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Jurisprudência
Sumário

I. Os bens expropriados integram-se no domínio público do Estado, e, o seu não uso não permite a aquisição originária ou derivada por parte de uma entidade privada, nos termos do art.º 202.º do Código Civil.

II. A desafectação dos bens do domínio público não é operável por qualquer negócio jurídico celebrado entre particulares, obedecendo a regras de direito público.

Decisão Texto Integral

I – Relatório

I.1

7 Wonders, Negócios Imobiliários, L.dª, ré, apresentou recurso de revista excepcional do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido em 15 de Fevereiro de 2024 que confirmou a decisão proferida pelo Juízo Central Cível de ... do Tribunal Judicial da Comarca de Braga que julgara parcialmente procedente a acção intentada pela recorrida contra a recorrente e a massa insolvente de “E..., S.A.,

«1. Declarando a Autora legítima e única proprietária das parcelas de terreno n.º 306.55 e .61.55, expropriadas;

2. Condenando as Rés a procederem à imediata desocupação da parte sobrante expropriada da parcela n.º 306.55, com integral remoção da vedação existente; e

3. Declarando nulas as escrituras públicas de compra e venda melhor descritas nos factos provados números 10 e 12 e determinando o cancelamento dos respectivos registos, absolvendo a 1ª Ré / Intervenientes dos demais pedidos formulados.».

A recorrente apresentou alegações que terminam com as seguintes conclusões:

I. O presente recurso é admissível no âmbito da revista excecional, nos termos do disposto nas alíneas a) e b) do art. 672.º do CPC.

II. A alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º prevê a admissibilidade do Recurso de Revista "quando esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.".

III. No caso em apreciação nos presentes autos, a Recorrente vê-se desapossada dos prédios – artigos R.86 e R.87 – embora os tenha adquirido de boa-fé e cumprido diligentemente todas as obrigações que lhe eram impostas, incluindo a de registar, em contraposição com a inação da Recorrida, que nem sequer procedeu ao registo do ato declarativo de utilidade pública dos prédios aqui em causa, pelo que não foi a respetiva declaração de utilidade pública averbada no registo predial, assim como não procedeu à regularização dos registos dos processos expropriativos, que ficaram provisórios por dúvidas (até acabarem por caducar).

IV. Na verdade, a Recorrida só veio a obter registo a seu favor no ano de 2021 (em 01.04.2021 e em 24.05.2021, respetivamente), o que logrou fazer de forma ardilosa – atrevemo-nos a dizer, salvo o devido respeito – quase fraudulenta.

V. É de clara necessidade para uma melhor aplicação do Direito tutelar de forma eficaz os direitos dos terceiros adquirentes de boa fé que tenham registado as suas aquisições, e que tenham, também estes, confiado no direito inscrito no registo.

VI. Existe, por isso, a necessidade de salvaguardar a tutela do princípio da confiança no quadro normativo registral atual, que, aplicada como vem sendo aplicada, mostra-se incompatível com a confiança que deve existir no registo.

VII. Porquanto, de que forma é que o sentido em que as normas, sejam registrais, sejam substantivas, que protegem os terceiros adquirentes de boa-fé que atuam com base no registo, e procedem ao registo das suas aquisições, vêm sendo aplicadas, ante outro adquirente sem registo anterior, se coadunam com a tutela do princípio da confiança que deve existir no registo?

VIII. Conforme decorre da motivação, estamos perante uma questão de especial relevo jurídico, cuja apreciação por este Supremo Tribunal se mostra necessária para uma melhor aplicação do direito.

IX. Ainda que assim não se entenda, o que não se concede, sempre se dirá que a alínea b) do n.º 1 da mesma disposição legal prevê a admissibilidade da Revista quando "estejam em causa interesses de particular relevância social", uma vez que estamos perante uma situação que põe em causa a eficácia do direito e em dúvida a sua credibilidade, abrangendo-se aqui casos em que há “um invulgar impacto na situação da vida que as normas jurídicas em apreço visam regular”.

X. Como melhor consta da motivação, no caso em apreciação, a questão comum e transversal a todo o processo, é a defesa da propriedade quem compra no âmbito de um processo judicial, regista o seu direito, e mais tarde, se vê a braços com uma ação judicial que visa desapossá-lo desse direito de propriedade.

XI. Portanto, um investimento uma cidade com as caraterísticas da cidade de ..., localizado ao lado de uma estação de comboios, com acessibilidade a todos os outros meios de transporte que servem a cidade, e localizado numa zona nobre e fronteira ao próprio centro histórico, só poderia ser um investimento altamente lucrativo – não apenas para a Recorrente, mas igualmente proveitoso para o próprio concelho.

XII. Hoje em dia, é altamente comum e frequente particulares e/ou empresas adquirirem bens, móveis ou imóveis, em processos judiciais, vendo aí mais uma oportunidade de mercado, aliás, tanto isto está disseminado que houve a necessidade até de adotar outras plataformas mais ágeis, mais adaptadas aos novos casos, como é o caso da e-leiloes/ leilões eletrónicos; mas isso não quer dizer, ainda assim, que haja ligeireza nos investimentos.

XIII. Há que existir cada vez mais controlo e segurança no comércio jurídico, nomeadamente, nas transações celebradas por via das vendas judiciais, o que não fica minimamente acautelado perante decisões como as que foram proferidas nestes autos.

XIV. Perante um tão grave risco, gera-se uma insegurança e desconfiança tal que vai retrair investidores, sejam particulares, sejam empresas, vai prejudicar as vendas judiciais, e atrasar e inviabilizar o desfecho de processos que já tantas vezes são demorados, e complexos, e por conseguinte, prejudicar os credores.

XV. De facto, a forma como a sociedade vive atualmente exige uma atribuição de efeitos constitutivos na senda do que é a aceção germânica do registo como registo constitutivo;

XVI. A interpretação que dele tem vindo a ser feita coloca em causa a segurança do comércio jurídico imobiliário, a confiança dos particulares na fé pública do registo, e neste caso em concreto, um investimento de grande monta, que traria benefícios tanto para a Recorrente, como para a comunidade em que o mesmo estaria inserido.

XVII. Face à desconfiança no que reza o registo predial, e com esse descrédito, principalmente se se concretizarem no âmbito de processos judiciais perante a chancela do tribunal, tal vai desacreditar o sistema.

XVIII. A pessoa que adquire confiando na realidade que o registo predial evidencia, que faz presumir que o que se encontra inscrito corresponde à realidade e que regista o seu direito não pode ver os seus interesses defraudados, sob pena de perda da confiança em todo o regime – seja da venda judicial, seja da publicidade e da fé pública do registo.

XIX. Com a decisão em crise, coloca-se em crise o Direito de Propriedade da Recorrente, direito constitucionalmente consagrado e protegido, mais concretamente no artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa, cuja relevância social é inquestionável.

XX. A expropriação não pode continuar, nos dias de hoje, a ser vista como um direito sacrossanto, intocável, que nenhum particular consegue atingir, mesmo perante a verdadeira negligência, incúria, e atitude fraudulenta da entidade pública em questão.

XXI. Impõe-se o acompanhamento da jurisprudência à evolução tecnológica e social que atravessamos, sob pena de se preterir valores tão relevantes no nosso ordenamento jurídico como a segurança do comércio jurídico imobiliário, e a confiança na aparência do registo.

XXII. A questão em apreço trata-se de uma situação merecedora de proteção até às últimas instâncias, na medida em que a sua apreciação é de extrema relevância para a credibilidade da justeza das decisões judiciais perante os cidadãos e da manutenção da própria ordem jurídica.

XXIII. De igual modo, pelos motivos vindos de elencar, sempre caberia apreciação da questão sub judice em sede de revista.

XXIV. A A. intentou a presente acção pedindo em súmula:

«1. O reconhecimento da Autora como legítima e única proprietária das parcelas de terreno n.º 306.55 e .61.55, expropriadas;

2. A condenação das Rés a procederem à imediata desocupação da parte sobrante expropriada da parcela n.º 306.55, com integral remoção da vedação existente;

e 3. A condenação das Rés a pagarem uma indemnização, em valor a apurar em incidente de liquidação de sentença, por danos causados à Autora.

25. Alegou para o efeito que tendo adquirido por expropriação as parcelas descritas no pedido, registadas a seu favor, a Ré, vedou, ocupou e arroga-se proprietária de parte das mesmas que, embora se não mostre ocupada pelas obras da linha férrea e estrada, foi objecto da referida expropriação e pertence ao domínio público, estando por isso fora do comércio jurídico. A 1ª Ré recusa-se a desocupar o terreno expropriado, o que está a provocar danos ao Estado pela impossibilidade de utilização do terreno para realização de ajustamentos na sinalização da estrada (que constitui o restabelecimento viário) e outros eventuais trabalhos relativos à segurança rodoviária que se reserva apresentar, logo que apurados, em incidente de liquidação de sentença.»

26. Citada a 1.ª Ré, aqui Recorrente, e para o que importa ao objecto do presente recurso, veio contestar a acção, (fls. 128 e ss.) defendendo-se por excepção nomeadamente, invocando:

«- a ineptidão da petição inicial porque incompreensível e porque o pedido não é consentâneo com a causa de pedir (cfr. alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 186º do CPC);

- os prédios em apreço pertencem à Ré contestante que os comprou a AA e mulher por escritura outorgada no ano de 2020, sendo que estes os haviam, por sua vez, comprado em 2019 à 2ª Ré Massa Insolvente, em venda judicial subsequente à declaração de insolvência, encontrando-se tais prédios autonomamente inscritos na matriz desde 2002;

- se outro título não tivesse, a 1ª Ré, por si e transmitentes, possui tais prédios há tempo suficiente para os adquirir por usucapião;

- A Autora não praticou sobre as parcelas em apreço qualquer acto de posse, deixando-as ao abandono, não procedeu à sua afectação ao domínio público, nem, até 09.03.2021 (2021 - retificação nossa), ao registo da DUP ou da adjudicação, agindo com incúria que a impede de invocar que pertencem ao domínio público do Estado;

- A A. não procedeu ao registo do acto declarativo de utilidade pública dos prédios aqui em causa, pelo que não foi a respectiva declaração de utilidade pública averbada no registo predial – cfr. Artigo 17.º do Código das Expropriações.

- Ora se o tivesse sido, como competia à IP, antes REFER, nunca o problema em discussão nos autos teria surgido.

- Fazer um ponto de situação aqui para dizer que bem sabia a REFER que o artigo 52 rústico da freguesia de ... há muito já não existia, por força do processo de discriminação n.º 47/01 que correu termos pelo SF de ..., tendo dado origem para o que aqui nos interessa – aos artigos R186 e R187.

- Efetivamente, seja no processo 941/2002, onde a então REFER na petição de expropriação que esteve na génese desse processo afirma já que o artigo 52 deu origem às inscrições matriciais R.86 e R.87 para o que aqui nos ocupa, tendo inclusivamente que tal se deveu ao processo de discriminação 47/01.

- De igual forma no processo 1063/07.3..., na identificação do imóvel a REFER alega também expressamente que o prédio a expropriar se encontra inscrito na matriz sob o artigo R186

- No âmbito de ambos os processos de expropriação (PROCESSOS N.ºS 941/2002 e 1063/07.2...) foi efectuada pelo Tribunal a remessa à 2.ª CRP de ... para proceder ao registo da aquisição destas parcelas pela via expropriativa à então RERER

- Houve despachos num e noutro processo proferidos pela Sra. Conservadora no mesmo sentido de que os registos ficam provisórios por dúvidas.

