Sumário
I - Não incorre na causa de nulidade prevista na 1.ª parte do n.º 1 da alínea d) do artigo 615.º do CPC (omissão de pronúncia) o acórdão que não conhece de uma questão suscitada no recurso de apelação, mas justifica a decisão de não conhecimento.
II - O não uso, pela Relação, dos poderes conferidos pelas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC pode servir de fundamento ao recurso de revista apenas quando o tribunal da Relação, apesar de reconhecer, na decisão que julga a impugnação de facto, que os elementos constantes do processo não são suficientes para formar a sua própria convicção sobre os pontos de facto impugnados e que tal insuficiência deriva de alguma das situações previstas nas alíneas a) e b), não faz uso dos poderes que a lei lhe confere.
III – É de qualificar como contrato de empreitada, com objecto determinável, o acordo celebrado entre uma sociedade que se dedica à construção civil e uma pessoa singular, através do qual a primeira se obrigou a realizar obras de melhoramento e adaptação que viessem a revelar-se necessárias num prédio, devidamente identificado, adquirido pelo segundo, e este se obrigou a pagar as obras.
IV – Declarado nulo um contrato de empreitada, por falta de forma, o valor que corresponde à prestação do empreiteiro, que não pode ser restituída em espécie, é o valor objectivo dela, determinado por referência aos preços correntes, usuais, no sector (mercado) da construção civil, com IVA incluído.
Decisão Texto Integral
Acordam na 2.ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça
Onirodrigues, SA, com sede na Avenida ..., ..., propôs contra AA e sua mulher BB, a presente acção declarativa com processo comum, pedindo:
1. A condenação solidária dos réus a pagarem-lhe a quantia de 94 701,041 euros, com IVA incluído (noventa e quatro mil, setecentos e um euros e quarenta e um cêntimos), acrescida dos juros legais vincendos, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento, computados nos termos do disposto na Portaria n.º 597/2005, a título do preço a que a autora normalmente praticava quando as obras/trabalhos/ equipamentos e materiais foram executados e prestados aos réus ou, na insuficiência destas regras, que o Tribunal determine o preço segundos juízos de equidade ou, se ainda assim se não entender, o valor real e efetivo das obras, trabalhos, equipamentos e materiais fornecidos, condenando-se os réus no pagamento do respectivo valor e juros;
2. A título subsidiário, a condenação solidária dos réus a pagarem-lhe a quantia de 94 701,041 euros (IVA incluído) (noventa e quatro mil, setecentos e um euros e quarenta e um cêntimos), a título do preço real das obras, mão de obra, materiais e equipamentos fornecidos pela autora aos réus, correspondente ao preço da empreitada, acrescida dos juros legais vincendos, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento, computados nos termos do disposto na Portaria n.º 597/2005;
3. A título subsidiário, que o Tribunal, segundo juízos de equidade, determinasse, fixasse e condenasse os réus solidariamente a pagarem-lhe o valor das referias obras, trabalhos e materiais, sem prejuízo dos juros calculados em 1º supra, que àquele título apurar;
4. A título subsidiário e para a eventualidade de ser julgado nulo, por falta de forma, o aludido contrato de empreitada ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil, por se não mostrar possível a restituição em espécie dos invocados trabalhos, obras e materiais, a condenação solidária dos réus a pagarem-lhe a ela autora, o montante referido em 1, acrescida dos juros computados pelo modo referido;
5. Para a eventualidade de improcedência da acção fundada na existência ou na invalidade do invocado contrato de empreitada, a condenação solidária dos réus a pagarem-lhe a quantia de 94 701,041 Euros com IVA incluído (noventa e quatro mil, setecentos e 1 euros e quarenta e um cêntimos), acrescida dos juros legais vincendos, calculados pelo modo referido em 1º supra, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
Para o efeito, alegou em síntese:
• Entre a sociedade comercial R..., Lda e o réu, no ano de 2011, foi celebrado, por forma oral, um contrato de empreitada, mediante o qual aquela sociedade se obrigou a realizar para os réus as obras, trabalhos, fornecimentos de materiais e equipamentos referidos nos artigos 9.º e 10.º da petição, no prédio urbano dos réus, sito na Rua ..., Quinta da N..., concelho de ..., mediante o preço normalmente praticado no mercado à data da conclusão das obras, em relação à obra global;
• A sociedade comercial R..., Lda, no âmbito das obrigações a que se vinculou, por via do respectivo acordo de vontades, reciprocamente aceites, executou para os réus, obras e trabalhos, forneceu materiais, mão-de-obra e equipamentos de construção civil na remodelação e ampliação do prédio urbano dos réus cujo preço real e efectivo importou no valor global de 94. 701,041 Euros, com IVA incluído, (noventa e quatro mil, setecentos e um euros e quarenta e um cêntimos);
• Os réus aceitaram a realização dos trabalhos, obras, materiais e equipamentos fornecidos;
• Em 2018, a sociedade comercial R..., Lda foi transformada na autora;
• Mediante carta registada, com aviso de recepção, expedida pela autora, em 6 de Fevereiro de 2020, e recebida pelos réus no dia 11 de Fevereiro de 2020, acompanhada do auto com a discriminação dos trabalhos realizados, a autora endereçou ao réu a factura nº FA 2020/80, no indicado valor global de 94.701,041 euros, relativa ao preço apurado dos supracitados trabalhos de construção civil, correspondente ao preço real e efectivo daqueles e solicitou a liquidação do aludido valor, no prazo de 30 dias a contar da data da recepção da referida carta;
• O réu não aceitou proceder ao pagamento do aludido valor identificado naquela factura.
Os réus contestaram a acção. Na sua defesa alegaram:
• A ineptidão da petição inicial, pedindo, em consequência, a sua absolvição da instância;
• A ilegitimidade da ré, pedindo, em consequência, a sua absolvição da instância;
• A nulidade do contrato de empreitada, a inexistência do contrato de empreitada, o abuso do direito e a prescrição, pedindo, em consequência, a sua absolvição dos pedidos;
• Que, caso assim se não entendesse, se julgasse a acção improcedente por não provada com base na impugnação que apresentaram e que, em consequência, fossem eles, réus, absolvidos dos pedidos.
A autora respondeu.
No despacho saneador a alegação de ineptidão da petição inicial foi julgada improcedente e afirmada a legitimidade das partes para a acção.
O processo prosseguiu os seus termos e após a realização da audiência final foi proferida sentença que, julgando parcialmente procedente a acção, decidiu:
1. Condenar os réus pagar à autora a quantia de 93 592,94 euros (noventa e três mil, quinhentos e noventa e dois euros e noventa e quatro cêntimo), com IVA incluído, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa civil aplicável, a contar da citação, e até integral pagamento;
2. Absolver os réus do mais peticionado.
Apelação
Os réus não se conformaram com a sentença e interpuseram recurso de apelação, pedindo:
a. Se declarasse nula a sentença por omissão de pronúncia;
b. Caso assim se não entendesse ou as nulidades viessem a ser supridas nos termos legais, se revogasse integralmente a sentença, substituindo-a por decisão que julgasse a acção improcedente.
O Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão proferido em 14 de Março de 2024, julgou parcialmente procedente o recurso e, em consequência, decidiu:
1. Revogar a sentença recorrida no segmento que «condena os réus a pagar à autora a quantia de 93 592,94 euros (noventa e três mil, quinhentos e noventa e dois euros e noventa e quatro cêntimo), com IVA incluído, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa civil aplicável, a contar da citação, e até integral pagamento»;
2. Declarar a nulidade, por vício de falta de forma, do contrato de empreitada celebrado entre autora e réu no ano de 2011;
3. Condenar os réus, como efeito da declaração de nulidade do contrato, a restituírem à autora a quantia de € 93.592,94 (noventa e três mil, quinhentos e noventa e dois euros e noventa e quatro cêntimo), com IVA incluído, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal de 4% ao ano (ou a outra que vier legalmente a ser fixada), desde a data da citação até integral pagamento;
4. Manter no mais a sentença recorrida.
Revista
Os réus não se conformaram com o acórdão e interpuseram recurso de revista, pedindo:
A. Se declarasse a nulidade do acórdão recorrido proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães em 14 de Março de 2024, por omissão de pronúncia, com as legais consequências (artigo 684.º, n.º 2, em conjugação com o artigo 615.º, nº 1, alínea d), 1ª parte, ambos do CPC);
B. Sem embargo, se assim se não entendesse, se julgasse procedente a reapreciação da matéria de facto (melhor identificada no Ponto IV.2. das alegações) nos termos e ao abrigo do disposto no n.º 2 do art.º 682.º n.º 2 do CPC e, caso se considerasse pertinente, deveria ordenar-se a remessa do processo ao Tribunal da Relação, a fim de se determinar a ampliação da decisão de facto (cfr. art.º 682.º n.º 3 do CPC);
C. Se revogasse o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães em 14 de Março de 2024, e substituído por outro, com as legais consequências.
Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. Vem o presente Recurso de Revista interposto pelos ora Recorrentes, do Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido em 14/03/2024 que, julgando parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pelos Recorrentes da sentença proferida em 19/09/2022 pelo Juiz 4 – Juízo Central Cível de ... – Tribunal Judicial da Comarca de Braga, alterou as respostas da matéria de facto, revogou a sentença proferida em primeira instância, porém, a final, veio a condenar os Recorrentes no pedido de pagamento à Autora, ora Recorrida, Onirodrigues, S.A. da quantia de € 93.592,94 (noventa e três mil quinhentos e noventa e dois euros e noventa e quatro cêntimos), com IVA incluído, acrescida dos juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa civil aplicável, a contar da citação e até integral pagamento (doravante, “Acórdão Recorrido”).
2. A Revista tem os seguintes fundamentos, conforme será alegado e concluído no presente recurso de revista: a) nulidade prevista nos artigos 615.º e 666.º c/c 679.º do CPC, a saber: omissão de pronúncia quanto à alegação relativa ao abuso de direito, que vem suscitado desde a contestação (vd conclusões de n.ºs 2.ª, letra a), ponto iii); 3.ª letra c), 18.ª, 19.ª e 20.ª do recurso de apelação), fundamentada no Ponto IV.1. das alegações de Revista; b) violação da lei de processo, (i) por violação ou errada aplicação de lei de processo, in casu dos pressupostos do poder-dever da modificação da decisão sobre a matéria de facto previstos no artigo 662.º do CPC (cfr. no artigo 674.º n.º 1 alínea b) e 682.º nº 2 do CPC) e, (ii) por existência de contradição essencial na matéria de facto e necessidade de apreciar criticamente a suficiência ou insuficiência da matéria de facto provada e não provada em conexão com a matéria de direito aplicável (cfr. artigo 682.º nº 3 do CPC) - error in procedendo - fundamentado no Ponto IV.2. das alegações de Revista; c) violação de lei substantiva, por erro de interpretação e de aplicação do direito e de determinação da norma aplicável. Concretamente, por ofensa a disposições legais, a saber, artigos 9.º, n.º 1, 219.º, 220.º, 280.º, 286.º, 289.º n.º 1, 234.º, 334.º, 400.º n.º 2, 783.º, 784.º, 883.º, 1156.º, 1158.º, 1167.º, 1207.º, 1208.º, 1211.º, 1212.º, 1214.º, todos do Código Civil (CC), artigo 29.º do Dec.-Lei nº 12/2004, cuja redação manteve-se no artigo 26.º da Lei n.º 41/2015 de 03 de junho que o revogou - error in judicando - fundamentado no Ponto IV.3. das alegações de Revista. Neste particular, insurgem-se os Recorrentes contra a decisão da Relação de Guimarães que revogou a Sentença, pese embora mantendo a improcedência parcial da ação com fundamentação essencialmente diferente, por ter considerado que foi celebrado um contrato de empreitada nulo por vício de forma, em violação do artigo 29.º do Dec.- Lei nº 12/2004, cuja redação manteve-se no artigo 26.º da Lei n.º 41/2015.
3. O recurso é interposto como Revista Comum e como Revista Excecional. O recurso é sempre admissível como Revista Comum (n.º 3 do artigo 671.º do CPC), e tem em vista a apreciação das seguintes matérias: a) quanto à matéria de facto, sindicância quanto à correta aplicação, pela Relação, das normas jurídicas, ao reapreciar e fixar a matéria de facto em sede de apelação, movendo-se, então, este Supremo Tribunal em sede de direito (cfr. autorizado pelo artigo 674.º n.º 3 do CPC). Tem-se aqui em vista a: (i) modificação da decisão sobre a matéria de facto quanto ao facto provado 14 e ao facto não provado 5, por violação, pela Relação, dos poderes- deveres que se lhe impõem no artigo 662.º do CPC (cfr. art. 674º nº 1 alínea b) e 682º nº 2 do CPC), ao não ter ordenado todas as diligências de prova necessárias para se apurar o contexto em que os três cheques e as declarações dos legais representantes da Recorrida foram emitidos e, ainda, a relação subjacente à emissão destes documentos; (ii) análise critica da suficiência ou insuficiência da matéria de facto provada quanto à resposta dada ao facto provado nº 7 e, análise das contradições essenciais existentes entre a resposta dada ao facto não provado 1 e aos factos provados nºs 6 e 23, e, entre o facto não provado nº 3 e os factos provados nºs 6, 23, 24 e 25 (cfr. arts 662º nº 4, 674º nºs 1 e 3 e 682º nºs 1 e 2 do CPC), conforme razões aduzidas no Ponto IV.2. das alegações de Revista; e, b) erro quanto à apreciação da matéria de direito relacionada à qualificação do acordo/"contrato" entabulado entre as partes, a sua validade e efeitos da qualificação feita, apesar de se ter verificado dupla decisão desfavorável aos Recorrentes (provimento parcial do recurso de apelação, conforme decidido no Acórdão da Relação de Guimarães e, procedência parcial da ação, conforme decidido na Sentença de 1.ª Instância). Se acaso o Venerando Supremo Tribunal de Justiça assim não o entender, sempre a presente Revista se enquadraria na situação de Revista Excecional, conforme consignado no artigo 672.º, n.º 1, alínea c) do CPC, e para aquelas mesmas matérias.
