Sumário
I – Compreende o princípio constitucional da segurança jurídica a proteção da confiança dos particulares na continuidade do quadro legislativo vigente, ou seja, os particulares têm o direito a não ver frustradas as expetativas que legitimamente formaram quanto à permanência de um dado quadro legislativo (sem prejuízo do legislador dispor de uma ampla margem de conformação da ordem jurídica ordinária, aqui se incluindo a possibilidade de alteração das leis em vigor).
II – Sendo o art. 81.º/7 do CIRE claro no seu conteúdo e não tendo sofrido sequer qualquer alteração legislativa desde a sua redação inicial, em 2004, não viola o princípio da segurança e da proteção da confiança a sua aplicação em 2016.
III – O princípio constitucional da proibição do excesso (ou da proporcionalidade em sentido amplo) cobra a sua maior relevância e é mais frequentemente mobilizado enquanto instrumento de controlo de medidas restritivas de direitos fundamentais, porém, não deixa de funcionar como um princípio geral de limitação do poder público, ou seja, o princípio da proibição de excesso postula que entre o conteúdo da decisão do poder público e o fim por ela prosseguido haja sempre um equilíbrio, uma ponderação e uma “justa medida” e encontra a sua sede no artigo 2.º da CRP.
IV – Porém, face ao espaço/liberdade de conformação do legislador, o tribunal, ao julgar da conformidade com o princípio da proporcionalidade, deve limitar-se a examinar se a opção normativa é manifestamente desproporcionada ou inadequada (não substituindo a apreciação do legislador pela sua própria apreciação e não podendo exigir que a opção normativa corresponda à solução mais proporcional).
V – Não é pois inconstitucional, por violação do princípio constitucional da proporcionalidade, o art. 81.º/7 do CIRE, ao considerar que não é liberatório o pagamento, de boa fé, efetuado ao insolvente (por um seu devedor) após o registo da sentença de declaração de insolvência.
VI – Não age em abuso de direito a Massa Insolvente que exige o pagamento dum crédito do insolvente (pago, pelo devedor, diretamente ao insolvente), dois anos depois de saber da existência de tal crédito e do pagamento efetuado diretamente ao insolvente e tendo dito ao devedor, quando soube da existência de tal crédito e do seu pagamento ao insolvente, que “iria analisar a situação”.
Decisão Texto Integral
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I - Relatório
Por apenso aos autos de execução de sentença para pagamento de quantia certa, movidos por Massa Insolvente de AA, veio a executada, OCIDENTAL – Companhia Portuguesa de Seguros, S.A., atualmente AGEAS Portugal – Companhia de Seguros, S.A., deduzir oposição à execução por meio de embargos de executado.
Alegou, em resumo, que a exequente/embargada não tem título executivo contra a embargante, uma vez que a sentença condenatória dada à execução condena a embargante a pagar ao AA e não à exequente/embargada; que já cumpriu a sentença condenatória proferida no processo n.º 243/12.4....., tendo pago a quantia em causa (e as custas de parte em tal processo) ao AA, o que fez por desconhecer que ele estava declarado insolvente, uma vez que nunca foi de tal situação informada, quer pelo AA, quer pelo AI da embargada, razão pela qual, não tendo o AI da Massa Insolvente cumprido diligentemente os seus deveres, a Massa Insolvente, ao instaurar a presente execução, incorre em abuso de direito.
Concluiu, pedindo que a presente oposição seja julgada procedente e extinta a instância executiva; e a executada/embargante condenada como litigante de má fé, em multa e indemnização.
A exequente contestou, invocando a sua “legitimidade” para, em substituição do insolvente, instaurar a presente execução, com vista à cobrança de um valor que pertence à Massa Insolvente e cujo pagamento, feito diretamente ao insolvente, não foi feito “à verdadeira credora” e não foi/é liberatório, razão pela qual, ao exigir o pagamento, não atua em abuso de direito.
Foi designada audiência prévia e no âmbito desta e no seguimento da pronúncia das partes quanto às questões de facto e de direito, bem como quanto aos contornos do litígio, considerou o Exmo. Juiz que as questões a apreciar nos embargos assumiam natureza jurídica, pelo que ordenou que os autos lhe fossem conclusos para prolação de sentença.
Tendo proferido sentença que julgou os embargos procedentes e, consequentemente, determinou a extinção da execução.
Inconformada com tal decisão, interpôs a exequente/embargada recurso de apelação, recurso que, por Acórdão da Relação de Lisboa de 04/02/2025, foi julgado procedente e, em consequência, revogada a sentença proferida e julgados os embargos improcedentes.
Agora inconformada a executada/embargante, visando a revogação de tal Acórdão da Relação e a repristinação do decidido pela 1.ª Instância, interpõe a presente revista.
Termina a sua alegação com as seguintes conclusões:
“(…)
i. A Massa Insolvente de AA, aqui Recorrida, instaurou em 04/02/2020, a ação executiva que corre por apenso aos presentes autos, para pagamento de quantia certa, contra AGEAS Portugal – Companhia de Seguros, S.A., aqui Recorrente, requerendo o pagamento da quantia de € 486.291,38, dando à execução uma sentença de condenação, proferida no âmbito do processo que correu termos sob o n.º 243/12.4....., confirmada, em 9/07/2015, pelo douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, em que manteve a condenação da Recorrente no pagamento ao (Insolvente) AA da “(…) quantia de 9.975,96 (capital) e a renda mensal no valor de 6.234,97 durante cinco anos, quantias essas, acrescidas dos respetivos juros, devidos desde a citação da R. nesta ação, a taxa legal.”
ii. A Recorrente opôs-se à execução, por meio de embargos de executado, pugnando pela extinção da execução, invocando, em súmula, a inexistência do título dado à execução; cumprimento pontual e integral daquilo a que foi condenada; exercício abusivo de direito; compensação de créditos; e, condenação da Recorrente, aqui Recorrida, em litigância de má-fé.
iii. Pois, não obstante, AA ter sido declarado insolvente em 17.06.2014, ficou provado nos autos que, quer o Tribunal onde correu a referida ação declarativa de condenação, quer a Recorrente, não tiveram conhecimento da declaração de insolvência, na pendência da ação.
iv. Foi dado como provado nos autos, que a Recorrente efetuou o pagamento ao Insolvente, em 01.09.2016, da indemnização que lhe era devida, através de cheque remetido para a morada do seu Mandatário, bem como o pagamento do montante devido a título de custas de parte, através de transferência bancária para a conta indicada, tudo no montante global de € 461.111,97.
v. Ficou igualmente provado nos autos que, a Recorrente, apenas, em 28.12.2017, teve conhecimento da insolvência do AA e da sua mulher, prestando, a partir dessa data, ao Sr. Administrador de Insolvência, todas as informações essenciais respeitantes à ação declarativa n.º 243/12.4....., bem como dos pagamentos efetuados, ao próprio Insolvente, atendendo a que, à data, desconhecia a sua declaração de insolvência.
vi. Pelo que, o Tribunal de 1ª instância decidiu julgar procedentes os embargos, considerando que:
“Ora, no caso em apreço, não existem dúvidas de que o pagamento que a exequente Massa Insolvente peticiona na execução, foi efetuado diretamente ao insolvente AA, já após a declaração de insolvência do mesmo, o que permite concluir que tal quantia monetária deu entrada na massa insolvente, atento o disposto no art. 46.º, n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Tal circunstância, aliás, não deixa de ser peculiar, uma vez que não se compreende que o insolvente não tenha dado conhecimento daquele pagamento ao processo de insolvência ou ao administrador da insolvência.
Por outro lado, não está impugnado o desconhecimento, pela exequente, da prolação da sentença de insolvência, na pendência do processo da sentença exequenda ou na data daquele pagamento, não havendo, pois, qualquer indício de que tal circunstancialismo tenha ocorrido por má-fé da embargante.
Assim sendo, julgam-se preenchidos os pressupostos acima analisados para se considerar liberatório o pagamento efectuado pela exequente directamente ao insolvente.”. (realce e sublinhados nossos).
vii. No entanto, o Tribunal ad quo acordou em julgar procedente a apelação e, em consequência, a revogar a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, argumentando que:
“Na verdade, tendo o pagamento sido feito após a declaração de insolvência (…), o pagamento só seria liberatório se se demonstrasse que o respetivo montante deu efetiva entrada na massa insolvente. (…)
Ora, a Embargante nem sequer alegou que o montante pago tenha dado efetiva entrada na massa insolvente. (…)
Da circunstância de ter sido entregue materialmente a quantia (…) não pode extrapolar-se uma presunção (ou mesmo ficção) no sentido de que este tenha informado o sucedido na insolvência e, muito menos, que tenha entregue a quantia à massa insolvente. (…)
Noutra vertente, quanto ao invocado desconhecimento pela embargante da declaração de insolvência, se o mesmo ocorreu é culposo. (…)
Uma das razões de ser da obrigatoriedade da publicação da declaração de insolvência é, precisamente, a de facultar erga omnes informação sobre a insolvência do devedor, devendo os terceiros – que mantenham relações contratuais ou outras com o devedor – adotar as cautelas exigidas pelo estatuto de insolvente, como é o caso em apreço.”
viii. De igual modo, e à semelhança do Tribunal de 1ª instância, o Tribunal da Relação também considerou desnecessárias outras considerações.
ix. A Recorrente entende que o Tribunal a quo, cometeu um erro de julgamento (error in judicando) e fez uma incorreta aplicação do direito aos factos alegados, nos termos do artigo 674.º, n.º 1, al. a), do CPC, tendo-se cingido a uma interpretação excessivamente formalista do artigo 81.º, n.º 7, do CIRE, desconsiderando, por completo, os factos da situação sub judice, bem como as consequências perniciosas e profundamente iníquas e desajustadas que dela poderão vir a resultar, na eventualidade de a posição aludida vingar.
x. Pelo que, o presente recurso assentará nos seguintes pilares:
a) Inconstitucionalidade do artigo 81.º, n.º 7, do CIRE, por violação do princípio de certeza e segurança jurídica, consagrado no artigo 2.º, da CRP;
b) Inconstitucionalidade do artigo 81.º, n.º 7, do CIRE, por violação do princípio da proporcionalidade, previsto no artigo 18.º, da CRP; e
c) Abuso de direito.
xi. Desde logo, a matéria da inconstitucionalidade é de conhecimento oficioso, devendo ser conhecida e apreciada em qualquer caso, de acordo com o disposto no artigo 204.º, da CRP, em razão da adoção, no caso da fiscalização sucessiva concreta, de um sistema de fiscalização da constitucionalidade misto.
xii. Este entendimento tem vindo a ser perfilhado pelo próprio Tribunal Constitucional, desde a prolação do Acórdão n.º 41/92, Processo n.º 331/91, relator: Conselheiro Tavares da Costa, in www.tribunalconstitucional.pt, no qual se estipulou que:
“Para o Supremo Tribunal de Justiça, por conseguinte, a questão de inconstitucionalidade não foi oportunamente incluída nas conclusões do recurso, delimitadoras do seu âmbito, constituindo «matéria nova».
No entanto, a inconstitucionalidade é questão do conhecimento oficioso de qualquer tribunal Constituição da República, artigo 207.º (atual, artigo 204.º, da CRP) pelo que os interessados podem invocá-la em qualquer via do recurso ordinário que a decisão consinta.
Logo, e como se observou no Acórdão n.º 173/88 in Diário da República, II Série, de 30 de Novembro de 1988 «se suscitada pela primeira vez em alegações perante o Supremo Tribunal de Justiça [o que nem é o caso], não há que considerá-la, pois, uma questão nova, que ao Supremo seja vedada apreciar: há, sim, que conhecer dela». Os casos de conhecimento oficioso sempre se ressalvaram, pois, de acordo com aquela norma da Constituição, os Tribunais não podem aplicar normas inconstitucionais, como o próprio Supremo Tribunal de Justiça reconhece, designadamente em acórdão que se debruçou exactamente sobre o falado artigo 47.º (cfr. acórdão de 28 de Abril de 1983, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 326, pp. 498 e segs.).
A questão da natureza oficiosa do conhecimento da inconstitucionalidade nos autos invocada em termos inequívocos não só prevalece perante o argumento da «questão nova» como igualmente se faz valer perante o da limitação do objeto do recurso pelo teor das conclusões das alegações, baseado no artigo 690.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, nomeadamente porque, em processo constitucional, basta que a decisão do tribunal aplique norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), citado, em consonância, de resto, com a alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição da República.
(...) Com efeito, só após o cumprimento do n.º 5 do artigo 75.º-A da Lei n.º 28/82 pelo Supremo Tribunal de Justiça poderá ajuizar-se se os demais requisitos ora não apreciados, designadamente o da tempestividade, se verificam ou não.” (destaque e sublinhados nossos)
xiii. De igual forma, a doutrina tem enverado pelo mesmo caminho – v.g. Jorge Miranda e Rui Medeiros, “Constituição Portuguesa Anotada – Volume III”, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2020, pág. 45, que, em anotação ao artigo 204.º, da CRP, defendem que:
“Questão diversa é a de saber como se articula o poder-dever de os tribunais recusarem oficiosamente a aplicação de normas inconstitucionais nos feitos submetidos a julgamento com a delimitação do objeto do processo. O Tribunal Constitucional, em alguns arestos, considerou que, mesmo que a lei estabeleça que os recorrentes não podem levantar novas questões de direito nos recursos ordinários que interpõem das sentenças dos tribunais de primeira instância, a circunstância de a questão de inconstitucionalidade só ser suscitada, pela primeira vez, nessa sede não significa que a inconstitucionalidade da norma seja questão nova de que o tribunal ordinário ad quem não possa conhecer por o seu poder jurisdicional quanto à matéria da causa estar limitado pelo âmbito da matéria discutida e decidida na primeira instância. Na verdade, a inconstitucionalidade é questão de conhecimento oficioso de qualquer tribunal, pelo que os interessados podem invocá-la em qualquer via de recurso ordinário que a decisão consinta. Nesta perspetiva, segundo o entendimento do Tribunal Constitucional, a natureza oficiosa do conhecimento da questão de inconstitucionalidade prevalece sobre o argumento da “questão nova” (...) (Acórdão n.º 222/95). Assim, por exemplo, se a questão é suscitada pela primeira vez em alegações para o STJ, não há que considerá-la uma questão nova, que ao Supremo seja vedada apreciar (Acórdão n.º 41/92; cfr. ainda Acórdãos n.º 173/88 e 310/94 (...).”. (realces e sublinhados nossos)
xiv. O presente recurso representa a primeira oportunidade para discutir da inconstitucionalidade da norma do artigo 81.º, n.º 7, do CIRE, tendo em conta que a Recorrente apenas não concorda com a interpretação que o Tribunal ad quo fez do dispositivo normativo, nada tendo a objetar contra o exercício hermenêutico efetuado na sentença de 1º instância, que, inclusive, procura que seja reposto.
