veículo e retiravam vantagens económicas dessa circulação.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Não vem posta em causa a admissibilidade do presente recurso de revista, conforme despacho de 7.4.2025 da relatora.
Conforme resulta das conclusões de recurso, o Recorrente começa por invocar nulidade processual, por aditamento pelo tribunal recorrido de factos nucleares essenciais, em violação do disposto no art. 5º, nº 1, do CPC, ou, assim não se entendendo, por estar em causa o aditamento de factos essenciais complementares ou concretizadores à matéria de facto assente, ampliando-a, sem que o tribunal recorrido tivesse notificado as partes para o exercício do contraditório.
Dispõe o art. 5º do CPC que “1. Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas. 2. Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.” 2.
Constituem factos essenciais (ou principais) “aqueles que, de acordo com as normas aplicáveis ao caso, exerçam uma função constitutiva do direito invocado pelo autor ou, pelo contrário, tenham natureza impeditiva, modificativa ou extintiva de tal direito”, enquanto os factos instrumentais, circunstanciais ou probatórios são apenas coadjuvantes daqueles, permitem concluir sobre a realidade dos factos essenciais em discussão, sendo que “da respetiva prova não deriva imediatamente a solução jurídica do caso” 3.
Como explicava Lopes do Rego, em Comentários ao CPC, Vol. I., pág. 252, “Os factos essenciais são os que concretizando, especificando e densificando os elementos da previsão normativa em que se funda a pretensão do autor ou do reconvinte, ou a exceção deduzida pelo réu como fundamento da sua defesa, se revelam decisivos para a viabilidade ou procedência da ação, da reconvenção ou da defesa por exceção, sendo absolutamente indispensáveis à identificação, preenchimento e substanciação das situações jurídicas afirmadas e feitas valer em juízo pelas partes”.
São, por outro lado, factos essenciais complementares ou concretizadores de outros antes alegados aqueles que, embora necessários à procedência das pretensões, não tenham uma função individualizadora do tipo legal 4. “(…) Assim, os factos complementares são os completadores de uma causa de pedir (ou de uma exceção), complexa, ou seja, uma causa de pedir (ou uma exceção) aglutinadora de diversos elementos, uns constitutivos do seu núcleo primordial, outros complementando aquele. Por sua vez, os factos concretizadores têm por função pormenorizar a questão fáctica exposta, sendo exatamente essa pormenorização dos factos anteriormente alegados que se torna fundamental para a procedência da ação (ou da exceção). (…).” 5.
Miguel Teixeira de Sousa, em Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., págs. 70/71, ao indicar a função de cada um dos tipos de factos, escreve que “… os factos essenciais realizam uma função constitutiva do direito invocado pelo autor ou da exceção deduzida pelo réu: sem eles não se encontra individualizado esse direito ou exceção, … - os factos complementares possibilitam, em conjugação com os factos essenciais de que são complemento, a procedência da ação ou da exceção: sem eles a ação ou a exceção não pode ser julgada procedente; …”.
No caso sub judice, o tribunal recorrido aditou à factualidade provada os factos 39 a 43, os quais, juntamente com outros já dados como provados, fundamentaram a aplicação do instituto do abuso de direito por aquele tribunal, afigurando-se-nos inquestionável que os mencionados factos revestem a característica de factos complementares e, outros, concretizadores, de outros alegados, e que se mostraram essenciais para a aplicação do referido instituto e procedência da exceção (conhecida oficiosamente).
Nesta conformidade, não podia o tribunal recorrido ter procedido à ampliação da matéria de facto, aditando-lhe factos complementares e concretizadores de outros alegados, sem informar as partes de que assim ia proceder e de lhes dar a oportunidade de se pronunciarem (cfr. o Ac. do STJ de 6.9.2022, P. nº 3714/15.7T8LRA.C1.S1 (Graça Amaral), em www.dgsi.pt, referido pelo recorrente, bem como o Ac. do STJ de 7.2.2017, P. nº 1758/10.4TBPRD.P1.S1 (Pinto de Almeida), na mesma base de dados, referido naquele).
E, principalmente, não podia o tribunal recorrido ter aplicado o instituto de abuso de direito, suportado, também, na factualidade ampliada, sem ter dado oportunidade às partes de se pronunciarem, na medida em que a questão não foi colocada na 1ª instância, nem em sede de recurso de apelação, tendo o tribunal conhecido de tal matéria (de exceção) oficiosamente, o que não estava impedido de fazer, desde que, previamente, tivesse cumprido o contraditório.
