Sumário
É de qualificar como acção relativa ao exercício de direitos sociais, para efeitos da alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, a acção proposta por um credor de uma sociedade comercial, declarada em situação de insolvência, visando responsabilizar directamente o gerente dessa sociedade pela impossibilidade de satisfação do seu crédito, com a alegação de que o gerente violou culposa e ilicitamente os seus deveres, entre os quais o de apresentação da sociedade à insolvência, e que dessa violação resultou a completa ausência de património social para satisfação das dívidas da sociedade, nomeadamente à autora.
Decisão Texto Integral
Acordam na 2.ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça
Tanyara, Lda, com sede Rua António José Filipe, nº 1, 2560-053 A-dos-Cunhados, Torres Vedras, propôs a presente acção declarativa com processo comum contra AA, residente na Rua ... ... ..., no Juízo Central Cível de Faro do Tribunal Judicial da Comarca de faro, pedindo a condenação da ré no pagamento de uma indemnização no montante de 99 348 00€, acrescida de juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento.
Para o efeito alegou, em síntese, que era titular de um crédito sobre a sociedade F..., Lda, no montante de 99 348 00€; que esta sociedade foi declarada em situação de insolvência; que ela, autora, reclamou o pagamento do seu crédito no processo de insolvência, mas não obteve pagamento; que a impossibilidade de pagamento do seu crédito ficou a dever-se à ausência de património da insolvente; e que esta ausência de património foi consequência da violação ilícita e culposa dos deveres da ré, enquanto gerente de tal sociedade.
A ré contestou, concluindo no sentido da improcedência da acção.
Findos os articulados, a Meritíssima juíza do tribunal da 1.ª instância, julgou incompetente, em razão da matéria, o tribunal onde a acção foi proposta e, em consequência, absolveu a ré da instância.
Apelação
A autora não se conformou com a decisão e interpôs recurso de apelação, pedindo se revogasse e se substituísse a decisão recorrida por outra que julgasse competente, em razão da matéria, o tribunal onde foi proposta a acção.
O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão proferido em 25-10-2024, julgou improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Revista
A autora não se conformou com a decisão e dela interpôs recurso de revista, pedindo se revogasse e se substituísse o acórdão recorrido por decisão que julgasse competente em razão da matéria o tribunal onde foi proposta a acção.
Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. Entendeu o Tribunal a quo, em suma, que o instituto da responsabilidade dos gerentes e administradores constitui uma responsabilidade especial que assenta na violação de normas específicas, o que permite o enquadramento de tais questões no âmbito do «exercício de direitos sociais», considerando atribuível a competência para tais ações aos Juízos de Comércio.
2. Salvo o devido respeito, não pode a Recorrente conformar-se com a decisão revidenda, uma vez que, ao contrário do propalado pelo Tribunal a quo, não estamos perante o exercício de qualquer direito social, tendo o presente recurso por objeto a matéria de Direito daquele acórdão proferido, nomeadamente na violação/errada aplicação de lei substantiva e processual, pugnando- se pela competência do Tribunal Cível para o conhecimento de tais matérias, nos termos do artigo 101.º n.º 1 do Código de Processo Civil (CPC). Contemplemos,
3. Na pretérita data de 30-11-2023, a Autora propôs ação declarativa de condenação contra a Ré, ora recorrida, peticionando a sua condenação em virtude dos atos lesivos que esta praticou na qualidade de sócio-gerente de uma sociedade, e que causou prejuízo à Autora, na qualidade de credora.
4. Judiciou o Tribunal de Primeira Instância pela verificação da exceção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal em razão da matéria, com a necessária absolvição da Ré da instância.
5. A Recorrente, não se acomodando com tal decisão, apresentou recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Évora, o qual pugnou pela competência dos Juízes de Comércio, decisão com a qual não nos acomodamos, por não se afigurar consentânea com a correta interpretação e aplicação dos normativos legais em apreço.
DOS FUNDAMENTOS DO ARTIGO 674.º N.º 1 A) e B) DO CPC:
Da errada interpretação e aplicação da lei substantiva - as normas jurídicas ínsitas nos artigos 64.º n.º 1, 78.º, 79.º do Código das Sociedades Comerciais (doravante CSC) e do artigo 483.º do Código Civil (doravante CC):
6. Considerou o Tribunal a quo que a responsabilidade ínsita nos artigos 64.º, 78.º e 79.º do CSC, consiste numa responsabilidade assente em pressupostos específicos e em matérias complexas que, seguindo tal linha argumentativa, permitem fundar a competência dos Juízes de Comércio.