- A A. foi notificada destes despachos na pessoa do ilustre mandatário

- o abuso de direito porque as omissões cometidas pela A., o estado de abandono a que votou os imóveis e a ausência de resposta à notificação que lhe foi dirigida pela Sr.ª Administradora da Insolvência para exercício da preferência na venda, criaram justificadamente na 1ª Ré a confiança de que nenhuma oposição ao seu direito de propriedade haveria por parte da A.;

- a 1ª Ré está protegida pelo regime estatuído no artigo 5.º e artigo 17º, n.º 2 do C. R. Predial, atenta a anterioridade do registo da sua aquisição e a sua boa-fé;»

27. Tal-qualmente, impugnou os demais fundamentos da ação.

28. De resto, e para o que aqui importa, apresenta a Recorrente uma breve cronologia dos factos:

11.11.2002 – Propositura da ação de expropriação 941/2002, encontrando-se já desativado e eliminado da matriz o artigo rústico R52 da freguesia de ... em sequência do processo de discriminação 47/01 promovido pela expropriada/insolvente E..., S.A. junto da segunda repartição de Finanças de ..., tendo o fracionamento daquele artigo dado origem aos artigos rústicos R185, 186 e 187. - Cfr. facto provado 1 da sentença de 1.ª instância;

facto n.º 29 aditado/dado como provado pelo acórdão recorrido e facto 2 do pedido de aditamento, na redação que a Requerente pretende ver aditada por Este Tribunal ad quem);

12.11.2002 – despacho de adjudicação proferido no âmbito do processo de expropriação n.º 941/2002, em que figuram como expropriante a Rede Ferroviária Nacional - REFER, E.P. e como expropriada E..., S.A. por via do qual foi adjudicada à expropriante a propriedade do imóvel aí descrito como: parcela de terreno com a área de 4.814 m2 (parcela n.º 306.55), inscrita na matriz urbana sob os artigos .52, .58, .59, .60, .61 e .62 e rústica sob o artigo 52, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 01106/......00 – Cfr. facto provado 1. da sentença de 1.ª instância;

16.03.2007 - despacho de adjudicação proferido no âmbito do processo de expropriação n.º 1063/07.3..., em que figuram como expropriante a Rede Ferroviária Nacional - REFER, E.P. e como expropriada E..., S.A. por via do qual foi adjudicada à expropriante a propriedade do imóvel aí descrito como: parcela n.º 6261.55, com a área de 408 m2, descrito na CRP de ... sob o n.º 01106/......00, e inscrito na matriz predial urbana sob os artigos .52, .58, .59, .60, .61 e .62 e 52 rústico, tendo este último dado origem ao artigo 186º - Cfr. facto provado 2. da sentença de 1.ª instância;

28.05.2013 – Declaração de insolvência da expropriada E..., S.A., no âmbito do processo 888/13.5... – Cfr. Facto provado 8 da sentença de 1.ª instância;

26.07.2019 – a Recorrente recebe a carta enviada pela Sra. Administradora de Insolvência no âmbito do Processo de Insolvência 888/13.5... com vista ao exercício do direito de preferência na venda dos prédios correspondentes aos artigos R.86 e R87, da qual constava também composição, área e confrontações – cfr. facto provado n.º 9 da sentença de 1.ª instância, e facto provado n.º 30 do acórdão recorrido.

30.08.2019 – data da celebração da escritura pública de compra e venda por via da qual a Massa Insolvente da Expropriada E..., S.A., S.A. vendeu ao Chamado AA, os prédios rústicos inscritos na matriz sob os artigos .86 e .87, descritos na Conservatória dos Registos Predial Comercial e de Automóveis de ... sob os n.ºs ..37 e ..38 da freguesia de ... – Cfr. facto provado n.º 10 da sentença de 1.ª instância.

13.08.2020 - data da celebração da escritura pública de compra e venda por via da qual o Chamado AA e sua ex-cônjuge venderam à Recorrente, entre o mais, os prédios rústicos inscritos na matriz sob os artigos .86 e .87, descritos na Conservatória dos Registos Predial Comercial e de Automóveis de ... sob os n.ºs ..37 e ..38 da freguesia de ... – Cfr.facto provado n.º 12 da sentença de 1.ª instância.

14.08.2020 – registo a favor da Recorrente 7WONDERS da aquisição a AA e sua ex-cônjuge dos prédios rústicos inscritos na matriz sob os artigos .86 e .87, descritos na Conservatória dos Registos Predial Comercial e de Automóveis de ... sob os n.ºs ..37 e ..38 da freguesia de ... – Cfr. factos provados n.ºs 13 e 14 da sentença de 1.ª instância.

09.12.2020 – carta enviada pela Recorrida à Recorrente, intimando-a a efetuar voluntariamente a desocupação integral das parcelas expropriadas – cfr. facto 15 da matéria dada como provada na sentença de primeira instância;

18.01.2021 - Carta de resposta da Recorrente àquela comunicação enviada pela Recorrida, com a qual foram juntas as descrições prediais 1837 e 1838/..., contendo o registo feito a favor da Recorrente – Cfr. facto provado n.º 16 da sentença de primeira instância;

09.03.2021 – Comunicação remetida pela Recorrida ao 2.º Serviço de Finanças de ... com assunto “REGULARIZAÇÃO DE EXPROPRIAÇÃO” requerendo entre o mais a desanexação e respectiva afetação ao Domínio Público Ferroviário de 4.814m2 do prédio rústico 52 da freguesia de ... e concelho de ... (já desativado/eliminado da matriz e cujo fracionamento no âmbito do processo de discriminação deu origem aos artigos rústicos .85, .86 e .87, de ...). – Cfr. facto provado n.º 3 da sentença de primeira instância, facto n.º 29 aditado/dado como provado pelo Acórdão recorrido e facto 2 do pedido de aditamento, na redação que a Requerente pretende ver aditada por Este Tribunal ad quem);

01.04.2021 - registo a favor da Recorrida da aquisição em expropriação por utilidade pública no âmbito do processo expropriativo n.º 941/2002 da parcela de terreno 306.55, com a área de 4.814m2, a desanexar do prédio descrito na Conservatória dos Registos Predial, Comercial e de Automóveis de ... sob o n.º 1106 de ..., tendo dado origem ao prédio rústico descrito sob o n.º ..07 de ..., “OMISSO À MATRIZ”; - cfr. facto provado n.º 4 da sentença de primeira instância;

24.05.2021 - registo a favor da Recorrida da aquisição em expropriação por utilidade pública no âmbito do processo expropriativo n.º 1063/07.3... da parcela de terreno .61.55, com a área de 408m2, a desanexar do prédio descrito na Conservatória dos Registos Predial, Comercial e de Automóveis de ... sob o n.º ..06 de ..., tendo dado origem ao prédio rústico descrito sob o n.º ..13 de ..., “OMISSO À MATRIZ” - cfr. facto provado n.º 5 da sentença de primeira instância;

13.07.2021 – Propositura da presente ação.

29. A Recorrente interpôs recurso de Apelação, pugnando, entre os demais fundamentos, pelo aditamento de múltipla factualidade à listagem de factos considerados provados, nomeadamente:

I. Os prédios rústicos n.ºs .86 e .87 resultaram do fracionamento do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 52, mediante o processo de discriminação n.º 47/01 (do ano 2001) promovido pela E..., S.A. junto da 2.ª Repartição de Finanças de ...;

II. O artigo R...52 encontra-se desativado, pelo menos, desde 2001;

III. Os prédios vendidos – R.86 e R.87 – pela Massa Insolvente da E..., S.A. no âmbito do processo de insolvência n.º 888/13.5..., por escritura pública de compra e venda (30.08.2019) ao sr. AA, que depois, em 13.08.2020 – facto 12, foram transmitidos à Apelante correspondem a parte sobrante do terreno objeto das expropriações, devidamente individualizada, delimitados a Norte por muro de suporte à casa da Quinta, a Nascente por muro divisório e a sul e Poente pela estrada;

IV. A A. não respondeu à notificação identificada no facto provado 9. que lhe foi dirigida pela Senhora Administradora de insolvência para exercício de preferência na venda.

V. A A. não roçou, não limpou, não cuidou, não fez a gestão dos combustíveis, não vedou as partes sobrantes das parcelas expropriadas, deixando-as ao abandono;

VI. O pagamento do IMI referente aos prédios rústicos .86 e .87 esteve a cargo desde a sua inscrição na matriz em 2002 da E..., Lda até à declaração de insolvência dessa empresa, sendo a partir dessa data, pago pela Massa Insolvente, e posteriormente, pelo interveniente AA, e pela 1.ª Ré até à presente data;

VII. Os artigos .86 e .87 constavam da lista de prédios inscritos na matriz em nome da insolvente, tendo sido apreendidos no âmbito do processo de insolvência 888/13.5... em 25.07.2013;

VIII. Na sequência da escritura de compra e venda outorgada em 30.08.2019, a que se reporta o facto provado n.º 10, procedeu o adquirente AA, ao registo da aquisição, pela AP ..93 de 2019/08/30;

IX. No âmbito dos processos expropriativos, foram feitas as comunicações pelo Tribunal impostas pelo n.º 6 do artigo 51.º do Código das Expropriações, na sequência das quais foram proferidos despachos de qualificação do registo pela Senhora Conservadora, no sentido de que os registos ficariam provisórios por dúvidas, tendo sido a então a Autora naqueles processos (então, REFER), ora Recorrida notificada destes despachos, e convidada a suprir as referidas dúvidas – o que não fez, tendo os respetivos registos caducado;

X. A A. não procedeu ao registo da presente ação.

30. Quanto à visada alteração por aditamento da matéria de facto provada, decidiu o Tribunal a quo ser de aditar alguma da matéria de facto proposta pela Recorrente, vindo acrescentar à matéria de facto provada sob os n.ºs 29.º-32.º, nos seguintes termos:

31. Relativamente aos factos n.ºs 1 e 2 do pedido de aditamento, considerou provado a seguinte factualidade: As descrições dos terrenos registados na matriz sob os artigos 186 e 187 resultaram do fracionamento em três partes do prédio que estava inscrito na matriz sob o artigo 52, mediante o processo de discriminação promovido pela E..., S.A. junto da 2.ª Repartição de Finanças de ... e que veio a ser objeto de vistoria em julho de 2002.

32. Em relação ao facto n.º 3 do pedido de aditamento, não procedeu, por o Tribunal a quo ter entendido que não podia ser dado como provado.

33. Quanto ao facto n.º 4 do pedido de aditamento, considerou o Tribunal a quo provada a seguinte factualidade: A A. não respondeu à notificação identificada no facto provado 9. que lhe foi dirigida pela Senhora Administradora de insolvência para o exercício de preferência na venda.

34. Em relação ao facto n.º 5, o mesmo não foi considerado como provado, por entender o Tribunal a quo “não há elementos que possam com segurança concluir por um completo e longo estado de desinteresse ou abandono da Autora em relação àquela parte do prédio.”

35. Fundamentação semelhante serviu para responder ao facto n.º 6 que se pretendia ver aditado.

36. Relativamente ao facto n.º 7, não foi atendido o seu aditamento, porquanto “não se está aqui a julgar o ocorrido no processo de insolvência. Da mesma forma, daqui não decorre qualquer má-fé da recorrida, que não participou no processo de insolvência. Assim, o que releva é que os artigos foram vendidos no âmbito da insolvência, não havendo necessidade de acrescentar mais factos.”

37. O facto n.º 8 foi aditado.

38. O facto n.º 9 do pedido de aditamento, foi tão-somente aditado que “No âmbito dos processos expropriativos, foram feitas as comunicações pelo Tribunal impostas pelo n.º 6 do artigo 51.º do Código das Expropriações, na sequência das quais foram proferidos despachos de qualificação do registo pela Senhora Conservadora, no sentido de que os registos ficariam provisórios por dúvidas”.

39. Por fim, em relação o facto n.º 10 do pedido de aditamento, embora provado, não foi aditado por ter sido considerado irrelevante.

40. Tendo por base a matéria de facto provada e não provada apurada, e fazendo a subsunção ao Direito, tendo em conta os institutos jurídicos invocados na Apelação, entendeu o Tribunal a quo excluir a aplicação destes últimos, aduzindo argumentação com a qual não pode a Recorrente deixar de discordar, como se deixa, desde já, dito, e infra melhor se exporá.

41. Nesse sentido, julgou a Apelação improcedente, e em consequência, manteve a sentença de 1.ª Instância.

42. O Tribunal a quo incorreu em manifesto lapso na resposta que deu aos factos pretendidos aditar sob os n.ºs 2, 9 e 10, tendo incorrido em violação expressa de lei que fixa a força de determinado meio de prova, nos termos do n.º 3 do artigo 674.º do C.P.C.