Dispõe o art. 3º, nº 3, do CPC, que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Do preceito mencionado resulta que é, sempre, exigível o cumprimento do princípio do contraditório, antes do juiz conhecer das questões de facto ou de direito que se lhe colocam, mesmo que de conhecimento oficioso, só assim não sendo por manifesta desnecessidade, que o juiz deverá explicitar.
A propósito do âmbito da regra do contraditório, escreve Lebre de Freitas, em Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto, 1996, pág. 96, que “A esta conceção, válida mas restritiva, substitui-se hoje uma noção mais lata de contrariedade, com origem na garantia constitucional do “rechtliches Gehör” germânico, entendida como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a plena possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontram em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo”.
Como refere Lopes do Rego, na ob. cit., pág. 32, “o entendimento amplo da regra do contraditório, afirmado pelo nº 3 do art. 3º, não limita obviamente a liberdade subsuntiva ou de qualificação jurídica dos factos pelo juiz – tarefa em que continua a não estar sujeito às alegações das partes relativas à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 664º); trata-se, apenas e tão somente, de, previamente, ao exercício de tal “liberdade subsuntiva” do julgador, dever este facultar às partes a dedução das razões que considerem pertinentes, perante um possível enquadramento ou qualificação jurídica do pleito, ou uma eventual ocorrência de exceções dilatórias, com que elas não tinham razoavelmente podido contar”.
O Tribunal Constitucional “tem reiteradamente entendido que o direito de defesa e o direito ao contraditório, enquanto dimensões indissociáveis do direito ao processo equitativo consagrado no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição, impõem ao tribunal não apenas o dever de conceder à parte a possibilidade de se pronunciar sobre as razões de facto e de direito oferecidas pela parte contrária, mas também o dever de permitir que as partes sejam chamadas a influenciar a formação de quaisquer decisões que lhes digam respeito, ainda que recaiam sobre questões de conhecimento oficioso.”, como nos dá nota o Ac. do TC nº 192/2022 (Joana Fernandes da Costa), em www.dgsi.pt.
Nesta conformidade, e tendo em conta que o tribunal recorrido não deu possibilidade às partes de se pronunciarem quer quanto ao aditamento dos factos essenciais complementares e concretizadores, quer quanto à aplicação (oficiosa) do referido instituto, assiste razão ao recorrente, quando sustenta ter ocorrido nulidade processual, com influência na decisão de mérito, que determinaria a anulação do acórdão recorrido.
Entendemos, porém, que não deve ser anulado o acórdão recorrido para que o Tribunal da Relação do Porto promova o exercício do contraditório e profira novo acórdão, uma vez que se nos afigura que a factualidade tida por assente (mesmo com a ampliação feita pelo tribunal recorrido) não permite concluir nos termos em que este o fez.
Vejamos, começando por analisar a natureza do direito exercido face ao FGA.
O Decreto Lei nº 408/79, de 25.9, que instituiu o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, dispunha no art. 20º que “Os direitos dos lesados por acidentes ocorridos com veículos sujeitos ao seguro obrigatório poderão ser efetivados, nos termos que legalmente vierem a ser estabelecidos, contra o fundo de garantia automóvel, a instituir no âmbito do Instituto Nacional de Seguros, nos seguintes casos: a) quando o responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro válido ou eficaz; b) quando for declarada a falência do segurador.”.
O Decreto Regulamentar nº 58/79, de 25.09, instituiu o FGA, estatuindo que lhe competia “satisfazer as indemnizações de morte ou lesões corporais consequentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório, nos casos previstos no artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 408/79” (art. 2º, nº 2), excluiu da sua garantia “os danos causados às pessoas referidas no artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 408/79”(art. 3º, nº 1), bem como “os danos causados às pessoas dos autores, cúmplices e encobridores de roubo, furto ou furto de uso de qualquer veículo que intervenha no acidente” (art. 3º, nº 2), prevendo que “Satisfeita a indemnização, o Fundo de Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos do lesado, tendo ainda direito ao juro de mora legal e ao reembolso das despesas que houver feito com a liquidação e cobrança.”(art. 5º, nº 1).