xv. Desde logo, impõe-se apreciar a inconstitucionalidade do artigo 81.º, n.º 7, do cire, por violação do princípio da certeza e segurança jurídica.
xvi. Ora, da leitura do disposto no artigo 1.º, n.º 1, do CIRE, resulta que o escopo fundamental prosseguido no processo de insolvência prende-se com a satisfação dos credores, assente na ideia de que os compromissos celebrados são para ser respeitados (pacta sunt servanda), não obstante se procurar um equilíbrio com a prossecução de outros objetivos, nomeadamente a reabilitação financeira/fresh start do insolvente, quando isso se ache possível, sendo que para atestar da situação de insolvência, o legislador consagrou dois critérios, sendo eles o critério do fluxo de caixa/cash flow e o critério da situação patrimonial, plasmados no artigo 3.º, n.º 1 e 4, do CIRE, respetivamente.
xvii. No entanto, a declaração de insolvência não é automática, i.e., para que seja declarado insolvente, não basta que a concreta situação económica do particular ou da pessoa coletiva se subsuma a um dos critérios supramencionados, sendo ainda indispensável que a insolvência seja declarada por um juiz, através de sentença transitada em julgado.
xviii. Ora, é com a prolação da sentença de declaração de insolvência que se produzem os efeitos substantivos (artigos 81.º a 84.º, do CIRE) e processuais (artigos 85.º a 89.º, do CIRE) na esfera do insolvente, dando origem a um conjunto de deveres que devem ser escrupulosamente observados pelo mesmo.
xix. Neste plano, e com especial relevância para o caso em concreto, cumpre destacar o artigo 81.º, n.º 1, do CIRE, nos termos do qual o insolvente fica privado dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, gestão essa que se transfere para a esfera de competência do AI, conforme refere Catarina Serra, “Os efeitos patrimoniais da declaração de insolvência após a alteração da Lei n.º 16/2012 ao Código de Insolvência”, in Revista Julgar, n.º 18, págs. 176 e 177, esta “privação” não se trata de uma interdição, ou sequer de uma incapacidade, como outrora já sucedeu entre nós, antes numa falta de legitimidade para dispor livremente dos bens que integram o seu património, o que conduz, em geral, à ineficácia do(s) negócio(s) jurídico(s) que o insolvente venha a celebrar, daí que o legislador tenha optado por adotar uma “expressão juridicamente mais neutra”.
xx. Em todo o caso, declarada a insolvência, o insolvente deverá abster-se de praticar atos que resultem na afetação ou na diminuição dos bens que integram a massa insolvente.
xxi. Nessa linha, e justificando a opção legislativa, advoga Maria do Rosário Epifânio, “Manual de Direito da Insolvência”, 8.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2022, págs. 107 e 108, que: “Os efeitos patrimoniais são todos aqueles efeitos que recaem diretamente sobre o património do insolvente, e que se destinam a proteger diretamente os credores concursais de qualquer atuação prejudicial do insolvente sobre os bens que integram a massa insolvente: trata-se da privação do poder de disposição e administração dos seus bens, através da adjudicação de um conjunto de bens à satisfação dos interesses dos credores concursais.”. (destaque e sublinhado nosso)
xxii. A par da obrigação descrita, impende, ainda, sobre o insolvente um dever de apresentação e de colaboração, consagrado no artigo 83.º, do CIRE, que prevê inclusivamente o seguinte:
“1 – O devedor insolvente fica obrigado a:
a) Fornecer todas as informações relevantes para o processo que lhe sejam solicitadas pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal;
(...) c) Prestar a colaboração que lhe seja requerida pelo administrador da insolvência para efeitos do desempenho das suas funções.” (realce e sublinhados nossos)
xxiii. Podendo-se, assim, concluir de forma segura que, o insolvente está adstrito, entre outras obrigações, a prestar informações relativamente aos processos que correm contra ou instaurados por si, pelo menos aqueles que possam vir a influenciar, pela negativa ou positiva, a massa insolvente, devendo prestar essa informação ao Tribunal e às partes contrárias, tanto no processo de insolvência, como nos processos que ainda estão em curso.
xxiv. O incumprimento de algum dos deveres enunciados, e dos demais que o legislador prevê ao longo do CIRE, irá acarretar efeitos deletérios para o insolvente, como melhor explica Maria do Rosário Epifânio, ob. cit., pág. 109:
“A violação do dever de prestar informações e de colaboração é livremente apreciada pelo juiz para efeitos de qualificação da insolvência como culposa (arts. 83.º, n.º 3, e 186.º, n.º 1). Porém, se a violação do dever de colaboração assumir caráter reiterado, a insolvência deverá ser sempre considerada culposa (presunção inilidível de insolvência culposa, de acordo com o art. 186.º, n.º 2, al. i)). Depois, a violação pelo devedor, com dolo ou culpa grave, dos deveres de informação e de colaboração constitui motivo para indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante (art. 238.º, n.º 1, al. g)).”. (realce e sublinhados nossos)
xxv. Ao lado do insolvente, o CIRE também estabelece funções e deveres a cargo do AI, considerando que lhe cabe representar interesses de terceiros, e não próprios, i.e. dos credores, falando quer a doutrina, quer a jurisprudência, em poderes-deveres ou poderes-funcionais.
xxvi. Desse modo, consagra o artigo 55.º, n.º 1, do CIRE, que:
“1 – Além das demais tarefas que lhe são cometidas, cabe ao administrador da insolvência, com a cooperação e sob a fiscalização da comissão de credores, se existir:
a) Preparar o pagamento das dívidas do insolvente à custa das quantias em dinheiro existentes na massa insolvente, designadamente das que constituem produto da alienação, que lhe incumbe promover, dos bens que a integram;
b) Prover, no entanto, à conservação e frutificação dos direitos do insolvente e à continuação da exploração da empresa, se for o caso, evitando quando possível o agravamento da sua situação económica.” (sublinhados nossos)
xxvii. Destarte, a função primacial do AI, fazendo uma leitura conjunta do dispositivo supramencionado, com o artigo 81.º, n.º 1, do CIRE, será a de administrar e de dispor dos bens integrantes da massa insolvente, em benefício dos credores, irradiando dessa obrigação as demais, que sobre ele recaem.
xxviii. Nessa linha, nos termos do disposto do artigo 81.º, n.º 4, do CIRE, o AI deverá também assumir a representação do insolvente em todos os processos, em curso, que interessem, em geral, ao processo de insolvência.
xxix. À mesma conclusão chega o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28/03/2023, Processo n.º 2507/20.4T8LRA.C1, relatora: Maria João Areias, in www.dgsi.pt, constando do seu sumário que:
“I – A declaração de insolvência produz efeitos processuais e substantivos imediatos – para os quais a lei exige não o trânsito em julgado da sentença -, e automáticos – que se produzem por mero efeito daquela – com a transferência de poderes de administração e disposição para o administrador de insolvência (salvo decisão judicial em contrário), assumindo este a representação do devedor para todos os efeitos de caráter patrimonial que interessem à insolvência (artigo 81.º, ns. 1 e 4, do CIRE).
II – Declarada a insolvência da Ré/reconvinte em que se discutem interesses patrimoniais da massa, os autos não mais podem prosseguir com a Ré, aqui então representada pelos seus administradores, havendo que ser substituída pelo administrador de insolvência.
xxx. III – Levantando-se nos autos a questão dos efeitos da declaração de insolvência sobre o destino da ação/reconvenção, o administrador de insolvência deve ser ouvido previamente sobre a mesma, devendo ser notificado para tal efeito, sob pena de nulidade da decisão que sobre ela incida, por preterição do princípio do contraditório previsto no n.º 3 do art. 3.º do CPC.”. (destaque e sublinhados nossos)
Xxxi Aliás, é de fácil compreensão a bondade da solução, atendendo a que, nesses casos, se discutem questões que podem interferir com o valor da massa insolvente, logo, estando o AI responsável pela administração e disposição da mesma, então é do interesse de todos que, nos processos em curso, ele possa emitir opinião e defender os interesses da massa insolvente.
Xxxii Com efeito, em ordem a cumprir o desiderato enunciado supra, o legislador ordinário estabelece como obrigação do insolvente, nos termos da leitura conjunta do artigo 24.º, n.º 1, al. b) e 83.º, n.º 1, al. a), do CIRE, entregar, entre outros documentos, a “relação e identificação de todas as acções e execuções que contra si estejam pendentes”.
xxxiii. Caso o insolvente não preste os devidos esclarecimentos de forma voluntária, um AI, no exercício diligente da sua atividade, poderá adquirir essa informação através de meios alternativos, não consubstanciando essa falta de colaboração, por parte do insolvente, um obstáculo ao exercício das suas funções.
Xxxiv. Sendo que, no tocante a esse ponto, estipula o legislador que o AI deve pautar o seu comportamento, em todo o processo, “pela diligência de um administrador da insolvência criterioso e ordenado”.
Xxxv. In casu, somente a Recorrente cumpriu, de forma integral e pontual, com a obrigação a que se encontrava adstrita, a de realizar o pagamento da quantia pela qual foi condenada, sendo que as demais partes violaram, de forma grosseira e dolosa, os deveres que sobre elas versavam.
Xxxvi. Desde logo, o insolvente incumpriu, de forma dolosa, com o dever de informação e colaboração, num duplo plano, porquanto, no âmbito do processo de insolvência, não divulgou, ou, caso o tenho feito, não o fez com a devida veracidade ou de forma suficiente, pendência da ação declarativa que corria contra a Recorrente, violando, assim, o estatuído nos artigos 24.º, n.º 1, al. b) e 83.º, n.º 1, al. a), do CIRE.
Xxxvii Esta não é uma questão de somenos, na medida em que a declaração de insolvência não suspende ou extingue automaticamente as ações declarativas, nas quais o insolvente intervenha, assim como caso o desfecho da ação fosse favorável, o que veio a suceder, tal facto teria um impacto direto na massa insolvente, devendo, portanto, o AI assumir a representação do insolvente no processo, algo que, no entanto, nunca chegou a acontecer. Apesar de possuir contornos diversos, mas com total relevância para o caso em apreço, torna-se relevante fazer referência ao seguinte excerto do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12/10/2023, Processo n.º 172/22.3T8MDL.G1, relator Gonçalo Oliveira Magalhães, in www.dgsi.pt:
“Essa infração repetida do dever de informação contendeu com factos que eram relevantes para o processo de insolvência, mais concretamente no que tange à definição do património dos devedores e à aferição das causas de insolvência.”. (sublinhado nosso)
Xxxviii Adicionalmente, o insolvente violou o dever supramencionado ao não ter informado o Tribunal e, particularmente, a Recorrente, no âmbito da ação declarativa, da declaração de insolvência do mesmo, violando, desse modo, o princípio da cooperação e o dever de boa-fé, previstos nos artigos 7.º e 8.º, do CPC, respetivamente.
Xxxix Pois, o insolvente não desconhecia, nem podia desconhecer, que estava compelido a fornecer aquela informação aos autos, facto que decorre das obrigações identificadas na sentença de declaração de insolvência.
Xl Citando-se, pela relevância que assume no que a esta matéria diz respeito, o ponto I do sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04/02/2020, Processo n.º 695/13.5TBLSA.C1, relatora Maria João Areias, in www.dgsi.pt:
“Para que o incumprimento doloso ou com culpa grave do dever de informação sobre os seus rendimentos venha a implicar a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restantes, necessário se torna que tal omissão prejudique a satisfação dos créditos sobre a insolvência.” (sublinhado nosso)
xli. Não se bastando com o incumprimento do dever supra, e sensivelmente mais grave, o insolvente dispôs e movimentou livremente bens, maxime a indemnização paga pela Recorrente, quando estava proibido de o fazer, infringindo com o disposto no artigo 81.º, n.º 1, do CIRE.
xlii. Destarte, quando o insolvente recebeu a transferência e descontou o cheque, se pautasse a sua conduta pelos ditames da boa-fé, deveria ter declarado imediatamente esse facto ao AI, de modo que este procedesse prontamente à apreensão dos respetivos valores a favor da massa insolvente, até por causa do disposto no artigo 46.º, n.º 1, do CIRE – cfr. decorre do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26/06/2024, Processo n.º 1744/20.6T8STB.E1, relator: Tomé de Carvalho, in www.dgsi.pt:
“Existe a obrigação de entrega imediata ao fiduciário de qualquer quantia recebida que integre rendimentos objecto de cessão, por impulso do insolvente e sem necessidade de intervenção directora do Tribunal ou do administrador judicial nomeado para fase de exoneração do passivo restantes.”. (destaque e sublinhado nosso)
xliii. Aliás, este constituiu o entendimento propugnado pelo Sr. Juiz de Direito, na Sentença da 1ª instância, quando, de forma assertiva, observa “que não se compreende que o insolvente não tenha dado conhecimento daquele pagamento ao processo de insolvência ou ao administrador da insolvência”.
xliv. POR ESSE MOTIVO, FORÇOSO SE TORNA CONCLUIR QUE, AO OMITIR O RECEBIMENTO DO PAGAMENTO E AO DISPOR DA QUANTIA RECEBIDA, QUANDO TINHA PLENA CONSCIÊNCIA DE QUE SE ENCONTRAVA INIBIDO DE O FAZER, O INSOLVENTE ATUOU ÚNICA E EXCLUSIVAMENTE COM O ANIMUS DE SONEGAR BENS À MASSA INSOLVENTE, EM CLARO PREJUÍZO DOS CREDORES E, POTENCIALMENTE, DA RECORRENTE, AO SE VIR EXIGIR AGORA QUE PAGUE NOVAMENTE UMA QUANTIA JÁ LIQUIDADA.
xlv. Consubstanciando, essa conduta, uma (in)ação dolosa, conforme resulta do sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22/10/2020, Processo n.º 852/18.8T8STR-C.E1, relatora: Isabel Peixoto Imaginário:
“Existe dolo ou, pelo menos, grave negligência, na violação do dever de entrega imediata ao fiduciário da parte dos seus rendimentos objecto de cessão quando por si recebidos, pois que bem sabia o devedor que sobre si impendia tal obrigação, tendo sido interpelado, por mais do que uma vez, para cumprir e dispunha de todos os elementos que lhe permitiam materializar o cumprimento dessa obrigação.” (realce e sublinhado nosso)
xlvi. Depois, a par do insolvente, também o AI, em representação da massa insolvente, incumpriu com os deveres que lhe são concretamente atribuídos pelo CIRE, não exercendo, com o grau de diligência exigido, as funções que lhe são outorgadas.
xlvii. Quanto ao grau de diligência exigido, referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Volume I, Quid iuris, Lisboa, 2005, em anotação ao artigo 55.º, do CIRE, que:
“12. Os poderes do administrador têm em vista a satisfação de interesses que não são próprios: corresponde-lhes, por isso, a natureza de verdadeiros poderes funcionais, que ele não só não pode como, sobretudo, deve desempenhar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado (cfr. art.º 59.º, n.º 1, in fine).