7. Ainda que se encontre expressamente prevista tal responsabilidade no corpo normativo societário, a responsabilidade dos gerentes e administradores para com os credores sociais e para com terceiros não se desvincula dos pressupostos gerais e da natureza jurídica da responsabilidade civil por factos ilícitos ínsita no artigo 483.º do CC,- vide, sobre tal conspecto, o entendimento propalado pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 12-11-2020, pelo relator Nuno Pinto Oliveira, « I. — O art. 79.º do Código das Sociedades Comerciais remete para o regime geral da responsabilidade civil. II. — Entre os casos de responsabilidade por danos directos causados a terceiros, incluindo credores, está a responsabilidade pela violação de disposições legais de protecção — prevista no art. 483.º, n.º 1, segunda alternativa do Código Civil — e a responsabilidade pelo abuso do direito — prevista no art. 334.º, em ligação com o art. 483.º, n.º 1, do Código Civil.».
8. Não se perscrutam especificidades ou complexidades que evadam da competência dos Juízos Cíveis atendendo, inclusive, à configuração da causa de pedir e do pedido levada a cabo pela Autora na peça inaugural.
9. Pelo que, e ao decidir como decidiu, interpretou e aplicou erradamente o Tribunal a quo as normas jurídicas ínsitas nos artigos 64.º, 78.º, 79.º do CSC e artigo 483.º do CC, devendo ter interpretado e aplicado tais normas no sentido de tais institutos serem reconduzíveis, in casu, à responsabilidade civil geral, sem correlação com especificidades ou complexidades que justifiquem a atribuição de competência aos Juízos de Comércio.
Da violação/errada aplicação da lei de processo - as normas jurídicas ínsitas nos artigos 65.º, 96.º a), 99.º n.º 1, 278.º n.º 1 a), 576.º n.º 2 e 577.º a) do Código de Processo Civil (CPC) e artigos 40.º, 128.º e 117.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ):
10. Da análise cuidada do normativo em apreço, não resulta, in casu, que estejamos perante uma ação enquadrável em nenhuma das alíneas ou números enunciados no artigo 128.º da LOSJ, não constituindo a ação em crise uma “ação relativa ao exercício de direitos sociais”.
11. A aqui Autora atua, como sobredito, na qualidade de credora, com base, sobretudo e prima facie, no instituto da responsabilidade civil, não contendendo diretamente e stricto sensu com o exercício de direitos sociais por parte da Ré, estando perante o exercício do direito de ação numa área em que predominam as regras gerais do direito civil, e não as normas específicas do direito societário.
12. Ora, atendendo aos elementos estruturais da causa, tal como configurados na peça inaugural, não se perspetiva a subsunção de direitos sociais decorrentes do contrato de sociedade e destinados à proteção do sócio no âmbito dos seus interesses sociais.
13. O «exercício de direitos sociais» contende com os processos especiais para o exercício de direitos sociais, previstos no CPC, e com o regime jurídico das sociedades comerciais, matérias que, por revestirem especificidade e complexidade técnicas, relegou o legislador para a competência exclusiva dos Juízos de Comércio.
14. Atentando nos elementos histórico, literal e racional ou teleológico do artigo 128.º da LOSJ, não se nos afigura que toda a questão que convoque, de alguma forma, o contencioso societário, possa ser considerada como uma ação relativa ao “exercício de direitos sociais”, sob pena de subversão e desvalorização dessa competência específica.
15. No que respeita ao elemento histórico, a base da competência dos Juízes de Comércio encontra-se patente na proposta de Lei n.º 182/VII, que refere que a competência de tais Juízos se verificará nas “ações relativas ao contencioso das sociedades comerciais, ao contencioso da propriedade industrial (…)”.