Os mencionados diplomas legais foram revogados pelo Decreto Lei nº 522/85, de 31.12, que procedeu ao alargamento do âmbito de responsabilidade civil do FGA 6, passando a assegurar, também, o ressarcimento de danos materiais em relação a acidentes em que o responsável, sendo conhecido, não seja portador de seguro válido e eficaz (art. 21º, nº 2, al. b) 7), mantendo a possibilidade de sub-rogação do FGA nos direitos do lesado (art. 26º, nº 1).
A Lei do Seguro Obrigatório, aprovada pelo Decreto Lei nº 291/2007, de 21.08, que transpôs parcialmente para a ordem jurídica interna a Diretiva nº 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11.05, e que revogou o Decreto Lei nº 522/85, de 31.12, alargou, mais uma vez, o âmbito de responsabilidade do FGA (art. 49º, nº 1 8).
Como se escreveu no preâmbulo deste decreto lei, “A transposição da Diretiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, que altera as Diretivas nºs 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Diretiva n.º 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis («5.ª Diretiva sobre o Seguro Automóvel»), constitui ensejo para proceder à atualização e substituição codificadora do diploma relativo ao sistema de proteção dos lesados por acidentes de viação baseado nesse seguro, que se justifica desde há muito. O conjunto dessas alterações, ao fazer recair sobre o Fundo de Garantia Automóvel (FGA) parte fundamental da operacionalização do aumento de proteção dos lesados, bem como do aumento de eficácia do controlo do cumprimento da obrigação de segurar, reforça a conveniência de acentuar o carácter do Fundo como de último recurso para o ressarcimento das vítimas da circulação automóvel, concentrando-o no seu fim identitário, por forma a libertá-lo para o acréscimo de tarefas.” (sublinhados nossos).
O FGA tem uma função garantística, ainda que subsidiária.
No ponto 4 do art. 1º da Diretiva 84/5/CEE (a 2ª Diretiva do Conselho, de 30 de dezembro de 1983) estabelecia-se que “Cada Estado-membro deve criar ou autorizar a criação de um organismo que tenha por missão reparar, pelo menos dentro dos limites da obrigação de seguro, os danos materiais ou corporais causados por veículos não identificados ou relativamente aos quais não tenha sido satisfeita a obrigação de seguro referida no n.º1”.
Também no Considerando 14º da Diretiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 16 de setembro de 2009, que procedeu à codificação das diretivas relativas à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis, se prevê a existência de um organismo que garanta que a vítima não ficará sem indemnização, no caso de o veículo causador do sinistro não estar seguro ou não ser identificado.
O âmbito de garantia do FGA está, assim, dependente do quadro de intervenção reservado às seguradoras no âmbito do Decreto-lei 291/2007, de 21.08 (arts. 49º, nº 1, e 52º), ganhando relevância como garante do pagamento da indemnização, em primeira linha suportado pelo lesante (quando conhecido) e garantido pela seguradora (salvo em casos pontuais de exclusão legal, num elenco também aplicável ao FGA).
Como esclarece Filipe Albuquerque Matos, em O Fundo de Garantia Automóvel. Um organismo com uma vocação eminentemente social, na Revista de Direito e Justiça, Vol. I, 2011, UCP, págs. 559/561, “Ao admitir-se a ressarcibilidade dos prejuízos sofridos pelos lesados de acidentes de viação nas hipóteses em que o autor do acidente, sendo conhecido, não goza, porém, de seguro válido e eficaz, e naqueloutras de desconhecimento do responsável, assim como nas situações de insolvência das empresas de seguro, podemos, então, constatar que a intervenção do Fundo de Garantia Automóvel vem assegurar a cobertura de danos, não obstante, as vítimas dos acidentes de viação não poderem reclamar as respetivas indemnizações das companhias seguradoras. Assim sendo, a instituição do Fundo de Garantia Automóvel representa inevitavelmente um marco significativo no processo de socialização do risco (3), já antes iniciado com a admissibilidade em vários domínios da atividade socioeconómica da responsabilidade objetiva (4). Indelevelmente associada à função social desta instituição (5) anda o princípio jurídico da subsidiariedade (6). Com efeito, o Fundo de Garantia Automóvel não intervém na qualidade de responsável, mas de mero garante. Apenas quando a comunidade de riscos - seguradora -, para a qual o responsável (definido de acordo com as regras substantivas da responsabilidade civil) tenha transferido, ex contractu, a obrigação de indemnizar que sobre si eventualmente recaia não intervenha, é que se abre a possibilidade do lesado de acionar o Fundo de Garantia Automóvel.”, enfatizando, na pág. 564, que, todas as alterações legislativas ocorridas desde o momento da instituição do FGA “se têm orientado no sentido do fortalecimento da já aludida função social”.