Mesmo quando a lei lhe atribui a possibilidade de opção entre várias alternativas, o administrador deve agir de acordo com aquela que, segundo as circunstâncias concretas e ao olhar de um gestor criterioso e ordenado, se evidenciar como a mais favorável e proveitosa para a melhor tutela dos interesses dos credores.
É a esta luz que têm sempre que ser avaliadas as faculdades múltiplas que cabem ao administrador, bem como os deveres que sobre ele impendem. E a essa mesmo luz será apreciado o seu procedimento e, correspondentemente, medida a sua responsabilidade.”. (realce e sublinhados nossos)
xlviv. Com base no critério exposto, não se pode chegar a outra conclusão senão a de que o AI não cumpriu as suas atribuições com a diligência exigida pelo CIRE.
Atendendo a que, preliminarmente, o AI não deu a conhecer, na pendência da ação declarativa que corria contra a aqui Recorrente, que o particular tinha sido declarado insolvente, quando a isso estava obrigado, não tendo faltado oportunidades para o fazer, posto que o encerramento do processo supra referido apenas se deu em momento posterior ao da declaração de insolvência.
l. Os administradores de insolvência têm acesso direto, por via eletrónica, ao sistema informático de suporte à atividade dos tribunais.
li. Em conformidade, ao nada ter feito, o AI agiu de forma dolosa, considerando que não desconhecia, nem podia desconhecer, atentas as razões supra, que estava ainda em curso uma ação declarativa que opunha o insolvente à Recorrida e que a mesma poderia influenciar, como se veio a verificar, a massa insolvente.
lii. Depois, e revestindo maior gravidade in hoc casu, o AI incumpriu com aquela que é função basilar da sua atividade, ao ter tolerado, sem ter feito desencadear nenhuma medida atempada para o suster, que o insolvente movimentasse, a seu “belo prazer”, bens que deveriam ter ingressado de imediato na massa insolvente, quando os poderes de disposição e administração do património cabem somente ao AI.
liii. Aliás, mesmo que não fosse assim, e indicativo da sua boa-fé em todo o processo, a Recorrente, assim que tomou conhecimento da declaração de insolvência, prontamente se dirigiu ao AI, em 3 de janeiro de 2018, de modo a dar conhecimento de que o pagamento, a que tinha sido condenada, foi concretizado, de modo a que o AI pudesse atuar em conformidade contra o insolvente, o que, para total surpresa da Recorrente, não o fez, optando por demandar, ao invés, a última, decorrido dois anos após a informação!
liv. Assim, fica mais do que patente de que o AI, in casu, não se comportou com a diligência exigida pelo artigo 59.º, n.º 1, do CIRE, ou seja, como um administrador da insolvência criterioso e ordenado.
lv. Ao tomar conhecimento das vicissitudes do caso, o AI deveria ter iniciado, de imediato, as diligências adequadas a recuperar as verbas que deveriam estar sob a sua gestão, AGINDO CONTRA O INSOLVENTE, conforme sustentado no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08/02/2024, Processo n.º 4330/21.0T8STB-E.E1, relatora: Emília Ramos Costa, in www.dgsi.pt:
“I – Nos termos do artigo 81.º, n.º 1, do CIRE, com a declaração de insolvência, o insolvente fica imediatamente privado dos poderes de administração e de disposição sobre os bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a ser da competência do administrador de insolvência, assumindo, por isso, este a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência.
II – Esta transferência imediata dos poderes de administração e disposição dos bens integrantes da massa insolvente do devedor para o administrador da insolvência não depende de um qualquer ato concreto e formal de apreensão de bens, bastando-se com o trânsito da sentença de declaração de insolvência.
III – Em caso de violação desta determinação legal, os atos de administração e de disposição praticados pelo insolvente em data posterior à da declaração de insolvência, relativamente a bens integrantes da massa insolvente, são ineficazes quanto à massa falida, respondendo esta apenas segundo as regras do enriquecimento sem causa.”. (realce e sublinhados nossos)
lvi. Mais, o AI instaura a presente ação executiva apenas contra a Recorrente por consubstanciar o caminho mais simples e expedito, em ordem a tentar reaver o valor entregue ao insolvente, procurando, por essa via, corrigir a sua (falta de) atuação ao longo de todo o processo, não mostrando qualquer hesitação, ou remorso, em fazer da Recorrente um bode expiatório, para encobrir falhas que apenas a ele podem ser imputadas.
lvii. Inclusive, há uma questão que tem perturbado profundamente a Recorrente, que é a de saber se, caso fosse uma pessoa singular e não uma empresa multinacional, a Recorrente estaria a ser judicialmente accionada, de forma isolada, para repetir o pagamento de uma indemnização no valor de aproximadamente meio milhão, como se encontra no presente, ou, se pelo contrário, seria demandada em conjunto com uma prévia e cautelar atuação judicial contra o insolvente...
lviii. À luz do exposto, resulta evidente que a interpretação formulada pelo Tribunal ad quo do disposto no artigo 81.º, n.º 7, do CIRE, no caso em concreto, configura um atentado ao princípio da certeza e da segurança jurídica, que se encontra radicado no artigo 2.º, da CRP.
lix. Em geral, e em vista a concretizar o princípio, torna-se útil recorrer à formulação elaborada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/09/2013, Proc. n.º 286/11.5JAFAR.SL, Relator: Santos Cabral, in www.dgsi.pt, do qual consta que:
“Daí que a realização e efectivação do princípio do Estado de Direito, no quadro constitucional, imponha que seja assegurado um certo grau de calculabilidade e previsibilidade dos cidadãos sobre as suas situações jurídicas, ou seja, que se mostre garantida a confiança na actuação dos entes públicos. É, assim, que o princípio da protecção da confiança e segurança jurídica pressupõe um mínimo de previsibilidade em relação aos actos do poder, de molde a que a cada pessoa seja garantida e assegurada a continuidade das relações em que intervém e dos efeitos jurídicos doa actos que pratica.” (realce e sublinhados nosso).
lx. Prossegue, citando a obra de J.J. Gomes Canotilho, autor que traça a distinção entre as dimensões objetiva e subjetiva do princípio, mais concretamente:
“… a segurança jurídica está conexionada com elementos objectivos da ordem jurídica – garantia da estabilidade jurídica, segurança de orientação e de realização do direito – enquanto a protecção da confiança se prende mais com as componentes subjectivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos dos poderes públicos. A segurança e a protecção da confiança exigem, no fundo: fiabilidade, clareza, racionalidade a transparência dos actos do poder; de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios actos. Deduz-se já que os postulados da segurança jurídica e da protecção da confiança são exigíveis perante qualquer acto de qualquer poder – legislativo, executivo e judicial. O princípio geral da segurança jurídica em sentido amplo (abrangendo, pois, a ideia de protecção da confiança) pode formular-se do seguinte modo: o indivíduo tem do direito poder confiar em que aos seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçados em normas jurídicas vigentes e válidas por esses actos jurídicos deixado pelas autoridades com base nesses normas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos no ordenamento jurídico...” (destaque e sublinhados nossos)
lxi. Portanto, nas palavras do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 188/2009, Processo n.º 505/08. Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha, in www.tribunalconstitucional.pt, “(é) assim que se compreende que o princípio da segurança jurídica surja como uma projecção do Estado de direito e se torne invocável, como critério jurídico-constitucional de aferição de uma certa interpretação normativa, a partir do próprio conceito de Estado de direito ínsito no falado artigo 2.º da Constituição.”. (realce nosso)
lxii. Aludindo a jurisprudência anterior do TC, continua o aresto supramencionado:
“(…) o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 287/90, teve também já oportunidade de definir a ideia de arbitrariedade ou excessiva onerosidade, para efeito da tutela do princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança, por referência a dois pressupostos essenciais:
a) a afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda
b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).
Os dois critérios enunciados (e que são igualmente expressos noutros arestos) são, no fundo, reconduzíveis a quatro diferentes requisitos ou “testes”. Para que haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa (neste sentido, o recente acórdão n.º 128/2009).” (realce e sublinhados nossos)
lxiii. Salvo melhor entendimento, todos os requisitos elencados pela jurisprudência citada encontram-se verificados no caso sub judice.
lxiv. Em primeiro lugar, o legislador criou uma expetativa legítima na esfera jurídica da Recorrente, porquanto consagrou, no artigo 81.º, n.º 7, do CIRE, duas situações excecionais que liberam a devedora que efetua o pagamento da dívida diretamente ao insolvente, quando a regra geral é a de que o pagamento de dívidas à massa insolvente efetuados diretamente ao insolvente não tem efeito liberatório.
lxv. Ora, não obstante consubstanciar a exceção, a verdade é que é o próprio legislador que, de forma intencional, prevê essa válvula de escape, precisamente com o intuito de obviar e dar resposta à ocorrência de situações com contornos semelhantes aos do caso em apreço, procurando proteger quem, de boa-fé, efetua o pagamento da dívida, a que se encontra adstrito, olvidando ou desconhecendo a situação de insolvência do particular, por razões que lhe são alheias, não entregando a quantia à massa insolvente, quando o faria se soubesse que a isso estaria obrigada.
lxvi. Depois, as expetativas da Recorrente são legítimas e justificadas, na medida em que, além de ter cumprido, de forma integral e pontual, com o pagamento da quantia à qual tinha sido condenada, assim que tomou conhecimento da declaração de insolvência do insolvente prontamente avisou o AI, de modo que este pudesse agir em conformidade, contra o próprio insolvente, e não contra a Recorrente.
lxvii. Ademais, sempre se dirá que a Recorrente cumpriu com a sua obrigação, o pagamento da prestação, comportamento esse que não encontrou correspetivo nas demais partes que violaram os deveres que lhe são legalmente atribuídos, não se afigurando como justa uma solução que beneficie exclusivamente os infratores, em detrimento da única cumpridora, a Recorrente.
lxviii. - Ainda, a Recorrente confiou que ao entregar a quantia em dívida diretamente ao insolvente, e depois ao informar o AI sobre esse facto, estaria definitivamente liberada, não lhe podendo ser assacada qualquer outra responsabilidade, convicção essa criada e estimulada pelo comportamento do AI, que, durante 2 (dois) anos, remeteu-se ao silêncio, não tendo transmitido, à Recorrente, qualquer outra informação ou novidade.
lxix. Bem como, não há outras razões de interesse público que justifiquem a interpretação que o Tribunal ad quo fez da norma, uma vez que reconhecer o efeito liberatório do pagamento efetuado pela Recorrente em nada contende com o direito de satisfação dos credores, dado que há outras formas de fazer ingressar o montante pago na massa insolvente, mormente através de uma ação de enriquecimento sem causa ou da apresentação de uma queixa-crime, e dedução de pedido de indemnização cível, contra o particular insolvente, não se afigurando a repetição do pagamento como conditio sine qua non para a satisfação dos credores.
lxx. Tudo em conta, a norma do artigo 81.º, n.º 7, do CIRE, é materialmente inconstitucional, quando interpretada com o sentido e alcance que Tribunal ad quo procura atribuir, por violação do princípio da certeza e da segurança jurídica, consagrado no artigo 2.º, da CRP, na medida em que, ao efetuar o pagamento da quantia à qual tinha sido condenada, a Recorrente criou a expetativa legítima de que o pagamento teria efeito liberatório, expetativa essa que foi gerada pela (1)atuação culposa e danosa do insolvente na omissão consciente da sua insolvência, (2)pela inexistência dessa informação no próprio processo declarativo, imputável ao Tribunal e ao AI e (3)alimentada pelo comportamento inerte do AI após ter conhecimento da ação e do pagamento direto ao Insolvente, pelo que, atentas as exigências de previsibilidade e de segurança que subjazem ao ordenamento jurídico, não é conforme com a CRP a exigência de repetição de um pagamento que já foi anteriormente feito.
lxxi. A par do princípio da certeza e da segurança jurídica, a atual redação do artigo 81.º, n.º 7, do CIRE, bem como a interpretação que o Tribunal ad quo dela quer fazer, contende com o princípio da proporcionalidade, previsto no artigo 18.º, da CRP, ao originar uma colisão de direitos entre, por um lado, o direito de satisfação dos credores, por via da repetição do pagamento e, por outro lado, o direito à liberação da quantia paga, da Recorrente, assente no princípio da certeza e segurança jurídica, estipulado no artigo 2.º, da CRP, aplicado por via do artigo 12.º, n.º 2, da CRP.
lxxii. Restringindo, em conformidade, o primeiro, de forma desproporcional, o segundo dos direitos supramencionados, ao impor à Recorrente que repita novamente um pagamento que, por razões que lhe são totalmente alheias, não ingressou de forma imediata na massa insolvente.
lxxiii. O princípio da proporcionalidade, previsto no artigo 18.º da CRP, é um dos princípios basilares da ordem constitucional portuguesa, sendo particularmente útil, em extrema súmula, para averiguar se uma determinada interferência num Direito Fundamental é, ou não, justificada.
lxxiv. Atualmente, a jurisprudência do TC e a doutrina decompõe o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso em 3 (três) subprincípios, sendo eles:
a) Subprincípio da adequação – medida utilizada deve ser idónea ou apropriada a atingir os fins em causa;
b) Subprincípio da necessidade – medida adotada deve revelar-se a menos onerosa de entre o leque de medidas idóneas a atingir o fim prosseguido; e
c) Proporcionalidade em sentido estrito – análise custo-benefício da adoção da medida, não devendo ser demasiado gravosa, ou deficitária, em relação à conveniência de alcançar o resultado pretendido (justa medida).
lxxv. Aplicando o critério ao caso sub judice, e salvo melhor opinião, a norma do artigo 81.º, n.º 7, do CIRE não passa o crivo do segundo e terceiro subprincípios enumerados.
lxxvi. Ainda que se considere que, o artigo 81.º, n.º 7, do CIRE, como adequado a atingir o fim prosseguido, de obter a satisfação dos credores, ao obrigar à repetição da prestação, atendendo a que, ao contrário do insolvente, a Recorrente é uma multinacional, com uma situação financeira saudável, podendo alocar, mesmo que com um custo demasiado elevado, os recursos financeiros necessários à repetição do pagamento, o mesmo já não se poderá afirmar quanto aos restantes subprincípios, dado que não é ponto assente que a opção legislativa tomada seja a menos onerosa para atingir o fim desejável.
lxxvii. Com efeito, e em especial no caso em concreto, o meio idóneo para recuperar o valor em falta passaria por atuar contra o insolvente, e não contra a Recorrente, instaurando, contra aquele, o mecanismo legal adequado (uma ação de enriquecimento sem causa e/ou uma providência cautelar), logo após ter conhecimento da realização do pagamento, na medida em que foi o insolvente que violou as suas obrigações, ao ter disposto e administrado um montante que não era seu para dispor.