16. Quanto ao elemento literal, o que consta especificamente da norma jurídica é a expressão “ações relativas ao exercício de direitos sociais”, sendo que, no nosso modesto entendimento, se o legislador pretendesse alargar o âmbito da norma de forma a abranger todo o contencioso minimamente relacionado com a vida e atividade de uma sociedade, tê-lo-ia feito, ao invés de elencar taxativa e minuciosamente tal competência - vide sobre a aplicação das disposições ínsitas à competência dos tribunais de comércio, a sapiência do Supremo Tribunal de Justiça, à qual aderimos, mormente no Acórdão de 22-02-2024, pela relatora Maria Olinda Garcia, no âmbito do processo n.º 617/16.1T8VNG.P2.S1, e nos termos da qual “O facto de o conflito apresentado pelas autoras se desenvolver no âmbito da vida interna de várias sociedades (ou das relações entre elas), tendo, portanto, uma origem societária, em sentido amplo, e podendo, eventualmente, ter subjacente a violação de normas de direito societário, não significa que a imediata causa de pedir e o pedido tenham natureza dominantemente societária. (…). Por outro lado, considerando o modo como o art.128º da LOSJ define a competência do tribunal de comércio (espartilhando-a em diferentes alíneas), conclui-se que o legislador não pretendeu consagrar um critério de abrangência total dessa competência a todos os conflitos de origem societária (ou gerados no âmbito da vida ou da dinâmica das sociedades comerciais). Se tivesse sido esse o propósito, certamente que o legislador o teria enunciado de forma clara, dizendo que os tribunais de comércio são competentes para conhecer de todos os conflitos respeitantes a matéria societária, em vez de ter estabelecido diferentes hipóteses de ações nas várias alíneas.”.
17. No que concerne ao elemento sistemático, cumpre salientar que aquela norma jurídica (artigo 128.º da LOSJ), enquanto integrante do corpo normativo que é a LOSJ, deverá ser compaginada com as demais normas, designadamente as normas relativas à competência dos Juízos Centrais Cíveis- designadamente a norma jurídica ínsita no artigo 117.º n.º 1 a), d) e n.º 2 da LOSJ.
18. Ainda, no que respeita ao elemento racional ou teleológico, parece-nos que, com a redação de tal norma jurídica, o legislador pretendeu especializar e restringir as matérias, e não alargar competências, pelo que não tem acolhimento o apregoado no Acórdão recorrido.
19. A situação dos presentes autos, ainda que se coadune com a violação de normas jurídicas societárias ínsitas nos artigos 64.º, 78.º e 79.º do CSC, tem natureza predominantemente civil, convocando a aplicação de normas gerais de direito civil, designadamente a norma jurídica ínsita no artigo 483.º do CC, não implicando especial preparação técnica ou particular dificuldade ou complexidade, nem se justificando, in casu, a atribuição de competência especializada do Juízo de Comércio.
20. Tendo em consideração a pretensão formulada pelo Autor e os respetivos fundamentos, não se extrai qualquer relação com o núcleo do direito social ou corporativos dos sócios, subjacente à lei societária ou ao contrato de sociedade - sobre tal conspecto, citamos o entendimento propalado pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 11-10-2022, nos termos do qual «I - A competência afere-se em função dos termos da ação, tendo em consideração a pretensão formulada pelo autor e os respetivos fundamentos, tudo independentemente da idoneidade do meio processual utilizado e do mérito da pretensão. II - Direitos sociais são, e nomeadamente, os que integram a esfera jurídica do sócio, por força do contrato de sociedade, sendo inerentes à qualidade e estatuto de sócio e dirigidos à proteção dos seus interesses sociais. III - Se a pretensão cautelar dos sócios se funda essencialmente na prejudicialidade que de um certo acordo firmado por outro sócio resulta para a sociedade, isso relaciona-se inseparavelmente com o nuclear direito daqueles sócios (direito social, corporativo), subjacente ou imanente à lei societária e ao contrato de sociedade, qual seja, o direito à preservação da sociedade, á devida prossecução do seu objeto social e ao lucro.».
21. Assim, e atendendo à integralidade da explanação supra, parece-nos que a decisão a quo violou/interpretou e aplicou erradamente as normas jurídicas constantes dos artigos 65.º, 96.º a), 99.º n.º 1, 278.º n.º 1 a), 576.º n.º 2 e 577.º a) do CPC e artigos 40.º, 128.º e 117.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ), devendo tais normas ter sido interpretadas e aplicadas no sentido de atribuição, in casu, de competência material para a apreciação e decisão da causa controvertida ao Juízo Central Cível, considerando que não estamos perante nenhum exercício de direito social, na verdadeira ratio da norma.
A ré não respondeu ao recurso.