43. Para fundamentar a redação dada aos factos n.ºs 1 e 2 do pedido de aditamento da Recorrente, – que não considera que o artigo rústico 52 estivesse desativado, pelo menos, desde 2001 – invocou o Tribunal a quo contradição entre a informação prestada nos autos, constante do teor da informação prestada pelo Serviço de Finanças de ... em 02.08.2022 ao processo, com outra informação constante de ofício do mesmo Serviço de Finanças, datada de 19.10.2022, junta com requerimento apresentado pela Interveniente BB, em 01.11.2022, com referência CITIUS ......58.

44. No entanto, decorre das cópias do processo Administrativo-Gracioso – 50 B n.º 47/2001 juntas com aquela informação – o “termo de avaliação e discriminação de 18.07.2022, relativo às descrições dos n.ºs .85, .86, e .87 da caderneta de avaliação.”

45. E, por outro lado, a informação de 19.10.2022 refere que os artigos “R52, R55, R..55, R..56 da freguesia de ... não se encontram em vigor desde 31.12.1997”, conforme despacho de Sua Excelência o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais.

46. XLVI. O Tribunal a quo assentou a sua decisão sobre este ponto na contradição entre estes dois documentos, sem que, no entanto, se tenha debruçado sobre os restantes elementos probatórios documentais constantes dos autos, e invocados pela Apelante nas suas alegações, tendo dado somente como provado, que este processo de discriminação “veio a ser objeto de vitoria em julho de 2002”.

47. A contradição entre as informações prestadas pelo Serviço de Finanças de ... nos presentes autos, e corretamente citadas no corpo das alegações, volvidos cerca de 20 anos sobre a referida discriminação do artigo R52, não pode deixar de levar a crer que a informação mais fiável é, efetivamente, aquela que foi prestada pelo mesmo serviço, junta com as petições dos processos expropriativos.

48. Invoca-se ainda o documento n.º 8 da contestação da Ré Recorrente, assim como dos documentos n.º 8 e 9 da contestação da Ré Recorrente, devidamente suportados por certidão junta aos presentes autos em requerimento datado de 12/09/2022, com a referência CITIUS n.º ....

49. Os documentos invocados beneficiam da qualidade de documentos autênticos, nos termos do artigo 369.º do Código Civil, e gozam de força probatória plena, de acordo com o disposto no artigo 371.º do mesmo Código.

50. Ou seja, o Tribunal a quo não valorou todos os documentos que a Recorrente vem de invocar – o que não poderia deixar de fazer, tendo em conta a sua equivalente força probatória.

51. Provado que ficou que o artigo rústico 52 de ... deu origem aos artigos rústicos .85, .86 e .87, conforme a Recorrente havia pugnado, o momento em que o artigo 52 foi desativado, e como já desenvolvido supra, tem de concluir-se que, pelo menos, à data da propositura da ação de expropriação – processo 941/2002, que deu entrada em juízo a 11.11.2002, já estava desativado, o que se revela de extrema importância, e seria determinante por evidenciar, desde logo, a má-fé da A. quando faz a comunicação de regularização ao SF de ... – facto provado na sentença sob o n.º 3, com base num artigo que sabe já não existir, e com esse documento, instrui o pedido de registo a seu favor na descrição ..06/..., que incluía o artigo matricial rústico 52, junto da Conservatória do Registo Predial.

52. A Recorrida não registou os mencionados prédios nos artigos R...86 e R...87, pois, bem sabia que, se o fizesse, nunca conseguiria concluir o registo.

53. Isto posto, entende a Recorrente dever ser procedente a inclusão do facto n.º 2 do seu pedido de aditamento, passando este a integrar a matéria de facto considerada como provada nos presentes autos, com a seguinte formulação: À data da propositura do processo de expropriação n.º 941/2002, 11.11.2002, o artigo R52 já se encontrava desativado da matriz.

54. Quanto ao facto n.º 9 do pedido de aditamento da Recorrente, julgou o Tribunal a quo apenas dar como provado que “No âmbito dos processos expropriativos, foram feitas as comunicações pelo Tribunal impostas pelo n.º 6 do artigo 51.º do Código das Expropriações, na sequência das quais foram proferidos despachos de qualificação do registo pela Senhora Conservadora, no sentido de que os registos ficariam provisórios por dúvidas”.

55. Não lhe assiste, na opinião da Recorrente, razão, por ter incorrido, desde logo, em manifesto lapso.

56. O tribunal a quo cometeu omissão grosseira ao não valorar ou analisar o documento n.º 16 da contestação da Recorrente.

57. Este documento trata-se da notificação feita pelo Tribunal a 10.01.2003, no âmbito o processo de expropriação n.º 941/2002 (a fls. 62), à Recorrida, então REFER, na pessoa do seu Ilustre Mandatário, Dr. M. CC, dando-lhe conhecimento dos despachos de qualificação do registo, proferidos pela Senhora Conservadora da 2.ª Conservatória do Registo Predial de ..., no sentido de que os registos ficariam provisórios por dúvidas. (Despachos constantes de fls. 57-60 daqueles autos).

58. O documento encontra-se devidamente suportado por certidão judicial do processo de expropriação, junta aos autos pela Recorrente em anexo ao seu requerimento de 27.10.2022, com a ref.ª CITIUS ......41.

59. Encontra-se o despacho que antecede (fls. 61 do processo expropriativo) a dita notificação no requerimento da Recorrida de 22.09.2022, com a ref.ª CITIUS ......43, e do qual consta, entre o mais, a ordem pelo mesmo Tribunal para que fosse dado conhecimento dos despachos de qualificação do registo supra mencionado, conforme se deixa transcrito: “Fls. 57 a 60: dê conhecimento à expropriante.

60. O despacho em causa visava um convite a suprir/ultrapassar as dúvidas do registo – o que a Recorrida, como se sabe, não fez – nem naquela data, nem posteriormente, até abril de 2021, data em que fez o registo, depois de ter conhecimento da aquisição e registo das parcelas sobrantes por banda da Recorrida.

61. Face à documentação vinda de invocar, impõe-se concluir que foi feito o convite à Recorrida para sanar as dúvidas do registo.

62. O Acórdão recorrido tendo decidido como decidiu violou flagrantemente o Tribunal a quo os artigos 363.º, e 371.º do CC.

63. O Tribunal a quo não procedeu a uma adequada e integral utilização dos meios que o artigo 662.º do C.P.C. faculta na apreciação da impugnação da decisão de facto, podendo ser exercida censura sobre o uso que a relação fez desses poderes.

64. O Acórdão recorrido padece de erro na fixação dos factos materiais da causa, que cumpre a Este Tribunal apreciar, resultante de ofensa de disposição expressa da lei que fixa a força daqueles meios de prova (parte final do art. 674.º n.º 3 do CPC).

65. Face ao exposto, é do entendimento da Recorrente que deve ser procedente a redação proposta pela Recorrente, então Apelante, para o facto n.º 9 do pedido de aditamento da matéria de facto, nos seus precisos termos.

66. O Acórdão Recorrido não colheu, igualmente, a proposta de aditamento da Recorrente sob o facto n.º 10, por entender que não ser da Recorrida a obrigação de proceder ao registo da presente ação, e em segundo lugar, que a citação da 1.ª Ré aqui Recorrente cumpriu a função do registo da ação em relação a esta.

67. O Tribunal a quo não percebeu o alcance/necessidade da factualidade invocada, e que se pretende ver provada.

68. Diante do pedido de declaração de nulidade das escrituras e consequente cancelamento dos registos, é facto essencial para aplicação do invocado artigo 17.º, n.º 2 do Código de Registo Predial, ou do artigo 291.º do Código Civil, normativos tendentes a tutelar os terceiros adquirentes de boa fé que tenham registado os seus direitos, apurar se a presente ação foi, ou não, registada, e quando.

69. O artigo 3.º, n.º 1, al. b) dispõe que «Estão igualmente sujeitas a registo (…) as acções que tenham por fim, principal ou acessório, a reforma, a declaração de nulidade ou a anulação de um registo ou do seu cancelamento.»

70. Perante a incúria da Recorrida que, não obstante ter sido notificada do teor do ofício datado de 07/02/2022 da referida Conservatória, com o seguinte teor:

“Informo V. Ex.ª que as duas parcelas já se encontram registadas a favor do reivindicante, pelo que não há qualquer registo a efectuar.» onde vêm juntas ainda as cópias das parcelas registadas a favor da reivindicante, no caso a Recorrida, não logrou responder ao mesmo.

71. A ação nos termos da citada alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º do Código do Registo Predial tem de ser registada nas descrições que a A. pediu ao Tribunal que sejam canceladas em consequência da declaração de nulidade das escrituras efetuadas pela Massa Insolvente a AA e deste à “7Wonders, Negócios Imobiliários, Lda.

72. A Recorrida nada disse sobre o referido ofício, que lhe foi notificado.

73. Da certidão com histórico das descrições ..37 e ..38 de ... junta pela Recorrente no requerimento de 12.09.2022, com ref.ª CITIUS ......64, não consta registo de qualquer ação.

74. Não há qualquer registo da presente ação, seja em que descrição for, conforme melhor se explana no corpo das alegações.

75. O facto de a Recorrente ter sido citada da ação em nada cumpre a finalidade da norma suprarreferida, pois que a mesma visa proteger, não os intervenientes da própria ação, mas a segurança do comércio jurídico imobiliário.

76. Muito se estranha, e salvo o devido respeito, nem se vislumbra, quer na doutrina, quer na jurisprudência, um entendimento semelhante ao vertido no Acórdão recorrido, que equipara, pasme-se, a citação – instituto de direito processual civil – ao registo exigido por uma norma de direito substantivo.

77. Face ao exposto, impõe-se a procedência da redação proposta pela Recorrente, então Apelante, para o facto n.º 10 do pedido de aditamento da matéria de facto, nos seus precisos termos.

78. O Acórdão recorrido violou as normas dos artigos 369.º, 371.º do C.C. e do artigo 662.º, n.º 1, e 674.º, n.º 1, al. a), e n.º 3 do C.P.C.

79. Deve o Tribunal ad quem considerar provados os factos constantes do pedido de aditamento da Recorrente, sob os n.ºs 2, 9 e 10 nos termos supra expostos, por se verificar o caso excecional previsto no n.º 3 do art. 674.º do C.P.C.

80. A solução de direito aplicada pelo Acórdão recorrido, veio deixar sem tutela uma situação da mais elementar relevância jurídica e social (nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 674.º do CPC), e que, por esse motivo, merece ser revista, e reapreciada.

81. Os bens em causa no presente pleito foram expropriados à E..., S.A. – primitiva titular do direito de propriedade – e ulteriormente, a mesma E..., S.A., (neste caso, a sua Massa Insolvente) – vendeu ao Chamado AA e sua ex-cônjuge, que, por sua vez, venderam à Recorrente.

82. Concluiu o Tribunal a quo que estamos diante de uma venda de bens alheios.

83. Resultou, ainda da decisão das instâncias que a Recorrente adquiriu os bens de boa-fé, e confiou no que constava das inscrições tabulares, e procedeu ao registo das suas aquisições, como a lei impõe.

84. No entanto, o Acórdão recorrido deixou amplamente desprotegida a posição de terceiro adquirente de boa-fé da Recorrente, ao não acolher os vários institutos jurídicos propugnados pela Recorrente na sua Apelação, sendo que a Recorrente entende que a questão jurídica relevante em apreço prende-se, sobretudo, com o modo como as normas, quer registrais, quer substantivas, que tutelam os terceiros adquirentes de boa-fé, que registam as suas aquisições, vêm sendo aplicadas, deixando, ainda, desprotegidos casos como o sub judice.

85. Senhores Juízes Conselheiros, ainda que nada houvesse a fazer para proteger a posição da Recorrente – o que não se concebe nem concede – pelo menos, a justeza e moralidade desta solução são altamente questionáveis – e não podemos deixar de ser sensíveis à posição frágil da Recorrente, no presente pleito, aliás, situação que, pelos contornos da situação, qualquer cidadão putativo comprador de boa-fé, se pode ver a braços.