4. A Revista é Comum porque a fundamentação da 1.ª instância é essencialmente diferente da fundamentação do Acórdão Recorrido. E, com base nessa diferença foi revogada a sentença. Numa decisão, a Sentença de 1.ª instância, o fundamento legal invocado é o artigo 234.º do CC, com a desconsideração da imperatividade do regime previsto no artigo 29.º do Decreto-Lei 12/2004 e, posteriormente do artigo 26.º da Lei n.º 41/2015: entendeu a 1.ª instância que a ação foi julgada parcialmente procedente, porque no momento do acordo as partes não tinham fixado o preço, apenas acordado que seria o valor de mercado, que na falta de acordo poderia ser suprido por decisão judicial nos termos do artigo 440.º n.º 2 do CC, pouco relevando que em momento posterior o valor tenha atingido o valor de € 16.600,00, montante a partir do qual é exigida a forma escrita, sob pena de nulidade do contrato. Na outra, o Acórdão Recorrido, o sentido da decisão da Relação é determinado pela imperatividade do regime do artigo 29.º do Decreto-Lei 12/2004 e, posteriormente do artigo 26.º da Lei n.º 41/2015 e pelo efeito jurídico próprio da nulidade do contrato de empreitada, que é o efeito de restituir o que é devido. São estes preceitos conjugados com o artigo 219.º do CC que o Tribunal da Relação de Guimarães aplica - ao contrário do que fez o tribunal de 1.ª instância, que simplesmente aplicou o artigo 234.º c/c 219.º do CC. Além disto, nesta decisão se entendeu que as partes não chegaram a acordo quanto ao preço, nem quanto ao seu critério de fixação, de forma que para a Relação é aplicável o artigo 833.º do CC por remissão do artigo 1211.º do CC, norma que não foi considerada pela 1.ª instância para fixar o valor que considerou devido. Ora, são estes novos e decisivos fundamentos que o Acórdão da Relação de Guimarães trouxe ao processo, que não pode deixar de ser suscetível de apreciação em nova instância. De resto, o próprio Acórdão Recorrido assume que afasta o “entendimento acolhido na sentença recorrida”. (pág. 134). (Vd. Ponto II.1. das Alegações de Revista).
5. A Revista Excecional é admissível porque o aresto sub judice apresenta uma solução de direito diametralmente oposta à defendida no anterior Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/05/2019, proferido no Processo n.º 2966/16.0T8PTM.E1.S2, Relatora ROSA TCHING (“Acórdão Fundamento”), onde, em ambos, considerando estar em causa um contrato de empreitada nulo, foi discutida a mesma questão jurídica que constitui objeto do presente recurso (na verdade um dos); concretamente, a aplicação e interpretação do artigo 289.º n.º 1 do CC (“Acórdão Fundamento”) na sequência da declaração de nulidade do contrato. Em ambos os Acórdãos, a nulidade decorre de violação, pelo empreiteiro, da obrigação de reduzir o contrato a escrito - formalidade ad substantiam - conforme o regime específico da empreitada se lhe impõe para a realização de obras acima de determinado valor (€ 16.600,00). A diferença está nos efeitos da declaração de nulidade: enquanto no Acórdão Recorrido o dever de restituir incorpora o lucro e o IVA e a Relação de Guimarães entende que tal dever não afasta tais parcelas, no Acórdão Fundamento estas parcelas não são devidas, não integrando o dever de restituir; assim, os Acórdãos em cotejo divergem quanto aos efeitos da nulidade à luz da obrigação de restituir consignada no artigo 289.º n.º 1 do CC de forma distinta (Vd Ponto II.2. das Alegações de Revista)
6. Compulsado o Acórdão Recorrido, como se pode ler no Ponto 2, pág. 30, a Relação elencou nas letras A) até G) as questões a apreciar, sendo que:
a. A Relação não apreciou as questões indicadas nas letras F) e G), por considerar que a decisão quanto às questões anteriores prejudicava tal apreciação. Contudo, sobretudo quanto ao abuso de direito indicado na letra F), os Recorrentes não concordam com tal posição. Ora, nada autorizava e/ou impediria – como continua a não autorizar e/ou a impedir - a apreciação do abuso de direito, porquanto a apreciação deste instituto não é dependente da validade ou da invalidade de qualquer contrato e/ou negócio. Mais. O facto de a Relação ter admitido que foi celebrado um contrato de empreitada, porém nulo, não significa que a atuação da Recorrida não tenha sido em abuso de direito. As apreciações em causa movem-se em planos jurídicos próprios que não são excludentes entre si. De resto, a Relação pode conhecer do abuso de direito oficiosamente -, quanto mais quando foi expressamente invocado nas Conclusões da apelação, até porque o que releva é a apreciação de uma situação material a ser feita através da análise das concretas circunstâncias do caso concreto.
b. Quanto à questão indicada na letra A), nulidades da Sentença por omissão de pronúncia, veio a Relação concluir que não há qualquer nulidade;
c. Quanto à questão indicada na letra B), alteração da matéria de facto, a Relação de Guimarães apreciou no Ponto 4.2 do Acórdão Recorrido (pág. 43 e ss), vindo a alterar, quanto à redação/conteúdo, os factos provados n.ºs 3, 4, 5, 7 e 8 e os factos não provados n.ºs 1, 4 e 5 e a aditar os factos provados n.ºs 26 e 27 e os factos não provados n.ºs 6 e 7. Pese embora a alteração da matéria de facto, os Recorrentes entendem que a Relação de Guimarães não cumpriu todos os poderes-deveres que se lhe competiam em sede de reapreciação da matéria de facto, razão pela qual, como já expôs, a Revista também tem por objeto violação de leis de processo (artigo 662..º, 674.º, n.ºs 1 e 3 e 6, alínea b) do CPC), pelas razões que os Recorrentes aduzem no Ponto IV.2 das Alegações de Revista;
d. Quanto aos erros de direito invocados na apelação, (i) relativamente à questão indicada na letra C), a Relação apreciou a qualificação do acordo/contrato celebrado entre as partes, tendo concluído que o contrato celebrado foi de empreitada (como foi sustentado na sentença recorrida), não estando em causa um outro tipo contratual, qualificação com a qual os Recorrentes não concordam e justificam a sua posição no Ponto IV.3, letra B. Alegações de Revista.
e. Relativamente à questão indicada na letra D), tendo concluído pela existência de um contrato de empreitada, a Relação concluiu que o mesmo é nulo por falta de forma (ao contrário do que se sustentou na sentença recorrida). Ora, a se admitir a qualificação dada pela Relação, o que não se concede, o contrato é nulo não só por esta razão, mas, também, pela falta de determinação ou determinabilidade do objeto, com clara violação do artigo 280.º do CC, conforme posição dos Recorrentes que consta do Ponto IV.3 letra B. Alegações de Revista;
f. Relativamente à questão indicada na letra E), partindo da compreensão de que as partes não fixaram qualquer preço, nem determinaram o critério para a sua fixação, concluiu que a solução passava pelo regime previsto no artigo 833.º do CC, assumindo que o valor a pagar seria o valor de mercado, que para a Relação é o valor da fatura com IVA incluído. Os Recorrentes não concordam nem com a qualificação do contrato, nem com os efeitos atribuídos pela Relação, conforme posição dos Recorrentes que consta do Ponto IV.3, letra C. Alegações de Revista.