*
Questão suscitada pelo recurso:
Saber se o acórdão recorrido, ao confirmar a sentença proferida na 1.ª instância que julgou incompetente, em razão da matéria, o tribunal onde a acção foi proposta (Juízo Central Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Faro) violou as disposições indicadas pela recorrente: artigos 64.º n.º 1, 78.º e 79.º do Código das Sociedades Comerciais, artigo 483.º do Código Civil; artigos 65.º, 96.º a), 99.º n.º 1, 278.º n.º 1 a), 576.º n.º 2 e 577.º a), todos do CPC, e artigos 40.º, 128.º e 117.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ).
*
Os factos relevantes para a decisão do recurso são constituídos pelos narrados na petição.
*
Resolução da questão
Na origem do presente recurso está a decisão de julgar incompetente, em razão da matéria, o Juízo Central Cível de Faro do tribunal judicial da comarca de Faro para o conhecimento da presente acção.
O acórdão sob recurso entendeu que a competência, em razão da matéria, para o conhecimento dela cabia aos juízos de comércio e que o fundamento jurídico de tal competência era a alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), segundo a qual “compete aos juízos de comércio preparar e julgar as ações relativas ao exercício de direitos sociais.”
Na base da decisão está a seguinte linha argumentativa:
• Os direitos sociais tidos em vista no preceito abrangem não só os direitos de que são titulares os sócios, mas também a sociedade, os credores sociais e terceiros, bastando para que se preencha a previsão que esteja em causa um direito conferido pelas normas que regulam a relação societária, quer se trate da lei societária ou de direitos conferidos pelo contrato de sociedade, relevando a natureza societária/comercial da relação jurídica em litígio. Citou em abono desta interpretação o acórdão do STJ proferido em 17-09-2024, no processo nº 20106/23.7T8SNT.L1.S1, publicado em www.dgsi.pt (que remete para o acórdão do STJ de 26-10-2022, processo n.º 4583/21.3T8VNF-B.G1.S1 e para o acórdão do STJ de 24-02-2022, Proc. 1044/214T8LRA-A.C1.S1) e o acórdão do STJ proferido em 29-03-2022, no processo n.º 691/21.9T8STB.S1 (que remete para os acórdãos do STJ de 15.9.2011, proc. 5578/09.OTVLSB.L1.S1, de 11.1.2011, proc. 1032/08.6TYLSB.L1.S1 e de 17.9.2009, proc. 94/07.8TYLSB.L1.S1 e para o acórdão do STJ de 8-05-2013, processo n.º 5737/09.6TVLSB.L1-S1);
• A autora invocou como fundamento legal da presente demanda o disposto nos artigos 78.º e 79.º, do Código das Sociedades Comerciais, normas que estabelecem a responsabilidade dos gerentes e administradores das sociedades para com os credores sociais, sócios ou terceiros, cumprindo apurar se, no exercício das funções de gerente da sociedade, a ré não observou as disposições legais que tutelam o interesse dos credores, com o que causou danos à autora, credor social;
• A responsabilidade dos gerentes ou administradores, consagrada nos aludidos preceitos, constitui uma responsabilidade especial que assenta em (ou na violação de) normas específicas, substantivas e procedimentais que permite enquadrar tais ações no domínio do “exercício de direitos sociais”.