86. Clama-se na doutrina por uma alteração profunda do sistema de registo, e mormente quanto aos seus efeitos, face ao novo paradigma do comércio jurídico imobiliário.

87. O Dr. RUI PINTO DUARTE, in Curso de Direitos Reais, 4.ª edição revista e aumentada, Principia, 2020, pp. 208-210, “Em nossa opinião, a crescente complexidade da vida económica e a evolução tecnológica determinam que se caminhe universalmente para registos de efeito transmissivo (ou constitutivo).

Como veremos, porém, há em Portugal resistências – do legislador, de muitos aplicadores da lei e de grande parte dos académicos – a tal tendência.”

88. Atenta a doutrina que vem invocada no corpo das alegações, cremos, fundamentalmente, que, no quadro normativo registral atual, a tutela do princípio da confiança fica verdadeiramente comprometida perante situações como a aqui sub judice.

89. A interpretação das normas registrais nos termos pugnados pelo Acórdão recorrido é incompatível com o princípio da confiança no registo, que urge acompanhar a mudança do paradigma em que vivemos.

90. Com a reforma do registo predial levada a cabo pelo DL 116/2008, cremos que o legislador perdeu mais uma vez uma oportunidade de ouro para adaptar o registo predial aos novos desafios, paradigmas e necessidades da sociedade e do comércio jurídico imobiliário atual.

91. O diploma falhou clamorosamente no objetivo de promover o desenvolvimento económico, que logicamente só é alcançável com um registo predial reforçado, fiável e garantístico dos direitos que a este são submetidos.

92. “A passagem do registo predial a obrigatório e oficioso instituída por via daquela reforma devia ter levado o legislador a equacionar o papel do mesmo registo na constituição ou transmissão dos direitos a ele submetidos.” – RUI PINTO DUARTE, op. cit. no corpo das alegações.

93. Perante a perpetuação de posições doutrinais e jurisprudenciais que mantenham a interpretação das normas registrais nos termos pugnados pelo Acórdão Recorrido, continuamos a colocar em causa aquele que deveria ser o objetivo primordial do registo: «obter a “segurança do comércio jurídico imobiliário”, ou seja, os aspectos da segurança jurídica que respeitam aos imóveis, sobretudo às suas transacções e onerações. Todavia, afigura-se que, em geral, e também no caso do indicado artigo 1.º - está principalmente direcionado para a segurança jurídica e para a constitucionalmente garantida protecção da confiança , que neste caso, como decorre do que se disse, diz respeito especialmente à certeza dos direitos inscritos, que permita basear uma sua concludente cognoscibilidade, bem como, a válida e segura transmissão e oneração dos imóveis» – cfr. J. A. MOUTEIRA, op. Cit. no corpo das alegações.

94. Por tudo quanto vem exposto, trata-se de uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, devendo, nesses termos, a decisão recorrida ser revogada, tutelando-se o direito de propriedade registado da Recorrente.

95. De resto, não procede, igualmente, o argumento vertido no Acórdão Recorrido para obstar à aplicação do artigo 7.º do CRP, de que o mesmo não opera face à duplicação de descrições.

96. À data da prolação dos despachos de adjudicação proferidos no âmbito dos processos de expropriação 941/2002 e 1063/07.3... (em 2002 e 2007) estava em vigor o Código do Registo Predial de 1984, sendo o registo do despacho daquelas aquisições por via expropriativa um acto sujeito a registo no termos do artigo 2.º, n.º 1 do Código do Registo Predial.

97. O DL 116/2008 de 04/07/2008 operou uma reforma ao Código do Registo Predial, no sentido de reforçar a obrigatoriedade do registo como decorre do regime instituído nos artigos 8.º -A a 8.º-D aditados ao Código do Registo Predial.

98. Ulteriormente, o Decreto-Lei n.º 51/2017, de 25 de Maio criou o regime extraordinário de regularização matricial e registral dos bens imóveis que pertencem ao Domínio Privado do Estado e de outras entidades públicas. Este diploma, dirigido somente aos bens imóveis do Domínio Privado, vem plasmar a necessidade sentida pelo Estado e por outras entidades públicas de conhecer o seu próprio património imobiliário.

99. Este diploma prevê, portanto, medidas que se destinam à regularização matricial e registral dos bens imóveis do Domínio Privado do Estado e das outras entidades públicas, permitindo conhecer a situação jurídica desses imóveis, sem colocar em causa a segurança do comércio jurídico imobiliário e a boa gestão patrimonial.

100. Não se trata, aqui, de uma medida destinada à inventariação dos referidos bens, mas mais de correção das situações “de omissão ou de incorreta inscrição ou descrição nas matrizes e no registo predial sempre que a entidade pública atue como sujeito ativo do ato ou do negócio jurídico”, através da regularização da sua situação jurídica e registral, o que seria de levar a cabo, tendo em consideração os tempos em que vivemos, com recurso a plataformas digitais (artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 51/2017, de 25 de Maio).

101. O procedimento extraordinário de registo de bens imóveis encontra-se previsto no artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 51/2017, de 25 de Maio, destinando-se ao “registo definitivo de aquisição de direitos a favor do Estado, dos institutos públicos, regiões autónomas e autarquias locais sobre imóveis omissos no registo predial ou descritos, mas sem inscrição em vigor a favor dessas entidades”.

102. Ainda assim, a Recorrida não procedeu ao registo.

103. A Recorrida encetou, portanto, com este incumprimento da obrigação de registar, o seu vasto leque de atitudes inquinadas de má-fé e verdadeiramente traduzíveis em fraude – como infra se demonstrará.

104. Veja-se: a Recorrida veio a fazer comunicação à matriz, junto do serviço de finanças competente, no caso a 2.ª Repartição de Finanças de ... apenas em 09/03/2021 (doc. n.º 4 da PI) como acto prévio necessário ao pedido de registo que apresentou na Conservatória do Registo Predial de ... em 01/04/2021 – e somente quanto à parcela expropriada 306.55.

105. Nesse requerimento (transcrito na motivação), a Recorrida pede a desanexação de área de um artigo – R52 - que bem sabe não existir, pois como consta das ações de expropriação que a própria intentou o artigo R52 em virtude do processo de discriminação n.º 47/01 deu origem aos artigos R185, 186 e 187, sendo sobre estes artigos que incidiram os processos de expropriação.

106. A Recorrida teve conhecimento, através da missiva junta com a PI sob documento n.º 8 – facto provado n.º 28 da sentença de 1.ª instância, de que os artigos R186 e R187 já se mostravam averbados na matriz e registados na Conservatória do Registo Predial a favor da Recorrente.

107. Além da incúria e culpa grosseira na atuação/omissão da parte da Recorrida quanto à inscrição matricial, também houve incúria e culpa grave na atuação/omissão quanto ao registo predial a efetuar junto da Conservatória do Registo Predial de ....

108. No âmbito do processo 941/02 do 3.º Juízo Cível do Tribunal de ... quando foi proferida a decisão de adjudicação o Sr. Juiz ordenou “Comunique a adjudicação supra à Conservatória do Registo Predial para registo oficioso.” – ordem que foi cumprida.

109. Esse registo ficou provisório por dúvidas, atentos os motivos invocados pela Sr.ª Conservadora no despacho remetido àquele processo por ofício datado de 28/11/2002, tudo como melhor resulta de cópia de fls. 55 a 60 daqueles autos – cfr. documento n.º 15 da contestação da Recorrente – suportado por certidão junta aos autos a 27.10.2022, com a ref.ª CITIUS ......41.

110. O mandatário da entidade expropriante (REFER) foi devidamente notificado, conforme se colhe de fls. 62 do respetivo processo- cfr. documento n.º 16 da contestação, devidamente suportado por certidão judicial do processo de expropriação, melhor identificada no corpo das alegações.

111. A entidade expropriante era a responsável por diligenciar no sentido de superar os obstáculos apresentados pela Conservatória ou reagir contra eles, caso os considere infundados.

112. Um registo provisório por dúvidas (artigo 70.º do CRPredial) caduca ao fim de seis meses nos termos nos termos do artigo 11.ºdo mesmo código – que veio a acontecer no caso sub judice.

113. De igual forma, no processo de expropriação 1063/07.3..., não foi feita qualquer comunicação da expropriação da parcela .61.55, artigo R186) à matriz.

114. O registo não foi, mais uma vez, concretizado pela Recorrida, tendo vindo a caducar, após ter ficado provisório por dúvidas – conforme documentos e certidões invocados no corpo das alegações, e bem assim como resulta do facto pretendido aditar n.º 9.

115. De acordo com o facto provado n.º 9 da sentença, “A Sr.ª Administradora de Insolvência remeteu aos proprietários dos prédios descritos como confinantes dos aludidos nos factos provados número 6 e 7, entre os quais a A. que a recebeu no dia 26.07.2019, a carta registada com aviso de recepção datada de 25.07.2019 que se reproduz no documento 19 junto com a contestação da 1ª Ré (fls. 186 do processo físico), informando que ia proceder à venda dos prédios correspondentes aos artigos .86º e .87º rústicos da freguesia de ..., concelho de ..., bem como as respetivas composição, área e confrontações, com vista ao exercício do direito de preferência.”

116. Pese embora, conforme o facto aditado no acórdão recorrido sob o n.º 30, “A Autora não respondeu à notificação identificada no facto provado 9. que lhe foi dirigida pela Senhora Administradora de insolvência para o exercício de preferência na venda”.

117. Ora, se a Recorrida tivesse agido como se impunha, deveria a Administradora da Insolvência ser informada de que se tratavam de prédios expropriados, e portanto, indevidamente apreendidos no âmbito do processo de insolvência que se encontrava a correr termos.

118. A duplicação de registos só existe porque a Recorrida só procedeu ao registo que lhe competia depois de saber que a Recorrente havia adquirido e registado os prédios a seu favor.

119. Foi a Recorrida quem provocou a mencionada duplicação de registos, não tendo sido uma duplicação inocente, ou por mero acaso ou infortúnio, e não se trata do exemplo académico da duplicação de registos que inviabiliza a proteção dos terceiros através das normas registrais, deixando-o apenas à mercê da norma substantiva do 291.º CC, que seria sempre de aplicar, na nossa opinião, contrariamente ao defendido no Acórdão recorrido.

120. Perante o que vem alegado nas motivações, - para as quais se remete – é inaceitável a decisão das instâncias pelo afastamento da má-fé da Recorrida.

121. Todos concordamos, obviamente, que se nas duas, ou mais descrições do mesmo prédio tiverem sido lançadas inscrições em nome de diferentes titulares, então tanto um, como outro, gozam da presunção consagrada no artigo 7.º do CRP – “o registo definitivo constitui presunção de que o registo existe, e pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que o registo o define” – pelo que tais presunções, contraditórias entre si, se destroem ou anulam mutuamente.

122. No entanto, o AUJ n.º 1/2017, de 22 de fevereiro prevê uma exceção a esta regra: a existência de má-fé da parte do titular de um dos registos.

123. Senhores Juízes Conselheiros, é o que acontece nos presentes autos!

124. Com efeito, estará de má-fé quem seja responsável pela criação fraudulenta da situação de duplicação das descrições ou quem tenha, pelo menos, conhecimento dessa fraude.

125. E foi, nada mais, nada menos, o que a Recorrida IP fez.

126. A duplicação de registos, por estar inquinada da má-fé da Recorrida, nunca por nunca pode servir de fundamento para afastar a aplicação da presunção do artigo 7.º do Código de Registo Predial.

127. Face ao exposto, deve considerar-se provado que a Recorrida agiu de má-fé, tendo, de forma fraudulenta, provocado uma duplicação de registos, que não pode obstar à aplicação do disposto nos artigos 7.º e 17.º do Código de Registo Predial, nem a qualquer outro instituto de proteção dos terceiros adquirentes de boa-fé.

128. O Acórdão de que ora se recorre vem afastar a aplicação do artigo 291.º do CC, por entender que está verificada a exceção prevista no n.º 2 do mesmo artigo.

129. Reitera-se tudo quanto se deixou dito supra em relação ao facto n.º 10 do pedido de aditamento, por uma questão de respeito pelo princípio da economia processual, no que à equiparação feita pelo Tribunal a quo com o instituto da citação diz respeito.