A posição de garante é mitigada pela natureza subsidiária do FGA, bem como pelo funcionamento das causas de exclusão previstas relativamente à seguradora (arts. 14º e 52º, nº 1), e as previstas especificamente em relação ao Fundo de Garantia Automóvel (art. 52º, nº 2), sem esquecer a possibilidade de sub-rogação nos direitos do lesado, nos termos do art. 54º do Decreto Lei nº 291/2007, de 21.08.
Como pode ler-se no preâmbulo do Decreto Lei nº 291/2007, de 21.08, o FGA é “parte fundamental da operacionalização do aumento de proteção dos lesados.”
Proteção especialmente relevante nos casos de existência de danos corporais e sobretudo de danos corporais graves.
Como escreve Sinde Monteiro, em Acidentes de viação. Adaptação do Código Civil à legislação e jurisprudência da União Europeia, 2024, Almedina, pág. 247, “a reparação dos danos corporais não representa uma pura questão de justiça entre particulares, valorativamente neutra ao nível da sociedade global. O ethos do Estado de Direito social não se manifesta apenas através de normas de direito público. (…) O Estado intervém porque quer que estes danos sejam objeto de reparação, não estando preocupado com os cascos dos veículos”.
No caso em apreço, o A. reclamou de BB, condutor do veículo acidentado, e do FGA o ressarcimento dos danos materiais e corporais sofridos em consequência do acidente ocorrido 29.3.2017, quando se fazia transportar no referido veículo, o qual não beneficiava de seguro válido e eficaz.
O tribunal de 1ª instância condenou aqueles RR., solidariamente 9, a pagarem ao A. as quantias de €180.000,00, a título de danos patrimoniais, e de €40.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescidas de juros de mora.
O Tribunal da Relação do Porto revogou a decisão do tribunal de 1ª instância, e absolveu o FGA da totalidade do pedido, por ter concluído que ocorria abuso de direito no seu exercício pelo A., o que fundamentou nos seguintes termos: “… Cremos ser acertado afirmar que ocorre abuso do direito se o detentor de um determinado direito, previsto no ordenamento jurídico, o exercita desenquadrado da razão que levou o legislador e prevê-lo. Será ainda correto concluir que é o que se verifica no caso concreto. O A., lesado em acidente de viação em que o veículo causador daquele não dispunha de seguro válido, pretende exercer o direito a ver-se indemnizado em situação em que seguia na viatura acompanhado por um grupo de amigos, todos eles referenciados como suspeitos numa vaga de assaltos que vinham sucedendo na zona em que circulavam. Ademais, transportavam no veículo uma plêiade de apetrechos adequados a perpetrar crimes contra o património. E é ao serem desrespeitadas as ordens legítimas de paragem com origem na autoridade policial, que circulava em carro devidamente caraterizado, no contexto de condução perigosa e na fuga à perseguição policial, que o A. sofre os danos cuja reparação visa através da presente ação. Assinala-se ainda que o A. se propôs mesmo partilhar, nas condições que bem explicitou na declaração que entregou ao R. BB, também por si demandado, a indemnização que viesse a perceber. Tal pacto é altamente indiciador do nível de entendimento pelo menos daqueles dois ocupantes do veículo e da aceitação pelo A. do risco em que se viu envolvido no contexto assinalado e de que o R. conduzisse da forma perigosa em que o fez. No caso concreto, o exercício do direito à reparação operaria, a ser acomodado, à margem do seu objetivo natural e da razão que presidiu à existência de legislação nesse sentido, contrariando, quanto a nós ostensivamente, o pulsar jurídico dominante. Face às específicas circunstâncias verificadas, o acolhimento da pretensão do A., ainda que emergente do exercício de um direito legalmente conferido, conduziria a uma situação de injustiça chocante e reprovável para o sentimento ético-jurídico comummente aceite e partilhado na comunidade. …”.
A factualidade apurada nos autos não permite excluir a responsabilidade do FGA nos termos do Decreto Lei nº 291/2007, de 21.08, nem mesmo nos termos do art. 570º, nº 1, do CC, invocados pelo FGA para o efeito, como analisou o tribunal recorrido.