7. Essencialmente, o que esteve na base da ação e foi mal apreciado, quer pela 1.ª instância, quer pelo Tribunal da Relação e impõem a declaração de nulidade do Acórdão Recorrido por omissão de pronúncia quanto ao abuso de direito e, se assim não se entender, a sua revogação e substituição por outro com fundamento em erro foi, além do mais, a completa desconsideração das particularidades do acordo/contrato em razão, do contexto de sua celebração, da efetiva formação da vontade das partes, das relações profissionais, especiais e de confiança entre os legais representantes da Recorrida e o Recorrente marido na data do acordo, e durante toda a execução dos trabalhos, da alteração unilateral, pela Recorrida, do valor que a própria indicou como o a ser liquidado pelo Recorrente marido há mais de três anos antes. Além disto, a Relação abstraiu por completo o facto de o legal representante da Recorrida, Sr. CC, estar em dissenso com o ex-sócio e gerente da sociedade, Sr. DD, no âmbito da partilha dos ativos que detinham em comum e aquele ter expressamente referido ao Recorrente marido como “lacaio” deste, de toda a prova produzida que permite constatar que o Recorrente marido entregou valor ao legal representante da Recorrida para efeito de pagamento da dívida, que por sua vez entregou este mesmo valor à Recorrida, do critério legal de imputação deste valor, da necessária aferição dos princípios da boa-fé e da confiança, do abuso de direito, apreciações que desembocam na existência, ou não, na validade, ou não, do acordo para efeito de exigibilidade de qualquer valor pela Recorrida aos Recorridos e, bem assim, no direito de ser exigido qualquer valor aos Recorrentes (Vd. Ponto III.2. das Alegações de Revista).
8. No caso em apreço, o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação padece do vício de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos e ao abrigo da alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC (Vd. Ponto IV.1. das Alegações de Revista).
a. Efetivamente, no âmbito da contestação, os ora recorrentes vieram invocar a exceção perentória do abuso de direito, nas modalidades de venire contra factum proprium e supressio, respetivamente, porém, a final, a sentença ora recorrida, veio a julgar improcedente tal exceção. Inconformados com a referida decisão, os ora recorrentes, nas suas alegações de recurso de apelação (cfr. se pode comprovar pelo ponto VI.2.C. do respetivo articulado), solicitaram que se procedesse à reapreciação da questão em apreço (cf conclusões 2.ª a) (iii), 3.ª a) (i)), pelas razões indicadas nos pontos de n.ºs 22, 23 e 26 das Alegações de Revista, que se dão aqui por reproduzidas;
b. Sucede que o Acórdão Recorrido que ora se submete à apreciação de V. Exas, veio decidir que, ao pronunciar-se afirmativamente em relação à questão sobre a verificação da nulidade do contrato de empreitada e tendo-se apurado o valor a restituir como efeito dessa nulidade, então está absoluta e definitivamente prejudicada a apreciação das exceções peremptórias deduzidas pelos Recorrentes (abuso de direito e prescrição, respetivamente). Salvo o devido respeito, discorda-se totalmente de decisão proferida – prejudicialidade da apreciação da exceção perentória de abuso de direito – na medida em que, as decisões proferidas quanto à nulidade do contrato e ao apuramento do valor a restituir como efeito dessa nulidade, não constituem qualquer impedimento ou obstáculo a que seja apreciada a exceção ora invocada.
c. No caso sub judice, tendo em consideração os factos supra referenciados, é manifestamente imperioso aferir se a autora/recorrida, está a agir abusivamente ou não e, ainda, se os seus comportamentos estão eivados de má-fé, pelo que, o Tribunal da Relação deveria ter tomado conhecimento da questão respeitante ao abuso de direito invocado pelos ora recorrentes.
d. Nos termos e ao abrigo do disposto no 608.º n.º 2 do CPC (aplicável ao julgamento de apelação, ex vi art. 674 nº 1, alínea c) do CPC), o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, o que não é o caso em apreço. Sendo assim, verifica- se a nulidade do Acórdão por omissão de pronúncia, nos termos e ao abrigo da alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, pelo que, de acordo com o disposto na al. c) do n.º 1 do art.º 674.º do CPC, o recurso de revista é o adequado para impugnar nulidades, ambiguidades, obscuridades e contradições de fundamentação do acórdão da Relação.
9. No que respeita à matéria de facto, o Acórdão que ora se submete à apreciação de V. Exas, ocorreu em manifesta violação de lei de processo, in casu dos pressupostos do poder-dever da modificação da decisão sobre a matéria de facto previstos no art.º 662.º do CPC (cfr. art.º 674.º n.º 1 alínea b) e 682.º n.º 2 do CPC) (Vd. Ponto IV.2. das Alegações de Revista). Com efeito,
a. Na sentença proferida pelo tribunal a quo foi dado como provado o Facto n.º 14 com o seguinte teor: “Até à data os Réus não pagaram qualquer valor à Autora” e foi dado como Não Provado o Facto nº 5 com o seguinte teor: “A obra executada foi lançada na contabilidade a título de custo pelo montante de € 37.840,18 e tal valor foi integralmente liquidado pelo réu marido”. Inconformados com as respostas dadas aos referidos factos, na apelação os ora recorrentes vieram requerer a reapreciação de tal matéria, com base nos fundamentos referidos no ponto de n.º 32 das Alegações de Revista, que se dão aqui por reproduzidos. Não obstante, o Tribunal da Relação manteve inalterada a redação dada ao Facto Provado nº 14 e não alterou o Facto Não Provado nº 5 nos termos pretendidos pelos Recorrentes, por se considerar que, o depoimento/declarações de parte do Recorrente marido revelou incongruências e contradições; e, ainda, por considerar que as declarações/documentos juntos aos autos a fls 221, 222 e 223 comprovam a receção das referidas quantias, dado que, estão assinadas pelos gerentes da Recorrida, CC e DD; porém, a final, vem considerar que são manifestamente insuficientes para se demonstrar que estão relacionadas com o pagamento efetuado pelo Recorrente marido, dado que, não contêm qualquer referência às obras executadas na casa dos Recorrentes e/ou pagamento das mesmas. De tal resulta que a Relação confundiu o facto “entrega de valores/quantias à Recorrida” com a finalidade de tal entrega, nesse passo, negligenciando que foram entregues valores.
b. Em face do exposto, o Tribunal da Relação, não só agiu de uma forma deficiente, como também não fez uso dos poderes-deveres que lhe são conferidos em sede de reapreciação da matéria de facto (alíneas a) e b) do nº 2 do art.º 662.º do CPC). Isto porque não só estava adstrito a proceder à remoção das eventuais incongruências do depoimento/declarações do recorrente marido, como também deveria ordenar todas as diligências de prova necessárias para se apurar o contexto em que foram emitidos os referidos cheques e as declarações emitidas pelos legais representantes da recorrida e, ainda, a relação subjacente à emissão dos referidos cheques.
c. Ainda, no que respeita à matéria de facto, verifica-se a necessidade de se proceder à apreciação critica da suficiência ou insuficiência da matéria de facto provada e não provada, bem como à análise das contradições essenciais existentes. Assistindo plena legitimidade ao Supremo Tribunal de Justiça, como instância jurisprudencial suprema, para proceder à análise critica da suficiência ou insuficiência da matéria de facto provada, podendo, em última instância, determinar a ampliação da decisão de facto (cfr. arts 662.º n.º 4, 674.º n.ºs 1 e 3 e 682.º n.ºs 1 e 2 do CPC). Pelo que, ao abrigo das faculdades que são conferidas a V. Exas, Venerandos Conselheiros, requer-se que, em relação à matéria de facto, se proceda às seguintes diligências: (i) Análise critica da resposta dada ao Facto Provado nº 7. (ii) Análise da contradição existente entre a resposta dada ao Facto Não Provado 1 e aos Factos Provados nºs 6 e 23 e (iii) Análise da contradição existente entre o Facto Não Provado nº 3 e os Factos Provados nºs 6, 23, 24 e 25.