130. Quanto à aplicação do instituto à situação sub judice, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA é da opinião que o mesmo se adequa a proteger a posição da aqui Recorrente, exemplificando, na obra citada no corpo das alegações, o seguinte:

“imagine-se que A [E..., Lda] vende o bem x [R.86 e R.87] a B [Recorrida], que não regista a sua aquisição; depois disso, A [Esquível Braga Costa] vende o mesmo bem a C [Chamado AA, e ex-cônjuge], que regista a sua aquisição e que o retransmite a D [Recorrente], que também regista a sua aquisição. Do artigo 291.º, n.ºs 1 e 2, CC resulta a seguinte solução para este caso concreto: a declaração de nulidade da segunda alienação entre A e C (declaração que se fundamenta no facto de ela ser uma venda de coisa alheia, art.892.º CC) não prejudica os direitos adquiridos por D, excepto se a acção de declaração de nulidade for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à sua aquisição.” [o que, tal como se deixou suprarreferido, não foi]. (informação entre parêntesis retos nossa).

131. Este é, precisamente, o caso dos presentes autos!

132. À data da prolação da sentença (12.09.2023) já se tinham computado mais de três anos desde a celebração da escritura de compra e venda dos prédios R186 e R187 pela Apelante ao Sr. AA e ex-cônjuge, outorgada em 30.08.2019. (vide facto provado na sentença de primeira instância sob o n.º 10.)

133. Não é oponível à Recorrente a nulidade ou anulabilidade do contrato de compra e venda celebrado entre si e o Chamado, em 30.08.2019, nos termos do artigo 291º do CC.

134. Ante tudo o que vem exposto, e conforme o aventado supra, não pode a nulidade da escritura e do registo peticionada nos presente autos, prejudicar o direito de propriedade sobre os prédios rústicos R186 e R187 adquiridos pela Apelante, registado a seu favor através da AP .90 de 2020.08.14.

135. De igual modo, e ao contrário do defendido na decisão ora em crise, é de aplicar o disposto no artigo 17.º, n.º 2 do CRPredial.

136. Com efeito, verificando-se a nulidade do registo por ter sido lavrado com base num título inválido (nulo por constituir venda de bens alheios – 892.º do CC), a declaração dessa nulidade não poderá deixar de integrar a previsão do artigo 17.º, n.º 2, sendo aplicável a consequência prevista na mesma norma: sendo o negócio a título oneroso, o terceiro estando de boa fé e o registo dos seus direitos anterior ao registo da ação de nulidade (que nem chegou a ser feito - facto 10. que a Recorrente pretende ver aditado ao elenco dos factos provados), mantém-se o registo, não ficando o terceiro prejudicado nos direitos que adquiriu a título oneroso.

137. No sentido da aplicabilidade do artigo 17.º, n.º 2 do CRP veja-se ainda o douto aresto do STJ de 14/06/2005, Processo 05A1316, disponível in www.dgsi.pt.

138. Este é afinal o efeito atributivo do registo, pois o terceiro adquirente fica protegido pelo registo público, o qual tem o efeito atributivo do direito nele inscrito.

139. Face ao exposto, deve ser a Recorrente merecedora da tutela do disposto no artigo 17.º, n.º 2 do Código de Registo Predial.

140. Vem, ainda, o Acórdão Recorrido afastar, por fim, a aplicação do instituto do abuso de direito, invocando uma série de argumentos com os quais, salvo o devido respeito – que é muito – não poderia estar a Recorrente mais em desacordo.

141. Em primeiro lugar, não assiste razão ao Tribunal a quo quando diz que não existe obrigação de registar, como ostensivamente foi aduzido supra, o que se reitera.

142. Não se compreende como pode o Acórdão Recorrido não considerar negligente a conduta de uma entidade pública que ignorou uma notificação para exercício de preferência em relação a dois artigos rústicos (R186 e R187) que sabia terem sido por si expropriados, principalmente ante, conforme se deixou demonstrado supra, o sobejo conhecimento por banda da Requerida de que aqueles artigos correspondiam ao extinto artigo R52 da freguesia de ....

143. De acordo com o senso comum, é obrigação de uma qualquer entidade pública ser exímia no trato rigoroso de todas as informações e comunicações que lhes chegam, especialmente quando referentes a artigos matriciais sobre os quais ocorreram expropriações litigiosas.

144. Senhores Juízes Conselheiros, se estivéssemos perante uma situação invertida, em que fosse a posição da Recorrida a ser ocupada por um particular, ser-lhe-ia também desculpado este nível de incúria e descuido, ou se seria o particular onerado com a responsabilidade de verificar toda e qualquer comunicação que lhe chegassem referente aos prédios de que é proprietário….

145. Impõe-se deixarmos de olhar para a expropriação como um direito sacrossanto – ou a melhor aplicação do direito nas decisões dos nossos tribunais, que tanto nos é querida, ficará incorrigivelmente, comprometida perante este tipo de situações.

146. De resto, não procede igualmente o argumento vertido no acórdão recorrido de que a Recorrida não exerceu abusivamente o seu direito porque “prontamente propôs a ação para defender a propriedade”.

147. Apenas quando confrontada com a aquisição das parcelas em causa por um terceiro de boa fé é que a Recorrida encetou as diligências necessárias para a defesa do seu direito de propriedade: pois que, até ali, nem sequer procedeu ao registo das parcelas expropriadas, vetando à sorte o surgimento, ou não, de terceiros de boa fé que fossem potenciais compradores e viessem a fazer fé na publicidade das inscrições tabulares.

148. Tão-somente quando teve conhecimento do infortúnio da Recorrente, é que a Recorrida se apressou a proceder ao registo das expropriações – e foi fazê-lo num artigo já extinto, conforme se deixou supra alegado.

149. Independentemente da prontidão da interposição da ação, verdade se diga que, não fosse a missiva da parte da Câmara Municipal de ... a notificar os serviços da recorrida de que haviam ocupado os prédios expropriados (conforme documento n.º 8 da petição inicial da Recorrida e facto provado n.º 28 da sentença da 1.ª Instância), ainda hoje, a Recorrente confiava na fé pública do seu registo, e a Recorrida ainda nem se havia percebido da ocorrência desta situação (curiosamente, a missiva acabada de invocar teve o merecido seguimento da parte dos serviços da Recorrida).

150. Olvidaram-se os Senhores Juízes Desembargadores, de que se confrontam dois direitos de propriedade nos presentes autos: o da Recorrente, e o da Recorrida, ambos constitucionalmente protegidos – no entanto, ao contrário da Recorrida, pela Recorrente esse direito foi sempre exercido no mais estrito cumprimento daquilo que é exigido ao homem médio, com elevada diligência e sempre de boa-fé.

151. Determina a norma do artigo 18.º, n.º 2 da Constituição República que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.”.

152. Conforme se defende no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.10.2018, relatora Rosa Tching, perante a colisão de direitos, há que fazer valer o princípio da proporcionalidade, composto por três subprincípios: adequação, exigibilidade e justa medida.

153. O subprincípio da adequação está amplamente protegido pela solução que sempre foi pugnada pela Recorrente: que se mantenha na sua esfera jurídica o direito de propriedade sobre os prédios que comprou, e que sempre defendeu corresponderem às partes sobrantes (no sentido de, até então, nunca haviam sido utilizadas) das parcelas expropriadas – conforme facto provado n.º 17 da sentença do tribunal de 1.ª instância. Parece uma solução adequada tendo em conta a posição amplamente desprotegida da Recorrente perante todo este imbróglio enquanto terceiro adquirente de boa-fé, especialmente quando tal posição é confrontada com a incúria e ostensiva má-fé da Recorrida;

154. De seguida, também o subprincípio da exigibilidade encontra, em argumento similar, o seu preenchimento: não será, do ponto de vista do próprio direito de propriedade constitucionalmente previsto, de proteger o terceiro que comprou de boa fé, no âmbito de um processo judicial, e por isso, com controlo apertado, registou atempadamente, exerceu atos de posse sobre os imóveis, e ainda assim, vê-se desapossado perante uma entidade pública?

155. O mesmo se diga, igualmente, quanto ao subprincípio da justa medida: perante uma louvável obra de requalificação da linha férrea que já se encontra terminada, não nos parece excessivo nem desproporcionado, que se possa permitir que o direito da expropriante recorrida ceda perante esse mesmo terceiro, tendo em conta que apenas se está a discutir a parte não utilizada para a referida empreitada.

156. Não procede o argumento de que o direito de propriedade da Recorrente deve ceder perante um igual direito da Recorrida.

157. Reitera-se, por mero dever de patrocínio o que se deixou dito em alegações em sede de recurso de Apelação: Efetivamente, tendo em conta todas as omissões legais cometidas pela A., e já amplamente referidas supra, o estado de abandono a que estavam votados os imóveis ora reivindicados e a comunicação para preferência feita à A., ou seja, os factos que a Recorrente pretende ver aditados à matéria dada como provada, mormente, os factos 1., 2., 4., 5. e 9. Para cuja fundamentação aqui se remete, são passíveis de consubstanciar o invocado abuso de direito, o que deverá ser reconhecido.

158. Face ao exposto, deve ser considerado o preenchimento do instituto do abuso de direito, ante toda a conduta vinda de descrever da Recorrida.

159. Impõe-se, por isso, concluir que mal andou o tribunal a quo na interpretação e aplicação dos normativos correspondentes aos institutos de direito vindos de invocar e apreciar.

160. Pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente e revogado o douto Acórdão recorrido e substituído por outro que declare a total improcedência da ação, com as legais consequências daí advenientes.

Nestes termos, e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser admitido e julgado totalmente procedente e em consequência ser:

a) Revogado o douto Acórdão recorrido e substituído por outro que declare a total improcedência da ação, absolvendo-se a Ré Recorrente do pedido, com as legais consequências daí advenientes.

A recorrida apresentou contra-alegações indicando ser a revista inadmissível e, caso seja admitida dever ser julgada improcedente.


*


I.2 – Questão prévia - admissibilidade do recurso

Por acórdão proferido em 30 de Outubro de 2024 pela Formação a que se refere o art.º 672.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, foi admitido o recurso de revista excepcional.


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I.3 – O objecto do recurso

Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar a seguinte questão:

I. Violação do direito probatório material.

II. Protecção dos direitos da aqui recorrente, enquanto terceiro adquirente de boa-fé, no âmbito de processo judicial de insolvência, relativamente a prédios sujeitos a expropriação por utilidade pública precedente, mas não registada.


*


I.4 - Os factos

As instâncias consideram provados os seguintes factos:

I. Por despacho judicial, transitado em julgado, proferido a 12.11.2002 no processo do expropriação n.º 941/2002 do 3º Juízo Cível de ..., em que figuram como expropriante a Rede Ferroviária Nacional - REFER, E.P. e como expropriada E..., Lda, foi adjudicada à expropriante a propriedade do imóvel aí descrito como: parcela de terreno com a área de 4.814 m2 (parcela n.º 306.55) a confrontar a norte com linha férrea, sul caminho, nascente com parcela 308.55 e poente com Rua ... a destacar do prédio misto denominado ... sito nos lugares da ..., do ... e da ..., freguesia de ..., a confrontar do norte e nascente com caminhos públicos, sul Casal de ..., poente Rua..., DD, EE, FF, GG, HH e outros, inscrita na matriz urbana sob os artigos .52, .58, .59, .60, .61 e .62 e rústica sob o artigo 52, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 01106/......00 (cfr. despacho judicial junto como documento número 2 da p.i.).

II. Por despacho judicial, transitado em julgado, proferido a 16.03.2007 no processo de expropriação n.º 1063/07.3... do 2º Juízo Cível de ..., em que figuram como expropriante a Rede Ferroviária Nacional - REFER, E.P. e como expropriada E..., Lda, foi adjudicada à expropriante a propriedade do imóvel aí descrito como: parcela n.º 6261.55, com a área de 408 m2, a destacar de um prédio misto sito na Rua ..., no lugar da ..., freguesia de..., Concelho de ..., descrito na CRP de Guimarães sob o nº 01106/......00, e inscrito na matriz predial urbana sob os artigos .52, .58, .59, .60, .61 e .62 e 52 rústico, tendo este último dado origem ao artigo 186º, confrontando a parcela de Norte com a Rua ..., Sul com Linha Férrea, Nascente com caminho e Poente com II, cuja utilidade pública foi declarada por despacho do Secretário de Estado Adjunto e dos Transportes de 07-11-2001 (cfr. despacho judicial junto como documento 3 da p.i.).