lxxviii. Além da ação de enriquecimento sem causa, a conduta do insolvente poderá consubstanciar, em abstrato, a prática de um crime, previsto e punido no Código Penal, revelando-se totalmente pertinente apresentar uma queixa-crime contra o insolvente, para posterior averiguação pelo Ministério Público.
lxxix. Por último, é igualmente controverso que a norma aludida cumpra com o requisito da proporcionalidade em sentido estrito, pois a tese que a Exequente, aqui Recorrida, quer fazer vingar, corroborada pelo Tribunal ad quo, origina uma (dupla) prestação excessivamente onerosa, quando comparada com o resultado que se quer obter, obrigando a Recorrente à repetição de um pagamento de, aproximadamente, MEIO MILHÃO DE EUROS, quando o mesmo já foi cumprido, de forma integral e pontual, em 2016, assumindo, deste modo, um sacrifício global de cerca de um milhão, quando a Recorrente já pagou o que devia e atuou sempre de boa-fé!
lxxx. Em conformidade, se a devida quantia não ingressou de imediato na massa insolvente, como estipula, a propósito, o artigo 46.º, n.º 1, do CIRE, fica a dever-se única e exclusivamente ao comportamento doloso, e potencialmente criminoso, do insolvente, bem como da inércia do AI, ao longo de todo o processo de insolvência, ao arrepio dos deveres que, note-se, o CIRE IMPÕE A AMBOS.
lxxxi. O particular, ciente da sua condição de insolvente, optou por não informar, tanto no processo de insolvência, como na ação declarativa, de que se encontrava insolvente, ao mesmo tempo que dispôs e administrou bens que integravam a massa insolvente, quando não dispunha de legitimidade para o fazer, sendo o seu plano, desde o início, sonegar bens à massa insolvente, almejando alcançar, como coloquialmente se carateriza, o melhor dos dois mundos, procurando reduzir o seu passivo, ultrapassando por esta via a situação de insolvência e todos os efeitos que isso comporta, e dispor de liquidez financeira que possibilitasse a sua reabilitação financeira, sem passar por qualquer dos sacrifícios associados à condição de insolvente.
lxxxii. De igual forma, o AI incumpriu com as funções que lhe são especificamente conferidas pelo CIRE, ao não ter dado a conhecer, no seio da ação declarativa, que o particular, em questão, foi declarado insolvente, e, nessa lógica, se substituir, ao mesmo, na sua representação na lide, bem como, por culpa própria, permitiu que o insolvente dispusesse e administrasse património que pertencia à massa insolvente, não obstante ter conhecimento de que o pagamento tinha sido efetuado, o que possibilitou ao insolvente contar com quase dois anos para despender, como bem entendesse, aquela quantia avultada.
lxxxiii. Nestes termos, considerando que os motivos que suscitaram a presente ação executiva se ficam a dever exclusivamente ao incumprimento dos deveres impostos, pela lei, ao insolvente e ao AI, é nossa convicção de que, realizada uma análise de custo-benefício, que a repetição do pagamento, do valor da condenação, constituiria uma situação injusta e irrazoável, beneficiando, injustificadamente e em dobro, os únicos responsáveis por toda a situação descrita e que incumpriram reiteradamente com as incumbências que sobre eles recaiam, com um enorme custo financeiro para a Recorrente.
lxxxiv. Face ao exposto, a norma do artigo 81.º, n.º 7, do CIRE é materialmente inconstitucional, quando interpretada no sentido e alcance que o Tribunal ad quo decidiu atribuir, tendo em conta que não ultrapassou, nem com distinção, nem de forma adequada, o teste do princípio da proporcionalidade, acarretando, sim, uma (dupla) prestação excessivamente onerosa para a única parte que cumpriu com os deveres que lhe eram adstritos, a Recorrente.
lxxxv. AINDA ASSIM, SEM PRESCINDIR, sempre se dirá que, no Direito português, a base positiva do instituto do abuso de direito radica do disposto no artigo 334.º, do CC, que estabelece que:“(é) ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
lxxxvi. Nestes termos, e de acordo com o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/09/2017, Processo n.º 7471/15.9T8CBR.C1, relator: Luís Cravo, in www.dgsi.pt:
“Ocorre uma situação típica de abuso do direito quando alguém, detentor de um determinado direito, consagrado e tutelado pela ordem jurídica, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e ostensivamente contra o sentimento jurídico dominante.”
lxxxvii. Assim, é pacífico concluir, tanto para a doutrina, como para a jurisprudência, de que o instituto gravita, no seu âmago, em torno do princípio da boa-fé.
Lxxxviii A doutrina e a jurisprudência reconhecem usualmente 6 (seis) modalidades de abuso de direito – venire contra factum proprium, inalegabilidade, supressio, surrectio, tu quoque e desequilíbrio no exercício das posições jurídicas.
lxxxix. In hoc casu, a pretensão que a Massa Insolvente, através do AI, procura deduzir é de tal ordem ofensiva da boa-fé, que tem a proeza de fazer espoletar e preencher 3 (três) modalidades de abuso de direito, supra enunciadas.
Xc. Conforme refere Menezes Cordeiro, in “Do abuso do direito: estados das questões e perspectivas”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 65, Vol. II, Set. 2005,
“Na base da doutrina e com significativa consagração jurisprudencial, a tutela da confiança, apoiada na boa fé, ocorre perante quatro proposições. Assim:
1.a Uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa fé subjectiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias;
2.a Uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objectivos capazes de, em abstracto, provocar uma crença plausível;
3.a Um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efectivo de actividades jurídicas sobre a crença consubstanciada;
4.a A imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela protecção dada ao confiante: tal pessoa, por acção ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao factor objectivo que a tanto conduziu.” (sublinhados nossos)
xci. Outrossim, a jurisprudência tem igualmente procurado definir um conjunto de requisitos que, quando observados, permitem fundamentar o abuso de direito, por venire.
xcii. A título de exemplo, entre muitos outros, avança-se, pela clareza na formulação, com o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 27/02/2020, Processo n.º 1729/19.5T8STR.E1, relatora: Emília Ramos Costa, in www.dgsi.pt, no qual foi alegado que:
“I – Para que estejamos em presença de uma situação de abuso de direito na modalidade venire contra factum proprium impõe-se a verificação de (i) um comportamento anterior do titular do direito susceptível de criar, em termos objectivos, uma situação de confiança por parte da contraparte; (ii) um comportamento posterior por parte do titular do direito manifestamente contraditório com o comportamento anteriormente adoptado; (iii) a imputabilidade de ambos os comportamentos ao titular do direito; (iv) um comportamento da contraparte assente na confiança gerada pelo primeiro comportamento adoptado pelo titular do direito; e (v) o nexo de causalidade entre a situação objectiva de confiança e o comportamento que essa situação gerou na contraparte.
II – Não é, assim, tutelada toda e qualquer situação de confiança gerada na contraparte, antes sim e apenas a situação objectiva e legítima de confiança, ou seja, a confiança tida por um destinatário normal colocado naquelas mesmas circunstâncias.” (sublinhados nossos)
xciii. Aplicando esse critério ao caso sub judice, verifica-se que aqueles pressupostos se encontram preenchidos na totalidade.
xciv. Primeiramente, houve um comportamento anterior, promovido pelo AI, que criou, em termos objetivos, uma situação de confiança na esfera jurídica da Executada, aqui Recorrente, na medida em que, como consta das comunicações eletrónicas já juntas ao autos, o AI criou a expetativa, na Recorrente, de que o pagamento efetuado, mesmo que diretamente ao insolvente, teria efeito liberatório, assim como, após a Recorrente ter informado o AI do sucedido, o mesmo afiançou que iria procurar dar resposta à mesma, dando a entender que iria agir contra o insolvente, e não contra a Recorrida.
xcv. Depois, há um comportamento posterior, por parte do titular do direito, que é contraditório ao anteriormente adotado, porquanto instaura uma ação executiva contra a Recorrente, peticionando a repetição do pagamento de um montante, tendo a perfeita noção de que o mesmo já foi realizado no passado, indo contra com aquele que foi o seu primeiro comportamento.
xcvi. De seguida, as duas condutas são imputáveis ao titular do direito, uma vez que é o próprio AI que, de forma livre e esclarecida, as pratica.
xcvii. Ainda, a Recorrente, de boa-fé e confiando na declaração proferida, atuou de acordo com a confiança gerada pelo AI, não tendo, a título de exemplo, apresentado uma queixa-crime ou instaurando uma ação de enriquecimento sem causa contra o insolvente, quando esse mecanismo ainda poderia ter algum efeito útil.
xcviii. Bem como, há um nexo de causalidade entre o comportamento da Recorrente e a situação objetiva de confiança criada pelo AI, pois, caso contrário, a Recorrente teria adotado uma estratégia processual diferente, tentando fazer valer a sua posição mais cedo e contra o insolvente.
xcix. Destarte, encontram-se preenchidos todos os requisitos propostos, tanto pela doutrina, como pela jurisprudência, que permitem fundamentar o exercício abusivo de um direito, que assiste à aqui Recorrida, de pedir a repetição do pagamento do valor ao qual a Recorrente foi condenada.
c. A figura da supressio, nas palavras de Menezes Cordeiro, ob. cit.:
“I. A suppressio (supressão) abrange manifestações típicas de “abuso do direito” nas quais uma posição jurídica que não tenha sido exercida, em certas circunstâncias e por certo lapso de tempo, não mais possa sê-lo por, de outro modo, se contrariar a boa fé.” (sublinhado nosso)
ci. Numa palavra, a figura da supressio simboliza uma renúncia tácita de um direito, cujo exercício, não obstante numa fase inicial ser legítimo, posteriormente acaba por perder essa caraterística, atendendo à sua não utilização ou acionamento durante um certo período.
cii. Em conformidade, o objetivo último da figura da supressio é o proteger o beneficiário, que confia na inação da contraparte – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/06/2018, Processo n.º 10855/15.9T8CBR-A.C1.S1, relator: Henrique Araújo, in www.dgsi.pt:
“Mais do que sancionar a inércia do titular do direito, o objectivo da supressio é o de proteger a legítima confiança do terceiro que, ao fim de largo tempo, é surpreendido com uma demanda que já não esperava.” (sublinhado nosso)
ciii. Para que se verifique a figura, e seguindo de perto a posição defendida por Menezes Cordeiro, ob. cit., costumam ser apontados os seguintes requisitos: “- um não exercício prolongado;
- uma situação de confiança, daí derivada; - uma justificação para essa confiança;
- um investimento de confiança;
- a imputação da confiança ao não-exercente.”
civ. Todavia, importa realçar que, apesar do elenco de requisitos supramencionado, os mesmos não são cumulativos, devendo ser aferidos tendo em conta as vicissitudes do caso em concreto, tal como reconhece o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/11/2020, Processo n.º 4472/18.9T8VIS-A.C1, relatora: Sílvia Pires, in www.dgsi.pt:
“VI - Note-se que estes pressupostos não são necessariamente cumulativos, processando-se a sua articulação dentro dos mecanismos de uma sistemática móvel, ou seja, a falta de algum ou alguns deles pode ser suprida pela especial intensidade que assumam os restantes.” (sublinhados nossos)
cv. Posto isto, apenas a Recorrente cumpriu, de forma integral e pontual, com a obrigação de pagamento do montante, ao qual tinha sido condenada, ao passo que os demais intervenientes, maxime o insolvente e o AI, se furtaram, de forma consciente e dolosa, às responsabilidades que lhes eram, e são, impostas pelo CIRE.
cvi. Relativamente ao insolvente, o particular incumpriu, por um lado, com o dever de informação e colaboração, que se encontra consagrado nos artigos 24.º, n.º 1, al. b) e 83.º, n.º 1, al. a), do CIRE, ao não ter dado a conhecer, quando o deveria ter feito, em sede do processo de insolvência e na ação declarativa, de que tinha sido declarado insolvente, bem como, por outro lado, infringiu a proibição de disposição e administração de bens, mesmo que os tenha adquirido em momento posterior à declaração de insolvência, pertencem à massa, com o intento de os sonegar à massa, para proveito próprio, em claro prejuízo dos credores e, possivelmente, da Recorrente.
cvii. Já no que diz respeito do AI, o mesmo não pautou a sua atuação de acordo com o grau de diligência que o CIRE comanda, nos termos do disposto no artigo 59.º, n.º 1, do CIRE, considerando que, de uma parte, não adquiriu, por culpa própria, conhecimento da existência de uma ação, mesmo que declarativa, que se encontrava pendente, que podia influenciar, como veio a suceder, a massa insolvente, não informando, em consequência, a Recorrente de que o particular se encontrava insolvente, assim como permitiu que o insolvente, quando não tinha legitimidade para isso, movimentasse bens que deveriam ter ingressado, de imediato, na massa de insolvente, resultando daí avultados prejuízos para os credores e, potencialmente, a Recorrida.
cviii. Importa ainda salientar, de novo, que a Recorrente, mesmo quando a isso não estava obrigada, assim que tomou conhecimento que o insolvente tinha sido declarado insolvente, tratou prontamente de informar o AI de que o pagamento, da quantia a que tinha sido condenada, já tinha sido realizado.
cix. Perante esta comunicação, o AI agradeceu a gentileza, informando, de seguida, que iria envidar os seus melhores esforços para analisar a situação e delinear a melhor estratégia para recuperar o montante em causa, dando a entender que iria agir contra o insolvente.
cx. Todavia, a partir da comunicação aludida, e por um período de sensivelmente 2 (dois) anos, o AI não mais comunicou com a Recorrente, criando nesta a legítima expetativa que o pagamento realizado tinha efetivamente efeito liberatório, desonerando-a da prestação devida, e que, em consequência, não lhe seria imputada qualquer outra responsabilidade, até porque já haviam decorridos 4 anos após a realização do pagamento, de maneira que foi com grande surpresa e estupefação que a Recorrente recebeu a citação, a informar de que tinha sido instaurada, contra si, uma ação executiva, pela massa insolvente, representada pelo AI, exigindo a repetição do pagamento de uma quantia, que já tinha sido liquidada, sublinhando novamente, há quatro anos!
cxi. Ante o exposto, afigura-se-nos que o caso sub judice enquadra-se na figura da supressio, sendo necessário decidir pela sua verificação, de forma a suster o exercício abusivo de direito e que seja reposta a justiça.
cxii. Dúvidas inexistem quanto à verificação dos últimos quatro requisitos supra elencados, podendo surgir apenas algumas quanto ao primeiro, maxime o não exercício prolongado do direito.