Dispõe o art. 52º do mencionado diploma legal que “1- São aplicáveis ao Fundo de Garantia Automóvel as exclusões previstas para o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel. 10 2 - Estão também excluídos da garantia do Fundo de Garantia Automóvel: a) Os danos materiais causados aos incumpridores da obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel; b) Os danos causados aos passageiros que voluntariamente se encontrassem no veículo causador do acidente, sempre que o Fundo prove que tinham conhecimento de que o veículo não estava seguro; c) Os danos sofridos pelo causador doloso do acidente, pelos autor, cúmplice, encobridor e recetador de roubo, furto ou furto de uso de veículo que intervenha no acidente, bem como pelo passageiro nele transportado que conhecesse a posse ilegítima do veículo, e de livre vontade nele fosse transportado.”.
O tribunal recorrido limitou-se a concluir pela não verificação da exclusão prevista na al. b) do preceito reproduzido, porquanto o FGA não logrou provar que o A. tinha conhecimento de que o veículo em que se fazia transportar não dispunha de seguro válido e eficaz.
Nada analisou quanto a eventual preenchimento da al. c) do mencionado preceito, também invocado pelo FGA, sendo certo, porém, que, não obstante a persistência do FGA em sustentar a aplicação do preceito, o âmbito de aplicação deste se restringe às situações em que o veículo interveniente no acidente era ilegitimamente detido pelo seu condutor (em virtude de roubo, furto ou furto de uso), o que não é a situação dos autos, como concluiu o tribunal de 1ª instância.
Por outro lado, o tribunal recorrido concluiu que não havia uma relação causal 11 entre os danos sofridos pelo A. e a sua presença no veículo acidentado, sendo aqueles resultado da ação do R. BB, da condução desastrada e imprevidente em fuga à interceção pela G.N.R.
Mas será a responsabilidade do FGA de afastar por ocorrer abuso de direito do A., como entendeu o tribunal recorrido?
Afigura-se-nos que não, desde logo porque a factualidade dada como provada, e na qual o tribunal recorrido assentou a sua fundamentação, não se revela como suficiente.
A taxatividade das cláusulas de exclusão de garantia do FGA não obsta, em abstrato, à aplicação do instituto de abuso de direito, face à função corretiva que lhe está associada.
Estatui o art. 334º do CC, que “É abusivo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Há abuso de direito quando, embora exercendo um direito, o titular exorbita o exercício do mesmo, quando o excesso cometido seja manifesto, quando haja uma clara ofensa do sentimento jurídico-socialmente dominante.
O legislador sufragou a conceção objetivista do abuso de direito (que proclama que não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu ato à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico), o que não significa “que ao conceito de abuso do direito consagrado no art. 334º sejam alheios fatores subjetivos, como, por exemplo, a intenção com que o titular tenha agido” - Pires de Lima – Antunes Varela, no Código Civil Anotado, Vol. I, 2ª ed., pág. 277 12.
A figura do abuso de direito surge como uma forma de adaptação do direito à evolução da vida, serve como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social vigorante em determinada época, evitando que, observada a estrutura formal do poder que a lei confere, se excedam manifestamente os limites que se devem observar tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.
Como refere Jorge Coutinho de Abreu, em Do Abuso de Direito, pág. 43, “Há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem”.
Para Pires de Lima e Antunes Varela, no CC Anotado, Vol. I, 4ª ed., pág. 300, “A nota típica do abuso do direito reside ... na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido”.
Cunha de Sá, em Abuso do Direito, pág. 101, escreve que “Abusa-se do direito quando se vai para além dos limites do normal, do legítimo: exerce-se o direito próprio em termos que não eram de esperar, ultrapassa-se o razoável, chega-se mais longe do que seria de prever”. E, mais adiante, na pág. 103, analisando a noção legal de abuso de direito, refere que o mesmo se traduz “num ato ilegítimo, consistindo a sua ilegitimidade precisamente num excesso de exercício de um certo e determinado direito subjetivo: hão de ultrapassar-se os limites que ao mesmo direito são impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo próprio fim social ou económico do direito exercido.”.