III. A A. remeteu ao Sr. Chefe do 2º Serviço de Finanças de ... com data de 09.03.2021 e assunto “Regularização de expropriação” requerimento contendo, entre outro, o seguinte teor: a A. …expropriou litigiosamente em 12.11.2002, a E..., S.A., a parcela n.º 306.55, com a área de 4.814m2 a desanexar do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo n.º 52 da freguesia de ... e concelho de ... e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 1106/......18 (…) em face do exposto requer-se a desanexação e respectiva afectação ao Domínio Público Ferroviário de 4.814m2 do prédio rústico 52 da freguesia de Urgeses e concelho de .... (cfr. requerimento reproduzido na folha 1 do documento 4 da p.i., fls. 14 dos autos).

IV. Pela Ap. ..76 de 2021/04/01 encontra-se registada a favor da Infraestruturas de Portugal, S.A., a aquisição a E..., S.A. em expropriação por utilidade pública, do prédio rústico descrito sob o número 2007/......01 da freguesia de ..., na Conservatória dos Registos Predial, Comercial e de Automóveis de ..., denominado “...”, situado em lugares da ... e da ..., omisso na matriz, com área total de 4.814 m2, aí identificado como correspondente à …parcela de terreno n.º 306.55, desanexada do prédio n.º ..06 de ..., por expropriação para execução da obra “Linha de ... – Reconversão em Via Larga do Troço ... (…)”. Após a conclusão da obra integrou o domínio público ferroviário a totalidade da área (cfr. certidão permanente do registo predial junta como documento número 4 da p.i., fls. 14 v.º do processo físico). Encontra-se averbada à composição e confrontações do prédio descrito sob o número 1106/......18 da freguesia de ..., na Conservatória dos Registos Predial, Comercial e de Automóveis de ..., denominado “...”, situado em lugares da ..., do ... e da ..., omisso na matriz, com área total de 59.628 m2: Desanexada a parcela n.º 306.55 com a área de 4.814 m2 para formar o prédio n.º 2207 de ..., por expropriação para a execução a obra “Linha de ... – Reconversão em Via Larga do Troço ... (…)” (cfr. certidão permanente do registo predial junta como documento número 5 da p.i., fls. 15 do processo físico).

V. Pela Ap. ..70 de 2021/05/04 encontra-se registada a favor da Infraestruturas de Portugal, S.A., a aquisição a E..., S.A. em expropriação por utilidade pública, do prédio rústico descrito sob o número 2013/.......4 da freguesia de ..., na Conservatória dos Registos Predial, Comercial e de Automóveis de ..., denominado “...”, situado em lugares da ..., do ... e da ..., omisso na matriz, com área total de 408 m2, aí identificado como correspondente à …parcela de terreno n.º .61.55, desanexada do prédio n.º 1106 de ..., por expropriação para execução da obra “Linha de ... – Reconversão em Via Larga do Troço ... (…)”. Após a conclusão da obra integrou o domínio público ferroviário a totalidade da área (cfr. informação do registo predial remetida pela CRP de ... 07.07.2022, fls. 241 do processo físico).

VI. Encontra-se inscrito sob o artigo .86º da freguesia de ..., no Serviço de Finanças de ..., tendo como titular “7 Wonders Negócios Imobiliários, Ld.ª”, o prédio aí descrito como situado na ..., confrontando de Norte com Estrada Nacional 32, Sul com Linha Férrea, Nascente com viúva de JJ e Poente com KK, com área de 408 m2 e ano de inscrição na matriz 2002 (cfr. caderneta predial rústica reproduzida no documento 2 da contestação da 1ª Ré, fls. 144 v.º e ss. do processo físico).

VII. Encontra-se inscrito sob o artigo .87º da freguesia de ..., no Serviço de Finanças de ..., tendo como titular “7 Wonders Negócios Imobiliários, Ld.ª”, o prédio aí descrito como situado na ..., confrontando de Norte com Linha Férrea, Sul com Caminho público, Nascente com viúva de JJ e Poente com urbano do próprio, com área de 4.460 m2 e ano de inscrição na matriz 2002 (cfr. caderneta predial rústica reproduzida no documento 2 da contestação da 1ª Ré, fls. 144 v.º e ss. do processo físico).

VIII. Por sentença proferida a 28.05.2013, no processo de insolvência n.º 888/13.5... que correu termos no 2º Juízo Cível de Paredes, foi declarada a insolvência da sociedade “E..., Lda”, e nomeada Administradora da Insolvência BB Coelho (cfr. anúncio e publicitação da sentença reproduzido no documento 10 da contestação - fls. 153 e 153 v.º do processo físico).

IX. A Sr.ª Administradora de Insolvência remeteu aos proprietários dos prédios descritos como confinantes dos aludidos nos factos provados número 6 e 7, entre os quais a A. que a recebeu no dia 26.07.2019, a carta registada com aviso de recepção datada de 25.07.2019 que se reproduz no documento 19 junto com a contestação da 1ª Ré (fls. 186 do processo físico), informando que ia proceder à venda dos prédios correspondentes aos artigos 186º e 187º rústicos da freguesia de ..., concelho de ..., bem como as respectivas composição, área e confrontações, com vista ao exercício do direito de preferência.

X. Por escritura pública de “compra e venda” outorgada a 30.08.2019 no Cartório da Notária ..., em ..., BB, na qualidade de administradora da insolvência da Massa Insolvente da sociedade comercial anónima denominada E..., S.A., declarou vender pelo preço, já recebido, de € 15.000,00, a AA, que declarou aceitar:

- o prédio rústico, composto por terreno a mata mista, com a área de 408 m2, sito no lugar da ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória dos Registos Predial, Comercial e de Automóveis de ... sob o número 1.837 da freguesia de ...; e

- o prédio rústico, composto por terreno a mata mista, com a área de 4.460 m2, sito no lugar da ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória dos Registos Predial, Comercial e de Automóveis de ... sob o número 1.838 da freguesia de ... (cfr. escritura pública junta como documento número 9 da p.i., fls. 20 e ss. do processo físico).

11. Por sentença, transitada em julgado, proferida a 16 de Dezembro de 2019, exarada em acta da conferência do processo de divórcio e separação de pessoas e bens por mútuo consentimento n.º 636/2019 que correu termos na Conservatória do Registo Civil / Predial e Comercial da ..., foi decretado o divórcio por mútuo consentimento dos aí Requerentes AA e LL, e declarado dissolvido o casamento (cfr. sentença reproduzida no documento 1 da contestação da 1ª Ré - fls. 143 v.º e ss. do processo físico).

12. Por escritura pública de “compra e venda” outorgada a 13.08.2020 no Cartório da Notária ..., na ..., LL e AA declararam vender à “7 Wonders, Negócios Imobiliários, Ld.ª”, no acto representada pelo seu sócio-gerente AA, pelo preço, já recebido, de € 96.000,00, os seguintes imóveis:

Um – Fracção autónoma designada pela letra A, correspondente ao rés do chão esquerdo, para habitação, garagem com dois estacionamentos ao nível do piso um e logradouro, do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, situado no lugar de ... ou loteamento da ..., freguesia e concelho de ..., descrito na C.R.P. de ... sob o n.º .69;

Dois – Prédio rústico, situado no lugar da ..., freguesia de ..., concelho de ..., composto de mata mista, descrito na C.R.P. de ... sob o n.º ...38, inscrito na respectiva matriz sob o artigo .87;

Três - Prédio rústico, situado no lugar da ..., da mesma freguesia de ..., composto de mata mista, descrito na C.R.P. de ... sob o n.º 1.837, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 186; (cfr. certidão de escritura pública reproduzida no documento número 13 da p.i. - fls. 26 v.º e ss. do processo físico).

13. Pela Ap. .90 de 2020.08.14 encontra-se registada a favor de “7 Wonders, Negócios Imobiliários, L.dª”, a aquisição por compra a LL e AA, do prédio descrito sob o número 1838/......08 da freguesia de ..., na Conservatória dos Registos Predial, Comercial e de Automóveis de ..., como sito no lugar da ..., com área total de 4.460 m2, inscrito na matriz sob o artigo 187 rústico, composto de mata mista, a confrontar de Norte com Linha Férrea, Sul com caminho público, Nascente com viúva de JJ e Poente com E..., S.A. (cfr. certidão permanente do registo predial junta com o documento número 8 da p.i., fls. 18 v.º do processo físico).

14. Pela Ap. .90 de 2020.08.14 encontra-se registada a favor de “7 Wonders, Negócios Imobiliários, L.dª”, a aquisição por compra a LL e AA, do prédio descrito sob o número 1837/20130808 da freguesia de ..., na Conservatória dos Registos Predial, Comercial e de Automóveis de ..., como sito no lugar da ..., com área total de 408 m2, inscrito na matriz sob o artigo 186 rústico, composto de mata mista, a confrontar de Norte com ..., Nascente com viúva de JJ e Poente com KK (cfr. certidão permanente do registo predial junta com o documento número 8 da p.i., fls. 19 do processo físico).

15. A Autora enviou à 1ª Ré “7 WONDERS”, ao cuidado de AA, a carta registada com A/R datada de 09.12.2020, reproduzida no documento 7 da p.i. (fls. 16 v.º e ss. do processo físico), intimando-a a efectuar voluntariamente a desocupação integral das parcelas expropriadas num prazo máximo de 30 dias (artigo 15º da p.i.).

16. Por carta registada datada de 18 de Janeiro de 2021, reproduzida no documento 8 da p.i. (fls. 17 v.º e ss. do processo físico), a Ré respondeu à comunicação mencionada no facto provado anterior, mantendo ser …a única dona e legítima proprietária dos terrenos em questão… e que …não procederá à retirada da vedação… (artigo 15º da p.i. e 90º da contestação da Ré).

17. A execução da obra “...” não ocupou a totalidade da área da parcela expropriada 306.55, referida no facto provado número 1, ficando uma parte sobrante junto à Rua António Costa Guimarães (artigo 11º da p.i.).

18. A partir da celebração da escritura pública referida no facto provado número 10, a 1ª Ré “7 WONDERS”, por si e pelo transmitente AA, cuidou e limpou os imóveis aí identificados como Dois e Três, contratando terceiros para roçar e remover matos, silvas e lixos neles existentes, pagando as respectivas contribuições e impostos, mandando efectuar levantamento topográfico do local para iniciar estudo da capacidade construtiva dos terrenos, contactando arquitecto para o efeito e para, de seguida, proceder à elaboração do competente projecto de construção, vedando-os com fitas balizadoras e prumos em ferro (artigos 13º da p.i. e 47º a 54º, 140º e 141º da contestação).

19. A 1ª Ré solicitou à mesma empresa que procedeu à limpeza que efectuasse o abate de alguns eucaliptos e sobreiros de grande porte existentes no local, o que não veio a acontecer, atendendo a que tendo-se deslocado à Policia Municipal para proceder às necessárias operações de corte de trânsito foi informado que tratando-se de árvores protegidas, teria que requer autorização para o efeito ao organismo competente do Ministério do Ambiente (ICNF, I.P.) (artigo 62º da p.i.).

20. A 1ª Ré e AA actuaram como descrito nos factos provados 18 e 19, à vista de toda a gente, na convicção da exclusividade de domínio e sem oposição de ninguém até Dezembro de 2020 (artigos 55º e 56º da contestação).

21. A 1. Ré é uma sociedade comercial que tem como sócio-gerente AA e por objecto social, entre outras coisas, a compra e venda de bens imobiliários e revenda dos adquiridos para esse fim, gestão de bens próprios incluindo arrendamento, construção de todos os tipos de edifícios residenciais e não residenciais, com intuito lucrativo (cfr. certidão do registo comercial da Ré “7 Wonders”, junta como documento número 14 da contestação - fls. 160 do processo físico).