A recorrente contesta a decisão com a seguinte linha argumentativa:
• A responsabilidade dos gerentes e administradores não prescinde dos requisitos da responsabilidade previstos no artigo 483.º do Código Civil, pelo que não há especificidades que justifiquem a subtracção da competência aos juízos cíveis;
• O exercício dos direitos sociais contende com os processos especiais para o exercício dos direitos sociais previsto nos CPC e com o regime jurídico das sociedades comerciais;
• De acordo com o elemento histórico (proposta de Lei n.º 182/VII), a competência dos juízos do comércio verificar-se-á “ações relativas ao contencioso das sociedades comerciais, ao contencioso da propriedade industrial;
• Do ponto de vista literal, se o legislador pretendesse alargar o âmbito da norma de forma a abranger todo o contencioso minimamente relacionado com a vida e atividade de uma sociedade, tê-lo-ia feito, ao invés de elencar taxativa e minuciosamente tal competência;
• Do ponto de vista sistemático, cumpre salientar que aquela norma jurídica (artigo 128.º da LOSJ), enquanto integrante do corpo normativo que é a LOSJ, deverá ser compaginada com as demais normas, designadamente as normas relativas à competência dos Juízos Centrais Cíveis- designadamente a norma jurídica ínsita no artigo 117.º n.º 1 a), d) e n.º 2 da LOSJ;
• No que respeita ao elemento racional ou teleológico, parece-nos que, com a redação de tal norma jurídica, o legislador pretendeu especializar e restringir as matérias, e não alargar competências, pelo que não tem acolhimento o apregoado no Acórdão recorrido;
• A situação dos presentes autos, ainda que se coadune com a violação de normas jurídicas societárias ínsitas nos artigos 64.º, 78.º e 79.º do CSC, tem natureza predominantemente civil, convocando a aplicação de normas gerais de direito civil, designadamente a norma jurídica ínsita no artigo 483.º do CC,
• Tendo em consideração a pretensão formulada pelo Autor e os respetivos fundamentos, não se extrai qualquer relação com o núcleo do direito social ou corporativos dos sócios, subjacente à lei societária ou ao contrato de sociedade (remete para o acórdão do STJ de 11-10-2022).
O recurso é de julgar improcedente.
Como se escreveu no acórdão sob recurso, constitui jurisprudência constante a de que a competência do tribunal, em razão da matéria, afere-se em função do pedido e da causa de pedir, tal como foram configurados pelo autor.
Além do pedido e da causa de pedir, importa tomar ainda em conta, na decisão sobre a questão da competência em razão da matéria, as leis de organização judiciária, dado que resulta do n.º 2 do artigo 40.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário e do artigo 65.º do CPC que a competência em razão da matéria, entre os tribunais judiciais de 1.ª instância, é determinada pelas leis de organização judiciária.
Não merece qualquer reparo a interpretação ampla da alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º, da Lei da Organização do Sistema Judiciário – acima transcrita - no sentido de que os direitos sociais tidos em vista pelo preceito abrangem não apenas os direitos dos sócios de uma sociedade comercial, mas também os direitos conferido pelas normas que regulam a relação societária, quer se trate da lei societária ou de direitos conferidos pelo contrato de sociedade, relevando a natureza societária/comercial da relação jurídica em litígio.
Esta interpretação tem sido afirmada de modo constante pelo Supremo Tribunal de Justiça (acórdão proferido em 5-07-2018, no processo n.º 11411/16.0T8LSB.L1; acórdão proferido em 24-02-2022, no processo n.º 1044/21.4T8LRA-A.C1.S1., acórdão proferido em 26-10-2022, no processo 4583/21.3T8VNF-B.G1.S1, acórdão proferido em 25-06-2024, no processo n.º 10009/19.5T8LSB-H.L1-A.S1, acórdão proferido em 17-09-2024, no processo n.º 20106/23.7T8SNT.L1.S1. e acórdão proferido em 26-11-2024, no processo n.º 406/23.4T8VIS-A.C1.S1, todos publicados em www.dgsi.pt) e não vemos razões para dela nos afastarmos.
Também não merece reparo o entendimento do acórdão sob recurso de que a presente acção diz respeito ao exercício de um direito (de indemnização) que tem a sua fonte no regime societário, concretamente no artigo 78.º, n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais. Vejamos.
Este preceito prevê a responsabilidade directa dos gerentes ou administradores para com os credores sociais quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à protecção destes, o património social se torne insuficiente para satisfação dos respectivos créditos.
Ora, é esta responsabilidade que a autora visa efectivar através da presente acção. Com efeito, segundo a alegação da autora, a ré, enquanto gerente da sociedade F..., Lda, constituiu-se na obrigação de a indemnizar porque violou culposa e ilicitamente os seus deveres como gerente e dessa violação resultou a completa ausência de património da sociedade para satisfazer as dívidas sociais, nas quais se incluía a dívida à autora. Entre os deveres cuja violação assaca à ré está o de requerer, dentro do prazo previsto na lei, a declaração de insolvência da sociedade de que era gerente. As normas que prevêem este dever - n.º 1 do artigo 18.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), combinado com o artigo 19.º do mesmo diploma - são apontadas como exemplos de disposições legais que visam proteger os credores sociais. Cita-se em abono deste entendimento Coutinho de Abreu e Maria Elisabete Fernandes, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Volume I, 2.ª Edição, Almedina, página 959).