A doutrina, com a finalidade de a aplicação do abuso do direito não se tornar arbitrária e subjetiva, tem densificado os requisitos do instituto, sendo entendimento doutrinal e jurisprudencial que “A aplicação do instituto do abuso do direito tem uma natureza subsidiária, só a ele sendo lícito recorrer na falta de uma norma jurídica que resolva, de forma adequada, a questão em causa” (cfr. Ac. do STJ de 16.11.2021, P. nº 21827/17.9T8SNT-A.L1.L1.S1 (Maria Clara Sottomayor), em www.dgsi.pt), e que o recurso à figura se faz, não através da invocação de sentimentos genéricos de justiça, mas por referência a modelos sedimentados na jurisprudência e aprofundados pela doutrina, cujos pressupostos têm de ser rigorosamente comprovados - Ac. do STJ de 12.01.2021, P. nº 2689/19.8T8GMR-B.G1.S1(Maria Clara Sottomayor), em www.dgsi.pt, onde se sumariou que “I. O abuso de direito não significa uma desaplicação de normas com base numa remissão genérica para sentimentos de justiça. Os tribunais exigem a prova rigorosa dos seus elementos constitutivos e a ponderação dos valores sistemáticos em jogo, de acordo com modelos experimentados ao longo da história pelo labor da jurisprudência. …”.
Para que seja aplicado o instituto do abuso de direito, é, pois, necessário que os factos provados sejam inequívocos no sentido de demonstrarem que o exercício do direito pelo autor excede o fim social e económico que constitui a sua razão de ser.
Ora, a factualidade provada não se mostra inequívoca nesse sentido, devendo ter-se em atenção a que não resultou provada, concretamente a constante das alíneas f) (“o A. tinha conhecimento de que a circulação do veículo automóvel de matrícula ..-..-LI não se encontrava garantida por qualquer contrato de seguro”), g) (“todos os ocupantes do veículo de matrícula ..-..-LI se dedicavam à prática de ilícitos criminais, designadamente, crimes de furto e roubo”) e h) (“o veículo de matrícula ..-..-LI era utilizado pelo grupo na execução de todas essas atividades ilícitas, pelo que, todos os membros que compunham esse grupo, tinham interesse na circulação desse veículo e retiravam vantagens económicas dessa circulação”).
Assim, afigura-se-nos que o tribunal recorrido não podia assentar a sua fundamentação no facto do A. ser “lesado em acidente de viação em que o veículo causador daquele não dispunha de seguro válido”, uma vez que não resultou provado que o A. tivesse conhecimento desse facto.
Por outro lado, face à factualidade que resultou não provada, também se nos afigura que o tribunal recorrido não podia assentar a sua fundamentação em meras “suposições” - “pretende exercer o direito a ver-se indemnizado em situação em que seguia na viatura acompanhado por um grupo de amigos, todos eles referenciados como suspeitos numa vaga de assaltos que vinham sucedendo na zona em que circulavam. Ademais, transportavam no veículo uma plêiade de apetrechos adequados a perpetrar crimes contra o património.”.
Não se tendo apurado a factualidade constante das als. g) e h), nem se encontrando provada factualidade relativa aos objetivos e circunstâncias que levaram o A. a assinar a declaração reproduzida no ponto 42 da fundamentação de facto, não podia o tribunal recorrido concluir que “Tal pacto é altamente indiciador do nível de entendimento pelo menos daqueles dois ocupantes do veículo e da aceitação pelo A. do risco em que se viu envolvido no contexto assinalado e de que o R. conduzisse da forma perigosa em que o fez”, em parcial contradição com a motivação que o levou a afastar a aplicação do art. 570º do Código Civil.
A função social de garante do FGA acima sublinhada, reforçada perante os graves danos corporais sofridos pelo A. espelhados nos pontos 7 a 10 da fundamentação de facto, e a possibilidade (em abstrato) de vir a obter o reembolso da indemnização satisfeita (art. 54º do Decreto Lei nº 291/2007, de 21.08), juntamente com a pouca consistência dos factos provados, obsta à aplicação do instituto de abuso de direito.
Nesta conformidade, merece provimento o presente recurso de revista, devendo revogar-se o acórdão recorrido, repristinando-se a sentença de 1ª instância.
Fica prejudicada a apreciação das restantes questões suscitadas, nomeadamente, as invocadas nulidades do acórdão recorrido que perdem pertinência.
As custas, na modalidade de custas de parte, são a cargo do R. FGA/Recorrido, por ter ficado vencido – art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.
DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em julgar procedente o recurso de revista e, em consequência, revoga-se o acórdão recorrido na parte em que absolveu do pedido o Fundo de Garantia Automóvel, sendo reposta a sentença da 1ª instância que o condenou, em regime de solidariedade com o R. BB, no pagamento ao A. AA das quantias de: a) €180.000,00, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, a partir da citação e até integral pagamento; b) €40.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, a partir da prolação da sentença e até integral pagamento.