22. A 1ª Ré pretendia avançar com a construção de um empreendimento imobiliário nos terrenos descritos nos factos provados números 6 e 7 (artigo 142º da contestação).

23. Da parcela 306.55 referida no facto provado número 1, encontram-se ocupados 2.141 m2 por estrada em serviço com trânsito a passar (artigos 10º e 25º do requerimento de intervenção aperfeiçoado).

24. Quando AA celebrou a escritura de compra à Ré Massa Insolvente, referida no facto provado número 10, estava convencido que os prédios objecto da mesma pertenciam à Massa Insolvente (artigos 156º e 157º da contestação da Ré).

25. Quando AA, legal representante da Ré “7 Wonders”, celebrou a escritura referida no facto provado número 12, estava convencido que os prédios objecto da mesma lhe pertenciam por os ter adquirido à Massa Insolvente (artigo 162º da contestação da Ré).

26. A Interveniente BB mandou efectuar avaliação prévia aos bens referidos nos factos provados números 6 e 7 (artigo 11º da resposta à contestação da Interveniente).

27. O valor matricial dos bens referidos nos factos provados números 6 e 7 era inferior ao seu valor de mercado (artigo 11º da resposta da Interveniente).

28. À data de 09.03.2021, a Autora sabia que os artigos rústicos .86 e .87 se mostravam registados na Conservatória do Registo Predial a favor da Ré “7 Wonders” (artigos 88º e 89º da contestação da Ré).

29. As descrições dos terrenos inscritos na matriz sob os artigos .86 e .87 rústicos da freguesia da ... resultaram do fraccionamento em três partes do prédio que estava inscrito na matriz sob o artigo 52, mediante o processo de discriminação promovido pela E..., S.A. junto da 2.ª Repartição de Finanças de ... e que veio a ser objecto de vistoria em Julho de 2002.

30. A Autora não respondeu à notificação identificada no facto provado 9. que lhe foi dirigida pela Senhora Administradora de insolvência para o exercício de preferência na venda.

31. No âmbito dos processos expropriativos, foram feitas as comunicações pelo Tribunal impostas pelo n.º 6 do artigo 51.º do Código das Expropriações, na sequência das quais foram proferidos despachos de qualificação do registo pela Senhora Conservadora, no sentido de que os registos ficariam provisórios por dúvidas.

32. Pela AP ..93 de 2019/08/30 foi inscrita na Conservatória do Registo Predial a aquisição por compra em processo de insolvência do prédio inscrito sob o nº 1838/......08, da ..., descrito com a seguinte composição: área total de 4460 m2, nº 187, mata mista, figurando como sujeito activo AA e LL, casados entre si no regime de comunhão de adquiridos e como sujeito passivo E..., S.A. .

Factos não provados:

I. A 1ª Ré procedeu ao corte e à poda de árvores nos terrenos identificados nos factos provados números 6 e 7 (artigo 61º da contestação).

II. A recusa da 1ª Ré em desocupar o terreno em litígio impossibilitou a Autora de utilizar o terreno para ajustamentos na sinalização da estrada e para realização de outros trabalhos relativos à segurança rodoviária (artigo 32º da p.i.).

III. A Sr.ª Administradora da Massa Insolvente de “E..., Lda” confundiu, ao apreender os bens da insolvente, a propriedade de bens imóveis com o crédito resultante da expropriação efectuada pela REFER, EP (artigos 19º e 20º da p.i.).

IV. A Interveniente BB teve, antes da venda referida no facto provado número 10, conhecimento da concreta delimitação das parcelas expropriadas referidas nos factos provados números 1 e 2 (artigo 7º do requerimento de intervenção aperfeiçoado).

V. Os Intervenientes BB e AA sabiam que a localização dos prédios descritos nos factos provados números 1 e 2, coincidia com a área sobrante da parcela expropriada, descrita no facto provado número 1 (artigos 7º, 27º e 36º do requerimento de intervenção aperfeiçoado).

VI. A Ré “7 Wonders” e os Intervenientes AA e BB sabiam que a estrada transitada existente no local e o terreno adjacente do seu lado sul pertenciam à parcela expropriada mencionada no facto provado número 1 (artigos 39º da p.i., 10º e 25º do requerimento de intervenção aperfeiçoado).

VII. O perito que realizou a avaliação prévia dos terrenos no âmbito da venda dos bens da Massa Insolvente da E..., S.A., teve acesso à planta das parcelas expropriadas referidas nos factos provados números 1 e 2 (artigo 7º do requerimento de intervenção provocada).


***


II – Fundamentação

1 - Violação do direito probatório material

A recorrente alega na conclusão 42.º que o tribunal recorrido incorreu em manifesto lapso na resposta que deu aos factos que com o recurso de apelação pretendia fossem aditados, com violação expressa de lei que fixa a força de determinado meio de prova, nos termos do n.º 3 do artigo 674.º do C.P.C.

Em causa estão os seguintes factos a aditar:

I. O artigo R52 encontra-se desactivado, pelo menos, desde 2001;

(,,,)

9. No âmbito dos processos expropriativos, foram feitas as comunicações pelo Tribunal impostas pelo n.º 6 do artigo 51.º do Código das Expropriações, na sequência das quais foram proferidos despachos de qualificação do registo pela Senhora Conservadora, no sentido de que os registos ficariam provisórios por dúvidas, tendo sido a então a Autora naqueles processos (então, REFER), ora Recorrida notificada destes despachos, e convidada a suprir as referidas dúvidas – o que não fez, tendo os respectivos registos caducado;

10. A A. não procedeu ao registo da presente acção.

O Tribunal recorrido rejeitou o aditamento dos factos n.ºs 2 e 10. e quanto ao ponto n.º 9, considerou provado o seguinte no ponto 31 dos factos provados:

.31 No âmbito dos processos expropriativos, foram feitas as comunicações pelo Tribunal impostas pelo n.º 6 do artigo 51.º do Código das Expropriações, na sequência das quais foram proferidos despachos de qualificação do registo pela Senhora Conservadora, no sentido de que os registos ficariam provisórios por dúvidas.

Quanto ao não aditamento do facto n.º 2 entendeu o Tribunal recorrido:

«Pretende a Recorrente que nos reportemos ao modo como no âmbito da matriz e para efeitos fiscais foram inscritos os prédios que ali tomaram os artigos 186º e 187º.

E efectivamente consta dos autos informação prestada serviço de Finanças de ... a 2-8-2022, consistente em cópia de um requerimento apresentado em 22 de Novembro 2001 por E..., S.A. com o assunto “discriminação dos terrenos registados na matriz sob o artigo 52º”, atravessado por caminho públicos, de que se diz proprietário, pedindo diligências para que seja destrinçado da forma que indica. Está junta aos autos cópia de um “termo de avaliação e discriminação”, de 18 de Julho de 2002, relativo às descrições dos nºs .85, .86 e .87 da caderneta de avaliação.

É certo que consta também dos autos informação, datada de 19 de Outubro de 2022, pela Chefe Finanças no serviço de ..., prestada à Srª Administradora, afirmando que os artigos 52º, 1255º e 1256º rústicos da freguesia ... não se encontram em vigor desde 3/12/97, “conforme despacho de Sua Excelência o Secretario de Estado dos Assuntos Fiscais”, em virtude da avaliação geral da propriedade rústica, mas esta informação é contrariada pelo requerimento e termo de vistoria juntos aos autos.

Assim, pode afirmar-se que:

-- as descrições dos terrenos registados na matriz sob os artigos .86 e .87 resultaram do fraccionamento em três partes do prédio que estava inscrito na matriz sob o artigo 52, mediante o processo de discriminação promovido pela E..., S.A. junto da 2.ª Repartição de Finanças de ... e que veio a ser objecto de vistoria em Julho de 2002.

Mas a Recorrente carece de razão quanto ao que pretende aditar em como facto 2, visto que não se sabe quando terminou tal processo, ainda em curso no ano de 2002, nomeadamente por se desconhecer quando ocorreu a notificação ao interessado.

Quanto ao que pretende demonstrar, desde já se diga que na sentença a que alude o ponto 2 da matéria de facto provada, relativo à parcela .61 55, é mencionado que “inscrito na matriz predial urbana sob os artigos .52, .58, .59, .60, .61 e .62 e 52 rústico, tendo este último dado origem ao artigo .86º”, pelo que quanto a este é mencionado o novo artigo logo na fonte, não tendo a Recorrida omitido a sua existência.

Quanto à parcela adjudicada à expropriante em 12.11.2002, única a que se refere o requerimento referido no ponto 3 da matéria de facto provada , dirigido ao Chefe do 2º Serviço de Finanças de ..., a Autora limitou-se a repetir o que constava do despacho de adjudicação (nem de outra forma se vê como poderia ser), não se vendo que o pedido de regularização traga qualquer má-fé em relação ao direito que aqui se discute, referente à aquisição da propriedade sobre os terrenos ocorridas mediante o processo expropriativo ou mediantes as vendas.

Assim, embora se possam aditar o facto documentalmente demonstrado nos termos supra expostos, entendemos que destes não se retira a má-fé da Autora, ao invés do pretendido (nem, como se verá, que o mesmo tivesse importância em sede de aquisição e manutenção da propriedade).».

Não se apreende qual a violação de regra de direito probatório material poderia ter sido violada pelo Tribunal recorrido ao não aditar tal matéria ao probatório com fundamento em existirem elementos documentais contraditórios sobre o facto e ser o mesmo irrelevante para a decisão da causa. Improcede, pois, a revista com este fundamento.


*


Pretendia a recorrente que fosse aditado ao probatório que:

«9- Facto nº 9 do pedido de aditamento:

No âmbito dos processos expropriativos, foram feitas as comunicações pelo Tribunal impostas pelo n.º 6 do artigo 51.º do Código das Expropriações, na sequência das quais foram proferidos despachos de qualificação do registo pela Senhora Conservadora, no sentido de que os registos ficariam provisórios por dúvidas, tendo sido a então a Autora naqueles processos (então, REFER), ora Recorrida notificada destes despachos, e convidada a suprir as referidas dúvidas – o que não fez, tendo os respectivos registos caducado;”

O Tribunal recorrido quanto ao ponto n.º 9, considerou provado o seguinte no ponto 31 dos factos provados:

«.31 No âmbito dos processos expropriativos, foram feitas as comunicações pelo Tribunal impostas pelo n.º 6 do artigo 51.º do Código das Expropriações, na sequência das quais foram proferidos despachos de qualificação do registo pela Senhora Conservadora, no sentido de que os registos ficariam provisórios por dúvidas.».

Fê-lo com os seguintes fundamentos:

«Dos documentos juntos consta que o pedido de registo foi efetuado pelo Tribunal (doc n.ºs 15 da Contestação) e que quem foi notificado foi o funcionário que efetuou o registo, não a Autora. Da documentação junta não resulta qualquer convite à Autora para sanar quaisquer dúvidas, sendo o documento 16 mera cópia de uma notificação de documentação no processo.

Assim, há tão só que dar como provado, quanto a esta parte da pretensão da Recorrente, que “No âmbito dos processos expropriativos, foram feitas as comunicações pelo Tribunal impostas pelo n.º 6 do artigo 51.º do Código das Expropriações, na sequência das quais foram proferidos despachos de qualificação do registo pela Senhora Conservadora, no sentido de que os registos ficariam provisórios por dúvidas”».

Não se apreende qual a violação de regra de direito probatório material poderia ter sido violada pelo Tribunal recorrido ao aditar, só parcialmente, ao probatório a matéria que a recorrente pretendia ver aditada, mas em conformidade com o teor dos documentos de que dispunha e interpretou com rigor.

Improcede, pois, a revista com este fundamento.


*


Quanto ao não aditamento do facto n.º 10 entendeu o Tribunal recorrido:

«Facto nº 10 do pedido de aditamento:

«“A Autora não procedeu ao registo da presente acção.”

Não competia à Autora a obrigação de registar a acção, como decorre do artigo 8º-B nº 3, alínea a) do Código do Registo Predial. O Tribunal de 1ª instância solicitou junto da Conservatória do Registo Predial o registo da acção, dando conhecimento da mesma, como decorre do despacho proferido em 07/02/2022. É certo que a Conservatória informou, em resposta que: “as duas parcelas já se encontram registadas a favor do reivindicante, pelo que não há qualquer registo a efectuar”.