d. No que concerne ao Facto Provado nº 7 os ora recorrentes, em sede de alegações de recurso de apelação, vieram propor que, o referido facto passasse a ter a seguinte redação: “A R..., Lda, no âmbito das obrigações a que se vinculou, executou para os réus obras e trabalhos, forneceu materiais, mão-de-obra e equipamentos de construção civil na remodelação e ampliação do aludido prédio urbano, tendo após a conclusão das obras, a Recorrida/ CC fixado que o valor a pagar pelo réu marido seria correspondente a 50% (cinquenta por cento) dos custos incorridos com o pessoal e equipamentos pela Recorrida, para a realização da obra, cujo valor apurado para este efeito foi de € 37.840,18 (trinta e sete mil oitocentos e quarenta euros e dezoito cêntimos), conforme constava na contabilidade da Recorrida, independentemente do valor total e global de todos os custos (100%) incorridos com a obra”. Porém, o Acórdão que ora se submete à apreciação de V. Exas, veio proceder à alteração parcial do referido facto passando o mesmo a ter a seguinte redação: “A R..., Lda executou para os RR obras e trabalhos, forneceu materiais, mão-de-obra e equipamentos de construção civil na remodelação e ampliação do aludido prédio urbano, que ascenderam a preços correntes de mercado, ao valor global de € 94.701,41 (noventa e quatro mil setecentos e um euros e quarenta e um cêntimos) e, simultaneamente, veio aditar aos factos provados, o Facto Provado nº 27, com a seguinte redação: “A obra executada, após a sua conclusão e até 11/12/2019, esteve lançada na contabilidade da A. a título de custo no montante total de € 37.839,18 (trinta e sete mil oitocentos e trinta e nove euros e dezoito cêntimos). Ou seja, o Acórdão em crise considerou (parcialmente) como não provada a segunda parte da redação proposta pelos Recorrentes, mais concretamente, a alteração proposta com o seguinte teor: “tendo após a conclusão das obras, a Recorrida, CC, fixado que o valor a pagar pelo réu marido seria correspondente a 50% (cinquenta por cento) dos custos incorridos com o pessoal e equipamentos pela Recorrida, para a realização da obra, cujo valor apurado para este efeito foi de € 37.840,18 (trinta e sete mil oitocentos e quarenta euros e dezoito cêntimos)”. A Relação veio fundamentar a não alteração da resposta dada ao referido facto, com base nos argumentos indicados no ponto 34 das Alegações de Revista, que se dão aqui por reproduzidos. Salvo o devido respeito, os Recorrentes não podem deixar de discordar de tal fundamentação, isto porque a sua pretensão consiste apenas em que fosse dado como provado o teor do mail enviado por EE em 26/12/2016, relativo ao custo de obras da moradia “N...”, mail este que tem como anexo uma listagem com o logotipo da R..., Lda e a menção obra “N...”, dono de obra, AA. O Tribunal da Relação elaborou em erro, na medida em que os ora recorrentes nunca consideraram tal factualidade como um facto essencial, mas sim como facto meramente instrumental, complementar os concretizador dos factos essenciais invocados na sua contestação. Isto porque, os factos essenciais invocados pelos ora Recorrentes e diretamente relacionados com esta matéria, são aqueles que foram invocados em sede de exceção, nomeadamente, no âmbito da exceção de inexistência de contrato de empreitada e da exceção de abuso de direito, mais concretamente os factos que elencou no ponto 36 das Alegações de Revista que se dão aqui por reproduzidos. Por conseguinte, considera-se que o Tribunal da Relação não só violou, como incorreu em erro de interpretação e aplicação do disposto no art.º 5.º do CPC, pelo que, ao abrigo dos poderes que são conferidas a V. Exas no âmbito da reapreciação da matéria de facto, requerer-se que se proceda à ampliação da matéria de facto, e, por conseguinte, seja dada como provada a matéria invocada pelos Recorrentes no Facto Provado nº 7.
e. Finalmente, ainda, no que concerne à matéria de facto, no Acórdão que ora se submete à apreciação de V. Exas, verifica-se uma clara e notória contradição entre as respostas dadas a determinados Factos Não provados e as respostas dadas a alguns dos Factos Provados. Mais concretamente, verifica-se uma clara contradição entre a resposta dada ao Facto Não Provado 1 e aos Factos Provados nºs 6 e 24 e 25, isto porque, o Tribunal da Relação ao dar como não provado que o acordo descrito em 5) foi alcançado apenas no âmbito das relações profissionais existentes entre as partes e não no âmbito das relações laborais, está a incorrer numa clara contradição entre o Facto Não Provado nº 1 e os Factos Provados nº 6, 24 e 25. De facto, em face do teor dos referidos factos provados, é manifestamente inequívoco que: (i) à data da celebração do acordo, o Recorrente marido detinha uma relação laboral, não só, com a sociedade R..., Lda”, como também, com as demais empresas do referido grupo empresarial; (ii) à data em que foi contratado, o Recorrente marido residia no ... e não dispunha de alojamento em ..., tendo residido entre Setembro de 2003 a Dezembro de 2011, num apartamento pertencente ao referido grupo empresarial, sem pagar qualquer renda. Logo, é perfeitamente evidente que o acordo alcançado entre as partes e diretamente relacionado com as obras executadas no imóvel adquirido pelos Recorrentes, não só, foi concretizado tendo em consideração a relação profissional existente entre as partes, mas, também, e essencialmente, as relações laborais que subsistiam à referida data. Pois, caso o Recorrente marido não detivesse uma relação laboral com as referidas empresas e não tivesse procedido à desocupação do apartamento em que residia (sem que nunca tivesse procedido ao pagamento de qualquer contrapartida financeira), certamente, a ora Recorrida não se teria disponibilizado para proceder à execução da obra, nos termos e condições em que se veio a concretizar e, por conseguinte, deverá ser ampliada a resposta dada ao Facto Provado nº 26, passando o mesmo a ter a redação proposta pelos Recorrentes nas suas alegações de recurso.
f. Ainda, no que concerne à verificação da matéria de facto, não se pode deixar de fazer referência à contradição existente entre o Facto Não Provado nº 3 e os Factos Provados nºs 6, 23, 24 e 25; isto porque é por demais evidente que o alojamento do Recorrente sempre foi considerado como um custo, como uma responsabilidade assumida pelo referido grupo empresarial. Efetivamente, ao encontrar-se demonstrado que o recorrente marido exercia funções de especial relevância e dimensão na referida sociedade, que mantinha uma relação de confiança e proximidade com os legais representantes da Recorrida, que à data em que foi contratado residia no ... e não dispunha de residência em ... e, ainda, que desde essa data até Dezembro de 2011, ou seja, durante 8 (oito) anos residiu num apartamento pertencente ao referido grupo empresarial sem proceder ao pagamento de qualquer renda. É perfeitamente evidente que o alojamento do Recorrente deveria ser considerado como um custo da ora recorrida, pois assim o foi, ou seja, a disponibilização de moradia é um benefício laboral inquestionável, que integrava a sua remuneração, assumindo nos termos da lei laboral a natureza de complemento remuneratório em espécie. Por conseguinte, atenta a notória contradição existente, seja dada como provado o Facto Não Provado nº 3 e, em consequência, seja considerado como assente que, o alojamento do recorrido sempre foi considerado como um custo, como uma responsabilidade pela R..., Lda e/ou B..., S.A.