Contra o acórdão recorrido não colhem os argumentos da recorrente.
Em primeiro lugar, não colhe o elemento histórico do preceito. Vejamos.
O elemento histórico a que se refere a recorrente é a Proposta de Lei n.º 182/VII, que esteve na origem da Lei n.º 3/99, que aprovou a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais e revogou a Lei n.º 38/87, de 23 de Dezembro. O interesse da mencionada proposta para a interpretação do artigo 128.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário é o seguinte. A proposta ampliou a competência em razão da matéria dos tribunais de recuperação da empresa e da falência (criados pela Lei n.º 37/96, de 31 de Agosto), que passaram a ser designados por tribunais de comércio, para os fazer actuar em questões para que se requeria especial preparação técnica e sensibilidade. E como matérias que requeriam esta especial preparação técnica e sensibilidade e que justificavam a ampliação da competência em razão da matéria dos tribunais de comércio, indicou as “acções relativas ao contencioso das sociedades comerciais, ao contencioso da propriedade industrial, às acções e aos recursos previstos no Código de Registo Comercial, aos recursos das decisões em processo de contra-ordenação no âmbito da defesa e promoção da concorrência”.
No articulado da proposta, relativa à competência dos tribunais de comércio, previa-se no artigo 90.º, n.º 1, alínea c), a competência destes tribunais para preparar e julgar as acções relativas ao exercício de direitos sociais.
Esta competência passou para o artigo 89.º, n.º 1 alínea c), da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, mantida na alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º da actual lei da Organização do Sistema Judiciário, que revogou a Lei n.º 3/99 (artigo 187.º, alínea b) da lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto).
Visto que as acções previstas na alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º não têm relação com as relativas ao contencioso da propriedade industrial, às acções e aos recursos previstos no Código de Registo Comercial e aos recursos das decisões em processo de contra-ordenação no âmbito da defesa e promoção da concorrência, o mais que se pode retirar da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 182/VII é que as acções relativas ao exercício de direitos sociais cabiam nas acções relativas ao contencioso das sociedades comerciais. Porém, daqui não se infere, como pretende a recorrente, que estão fora deste contencioso as acções destinadas a efectivar a responsabilidade civil dos gerentes e administradores para com os credores sociais, previstas no artigo 78.º do Código das Sociedades Comerciais.
Em segundo lugar, a letra da lei não aponta em sentido contrário à interpretação afirmada no acórdão recorrido. À luz da directiva traçada no n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil, o sentido dado à alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º, pelo acórdão recorrido, seria de afastar se ele não tivesse na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, o que não é o caso. Tal sentido cabe sem esforço na letra do preceito.
Em terceiro lugar, também não colhe o argumento sistemático.
O elemento sistemático (referido no n.º 1 do artigo 9.º do Código Civil como “unidade do sistema jurídico”) “... induz a presumir que ele [legislador] tenha seguido uma linha de coerência na execução da sua tarefa; que ele não tenha pensado a lei como puro acervo ocasional de normas justapostas, mas como um sistema devidamente articulado. Daí que cada texto legal deva ser relacionado com aqueles que lhes estão conexos por contiguidade ou por outra causa, tomando o seu lugar no encadeamento de que faz parte” (Manuel de Andrade, Sentido e Valor da Jurisprudência, Coimbra 1973, páginas 27 e 28).
Sucede que não se vê - e a recorrente também não explica - onde é que a interpretação afirmada no acórdão recorrido colide com o disposto nas alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 117.º da LOSJ e com n.º 2 do mesmo e põe em causa a coerência da Lei da Organização do Sistema Judiciário. A alínea a) atribui competência aos juízos centrais cíveis para a preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000; a alínea d) atribui aos mesmos juízos a competência para exercer as demais competências conferidas por lei. O n.º 2, por seu turno, dispõe que nas comarcas onde não haja juízo de comércio, o disposto no número anterior é extensivo às ações que caibam a esses juízos.
Contra a interpretação do acórdão também não vale o elemento racional ou teleológico do preceito. As matérias previstas no artigo 128.º da LOST são atribuídas à competências dos juízos de comércio por serem matérias que requerem, como se escrevia na proposta de lei acima referida “especial preparação técnica e sensibilidade”.