Custas pelo recorrido FGA, nos termos referidos.
*
Lisboa, 2025.04.29
Cristina Coelho (relatora)
Anabela Luna de Carvalho
Maria Teresa Albuquerque
SUMÁRIO (da responsabilidade da relatora):
_____________________________________________
1. Os factos 39 a 43 foram aditados pelo Tribunal da Relação.
2. Como sintetiza Mariana França Gouveia, em O princípio dispositivo e a alegação de factos em processo civil: A incessante procura da flexibilidade processual, na ROA, ano 73º, Vol. II/III, pág. 611, “Em resumo, temos o seguinte quadro: factos principais alegados nos articulados, fixação neste momento do objeto do processo (dada a regra da inadmissibilidade posterior de alteração), factos instrumentais, complementares ou concretizadores alegados ou adquiridos para o processo até ao encerramento da discussão. Mantém-se portanto o efeito preclusivo quanto aos factos principais — a sua não alegação inicial impede a alegação posterior; mantém-se a não preclusão em relação aos outros factos, reforçando-se esta não preclusão relativamente aos factos instrumentais já que o efeito probatório da não impugnação é meramente provisório, podendo ser afastada por contraprova. Assim, os factos principais têm de ser alegados na fase inicial, nos articulados, enquanto os factos instrumentais podem ser alegados ou adquiridos oficiosamente até ao fim do julgamento. Também os factos complementares e concretizadores podem ser adquiridos até ao fim do julgamento.”.
3. Abrantes Geraldes, em Temas da Reforma do Processo Civil, II vol., 1997, pág. 136.
4. João Correia, Paulo Pimenta, Sérgio Castanheira, em Introdução ao Estudo e à Aplicação do Código de Processo Civil de 2013, 2013, pág. 19.
5. João Correia, Paulo Pimenta, Sérgio Castanheira, na ob. cit., pág. 20.
6. Por decorrência da adesão de Portugal à Comunidade Europeia, e a obrigação daí decorrente de “tomar medidas necessárias ao cumprimento dos princípios contidos na 2ª Diretiva do Conselho de Dezembro de 1983 (84/5/CEE)” - conforme preâmbulo do diploma.
7. Este preceito foi, posteriormente, alterado pelo Decreto Lei nº 122-A/86, de 30.05, que impôs, para além dos referidos requisitos, a verificação da manifesta insuficiência económica do responsável para solver as suas obrigações. O preceito voltou a ser alterado pelo Decreto Lei nº 130/94, de 19.05, que repôs a redação original do preceito.
8. Dispondo que “1 - O Fundo de Garantia Automóvel garante, nos termos do n.º 1 do artigo anterior, e até ao valor do capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a satisfação das indemnizações por: a) Danos corporais, quando o responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro válido e eficaz, ou for declarada a insolvência da empresa de seguros; b) Danos materiais, quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie de seguro válido e eficaz; c) Danos materiais, quando, sendo o responsável desconhecido, deva o Fundo satisfazer uma indemnização por danos corporais significativos, ou tenha o veículo causador do acidente sido abandonado no local do acidente, não beneficiando de seguro válido e eficaz, e a autoridade policial haja efetuado o respetivo auto de notícia, confirmando a presença do veículo no local do acidente.”. Este artigo foi, recentemente, alterado pelo Decreto Lei nº 26/2005, de 20.3, que alargou, mais uma vez, o âmbito de responsabilidade do FGA, prevendo, também, a satisfação de indemnizações por danos materiais, quando causados por veículo objeto de seguro por empresa de seguros sujeita a um processo de insolvência ou de liquidação (al. D) aditada).
9. Solidariedade que funciona a nível externo, mas não a nível interno, como resulta do art. 54º do Decreto Lei 291/2007, de 21.08, e já supra referido. Neste sentido, ver o Ac. do STJ de 12.07.2011, P. nº 5762/06.9TBMTS.P1 (Nuno Cameira), em www.dgsi.pt.
10. Ou seja, as previstas no art. 14º.
11. Dispõe o nº 1 do art. 570º do Código Civil, que “Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.”.
12. A consideração dos fatores subjetivos pode interessar, quer para determinar se houve ofensa da boa fé ou dos bons costumes, quer para decidir se se exorbitou do fim social ou económico do direito - Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 2ª ed., págs. 423/424.