10. Relativamente ao erro de julgamento por violação da lei substantiva, partindo do entendimento jurisprudencial de que o erro de direito tanto pode começar na interpretação e subsunção dos factos e do direito, como estender-se à sua própria qualificação, o que, em qualquer das circunstâncias, afeta e vicia a decisão proferida pelas consequências que acarreta, em resultado de um desacerto, de um equívoco ou de uma inexata qualificação jurídica ou, como enuncia a lei, de um erro, só se pode concluir que este Supremo Tribunal de Justiça pode livremente apreciar toda a matéria de direito adiante invocada. Neste domínio, são quatro as questões que se discutem nesta Revista: (a) Erro de julgamento pelo não reconhecimento do abuso de direito; (b) Erro de julgamento quanto à qualificação do acordo/contrato e da sua validade; (c) Erro de julgamento quanto aos efeitos do acordo/contrato tal como qualificado pelo Tribunal da Relação de Guimarães; e, (d) Erro de Julgamento pela não imputação, nos termos da lei, dos valores entregues / pagos pelo Recorrente marido (Vd. Ponto IV.3. das Alegações de Revista).
11. Quanto ao abuso de direito, sem prejuízo da nulidade invocada por omissão de pronúncia (cf. Ponto IV.I), no caso concreto verifica-se o abuso de direito. Com efeito, a sociedade ora recorrida vem exercer uma posição contraditória em relação à posição por si anteriormente assumida, na medida em que os seus legais representantes não podiam/não deviam transmitir ao Recorrente marido em finais de 2016 o valor que o mesmo deveria pagar e, posteriormente, em início de 2020, vir notificá-lo para proceder ao pagamento do valor da fatura, muito superior ao que ficou estabelecido como devido. Não se pode deixar de referir que era do perfeito conhecimento da Recorrida e dos seus legais representantes que o referido valor já se encontrava totalmente saldado pelos ora recorrentes. E mesmo que assim não se entendesse, o que não se concede, não é devido qualquer valor até em razão do que ficou decidido no contexto da partilha entre os Srs. CC e DD, que não iriam cobrar qualquer valor aos seus funcionários. Pelo que, no caso em apreço, é manifestamente evidente que a ora recorrida está a agir em manifesto abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium. Além do mais, a Recorrida, bem como os seus legais representantes, incluindo FF, que é legal representante da sociedade desde 27/03/2018 e participou das reuniões relativas à partilha onde o valor que constava na contabilidade com rubrica “Obra da N...” não foi valorada como ativo/crédito, antes foi valorada a zero, porque não existia nada para ser cobrado/exigido ao Recorrente marido, enquanto colaborador da Recorrida. Dai que, quer o Sr. CC, quer FF não só tinham perfeita consciência de que nunca foi celebrado qualquer contrato de empreitada, que os trabalhos executados tinham por base um acordo celebrado entre as partes no âmbito das relações laborais existentes entre ambos, que jamais foi definido qualquer preço para a execução dos trabalhos, como também os mesmos sabiam que o valor lançado na contabilidade a título de custo pelo montante de € 37.840,18 e qualquer outro montante respeitante à obra já estava pago ou, sem conceder, no limite perdoado. Pelo que a sociedade Recorrida, ao agir judicialmente contra os Recorrentes, requerendo a sua condenação a proceder ao pagamento da quantia de € 94.701,41 (noventa e quatro mil setecentos e um euros e quarenta e um cêntimos) a título de preço, ao abrigo de um contrato de empreitada inexistente, volvidos cerca de 9 (nove) anos após a execução das obras, com base na elaboração unilateral de um documento denominado “descrição dos trabalhos”, bem como, à emissão de uma fatura sem qualquer correspondência com a realidade está a agir em manifesto abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium. (Vd. Ponto IV.3., letra A) das Alegações de Revista).
12. Os Recorrentes consideram, ainda, que a sociedade Recorrida encontra-se a agir em manifesto abuso de direito na modalidade de supressio, isto porque o seu comportamento ao longo dos anos e os atos por si praticados - acordo aprovado e aceite por ambos os intervenientes, realização dos trabalhos ao longo do tempo e de forma faseada de acordo com a disponibilidade da sociedade Recorrida e lançamento da obra na sua contabilidade da Recorrida, única e exclusivamente a título de custo, apresentação de proposta de pagamento de valor em 26/12/2016, não valoração de qualquer valor de crédito da Recorrida sobre o Recorrente marido aquando da partilha da Recorrida -, foi adequado a criar a convicção, a quem quer que fosse, que estava em causa uma situação de inexistência de dívida definitivamente consolidada; até porque existia uma justificada confiança e compromisso na validade das decisões tomadas entre as partes. Pelo que a ora Recorrida, ao vir passados cerca de 9 (nove) anos, invocar a celebração de um contrato de empreitada, apresentar um mapa de trabalhos e uma fatura completamente desfasada da realidade, sem qualquer fundamentação ou credibilidade, única e exclusivamente com o objetivo de obter uma vantagem patrimonial indevida, está a agir indubitavelmente em manifesto abuso de direito, pelo que os pedidos formulados na presente ação excedem manifestamente os limites impostos pela boa-fé e são manifestamente abusivos nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 334º do Código Civil. (Vd. Ponto IV.3., letra A) das Alegações de Revista).
13. Relativamente à qualificação do contrato, ao apreciar a relação negocial, em concreto, a Relação de Guimarães apreciou, com o devido respeito, como veremos, mal. No caso concreto, as questões de direito que levam a decisão distinta da proferida pelas instâncias precedentes quanto à qualificação do contrato são flagrantes e independentes da factualidade dada como provada e da factualidade dada como não provada. Acresce ainda que, mesmo num cenário – que não se concede – de a matéria de facto não ser alterada nos termos acima propugnados, o facto de os factos de n.ºs 5, 6 7, 26 e 27 terem sido dados como provados e o facto n.ºs 6 ter sido dado como não provado são, por si, sustentadores do direito dos Recorrentes. Apesar da conceção abrangente de contrato dada pela lei, a subsunção de um acordo a um tipo contratual específico exige a verificação de requisitos específicos e particularizados para o tipo contratual em questão. Exige ainda a aferição e o encontro de vontade das partes quanto a todos os aspetos essenciais do tipo contratual visado. No caso dos autos, como o Tribunal da Relação de Guimarães reconhece, o acordo alcançado entre as partes teve na sua base as relações profissionais, pessoais e de confiança próximas, tendo sido nota marcante a ligação profissional que a Recorrida, e particularmente os seus dois gerentes Srs. CC e DD, e o Recorrente marido mantinham entre si. Ora, do que resultou provado, no caso em apreço, a vontade das partes não foi a sua vinculação através de um contrato de empreitada. De facto, o acordo que alcançaram nada teve a ver com a celebração de um contrato de empreitada. Como resulta da prova produzida e da matéria de facto dada como provada e não provada, independentemente das alterações da matéria de facto cuja reapreciação se requer nesta Revista, nunca existiu a redução a escrito de um qualquer contrato, nem no momento da conclusão do acordo ficaram definidas ou acordadas todas as condições essenciais de um contrato de empreitada, nomeadamente, a clara identificação do seu objeto, preço, prazo e condições de pagamento. Esta falta é compreensível porquanto, no caso em apreço, o que existiu foi única e exclusivamente um acordo alcançado no âmbito das relações laborais e profissionais que existiam entre ambas as partes.