cxiii. Contudo, a verdade é que o tempo necessário não pode ser aferido em abstrato, antes levando em conta os contornos exatos do caso em concreto – cfr. se pode extrair do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/06/2018, Processo n.º 10855/15.9T8CBR-A.C1.S1, relator: Henrique Araújo, in www.dgsi.pt:
“O tempo necessário para que a supressio opere dependerá muito das circunstâncias que, combinadamente, contribuam para a formação do estado de confiança, variando naturalmente de caso para caso.” (destaque nosso)
cxiv. Em conformidade, perante o decurso do tempo supra referido sem qualquer comunicação do AI e tendo em consideração os factos do caso sub judice, é mais do que natural que a Recorrente tenha criado a confiança legítima de que o pagamento efetuado, em 2016, tinha efeito liberatório.
cxv. Ainda que assim não se entenda – o que não se concede, mas que por mera cautela de patrocínio se equaciona – o caso sub judice sempre constitui uma das situações excecionais, mencionadas pela doutrina e pela jurisprudência, em que, não obstante não estarem reunidos na íntegra os requisitos enunciados (i.e., o não exercício prolongado do direito), é inegável que, in casu, a posição da Recorrente merece ser protegida, considerando a forte intensidade da situação de confiança gerada na Recorrente, ao se abster de praticar qualquer conduta contra ela ou de fornecer qualquer informação, sendo natural que se tenha instalado nela a convicção de que o pagamento efetuado teria efeito liberatório e que nenhuma outra responsabilidade lhe poderia ser imputada, pelo decorrer daquele período de tempo.
cxvi. Assim, ao instaurar a ação executiva contra a Recorrente, exigindo a repetição do pagamento de uma quantia já liquidada, quando podia e deveria ter agido mais cedo e contra o insolvente, a aqui Recorrida incorre em manifesto abuso de direito, na modalidade de supressio.
cxvii. Por fim, resta apenas abordar a modalidade do tu quoque, que, nas palavras de Menezes Cordeiro, ob. cit.:
“Tu quoque (também tu!) exprime a máxima segundo a qual a pessoa que viole uma norma jurídica não pode, depois e sem abuso:
- ou prevalecer-se da situação jurídica daí decorrente;
- ou exercer a posição jurídica violada pelo princípio;
- ou exigir a outrem o acatamento da situação já violada.” (destaque e sublinhados nossos)
cxviii. Outrossim, e recorrendo à formulação avançada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/03/2019, Processo n.º 1189/15.0T8PVZ.P1.S1, relator: Nuno Pinto Oliveira, in www.dgsi.pt:
“O conteúdo do princípio da proibição do tu quoque é o de que quem actua ilicitamente, em desconformidade com o direito, não pode prevalecer-se das consequências jurídicas (sancionatórias) de uma actuação ilícita da contraparte.”
cxix. Atenta a especial relação entre as partes envolvidas, tem-se entendido que esta modalidade apenas pode ser invocada inter partes, não sendo admissível lançar mão dela contra terceiros.
cxx. Destarte, e na esteira de Menezes Cordeiro, ob. cit.:
“O tu quoque deve ser aproximado do segundo princípio mediante, entre a boa fé e os casos concretos: o da primazia da materialidade subjacente. A ordem jurídica postula uma articulação de valores materiais, cuja prossecução pretende ver assegurados. Nesse sentido, ele não se satisfaz com arranjos formais, antes procurando a efectivação da substancialidade. Pois bem: a pessoa que viole uma situação jurídica perturba o equilíbrio material subjacente. Nessas condições, exigir à contraparte um procedimento idêntico ao que se seguiria se nada tivesse acontecido equivaleria ao predomínio do formal: substancialmente, a situação está alterada, pelo que a conduta requerida já não poderá ser a mesma. Digamos que, da materialidade subjacente, se desprendem exigências ético-jurídicas que ditam o comportamento dos envolvidos.” (realce e sublinhados nossos)
cxxi. Resulta evidente do exposto, bem como dos factos dados como provados, de que o AI violou inúmeras normas jurídicas do CIRE, que consagram os seus poderes e atribuições, no seio do processo de insolvência.
cxxii. Novamente, é deveras importante frisar que a doutrina tem considerado que os poderes do AI, no processo de insolvência, são poderes-deveres ou poderes funcionais, retratando a circunstância de estar a atuar na prossecução, não de um interesse próprio, mas sim de terceiros, os credores, o que, em consequência, deve levar a que o AI exerça a sua atividade com um nível de diligência acrescido, do que normalmente teria na condução de interesses e negócios próprios, nos termos do disposto no artigo 59.º, n.º 1, do CIRE. Acontece que, uma vez declarada a insolvência, e ainda anterior à prolação do Acórdão que veio a condenar a Recorrente, no âmbito da ação declarativa, o AI começou por incumprir as suas funções ao ter tomado conhecimento, uma vez que não o podia olvidar, da ação declarativa que corria entre o particular insolvente e a Recorrente, quando a isso estava obrigado, atendendo a que a ação tinha o potencial, que acabou por se concretizar, de influenciar a massa insolvente.
cxxiii. Reitera-se, mesmo que o insolvente não fornecesse essa informação, ou caso o tenha feito de forma insuficiente, o AI dispõe de meios alternativos para a adquirir, podendo, a título de exemplo, consultar bases de dados, não se revelando a falta de colaboração do particular como um obstáculo intransponível ao cumprimento dessa sua incumbência.
cxxiv. De seguida, o AI falhou ao não ter informado o Tribunal e a Recorrente, no âmbito da ação declarativa, de que o particular tinha sido declarado insolvente, do mesmo modo que não alertou que, na eventualidade de vir a ser devido o pagamento de uma quantia ao particular, que o mesmo, para ter efeito liberatório, deveria ser feito na sua pessoa, e não diretamente ao insolvente, para efeitos do artigo 81.º, n.ºs 4 e 7, do CIRE.
cxxv. Ainda, e sensivelmente mais grave, o AI permitiu, de forma dolosa, que o insolvente administrasse e dispusesse de verbas que deveriam ter ingressado na massa insolvente, infringindo simultaneamente os artigos 46.º, n.º 1 e 81.º, n.ºs 1 e 2, do CIRE, o que permitiu ao insolvente sonegar bens da massa insolvente, em claro prejuízo dos credores e, potencialmente, da Recorrida, porquanto agora venha pedir a repetição do pagamento.
cxxvii. Bem como, o AI, ao tomar conhecimento de que o pagamento tinha sido efetuado, através de comunicação eletrónica dirigida pela Recorrente, teria iniciado, de imediato, e não passados 2 (dois) anos, as diligências idóneas em vista a recuperar as verbas que deveriam estar sob a sua disposição, agindo contra o Insolvente, e não contra a Recorrente.
cxxviii. Por conseguinte, a aqui Recorrida não pode fazer prevalecer o incumprimento das funções que lhe são especificamente cometidas, vindo agora exigir a repetição do pagamento de uma quantia que a Recorrente, de forma integral e pontual, já cumpriu, apenas porque se afigura como o caminho mais simples para fazer ingressar o valor em causa na massa insolvente, devendo, ao invés, atuar contra o próprio insolvente, traduzindo o seu comportamento, in casu, um exercício abusivo de direito, na modalidade tu quoque.
cxxix. Como consta do sumário do ponto IV do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/03/2023, Processo n.º 1709/19.0T8ACB-A.C1.S1, relatora: Ana Resende, in www.dgsi.pt:
“A consequência a retirar da verificação duma situação de abuso de direito, para além do que expressamente se mostre consignado, deverá ser achada no atendimento do caso concreto, contrariando a pretensão daquele que procura usar o direito, de uma forma abusiva, no atendimento da globalidade dos factos, e não a segmentos dos mesmos, não esquecendo as características do contrato e todo o contexto jurídico e sócio económico subjacente à sua celebração.” (realce e sublinhados nossos)
cxxx. Em conformidade, o abuso de direito consubstancia uma exceção perentória nos termos do artigo 576.º, n.º 3, do CPC, que tem como consequência a absolvição total ou parcial do pedido e que é de conhecimento oficioso, podendo o Tribunal dela conhecer a todo o tempo, nos termos do artigo 579.º, do CPC.
cxxxi. Nestes termos, e uma vez provados todos os requisitos do artigo 334.º, do CC, de que depende a aplicação do instituto de abuso de direito, nas modalidades de venire, supressio e tu quoque, outra conclusão não se pode extrair senão a de que a conduta da aqui Recorrida configura um exercício abusivo de direito, não podendo ser exigido à Recorrente a repetição de um pagamento que, de forma integral e pontual, já foi efetuado, devendo, por esse motivo, repristinar-se a decisão que foi proferida em sede de 1.ª instância e determinar a extinção da execução.
cxxxii. Por tudo o quanto foi dito, conclui-se que, a Recorrente foi a única que cumpriu com a obrigação a que se encontrava adstrita (o pagamento a que havia sido judicialmente
condenada), quatro anos antes de ser surpreendida com a presente execução e dois anos depois de ter dado conhecimento do pagamento efetuado, que desconhecia a declaração de insolvência, omitida conscientemente pelo Insolvente, não informada pelo Tribunal, nem pelo AI, nem na pendência da ação declarativa, nem posteriormente, quando existem mecanismos informáticos e obrigações legais para o efeito, conforme acima devidamente explanados.
cxxxiii. A Recorrente, alheia aos incumprimentos legais do Insolvente e do AI, enquanto terceira de boa-fé, deverá ver o seu direito tutelado – efeito liberatório de pagamento - devendo aos factos apurados e provados ser aplicados os preceitos legais corretos, justos e adequados, conciliando-se os princípios da certeza e da segurança juridica e da proporcionalidade, considerando-se in casu, a aplicação do art. 87.º, n.º 7 do CIRE inconstitucional.
(…)”
A exequente/embargada respondeu, sustentando que o Acórdão recorrido não violou qualquer norma processual ou substantiva e que o mesmo deve ser mantido nos seus precisos termos e a revista julgada improcedente.
Termina a sua alegação com as seguintes conclusões:
“(…)
1. Veio a Recorrente interpor recurso do, aliás douto, acórdão proferido que julgou procedente a apelação e, em consequência, revogou a sentença proferida, julgando os embargos improcedentes.
Acontece que,
2. No nosso modesto entendimento, tal acórdão não merece qualquer censura, tendo apreciado convenientemente e de forma correta a prova produzida e realizado correto enquadramento jurídico da situação em causa.
3. Nos presentes embargos a única questão que estava em causa era a de saber se o pagamento efetuado pela Executada diretamente ao Insolvente tinha ou não efeito liberatório.
4. Nos termos do n.º 7 do art. 81.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, os pagamentos de dívidas à massa efetuados ao insolvente após a declaração de insolvência só serão liberatórios se forem efetuados de boa fé em data anterior à do registo da sentença, ou se se demonstrar que o respetivo montante deu efetiva entrada na massa insolvente.
5. Daqui resulta, por via indireta, que o pagamento de dívidas à massa, para ter o seu efeito liberatório típico, não deve ser feito ao devedor.
6. Temos, pois, duas alternativas para que se possa considerar que o pagamento efetuado ao insolvente tem efeito liberatório, sendo que, em ambas, há pressupostos a preencher.
7. A primeira alternativa fica, desde logo, afastada, porquanto o pagamento não foi, conforme resulta à saciedade dos autos, dos factos provados e até da versão da Executada efetuado antes do registo da sentença de insolvência,
8. Pelo contrário, foi efetuado dois anos (!) após tal registo, pelo que a questão da boa fé ou não da Executada deixa de ser relevante para esta alternativa, já que um dos pressupostos já não se mostra preenchido.
9. Na segunda alternativa, terá de ser demonstrado que o montante pago deu efetiva entrada na massa insolvente. Ora,
10. Conforme resulta dos factos dados como provados e a própria Executada afirma nos embargos apresentados, o pagamento que a mesma terá efetuado foi efetuado diretamente ao Insolvente e não à Massa Insolvente, isto, não obstante, a insolvência já ter sido declarada há dois anos.
11. Cabia à Executada/Embargante a prova de que o valor deu efetiva entrada na massa insolvente, prova que não logrou efetuar.
12. Aliás, tal requisito apenas é dado como preenchido por uma questão de fé do julgador que refere que: “não se compreende que o insolvente não tenha dado conhecimento daquele pagamento ao processo de insolvência ou ao administrador de insolvência.”
13. Em nenhum momento foi junto pela Embargante qualquer auto de apreensão, no qual constasse o valor por si liquidado diretamente ao Insolvente, nem sequer tal foi alegado.
14. O que foi alegado pela Embargante foi que efetuou o pagamento ao Insolvente e desconhecendo a existência da insolvência (que não podia ou devia desconhecer, dado o carácter público da mesma), tal pagamento tem efeito liberatório, ou seja, a Embargante, ao contrário da sentença proferida, nem sequer foi pela segunda alternativa supra transcrita, mas parece agarrar-se à primeira dessas alternativas, sendo que, conforme supra se demonstrou, nunca se aplicaria por força do pagamento não ter ocorrido antes do registo da sentença.
15. Não se mostram, pois, preenchidos os pressupostos de que depende o efeito liberatório de pagamentos efetuados ao insolvente na pendência do processo de insolvência,
16. Pelo que bem andou o acórdão proferido, não merecendo o mesmo qualquer reparo, devendo, por força desse facto, ser julgado improcedente o recurso apresentado, mantendo-se o acórdão proferido nos seus exatos termos.
(…)”
Obtidos os vistos, mantendo-se a instância regular, cumpre, agora, apreciar e decidir.
*
II – Fundamentação de Facto
As Instâncias deram como provados os seguintes factos
1 AA intentou uma ação declarativa de condenação contra a Executada em 01.02.2012, a qual correu os seus termos no J... do Juízo Central Cível de ... sob o n.º 243/12.4....., tendo a Executada sido condenada por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, do qual foram arguidas nulidades, indeferidas por acórdão da Conferência, datado de 05.05.2016, já transitado em julgado.
2 Tal acórdão do Supremo Tribunal de Justiça confirmou, na íntegra, a decisão anteriormente proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, na qual foi a Executada condenada: «(...) a pagar ao A. a quantia de 9.975,96 (capital) e a renda mensal no valor de 6.234,97 durante cinco anos, quantias essas, acrescidas dos respetivos juros, devidos desde a citação da R. nesta ação, a taxa legal.»
3. AA (e a mulher BB) foi declarado insolvente em 17.06.2014.
4. A embargante, ou o Tribunal competente, não tiveram conhecimento da declaração de insolvência, na pendência da ação que veio a condenar a embargante.
5- Em 1.09.2016, a Embargante pagou a AA a indemnização que lhe era devida, a sua solicitação, através de cheque remetido para a morada do seu Mandatário.
6. A Embargante liquidou a AA, nessa mesma data, o montante de 6.662,80€, que lhe era devido a título de Custas de Parte, através de transferência bancária para a conta indicada pelo seu Mandatário.
7. Em 07.11.2012, BB, esposa de AA, intentou uma outra ação contra a Embargante e que correu os seus termos no J... do Juízo Central Cível de ... sob o n.º 2140/12.4......
8. Neste caso, a Embargante acabou por obter vencimento, através de acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 07.11.2017, transitado em julgado.