Ora contrariamente ao que sustenta a recorrente, a questão jurídica em discussão no processo requer esta “especial preparação técnica e sensibilidade”, pois não tem natureza predominantemente civil e não convoca apenas normas gerais de direito civil, designadamente a norma do artigo 483.º do CC. Vejamos.
Segundo a alegação da autora, a decisão da acção suscita, é certo a interpretação de normas do direito civil, designadamente do artigo 483.º, n.º 1, e 487.º, 350.º, n.º 2, do Código Civil, mas exige igualmente a interpretação e aplicação de normas do Código das Sociedades Comerciais (artigos 64.º, n.º 1, alínea b), 78.º, n.º 1, e 79.º) e normas do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (artigos 18.º, 20.º, n.º 1, alíneas d) e) e h), 185.º, 186.º, n.º 2,), ou seja, normas e matérias que requerem “especial preparação técnica e sensibilidade”.
Por último, contrariamente ao que alega a recorrente, o direito de indemnização conferido pelo artigo 78.º, n.º 1 do CSC, tem especificidades em relação ao regime do artigo 483.º do CC. Vejamos.
Em primeiro lugar, ao passo que, no âmbito do n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil, a ilicitude é constituída pela violação do direito de outrem ou de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, para o n.º 1 do artigo 78.º, do CSC, a ilicitude traduz-se na inobservância de disposições legais ou contratuais destinadas a proteger os credores de uma sociedade comercial.
Em segundo lugar, ao passo que, no quadro do n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil, são indemnizados os danos que resultem da violação do direito de outrem ou de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, no n.º 1 do artigo 78.º do CSC, exige-se a verificação de um duplo dano, um dano directo, consistente na diminuição do património social e um indirecto, traduzido na insuficiência do património para satisfação do credor social.
Pode, assim, afirmar-se que a responsabilidade civil prevista no n.º 1 do artigo 78.º do CSC tem especificidades em relação à prevista no n.º 1 do artigo 483.º do CC.
Diga-se, por fim, que a interpretação da alínea a) do n.º 1 do artigo 128.º da LOSJ, afirmada no acórdão recorrido tem apoio na doutrina. Citamos, como exemplos, Filipe Cassiano Santos e José Ferreira Gomes. O primeiro escreve a este propósito: “Direitos sociais são aqueles direitos que têm por fonte o ordenamento societário (ou seja, a lei societária, o estatuto social feito nos termos desta ou, ainda, regulamentos ou contratos de execução ou integração do estatuto) e, por isso, suscitam fundamentalmente a aplicação dos preceitos do Código das Sociedades Comerciais e da legislação societária especial, independentemente da qualidade dos sujeitos que são seus titulares.... São, assim, direitos sociais quer os direitos dos sócios..., quer os direitos atribuídos pelo ordenamento societário, seja a não sócios, seja a sócios, independentemente da qualidade de sócio, face á sociedade, a (outros) sócios ou membros de órgãos sociais” (Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 153, N.º 4043, Nov/Dez, 2023, página 135, Gestlegal).
Por seu turno, José Ferreira Gomes, em comentário ao acórdão do STJ de 5 de Julho de 2018, acima referido e onde se procedeu à interpretação do artigo 128.º, n.º 1, alínea c) da Lei da Organização do Sistema Judiciário, manifestou concordância com a interpretação do preceito no sentido de que o “exercício de direitos sociais”, para efeitos do artigo 128.º/1, c) da LOSJ, deve ser interpretado em sentido amplo, compreendendo não apenas o exercício de direitos dos sócios perante a sociedade, mas todos os direitos da sociedade, dos sócios, dos credores sociais e de terceiros que sejam conferidos pela lei societária ou pelo contrato de sociedade” (Revista de Direito das Sociedades Ano X (2018) Número 4, página 838).
Por todo o exposto, é de concluir que, ao confirmar a decisão da 1.ª instância que julgou incompetente, em razão da matéria para o conhecimento da presente acção, o Juízo Central Cível de Faro, o acórdão sob recurso não violou nenhuma das disposições indicadas pela recorrente.
Decisão:
Nega-se a revista e, em consequência, mantém-se o acórdão recorrido.
Responsabilidade quanto a custas:
Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e a circunstância de a recorrente ter ficado vencida no recurso, condena-se a mesma nas respectivas custas.
Lisboa, 27 de Fevereiro de 2025
Emídio Francisco Santos (relator)
Carlos Portela
Ana Paula Lobo