14. Aliás, foi em razão da especialíssima relação existente entre as partes e de o acordo ter sido alcançado naquele âmbito que a Recorrida só iniciou os trabalhos no imóvel dos Recorrentes quando teve condições de iniciar, que os trabalhos foram realizados em duas fases temporalmente distantes, que este acordo nunca foi reduzido a escrito conforme é normal no giro comercial, que quando concluíram o acordo as partes não tinham definido todos os elementos do contrato, em especial, não tinham delimitado o objeto dos trabalhos, não tinha sido acordado o prazo para o início e para a conclusão dos trabalhos, o preço (que deve ser pelo menos determinável em razão da delimitação do objeto), prazo e respetivas condições de pagamento. As partes limitaram-se a acordar que, para atender melhor as necessidades dos Recorrentes e estes libertarem o andar da Recorrida onde estavam a viver gratuitamente, a Recorrida realizaria “obras” de melhoramento e de aperfeiçoamento no imóvel que os Recorrentes haviam comprado, quando a Recorrida pudesse (cfr. factos provados de n.ºs 17 1.ª parte, 23, 25 e 26). (Vd. Ponto IV.3., letra B) das Alegações de Revista).
15. Acresce que, no caso concreto não houve a delimitação/identificação da obra. Ora, a não identificação de uma obra propriamente dita, ou seja, dos trabalhos a realizar, tem consequência direta na qualificação do contrato. Na verdade, as partes limitaram-se a fixar como prestação, como objeto (imediato) do contrato, a realização de serviços de construção civil e serviços conexos no imóvel dos Recorrentes. Sucede que, atendendo ao regime jurídico da empreitada consignado no artigo 1207.º e ss do CC, para que o contrato possa ser qualificado como empreitada a lei exige a determinação de “certa obra”, sendo esta exatamente a posição doutrinária e jurisprudencial sobre a matéria. Desta disposição – artigo 1207.º do CC – decorre que o acordo relativo aos trabalhos, à obra, deve estar devidamente especificado no contrato, e não durante a sua execução. A expressão “certa” conduz a tal interpretação, que é confirmada pelo disposto nos artigos 1208.º e 1214.º do CC. Destas disposições resulta que quando a lei portuguesa refere que a obra deve ser “certa”, quer dizer que a obra deve estar devidamente especificada no contrato (ou seja, estar determinada ou ser facilmente determinável), não sendo suficiente menção genérica à finalidade última da obra (construção de imóvel, melhoramento, ampliação, remodelação etc). A lei exige mais. Exige a devida delimitação da obra e especificação dos trabalhos a realizar, segundo um plano e com características definidas no conteúdo contratual acordado com o dono da obra. Este entendimento é reforçado pelo disposto no n.º 1 do artigo 26.º do da Lei n.º 41/2015, de 03 de Junho, aplicável à empreitadas de valor superior a € 16.600,00 que estabelece a forma e o conteúdo de um contrato de empreitada (esta redação repete o que constava do artigo 29.º do DL nº 12/2004 que foi revogado pela Lei nº 41/2015). Isto posto, se se tiver em vista um contrato de empreitada (qualificação que não acompanhamos) a falta de especificação, no contrato, da obra, dos trabalhos certos a realizar leva à indeterminação e indeterminabilidade do objeto, e fere o contrato de nulidade nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 280.º do CC. considerando a qualificação que a Relação de Guimarães deu ao contrato, contrato de empreitada, a par de outros vícios do contrato, máxime falta de forma, só se pode concluir que o “contrato” é nulo por falta de objeto. Pois, sem obra e sem critério objetivo para a definir, a manter-se a qualificação como empreitada, haverá, pois, que concluir inevitavelmente pela nulidade do contrato por indeterminação do objeto (Vd. Ponto IV.3., letra B) das Alegações de Revista).
16. Adicionalmente, no caso dos autos, considerou a Relação que o contrato que qualificou como sendo de empreitada é nulo por falta de forma. Quanto a isto, entendem os Recorrentes que, se eventualmente este Superior Tribunal mantiver a qualificação do contrato como sendo de empreitada - o que não se concede e não se acredita que venha a acontecer – há de ser mantida a decisão de que o contrato é nulo por falta de forma, pelas razões já aventadas no Acórdão e pelo que se expõe na letra B) do Ponto IV.3 das alegações de Revista – em especial, pontos 60 e 61 supra (Vd. Ponto IV.3., letra B) das Alegações de Revista).
17. Estando patente que o contrato não pode ser qualificado como contrato de empreitada, e não o é, que contrato estaria em causa nos presentes autos? Já se afirmou e aqui se reitera que o contrato foi celebrado no contexto de relações laborais e/ou profissionais e comporta muitas particularidades. Além disto tem na base relações especialíssimas e de confiança. Na verdade, o que está em causa é um contrato atípico. Em boa verdade, estamos perante um contrato de prestação de serviços atípico, celebrado em razão das relações de proximidade e profissionais entre as partes, sujeito às regras do mandato por força do art.º 1156º do CC, tendo, de acordo com o disposto na alínea c) do art.º 1167º do CC, no final, os legais representantes da Recorrida indicado o critério para pagamento e o Recorrente marido aceite. No limite, estamos perante um contrato de prestação de serviços stricto sensu. Seja como for, este outro tipo contratual também está ferido de nulidade por falta de objeto, nos termos do artigo 280.º n.º 1 CC. É que, atendendo à previsão deste artigo, a determinação ou determinabilidade do objeto é requisito essencial do contrato, qualquer que seja ele e a sua falta vicia o contrato ferindo-o de nulidade. (Vd. Ponto IV.3., letra B) das Alegações de Revista).