9. Neste seguimento, interpelou o Mandatário da autora, que era igualmente o Dr. CC, para pagamento das Custas de Parte que lhe são devidas nesse âmbito, num total de 5.355,00€.
10. Só em 28.12.2017, face à resposta a essa interpelação, a embargante contactou o Administrador de Insolvência [para pagamento das custas de parte] e tomou conhecimento de que tanto AA como a sua esposa se encontravam insolventes.
11. De imediato, informou o Administrador de Insolvência de todo o reiteradamente exposto, enviando-lhe posteriormente os comprovativos dos pagamentos realizados.
12. Após intentar Ação de Verificação de Créditos para reconhecimento do seu crédito relativo às Custas de Parte devidas no âmbito do Processo n.º 2140/12.4....., a Embargante viu a sua pretensão indeferida, por se tratar de um crédito sobre a Massa Insolvente, a ser pago na data do respetivo vencimento, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 172.° do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
13. Acontece que, apesar de interpelada para tanto, a Massa Insolvente ainda não liquidou à Embargante o montante que lhe é devido, a esse título, no valor de 5.355,00€, acrescido dos juros vencidos e vincendos, os quais perfazem 484,15€.
14. O Administrador de Insolvência tomou conhecimento do pagamento realizado pela Embargante, mediante comunicação que esta lhe enviou conjuntamente com os correspondentes comprovativos do pagamento.
15. Tanto assim que o comunicou prontamente nos Autos da Insolvência, aí admitindo que a Embargante pagou 461.111,97€ a AA.
*
III – Fundamentação de Direito
A declaração de insolvência tem como efeito patrimonial para o insolvente a privação dos poderes de administração e disposição dos bens integrantes da massa insolvente (nos quais se incluem, quer os existentes no património do insolvente à data da declaração de insolvência, quer os adquiridos na pendência do processo – cfr. art. 46.º/1 do CIRE), poderes que passam a competir ao administrador de insolvência (cfr. art 81.º/1 e 2 do CIRE).
O que – tal privação de poderes do insolvente – encontra a sua justificação na necessidade de proteger os credores concursais de atuações prejudiciais do insolvente sobre os bens que integram a massa insolvente, ou seja, tem em vista conservar os bens que existam no momento da declaração de insolvência e os que venham a ingressar no património do insolvente até ao encerramento do processo de insolvência.
Em consequência, o administrador de insolvência assume a representação da insolvência para todos os efeitos de caráter patrimonial que interessem à insolvência (art. 81.º/4 do CIRE); e os atos que o insolvente venha a praticar sobre os bens da massa insolvente, ou seja, em violação do referido no art. 81.º/1 e 2 do CIRE, são em princípio, cfr. art. 81.º/6 do CIRE, ineficazes em relação à massa insolvente (respondendo a massa por tudo quanto lhe tenha sido prestado apenas segundo as regras do enriquecimento sem causa).
Sendo a ineficácia relativa o princípio geral na matéria, consagra a lei, a propósito do pagamento de dívidas em que o insolvente seja o credor, dois desvios ao referido princípio de que os pagamentos de dívidas à massa insolvente têm de ser feitos ao administrador de insolvência (ou dito de outro modo, ao princípio de que, depois de declarada a insolvência e independentemente do registo da sentença, a prestação feita ao insolvente não exonera o devedor da massa falida).
Efetivamente, dispõe-se no art. 81.º/7 do CIRE que “os pagamentos de dívidas à massa efetuados ao insolvente após a declaração de insolvência só serão liberatórios se forem efetuados de boa fé em data anterior à do registo da sentença, ou se se demonstrar que o respetivo montante deu efetiva entrada na massa insolvente.”
Assim, “(…) numa primeira hipótese/desvio, o cumprimento da prestação feito ao insolvente antes do registo da sentença exonera o devedor de boa fé – vigora, pois, a tutela dos terceiros de boa fé, quando a sentença ainda não se encontra registada na data da realização da prestação. A segunda hipótese/desvio consiste na prova pelo devedor da entrada efetiva da prestação na massa insolvente – uma vez que, feita pelo devedor a prova da ausência de prejuízo para a massa insolvente, desaparece da razão de ser da proibição legal, por um lado, impondo-se, por outro, a tutela do princípio do não locupletamento à custa alheia (cfr. art. 770.º do C. Civil)”1.
E é justamente neste art. 81.º/7 do CIRE que reside a discussão jurídica havia nos autos e a divergência recursiva da embargante/recorrente.
Efetivamente, resulta dos factos que:
AA (e a sua mulher, BB) foi declarado insolvente em 17/06/2014;
Anteriormente, em 01/02/2012, o AA havia intentado uma ação contra a aqui seguradora/embargante (mais exatamente, contra a sua “antecessora”), ação em que esta ficou condenada, após o acórdão da Conferência deste STJ, datado de 05/05/2016, transitado em julgado, “a pagar-lhe a quantia de 9.975,96 (capital) e a renda mensal no valor de 6.234,97 durante cinco anos, quantias essas, acrescidas dos respetivos juros, devidos desde a citação da R., a taxa legal”;
A seguradora/embargante, ignorando que o AA estava declarado insolvente, pagou-lhe, em 1/09/2016, a indemnização em que havia sido condenada em tal ação, através de cheque (no montante de 461.111,97 €) remetido para a morada do mandatário; e pagou-lhe ainda, nessa mesma data, o montante de 6.662,80 €, devido a título de custas de parte, através de transferência bancária para a conta indicada pelo mandatário.
É pois evidente, em face do princípio geral que se começou por enunciar, que a aqui recorrente/embargante devia ter pago a indemnização em que foi condenada ao AI da insolvência do AA e não ao próprio AA, seu credor, uma vez que este, na data em que lhe efetuou o pagamento, estava há mais de 2 anos declarado insolvente (e o respetivo processo não estava encerrado), o que significa que a recorrente/embargante pagou/cumpriu mal e dizer que um devedor pagou/cumpriu mal é o mesmo que dizer que tem de pagar/cumprir duas vezes.
E é isto que está na origem dos embargos, ou seja, a recorrente/embargante, embora haja pago, indevidamente, a indemnização ao insolvente (embora haja pago mal), sustenta que não tem de pagar a indemnização uma 2.ª vez (agora ao credor “certo”, a Massa Insolvente, aqui exequente).
E nesta fase do processo (nesta instância recursiva) não o sustenta por entender que está verificado algum dos dois “desvios” constantes do citado art. 81.º/7 do CIRE e supra referidos.
A sentença da 1.º instância havia considerado que, tendo o pagamento sido “efetuado diretamente ao insolvente, já após a declaração de insolvência do mesmo, [tal] permite concluir que tal quantia monetária deu entrada na massa insolvente, atento o disposto no art. 46.º, n.º 1 do CIRE” e, nesta linha de raciocínio, considerou liberatório o pagamento efetuado pela executada/embargante diretamente ao insolvente; entendimento este que o acórdão recorrido considerou errado, uma vez que “o pagamento só seria liberatório se se demonstrasse que o respetivo montante deu efetiva entrada na massa insolvente” e “a embargante nem sequer alegou que o montante pago tenha dado efetiva entrada na massa insolvent. (o que alegou, insistentemente, foi que pagou a AA, em 1.9.2016, realidade bem diversa).
A evidência da bondade de tal entendimento do acórdão recorrido afastou qualquer pretensão repristinatória (do decidido pela 1.ª instância) por parte da ora recorrente (que, aliás, na PI de embargos, não havia desenvolvido um qualquer raciocínio próximo do produzido pela sentença da 1.ª instância).
Ademais, quanto ao outro “desvio” constante do art. 81.º/7 do CIRE – segundo o qual, em síntese, se estabelece que apenas os pagamentos efetuados até ao registo da sentença, estando quem efetua o pagamento de boa fé, se consideram liberatórios (ou seja, dito de outro modo, os pagamentos efetuados em data posterior à do registo da sentença, ainda que quem efetua o pagamento esteja de boa fé, não são considerados liberatórios) – também o acórdão recorrido afastou a sua verificação, para o que ponderou que “a sentença de insolvência foi publicitada no Citius em 18.6.2014, sendo acessível mediante pesquisa. Acresce que a declaração de insolvência e a nomeação de um administrador de insolvência constam do registo informático de execuções (Artigo 717.º/2/c), do Código de Processo Civil), sendo esse registo acessível a qualquer pessoa capaz de exercer o mandato judicial (Artigo 718.º/4/b) do CPC), [pelo que] o invocado desconhecimento pela embargante da declaração de insolvência, se o mesmo ocorreu, é culposo.”
E a ora recorrente, sem concordar com a ideia do seu desconhecimento ser “culposo”, também não vem sustentar que ocorre tal “desvio” constante do art. 81.º/7 do CIRE (e que por isso o pagamento efetuado deve ser considerado liberatório).
Como se acaba de referir, os pagamentos efetuados em data posterior à do registo da sentença, ainda que de boa fé, não são considerados liberatórios, pelo que, sendo a sentença de declaração de insolvência de 17/06/2014 (e devendo as diligências destinadas à publicidade e registo da sentença de declaração de insolvência ser realizadas no prazo de 5 dias – cfr. art. 38.º/7 do CIRE) e o pagamento efetuado ao insolvente de 01/09/2016 (mais de dois anos depois), foi este efetuado em data posterior ao registo da sentença2, o que é suficiente – esteja a embargante de boa fé ou de má fé – para afastar a verificação de tal “desvio” constante do art. 81.º/7 do CIRE.
Pelo que, nesta instância recursiva, para não ter de pagar a indemnização duas vezes, vem a recorrente/embargante sustentar/invocar (como sintetiza na sua conclusão x) a “inconstitucionalidade do artigo 81.º, n.º 7, do CIRE, por violação do princípio de certeza e segurança jurídica, consagrado no artigo 2.º, da CRP”; a “inconstitucionalidade do artigo 81.º, n.º 7, do CIRE, por violação do princípio da proporcionalidade, previsto no artigo 18.º, da CRP”; e o “abuso de direito”.
São pois estas as questões – exposto o contexto em que as mesmas se colocam – que preenchem o objeto da presente revista.
Questões em que, antecipando desde já a solução, não assiste razão à recorrente: a propósito de cada uma delas faz a recorrente inúmeras citações e transcrições jurisprudenciais e doutrinárias, mas o que nas mesmas se diz, e que se acompanha, não é aplicável ao caso sub-judice.
Quanto à “inconstitucionalidade do artigo 81.º, n.º 7, do CIRE, por violação do princípio de certeza e segurança jurídica, consagrado no artigo 2.º, da CRP”:
Tal princípio (normalmente designado por princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança) é um princípio essencial na Constituição, imprescindível para a necessária estabilidade, autonomia e segurança na organização dos planos de vida dos particulares; e, enquanto elemento essencial a um Estado de Direito, embora a Constituição não o institua expressamente, é tal princípio dedutível do art 2.º da CRP.
Compreende tal princípio um lado objetivo, sobretudo relativamente ao legislador, exigindo transparência e publicidade do processo de elaboração das leis, clareza das normas e a sua suficiente determinabilidade e autolimitação e autovinculação do Estado relativamente às normas vigentes; e compreende um lado subjetivo, da proteção da confiança dos particulares na continuidade do quadro legislativo vigente, ou seja, os particulares têm o direito a não ver frustradas as expetativas que legitimamente formaram quanto à permanência de uma dado quadro legislativo, sem prejuízo do legislador dispor de uma ampla margem de conformação da ordem jurídica ordinária, aqui se incluindo a possibilidade de alteração das leis em vigor.
Enfim, o princípio da proteção da confiança está ligado à existência de expetativas dos particulares dignas de proteção, sendo que, segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional (Ac. n.º 287/90), há dois critérios, que se completam, para determinar se ocorre uma afetação inadmissível, arbitrária ou demasiado onerosa de expetativas jurídicas: “a) afetação de expetativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dele constantes não possam contar, e ainda; b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devem considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos liberdades e garantias, no art. 18.º/2 da CRP)”.
É que, como tem sido acentuado pelo Tribunal Constitucional (Ac. 24/98 e Ac. 410/95), “(…) não basta a frustração de expetativas jurídicas para que, automaticamente, se considere violado o referido princípio da confiança jurídica. É necessário, por um lado, que essa expetativas sejam consistentes de modo a justificar a proteção da confiança e, por outro, que na ponderação dos interesses público e particular em confronto, aquele tenha de ceder perante o interesse individual sacrificado, o que acontecerá sempre que as alterações não forem motivadas por interesse público suficientemente relevante face à constituição (cfr. art. 18.º/2 e 3), caso em que deve considerar-se arbitrário o sacrifício excessivo da frustração de expetativas”.
Sendo este o sentido de tal princípio constitucional, há que dizer que o referido nas conclusões xvi a lviii em nada contende com o mesmo; que o Ac. do STJ a seguir (na conclusão lix) referido/transcrito foi tirado na seção criminal, debruça-se sobre a determinação da pena em sede de cúmulo jurídico e as considerações que tece – sobre “a vida num Estado de Direito Democrático ter de estar ancorada, necessariamente, nos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança” – não aportam nada que possa ser aplicável ao caso sub judice3; e que o Ac. do TC a seguir (na conclusão lxi e ss.) referido/transcrito diz exatamente o que acabámos de referir, precisando até que “para que haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa”.
Pelo que, em face do teor deste Ac. do TC, que a recorrente invoca, nem sequer se alcançam os raciocínios da recorrente constante das conclusões lxiii a lxx para sustentar que pelo acórdão recorrido foi feita uma interpretação em violação do princípio da segurança e da proteção da confiança.
Diz a recorrente que “o legislador criou uma expetativa legítima na esfera jurídica da recorrente, porquanto consagrou, no artigo 81.º/7 do CIRE, duas situações excecionais que liberam a devedora que efetua o pagamento da dívida diretamente ao insolvente”, mas, como acima se referiu, o artigo 81.º/7 do CIRE não diz, ao contrário do que a recorrente parece raciocinar, que qualquer pagamento de boa fé é liberatório, diz, isso sim, diferentemente, que tal pagamento de boa fé será liberatório se for efetuado até ao registo da sentença de declaração de insolvência.
Sendo assim, se a recorrente faz um pagamento que, segundo o art. 81.º/7 do CIRE, não é liberatório, como é que a recorrente pode invocar que criou a expetativa legítima, a partir de tal art. 81.º/7 do CIRE, que tal pagamento é liberatório (foge à compreensão um tal raciocínio).
Diz a recorrente que “assim que tomou conhecimento da declaração de insolvência do insolvente prontamente avisou o AI, de modo que este pudesse agir em conformidade, contra o próprio insolvente, e não contra a Recorrente”, pelo que ficou com a convicção, “criada e estimulada pelo comportamento do AI, que durante 2 (dois) anos se remeteu ao silêncio”, de que o pagamento foi liberatório.