Visto que a Ré foi citada, para que a acção possa contra ela fazer efeitos, já não há necessidade de registar a acção, pelo que a inclusão deste facto na matéria de facto provada é irrelevante para a decisão deste pleito.

Termos em que procede a impugnação da matéria de facto.»

Não se apreende qual a violação de regra de direito probatório material poderia ter sido violada pelo Tribunal recorrido ao não aditar tal matéria ao probatório nem qual a sua relevância para a decisão de mérito.

Improcede, pois, a revista com este fundamento.


*


Sobre a matéria que a recorrente pretendia ver aditada ao probatório poderia apenas ter-se referido que ela é completamente irrelevante para a decisão da causa, como efectivamente é. Com efeito, resulta já do probatório o núcleo factual necessário para a decisão da causa, isto é, que a ré aqui recorrente beneficia da prioridade do registo da aquisição das parcelas de terreno reivindicadas pela autora e objecto de expropriação.

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2 - Protecção dos direitos do terceiro adquirente de boa-fé, no âmbito de processo judicial de insolvência, relativamente a prédios sujeitos a expropriação por utilidade pública precedente mas não registada.

A Autora, Infra estruturas de Portugal, S.A intentou a presente acção de reivindicação de duas parcelas de terreno destacadas de um prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 01106/......00 e inscrito na matriz predial urbana sob os artigos .52, .58, .59, .60, .61 e .62 e 52 rústico, que foram declaradas expropriadas a seu favor e lhe foram adjudicadas em 2002 e 2007, sendo expropriada a empresa “E..., Lda”. O registo desta aquisição do direito de propriedade foi determinado oficiosamente pelo Tribunal onde correu o processo expropriativo, lavrado provisoriamente por dúvidas, vindo posteriormente a caducar.

A ré, aqui recorrente adquiriu dois terrenos rústicos que integram a área expropriada em 2020 por contrato de compra e venda a AA, sócio gerente da recorrente, e seu cônjuge que os adquiram em 2019, por venda em processo judicial, no âmbito do processo de insolvência n.º 888/13.5... - Juiz 3 no Tribunal da Comarca do Porto Este- Juízo de Comércio de ..., em que eram insolventes os próprios expropriados.

A recorrente fez registar o seu direito de propriedade sobre os imóveis no registo predial.

Como alega a recorrente, os prédios adquiridos pela Recorrente correspondem, a parte (ainda não utilizada) das parcelas expropriada pela Recorrida à E..., S.A. no âmbito dos processos 941/2002 e 1063/07.3... Está provado que a Recorrente adquiriu os bens de boa-fé, e confiou no que constava no registo predial, e procedeu ao registo das suas aquisições.

A recorrente invoca, de novo, a má fé da autora que não levou ao registo predial a aquisição dos imóveis expropriados. Porém, tal como indicado no acórdão recorrido nos termos do disposto no art.º 51.º, nº 6 do código das expropriações depois de adjudicada à entidade expropriante a propriedade e posse, do bem expropriado e depositado o montante da indemnização, a adjudicação da propriedade é comunicada pelo tribunal ao conservador do registo predial competente para efeitos de registo oficioso.

O registo da adjudicação da propriedade não é um dever da entidade expropriante pelo que a caducidade do registo oficioso por não terem sido atempadamente esclarecidas as dúvidas suscitadas pelo conservador é inepto para fundamentar qualquer má fé na actuação daquela.

Os bens expropriados integram-se no domínio público e, o seu não uso não permite a aquisição originária ou derivada por parte de uma entidade privada, nos termos do art.º 202.º do Código Civil. Assim, a circunstância de que uma parte dos bens expropriados não ter sido utilizada pela entidade expropriante até que a recorrente, na sequência do contrato de compra e venda que celebrou, os passou a limpar e a exercer sobre eles poderes de facto, como se seu proprietário fosse, não aproveita à solução pugnada nestes autos pela recorrente, por carecer de virtualidade jurídica para retirar do domínio público a total extensão dos bens expropriados. A desafectação dos bens do domínio público não é operável por qualquer negócio jurídico celebrado entre particulares, obedecendo a regras de direito público.

O despacho n.º 22 504/2001 (2.a série) 11 de Setembro de 2001 do Secretário de Estado Adjunto e dos Transportes, publicado na II Série do Diário da República em 7 de Novembro de 2001 tem o seguinte teor:

«— Com vista ao prosseguimento do projecto de modernização da linha de ..., mostra-se necessário dar início à empreitada de reconversão em via larga do troço ... na qual se inclui a remodelação das ... e de .......es, bem como os Apeadeiros de ..ca, .........as, .........as e ...as.

Para tanto, urge proceder à expropriação dos terrenos necessários à execução da correspondente obra.

Considerando o exposto, e sendo a realização da referida obra de manifesto interesse público, nos termos e ao abrigo da delegação de competências constante do despacho n.º 7437/2001 (2.a série), de 10 de Abril, determino o seguinte:

1—A requerimento da Rede Ferroviária Nacional—REFER, E. P., considerando que para a realização da obra de reconversão em via larga do troço ... na qual se inclui a remodelação das ... e de ... e dos Apeadeiros de ..., ..., ... e ..., da linha de ..., é indispensável a expropriação de terrenos para além dos limites do domínio público ferroviário, nos termos e ao abrigo dos artigos 1.º, 3.º, 14.º e 15.º, todos do Código das Expropriações, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro, e tendo em vista o início imediato das respectivas obras, declaro a utilidade pública, com carácter de urgência, das expropriações dos bens imóveis e direitos a eles inerentes constantes das plantas anexas, com os n.ºs PE.013.001A, PE.013.002, PE.013.003, PE.013.004A, PE.013.005B, PE.013.006C, PE.013.007B, PE.013.008B, PE.013.009A, PE.013.010B, PE.013.012A e PE.013.013B, e respectivos mapas de identificação e áreas, publicados em anexo.

2 — Declaro autorizar a REFER, E. P., a tomar posse administrativa dos mesmos bens, ao abrigo do n.º 1 do artigo 19.º do mesmo Código.

3 — Os encargos com as expropriações são da responsabilidade da REFER, E. P., para os quais dispõe de cobertura financeira.».

Com a sentença que declarou a expropriação por utilidade pública dos referidos terrenos estes passam a integrar o domínio público, não o domínio privado, a que se refere a recorrente.

Com efeito o Decreto-Lei n.º 276/2003 de 4 de Novembro no seu art.º 6.º, n.º 1 determina que:

«Os bens do domínio público ferroviário, tal como fixados no presente diploma, pertencem, salvaguardadas as situações previstas na Lei n.º 10/90, de 17 de Março, ao domínio público do Estado».

Nesse diploma igualmente se define, art.º 24.º que «os bens do domínio público ferroviário, desde que não estejam adstritos ao serviço a que se destinam ou dele sejam dispensáveis, poderão ser desafectados do referido domínio público e integrados no património privado da Rede Ferroviária Nacional — REFER, E. P., por despacho conjunto dos Ministros das Finanças e da tutela.»

mas tal desafectação apenas poderá ter lugar se os bens se destinarem:

«a alienação ou a aproveitamento urbanístico ou imobiliário e as verbas a apurar com a respectiva alienação ou utilização sejam afectas, na sua totalidade, a investimentos na modernização de infra-estruturas ferroviárias daquela empresa.».

Assim, fácil é verificar que nenhum contrato celebrado entre particulares poderá ultrapassar as regras relativas à dominialidade pública, nem às alterações de que nos termos da lei pode ser alvo, pois tal ocorrerá necessariamente por acto administrativo que uma sentença judicial, mesmo dos Tribunais administrativos e Fiscais, não tem a virtualidade de praticar.

O valor do registo predial, em Portugal meramente declarativo quanto aos direitos reais incidentes sobre imóveis, com a finalidade de publicidade, não estabelece qualquer presunção legal aplicável aos bens do domínio público do Estado. Estes gozam de ampla publicidade, e, como sabemos a declaração de utilidade publica é publicada no Diário da República, forma mais solene de dar publicidade a qualquer acto no regime jurídico português.

Por outro lado, o direito de reversão a que se refere o art.º 5.º do Código das expropriações é um direito exclusivo do expropriado, e não de qualquer terceiro que haja adquirido o bem de um terceiro, posteriormente à adjudicação da propriedade e posse à entidade expropriante, no processo de expropriação.

A empresa autora que foi a entidade expropriante, tem como único accionista o Estado Português, gere a infra-estrutura integrante da Rede Ferroviária Nacional, em regime de delegação de competências do Estado Português e está sujeita à tutela do Ministério das Infra-estruturas e do Ministério das Finanças. Na qualidade de entidade expropriante foi-lhe adjudicada a propriedade das parcelas expropriadas que passaram a integrar o domínio público e, nessa medida haja ou não sido objecto de registo a expropriação a sua qualidade dominial não sofre restrições.

Os bens cujo titular do direito de propriedade é um ente privado gozam sem restrições do direito constante do art.º 6.º e da presunção constante do art.º 7.º do Código do Registo Predial. Quanto aos bens do domínio público ocorre que não é obrigatório o registo dos factos jurídicos que determinem a constituição, o reconhecimento, a aquisição ou a modificação dos direitos de propriedade, sendo apenas obrigatório submeter a registo a identificação dos bens imóveis do domínio público – art.º 8º-A do mesmo código -, o que bem se compreende porque dada a sua natureza, e o regime de direito público a que estão submetidos, estando fora do comércio jurídico e não podendo ser objecto de direitos privados, art.º 202.º do Código Civil não é configurável sequer a dúvida de que um contrato de direito privado sem intervenção da entidade expropriante, e sem despacho da respectiva tutela possa pretender alterar a aquisição da propriedade sobre o imóvel adquirida pelo domínio público com base num regular processo de expropriação por utilidade pública.

Faz parte da vida em sociedade, com a organização jurídica que nos rege, que os entes públicos, invocando interesses públicos restrinjam de forma drástica o direito de propriedade de um particular para a satisfação de necessidades colectivas de elevado interesse comum com a declaração de utilidade pública de uma expropriação. Mas seria uma muito frágil realização do interesse público se outro particular, com relações negociais ou pessoais com o expropriado ou na absoluta ausência delas, pudesse, mais tarde, vir a adquirir uma parte do bem expropriado, sem intervenção da entidade expropriante ou da sua tutela, sem justificadamente ser invocado um interesse público pelo menos tão relevante como aquele que determinou a declaração de utilidade pública da expropriação, por um negócio de direito privado translativo do direito de propriedade privada desse expropriado que tinha deixado de existir com a expropriação do bem por utilidade pública.

A actuação da autora relativamente ao bem expropriado não é, com os factos provados, enquadrável em qualquer situação de abuso de direito.

A recorrente adquiriu o seu direito de propriedade de um particular que o adquiriu da administradora da insolvência da sociedade expropriada.

Nesta sequência de negócios não há qualquer modo de qualificar a recorrente como um terceiro para efeitos de registo na medida em que não há qualquer aquisição direitos incompatíveis entre si a um autor comum. Pelo contrário há uma sequência linear de negócios iniciados numa avaliação errada da administradora da insolvência dos bens que integravam a massa insolvente. Mesmo que tivesse sido o expropriado a vender uma parte dos bens objecto de expropriação, quando ainda não estava impedido por lei de gerir o seu património, não se poderia falar de terceiros para efeitos de registo porque se tratava não apenas de uma venda de bens alheios mas de uma venda de bens do domínio público e, por isso sempre ferida de nulidade atenta a impossibilidade de disposição dos bens do domínio público por negócios celebrados entre particulares.

Impõe-se, pois a confirmação do acórdão recorrido, ainda que assente em diversas razões jurídicas.

Pelas indicadas razões, improcede o recurso.


***


III – Deliberação

Pelo exposto acorda-se em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.


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Lisboa, 30 de Janeiro de 2025

Ana Paula Lobo (relatora)

Orlando dos Santos Nascimento

Fernando Baptista Oliveira