Ora, como é evidente, nada disto – nada do referido das conclusões lxiii a lxx – tem a ver com uma pretensa interpretação inconstitucional do art. 81.º/7 do CIRE, por violação do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança, mas sim porventura com a questão do abuso de direito também suscitada.
Concluindo pois sobre esta primeira questão, o art. 81.º/7 do CIRE é claro e não sofreu sequer qualquer alteração legislativa desde a sua redação inicial, em 2004, pelo que a interpretação que o acórdão recorrido fez do mesmo não viola o princípio da segurança e da proteção da confiança.
Quanto à “inconstitucionalidade do artigo 81.º, n.º 7, do CIRE, por violação do princípio da proporcionalidade, previsto no artigo 18.º, da CRP”:
O princípio da proporcionalidade em sentido lato – ou da proibição do excesso, como alguns preferem designá-lo – encontra uma aceitação generalizada enquanto princípio constitucional do Estado de Direito democrático e social; assumindo, particularmente no âmbito dos limites aos direitos fundamentais, o papel de principal instrumento de controlo da atuação restritiva da liberdade individual, decorrendo a sua consagração constitucional desde logo da ideia de Estado de Direito do art. 2.º da CRP (e tendo acolhimento nos arts. 18.º/2, 19.º e 266.º do CRP).
Segundo tal princípio, é constitucionalmente ilegítima, em Estado de Direito, qualquer ingerência estatal na esfera de autonomia dos particulares ou qualquer restrição da sua liberdade que se afigure excessiva, ou seja, que vá para além do estritamente necessário ou adequado; sendo a ideia de relação proporcional, de justa medida, de equilíbrio – seja entre bens, seja entre meios e fins – um de vários elementos em que se desdobra a proibição do excesso, que pode ser consequência da restrição ser inapta, inútil, desnecessária, gratuita, arbitrária, desproporcionada, desrazoável, vaga ou indeterminada.
No controlo da proporcionalidade (em sentido próprio ou estrito), trata-se essencialmente de valorar, sopesar, comparar sacrifícios (da liberdade individual) e benefícios obtidos ou visados, vantagens ou desvantagens da restrição objeto do controlo, pelo que, no domínio das restrições aos direitos fundamentais, a proporcionalidade é apresentada como uma ponderação de bens.
Na proporcionalidade, faz-se necessariamente uma valoração das duas grandezas ou termos da relação em causa, apreciando-se a gravidade da restrição em associação à importância e imperatividade das razões que a justificam: trata-se de apreciar o desvalor do sacrifício imposto à liberdade quando comparado com o valor do bem que se pretende atingir.
Temos pois que o princípio da proporcionalidade atua como controlo das restrições à liberdade e autonomia individuais, o mesmo é dizer como controlo das restrições aos direitos fundamentais, sucedendo que, no caso sub-judice, não vislumbramos qual seja o direito fundamental da recorrente (o direito fundamental de um devedor dum insolvente) que possa estar a ser sacrificado pelo art. 81.º/7 do CIRE.
O art. 16.º/1 da CRP afirma que “os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de Direito Internacional”, o que significa que a CRP condicionou o acolhimento dos direitos fundamentais atípicos ao facto de os mesmos serem previamente positivados nalgumas fontes normativas que mencionou e que são as fontes normativas externas (“as regras aplicáveis de Direito Internacional”) e as fontes normativas internas legais (as “leis”).
É certo que, para além dos direitos fundamentais que constam do título II da Parte I da CRP, podem ser localizados, noutros lugares do texto constitucional, direitos, liberdades e garantias típicos não enumerados ou, noutra terminologia, direitos fundamentais análogos. (a CRP estabelece a orientação geral de não serem só os direitos, liberdades e garantias, assim considerados no título II da Parte I da CRP, que beneficiam do respetivo regime específico: o mesmo também se aplica “...aos direitos fundamentais de natureza análoga”), porém, sejam uns ou outros – localizados no título II da parte Ida CRP ou de “natureza análoga” – não vislumbramos que, no caso sub-judide, esteja em causa um qualquer direito fundamental da recorrente e que o mesmo esteja a ser desproporcionalmente restringido.
Ao contrário do que a recorrente invoca na conclusão lxxi, não existe um direito fundamental (porventura extraível das “fontes normativas internas legais”) “à liberação da quantia paga”.
Aliás, o nosso sistema legal não coloca a aparência como fundamento protetor da confiança do devedor iludido, solucionando com a repetição do indevido (art. 476.º/2 do CC) a sua conduta não liberatória, ou seja, numa ponderação entre os interesses do credor real e do devedor, o legislador entendeu “favorecer” o credor real, em detrimento do tráfico jurídico-económico e da boa-fé do devedor, com a “ajuda” do enriquecimento sem causa (e só tutelar a boa-fé do devedor em certos casos excecionais), o que significa que não pode o devedor considerar-se desobrigado e pretender que o credor demande, ele próprio, o accipiens.
Em todo o caso, a supra referida ideia de justiça – de relação proporcional, de justa medida, de equilíbrio – justifica que não se confine o âmbito de aplicação da proibição do excesso às relações jusfundamentais, alargando-o a toda e qualquer atuação dos poderes públicos.
Como refere Lúcia Amaral4:
« Quando falamos em proibição do excesso, ou em princípio da proporcionalidade em sentido lato, queremos significar essencialmente o seguinte. As decisões que o Estado toma, justamente pelo facto de não poderem ser nem ilimitadas nem arbitrárias, têm que ter, todas e cada uma delas, uma certa finalidade ou uma certa razão de ser. Esta finalidade, prosseguida por cada decisão estadual, deve ser para os seus destinatários – como para qualquer membro da comunidade jurídica – algo de detetável, denominável e compreensível. É evidente que o Estado, sempre que age, busca a melhor realização do interesse público. Mas tal não basta: o que é necessário é que, perante cada decisão, se possa compreender o modo específico pelo qual, naquele caso, se quis prosseguir o interesse de todos. É a isso mesmo que nos referimos, quando aludimos à “finalidade” ou “razão de ser” de cada decisão estadual é à necessidade da sua inteligibilidade.
Ora, o que o princípio da proibição do excesso postula é que entre o conteúdo da decisão estadual e o fim que ela prossegue haja sempre um equilíbrio, uma ponderação e uma “justa medida”. Não se utilizam canhões para atirar a pardais: as vantagens (obtidas por todos) através da medida estadual devem ser proporcionais às desvantagens que tal medida tenha eventualmente causado a alguns membros da comunidade jurídica, de tal modo que o peso da decisão pública nunca venha a exceder o quantum requerido pela prossecução do seu fim.»
Como se afirma no Ac. TC n.º 73/2009, “o princípio da proporcionalidade [como um] princípio geral de limitação do poder público pode ancorar-se no princípio geral do Estado de Direito, impondo limites resultantes da avaliação da relação entre os fins e as medidas públicas, devendo o Estado (também o Estado-legislador) adequar a sua ação aos fins pretendidos, e não estatuir soluções desnecessárias ou excessivamente onerosas ou restritivas”.
Em resumo, o princípio da proibição do excesso (ou da proporcionalidade em sentido amplo) cobra a sua maior relevância e é mais frequentemente mobilizado enquanto instrumento de controlo de medidas restritivas de direitos fundamentais, porém, não deixa de funcionar como um princípio geral de limitação do poder público, ou seja, o princípio da proibição de excesso postula que entre o conteúdo da decisão do poder público e o fim por ela prosseguido haja sempre um equilíbrio, uma ponderação e uma “justa medida” e encontra a sua sede no artigo 2.º da CRP: o Estado de direito não pode deixar de ser um «Estado proporcional»” (os atos estaduais devem ser sempre atos equilibrados, medidos e ponderados).
Sucede, como se observou designadamente no Ac. TC n.º 484/2000, “que o controlo judicial baseado no princípio da proporcionalidade não tem extensão e intensidade semelhantes consoante se trate de atos legislativos, de atos da administração ou de atos de jurisdição. Ao legislador (e, eventualmente, a certas entidades com competência regulamentar) é reconhecido um considerável espaço de conformação (liberdade de conformação) na ponderação dos bens quando edita uma nova regulação. Esta liberdade de conformação tem especial relevância ao discutir-se os requisitos da adequação dos meios e da proporcionalidade em sentido restrito. Isto justifica que perante o espaço de conformação do legislador, os tribunais se limitem a examinar se a regulação legislativa é manifestamente inadequada."
E do mesmo modo, como se afirma no Ac. TC de 187/2001: “(…) o princípio da proporcionalidade cobra no controlo da atividade do legislador um dos seus significados mais importantes. Isto não tolhe, porém, que as exigências decorrentes do princípio se configurem de forma diversa para a atividade administrativa e legislativa – que, portanto, o princípio, e a sua prática aplicação jurisdicional, tenham um alcance diverso para o Estado-Administrador e para o Estado-Legislador. (…) Significa isto, pois, que, em casos destes, em princípio o Tribunal não deve substituir uma sua avaliação da relação, social e economicamente complexa, entre o teor e os efeitos das medidas, à que é efetuada pelo legislador, e que as controvérsias geradoras de dúvida sobre tal relação não devem, salvo erro manifesto de apreciação – como é, designadamente (mas não só), o caso de as medidas não serem sequer compatíveis com a finalidade prosseguida –, ser resolvidas contra a posição do legislador.
Ou seja, ao julgar a conformidade com o princípio da proporcionalidade, o tribunal não pode substituir a apreciação do legislador pela sua própria apreciação, só podendo censurar a opção normativa se esta for manifestamente errada ou se os inconvenientes daí resultantes para certos sujeitos forem desproporcionados em relação às vantagens que apresenta.
Dito de outro modo, no controlo da proporcionalidade da atividade do legislador por parte do tribunal, não se exige que a opção normativa corresponda à solução mais proporcional, apenas se exigindo que não seja desproporcionada.
Ora, é esta “desproporção” que, salvo o devido respeito, não se observa na prescrição do art. 81.º/7 do CIRE e na interpretação que dele foi feita pelo acórdão recorrido.
Como já se referiu, o art. 81.º/7 do CIRE é até uma exceção/desvio à regra da ineficácia relativa dos atos realizados pelo insolvente, constante do anterior n.º 6 do mesmo art. 81.º do CIRE, pelo que, em função disto, a possível desproporção nem estaria na exceção/desvio prevista, mas sim em a exceção/desvio não ser mais ampla.
Poder-se-á ser tentado a considerar que a opção normativa constante do art. 81.º/7 do CIRE não corresponde à mais justa e equilibrada ponderação dos interesses contrapostos dos credores do insolvente e do devedor do insolvente, principalmente quando, como é o caso, o devedor do insolvente ignore o estado de insolvência do seu credor/insolvente e faça o pagamento de boa fé.
Porém, estando os credores concursais também de boa fé – ignorando o AI a existência de tal crédito a favor do insolvente – não se pode dizer que seja desproporcionado e desrazoável não considerar liberatório o pagamento que não tenha dado, como devia, efetiva entrada na massa insolvente5.
É certo que o legislador acaba por impor, indiretamente, a obrigação de todos os devedores obterem prévia informação sobre a situação de insolvência ou não do seu credor, o que pode parecer excessivo, porém, importa não esquecer, tal informação está acessível: a declaração de insolvência e a nomeação de um administrador de insolvência constam do registo informático de execuções (artigos 38.º/5/a) do CIRE e 717º/2/c) do CPC), sendo esse registo acessível a qualquer pessoa capaz de exercer o mandato judicial (artigo 718º/4/b) do CPC).
A opção normativa podia ter sido outra e, por exemplo, podia ter sido a de considerar liberatório todo o pagamento efetuado de boa fé, ainda que efetuado após o registo da sentença de declaração de insolvência, sem prejuízo de, após tal registo, ser de presumir que a declaração de insolvência é do conhecimento do devedor do insolvente6.
Mas, insiste-se, do que aqui se trata – no juízo de inconstitucionalidade de uma opção legislativa, por violação do princípio da proporcionalidade – não é de substituir a ponderação do legislador por aquela que reputamos como a mais justa ponderação, mas apenas de censurar a opção normativa que for desproporcionada (a opção normativa pode não ser a mais proporcional e ainda assim não ser desproporcionada).
Seja qual for a opção normativa – a do art. 81.º/7 do CIRE ou a da hipótese colocada – o devedor/insolvente não poderá fazer sua a prestação recebida, tendo que a devolver ao seu devedor (que entretanto haja cumprido uma segunda vez) ou que a entregar à massa insolvente, o que significa que não conduzem as duas opções a soluções diferentes no plano dos saldos patrimoniais, embora, em termos práticos, não seja a mesma coisa um património registar, como ativo, um saldo bancário ou um crédito sobre um insolvente.
Mas é esta diferença – no fundo, saber quem é que tem de ir sobre o insolvente, caso este não devolva ou entregue voluntariamente a prestação recebida – que é insuficiente para considerar desproporcionada e desrazoável a opção normativa; aliás, caso uma tal diferença se considerasse suficiente, não se vislumbra uma opção normativa que não fosse desproporcionada e desrazoável.
Pelo que a conclusão, neste ponto, é a de que se impõe respeitar a liberdade de conformação do legislador, dentro da ideia de que o critério da inconstitucionalidade de uma medida legislativa, com fundamento em desrespeito pelo princípio da proporcionalidade, se circunscreve a “cassar” apenas as normas desrazoáveis, que constituam uma clara violação de tal princípio, o que não é o caso do art. 81.º/7 do CIRE e da interpretação que do mesmo é feita no acórdão recorrido.
Quanto ao “abuso de direito”:
De acordo com o art. 334.º do CC “(é) ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
Entre os exercícios inadmissíveis de um direito, com base em tal art. 334.º do C. Civil, são normalmente destacados, na doutrina e na jurisprudência, o “venire contra factum proprium” (que se traduz no exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente) a “supressio” (que exprime a situação do direito que, não tendo sido, em certas circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não pode mais sê-lo por, de outra forma, contrariar a boa fé) e o “tu quoque” (que exprime a regra pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não poderá, sem abuso, exercer a situação jurídica que tal norma lhe atribuía).
E a partir daqui a recorrente sustenta que:
“Primeiramente, houve um comportamento anterior, promovido pelo AI, que criou, em termos objetivos, uma situação de confiança na esfera jurídica da Executada, aqui Recorrente, na medida em que, como consta das comunicações eletrónicas já juntas ao autos, o AI criou a expetativa, na Recorrente, de que o pagamento efetuado, mesmo que diretamente ao insolvente, teria efeito liberatório, assim como, após a Recorrente ter informado o AI do sucedido, o mesmo afiançou que iria procurar dar resposta à mesma, dando a entender que iria agir contra o insolvente, e não contra a Recorrida.
Depois, há um comportamento posterior, por parte do titular do direito, que é contraditório ao anteriormente adotado, porquanto instaura uma ação executiva contra a Recorrente, peticionando a repetição do pagamento de um montante, tendo a perfeita noção de que o mesmo já foi realizado no passado, indo contra com aquele que foi o seu primeiro comportamento. (…)
Ainda, a Recorrente, de boa-fé e confiando na declaração proferida, atuou de acordo com a confiança gerada pelo AI, não tendo, a título de exemplo, apresentado uma queixa-crime ou instaurando uma ação de enriquecimento sem causa contra o insolvente, quando esse mecanismo ainda poderia ter algum efeito útil.”
Ora, como é muito evidente, nada disto, que se invoca, se verifica no caso sub judice.
Os factos dados como provados não exprimem a criação da expetativa do pagamento efetuado ser liberatório e/ou contêm um qualquer comportamento do AI contraditório com a instauração da ação executiva contra a aqui recorrente.
E o mesmo resulta das comunicações eletrónicas (entre advogados) juntas aos autos: em que a ora recorrente diz ser do conhecimento do AI, “pelo menos desde 03/01/2018, que a seguradora nada deve à Massa Insolvente, por ter cumprido integralmente e de boa fé aquilo a que foi condenada pelo tribunal competente, não podendo agora ser prejudicada com os atos ilícitos dos insolventes e com a menor diligência do AI”, e diz ainda que “novamente requer ao AI que proceda ao pagamento dos € 5.355,00 devidos à seguradora” (respeitantes às custas de parte referidas nos pontos 9, 12 e 13 dos factos provados); e em que o AI, em resposta, diz que “irei analisar a situação que expõe e ainda esta semana procurarei dar resposta à mesma”.
Efetivamente, perante um preceito com o conteúdo do art. 81.º/7 do CIRE e estando o AI vinculado ao cumprimento de deveres no exercício das suas funções e sendo, por isso, responsável, designadamente, “pelos danos causados aos credores da massa insolvente se esta for insuficiente para satisfazer integralmente os respetivos direitos e estes resultarem de ato do administrador” (cfr. art. 59.º/2 do CIRE), não se compreende como é que a ora recorrente, perante a resposta do AI (em que apenas diz, repete-se, que vai “analisar a situação”), pode ter entendido que o “assunto estava resolvido” e que o AI, violando grosseiramente os seus deveres, aceitava o pagamento da seguradora ao insolvente (e não a ele, AI) como liberatório.
E o que se invoca sobre “a confiança gerada pelo AI” ter levado a ora recorrente a “não apresentar queixa-crime ou a instaurar ação de enriquecimento sem causa contra o insolvente” é completamente infundado, quer por não se verificar uma situação objetiva de confiança legitimadora de tais omissões por parte da ora recorrente, quer por, no momento da instauração da execução (a que os presentes embargos correm por apenso), estar a recorrente perfeitamente a tempo de instaurar tais procedimentos contra o insolvente7 (aliás, o real e efetivo “empobrecimento” da ora recorrente só ocorrerá quando esta pagar pela segunda vez e, acima de tudo, só em 28/12/2017 teve conhecimento que o pagamento efetuado ao insolvente não era liberatório).
E sustenta ainda recorrente (a propósito da supressio):
“Relativamente ao insolvente, incumpriu com o dever de informação e colaboração (…) ao não ter dado a conhecer, quando o deveria ter feito, em sede do processo de insolvência e na ação declarativa, de que tinha sido declarado insolvente, bem como, por outro lado, infringiu a proibição de disposição e administração de bens, mesmo que os tenha adquirido em momento posterior à declaração de insolvência, pertencem à massa, com o intento de os sonegar à massa, para proveito próprio, em claro prejuízo dos credores e, possivelmente, da Recorrente.
No que diz respeito do AI, o mesmo não pautou a sua atuação de acordo com o grau de diligência que o CIRE comanda, nos termos do disposto no artigo 59.º, n.º 1, do CIRE, considerando que, de uma parte, não adquiriu, por culpa própria, conhecimento da existência de uma ação, mesmo que declarativa, que se encontrava pendente, que podia influenciar, como veio a suceder, a massa insolvente, não informando, em consequência, a Recorrente de que o particular se encontrava insolvente, assim como permitiu que o insolvente, quando não tinha legitimidade para isso, movimentasse bens que deveriam ter ingressado, de imediato, na massa de insolvente, resultando daí avultados prejuízos para os credores e, potencialmente, a Recorrida.
Importa ainda salientar, de novo, que a Recorrente, mesmo quando a isso não estava obrigada, assim que tomou conhecimento que o insolvente tinha sido declarado insolvente, tratou prontamente de informar o AI de que o pagamento, da quantia a que tinha sido condenada, já tinha sido realizado.
Perante esta comunicação, o AI agradeceu a gentileza, informando, de seguida, que iria envidar os seus melhores esforços para analisar a situação e delinear a melhor estratégia para recuperar o montante em causa, dando a entender que iria agir contra o insolvente.
Todavia, a partir da comunicação aludida, e por um período de sensivelmente 2 (dois) anos, o AI não mais comunicou com a Recorrente, criando nesta a legítima expetativa que o pagamento realizado tinha efetivamente efeito liberatório, desonerando-a da prestação devida, e que, em consequência, não lhe seria imputada qualquer outra responsabilidade, até porque já haviam decorridos 4 anos após a realização do pagamento (…)”
Que dizer?
É inquestionável que o insolvente violou o dever de colaboração, de informação e de não administrar bens que integram a massa insolvente e, mais grave do que isso, violou o dever de não se apropriar de bens pertencentes à massa insolvente; e foi/é justamente por haver cometido todas essas violações que estamos no presente litígio.
Mas, ao contrário do invocado pela recorrente, não se pode dizer, a partir dos factos dados como provados, que o AI teve culpa (a recorrente chega a dizer que “agiu de forma dolosa”) em não ter tomado conhecimento da existência da ação (identificada no ponto 1 dos factos).
Alega a recorrente que “os administradores de insolvência têm acesso direto, por via eletrónica, ao sistema informático de suporte à atividade dos tribunais e que, ao nada ter feito, o AI agiu de forma dolosa, considerando que não desconhecia, nem podia desconhecer que estava ainda em curso uma ação declarativa que opunha o insolvente à ora recorrente e que a mesma poderia influenciar, como se veio a verificar, a massa insolvente”.
Porém, tal “acesso direto” não significa que, em termos factuais, se deve passar a considerar provado que, no caso, tal “acesso direto” lhe teria dado tal informação e raciocinar como se o AI tivesse tal informação
Aliás, seguindo-se tal raciocínio da recorrente – tendo, como já se referiu, a ora recorrente acesso à declaração de insolvência do AA (cfr. artigos 38.º/5/a) do CIRE e 717º/2/c) do CPC 718º/4/b) do CPC) – ter-se-ia também de considerar que, então, a ora recorrente pagou sabendo que o seu credor estava insolvente, ou seja, que o pagamento foi efetuado de má fé.
Um AI deve ser diligente no exercício das suas funções, deve defender e tentar conciliar os interesses contrapostos do insolvente e dos credores, no que é nuclear a operação de apreensão do ativo, mas não pode ser censurado por não ter logrado tomar conhecimento da existência/pendência de uma ação em que o insolvente aspirava obter um robusto ganho de causa e que, certamente por isso, lhe omitiu.
Com possível relevo para a “supressio” invocada, apenas poderá interessar o comportamento que o AI possa ter tido após ter conhecimento da existência de tal ação e do pagamento que, em cumprimento da condenação na mesma imposta, foi efetuado pela ora recorrente diretamente ao insolvente.
Alega a recorrente que, “mesmo que a isso não est[ivesse] obrigada, assim que tomou conhecimento que o insolvente tinha sido declarado insolvente, tratou prontamente de informar o AI de que o pagamento da quantia a que tinha sido condenada, já tinha sido realizado”, pelo que deixando o AI passar um período de sensivelmente 2 (dois) anos sem nada dizer à Recorrente, criou nesta “a legítima expetativa que o pagamento realizado tinha efetivamente efeito liberatório, desonerando-a da prestação devida, e que, em consequência, não lhe seria imputada qualquer outra responsabilidade, até porque já haviam decorridos 4 anos após a realização do pagamento (…)”.
Consta de documento junto aos autos que, mal tomou conhecimento da situação, o AI, logo em 05/02/2018, expôs a situação no processo de insolvência, informando o tribunal que “sem prejuízo de outros procedimentos, e em face de tudo quanto vai dito, o administrador notificou, por carta registada com aviso de receção, o insolvente para proceder à transferência dos valores indevidamente recebidos”
Tinha, compreensivelmente, o AI que começar por pedir ao insolvente que entregasse no processo de insolvência a verba recebida da ora recorrente – o que a recorrente certamente não diria se o AI não tivesse começado por solicitar a entrega ao insolvente e logo intentasse uma execução como a presente – e não tendo tido sucesso, como foi o caso, não podia deixar de exigir o pagamento à ora recorrente da quantia devida à massa insolvente, sob pena de, não o fazendo, então sim, ser o próprio AI a incorrer na correspondente responsabilidade civil (art. 59.º do CIRE), ou seja, na indemnização do dano causado aos credores da insolvência.
É certo que não o fez logo, deixando passar cerca de dois anos8, mas não há um único elemento factual que diga ou indicie que, caso não obtivesse a entrega do insolvente, não iria pedir o pagamento à ora recorrente e o lapso de tempo decorrido (de cerca de dois anos, a cuja “inércia” há que descontar o tempo razoável para o insolvente entregar “voluntariamente” a quantia recebida à massa insolvente, ou seja, para a possível verificação do segundo “desvio” constante do art. 81.º/7 do CIRE) não permite afirmar que, o mesmo decorrido, o pedido de pagamento contraria a boa fé.
E, finalmente, o que a recorrente sustenta, a propósito do “tu quoque”, não é mais do que mais uma repetição do antes invocado.
Segundo a recorrente, “resulta evidente (…) dos factos dados como provados que o AI violou inúmeras normas jurídicas do CIRE, que consagram os seus poderes e atribuições, no seio do processo de insolvência”; “começou por incumprir as suas funções ao ter tomado conhecimento, uma vez que não o podia olvidar, da ação declarativa que corria entre o particular insolvente e a recorrente, quando a isso estava obrigado, atendendo a que a ação tinha o potencial, que acabou por se concretizar, de influenciar a massa insolvente”; “o AI falhou ao não ter informado o Tribunal e a Recorrente, no âmbito da ação declarativa, de que o particular tinha sido declarado insolvente, do mesmo modo que não alertou que, na eventualidade de vir a ser devido o pagamento de uma quantia ao particular, o mesmo, para ter efeito liberatório, deveria ser feito na sua pessoa, e não diretamente ao insolvente”; “o AI permitiu, de forma dolosa, que o insolvente administrasse e dispusesse de verbas que deveriam ter ingressado na massa insolvente”.
Ora, como já se referiu, nada disto tem o menor suporte nos factos.
Não está provado nos autos que o AI tivesse conhecimento da ação identificada no ponto 1 dos factos e também não há elementos para o censurar por não haver obtido tal conhecimento.
Aliás, como já se referiu, os “elementos” convocáveis para tal possível censura são exatamente os mesmos que existem para censurar a recorrente por não haver obtido conhecimento da insolvência do seu credor.
Sobressai até da argumentação desenhada pela recorrente uma clara contradição a propósito da configuração e do exercício das funções impostas a um AI “criterioso e ordenado”: por um lado, segundo a recorrente, tinha o AI de ter tido conhecimento, sob pena de incumprir os seus deveres, da existência da ação identificada no ponto 1 dos factos provados; por outro lado, ainda segundo a recorrente, um AI podia, sem incumprir grosseiramente os seus deveres funcionais, considerar liberatório o pagamento efetuado ao insolvente (a ponto de a recorrente dizer que interpretou a resposta de que ia “analisar o assunto” como estando a dizer-lhe que considerava o pagamento efetuado ao insolvente liberatório).
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É quanto basta para julgar a presente revista totalmente improcedente.
Como se antecipou, o art. 81.º/ do CIRE e a interpretação que do mesmo foi feita pelo acórdão recorrido não padece de qualquer inconstitucionalidade, seja por violação do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança, seja por violação do princípio da proporcionalidade; e a exequente, ao exigir que a recorrente lhe pague o montante em que esta foi condenada no processo identificado no ponto 1 e 2 dos factos provados, não incorre em abuso de direito.
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IV - Decisão
Nos termos expostos, nega-se a revista.
Custas pela embargante/recorrente.
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Lisboa, 03/06/2025
António Barateiro Martins (relator)
Oliveira Abreu
Nuno Pinto de Oliveira
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1. Manual de Direito da Insolvência, Maria do Rosário Epifânio, 7.ª ed., pág. 127.
2. Não houve na sentença, é certo, o cuidado de obter e fazer constar dos factos a data do registo da sentença de insolvência, porém, em face do referido distanciamento temporal (de mais de dois anos) e do disposto no art. 38.º/7 do CIRE (segundo o qual a sentença deve ser registada no prazo de 5 dias), até seria à embargante que competiria alegar e provar que o registo da sentença de insolvência, em 01/09/2016, ainda não estava feito; aliás, na mesma linha de “cuidado”, não foi a primeira questão suscitada nos embargos – sobre a inexistência de título executivo, por a embargante ter sido “condenada a pagar o montante em dívida a AA e não à ora Embargada, a qual não é credora dessa quantia” – conhecida, nulidade que não foi em momento algum suscitada pela ora recorrente (seguramente por, pelas razões constantes dos artigos 4.º a 18.º da contestação da exequente/embargada, ser evidente a existência de título executivo).↩︎
3. Aliás, tal acórdão, a partir de tais considerações, não extraiu qualquer concreta inconstitucionalidade para as normas que estava a aplicar.
4. Maria Lúcia Amaral, A Forma da República – Uma Introdução ao estudo do Direito Constitucional, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, pág. 186.
5. E no raciocínio respeitante à constitucionalidade não tem lugar a argumentação sobre se, no caso, o AI sabia ou devia saber da existência da ação referida no ponto 1 dos factos provados; assim como não tem lugar o que se diz, na conclusão lxxix, sobre o montante da prestação em causa.
6. Como parece ter sido a opção da Ley Concursal Espanhola, em que se diz, no seu artigo 110.º, que “el pago realizado al concursado solo liberará a quien lo hiciere si, al tiempo de efectuar la prestación, desconocía la declaración de concurso. Se presume el conocimiento desde la publicación de la declaración de concurso en el «Boletín Oficial del Estado».
7. E a ser verdade o que a embargante refere no art. 22.º da PI – ser o AA patrocinado pelo mesmo mandatário, Dr. CC, quer na ação referida no ponto 1 dos factos, quer nos Autos de Insolvência – não era apenas o insolvente que estava a tempo de ser demandado.
8. E aparentemente não deu qualquer resposta no prazo de uma semana, como havia “prometido”.