18. Quanto ao erro de julgamento relativo aos efeitos do acordo/contrato, por referência a qualificação como contrato de empreitada nulo, errou a Relação por várias ordens de razão: (a) sendo o contrato nulo, errou o Tribunal ao atribuir efeito ao contrato tal como se estivesse em causa um contrato válido; (b) porque, na falta de fixação do preço pelas partes, aplicou o disposto no artigo 833.º do CC para concluir que o valor a ser tomado em consideração é o valor de mercado, abstraindo o facto de estar em causa um contrato nulo com regime de solução específico, e o artigo 1211.º do CC, que remete para aquela disposição, ter por pressuposto um contrato válido (o que não é o caso dos autos); (c) errou ainda porque desconsiderou, em absoluto, o valor entregue pelo Recorrente marido ao gerente da Recorrida (€ 28.000,00). Acresce que entendeu a Relação de Guimarães que os Recorrentes devem pagar o valor total dos serviços indicados na fatura, por achar que este é o valor de mercado e que não tendo as partes excluído IVA e não existindo renúncia a IVA este imposto também é devido. Ora, em nenhum momento a Recorrida referiu que existia desconto na fatura (redução do lucro ou dos encargos) pelo que é uma fatura normal, que tem lucro e sujeita a IVA; assim, a Relação entendeu que os Recorrentes devem pagar o valor de mercado (o que significa dizer que inclui lucro e IVA), como se se tratasse de condenação emergente de um contrato válido. Acresce que a fatura foi apresentada sem qualquer desconto, importando ainda ter aqui presente os factos indicados no ponto 67 das Alegações de Revista, máxime que não se apurou o que as partes acordaram quanto ao preço a pagar. Sucede que não obstante a referida factualidade, a Relação de Guimarães entendeu como solução legal e adequada que, sendo o contrato nulo, por estar ferido de vício de forma, os Recorrentes devem restituir os trabalhos pelo valor de mercado, tal como a empresa os contabilizou mais de três anos após a obra ter sido concluída. Assim sendo, partindo do pressuposto – errado, diga-se – que os Recorrentes não efetuaram qualquer pagamento, a Relação de Guimarães entendeu que os Recorrentes devem “restituir” como se o contrato tivesse sido um contrato de empreitada normal, válido e celebrado no mercado entre a empresa e um cliente comum. A solução é uma aberração jurídica insustentável! (Vd. Ponto IV.3., letra C) das Alegações de Revista)
19. Os Recorrentes refutam veementemente a solução dada pelo Tribunal da Relação de Guimarães no sentido de que na falta de acordo quanto ao preço, os critérios para aferição do valor da restituição por efeito da declaração de nulidade do negócio (artigo 289.º n.º 1 do CC) estão sustentados no artigo 883.º do CC, tendo sido irrelevante estar em causa um contrato nulo. Não se pode aceitar que por atuação ilícita do empreiteiro, o dono da obra seja onerado tal como se de contrato válido se tratasse. A ser assim é indiferente existir norma a atribuir efeito de nulidade, ou não, e norma a exigir o cumprimento de vários requisitos, ou não. Ora, perante cenário de nulidade do contrato por culpa da Recorrida, a solução gizada pelo artigo 289.º n.º 1 do CC não conduz a que a restituição possa beneficiar o infrator. Ademais o caso concreto tem particularidades e não pode ser conformado tal como uma empreitada comum e contratada nas relações normais de mercado. As relações especialíssimas entre o Recorrente marido e os legais representantes da Recorrida, a relação laboral e profissional existente exige que o caso dos autos seja apreciado com as especificidades que comporta. Aliás, nem é normal uma empresa de construção civil do porque que tem a Recorrida dar início a qualquer obra sem um contrato assinado. A própria falta de contrato atesta que os trabalhos foram feitos ao abrigo de um acordo especialíssimo. (Vd. Ponto IV.3., letra C) das Alegações de Revista).
20. Acresce que, no caso vertente, se provou que (a) a obra teve início sem que as partes tivessem acordado um preço e/ou a sua determinabilidade; (b) em 2016 após a conclusão da obra, a Recorrida/Sr. CC (sócio-gerente que ficava mais a frente dos negócios da Recorrida) indicou, unilateralmente, o critério de determinação/fixação do preço, conforme e-mail de 26/12/2016 (custos); (c) na medida em que a obra foi sendo realizada, os custos com os trabalhos (materiais e mão de obra) realizados no Imóvel dos Recorrentes foram sendo lançados na contabilidade da Recorrida em centro de custos próprio para esta obra (“N...”), o que era a prática comum adotada pela empresa em relação a qualquer obra; (d) que em relação a esta obra foi lançado na contabilidade o valor de € 37.839,19 (que corresponde ao custo da obra), valor este que se manteve até final de 2019. Na verdade, atendendo à prova produzida, o único documento de onde se pode extrair fio condutor para se aferir sobre o critério de fixação do preço é o e-mail de 26/12/2016 (Documento 2 junto na sessão de julgamento 27/06/2022). Atente-se que para se considerar que existe preço, o critério de sua determinação deve ser feito ab initio e não no final, como se viu do e-mail de 26/12/2016. Acresce ainda que dos depoimentos prestados não se pode retirar que as partes tenham acordado como preço, aquele “normalmente praticado no mercado à data da sua conclusão, em relação à obra global”. Importa notar que foi em razão de entender que as partes não acordaram o preço, nem o critério de fixação, que a Relação aplicou a norma do artigo 833.º do CC, indicando como valor a restituir o que considerou ser o valor de mercado, igualando este conceito ao valor constante da fatura, ou seja, ao valor que a Recorrida cobrou entendendo que seria o “preço” (Vd. Ponto IV.3., letra C) das Alegações de Revista).
21. A questão que se coloca é qual o valor a restituir no caso de contrato nulo, tal como o dos autos, que tem por base uma relação especial e de confiança? Qual o critério para fixação do valor a restituir? Em linha com o entendimento perfilhado pelo Professor Filipe Cassiano dos Santos no Parecer que os Recorrentes juntam à presente Revista, quando as partes não fixarem o preço, ou o valor do contrato previamente, estando em causa contrato nulo, o critério da fixação do preço é o da equidade, não sendo de incluir a margem de lucro, nem o IVA. Ora, conforme entendimento pacífico da doutrina e jurisprudência, a equidade traduz, no nosso sistema jurídico, um método facultativo que o julgador tem ao seu dispor para que possa decidir sem aplicação de regras formais, ainda que essa decisão tenha de ser tomada “à luz de diretrizes jurídicas dimanadas pelas normas positivas estritas”. No entanto, no caso em apreço, a decisão com base na equidade deve ainda ter em conta que foi a própria Recorrida quem definiu o valor final a liquidar pelos Recorrentes, conforme indicado no e-mail de 26/12/2016, que o valor de € 37.840,18 esteve lançado na contabilidade desde a altura da realização dos trabalhos até dezembro de 2019, como centro de custos da obra “N...”.
22. Acresce que as partes sempre devem atuar respeitando a boa-fé contratual, quer na fase pré-contratual, quer na fase pós-contratual, ulterior à consumação do negócio, cabendo ao Tribunal atuar não no plano das responsabilidades situadas no perímetro do contrato celebrado, mas antes no plano de um dever imputável às partes.
23. O que se viu foi que a Recorrida veio a alterar o valor da obra “N...” na sua contabilidade em final de 2019, ao arrepio do que antes estabelecera, atuando, aqui, com violação culposa do seu dever de observar a boa-fé. Acresce ainda que nas contas da Recorrida do ano de 2018 não constava qualquer valor em relação à obra “N...”, facto que também deve ser devidamente considerado para apreciação do valor no plano da equidade e, para apreciação da situação sub judice, no plano da violação da boa-fé por parte da Recorrida.
24. Mas há mais. O Sr. CC era gerente da sociedade na data da celebração do acordo em 2011, na data do e-mail de 26/12/2016 em que a Recorrida, unilateralmente, indicou o valor a ser liquidado pelo Recorrente marido, por indicação daquele (Dezembro de 2016), na data em que a Recorrida alterou o valor na contabilidade (Dezembro de 2019) e, na data da emissão e envio da fatura no valor global de para o Recorrente marido com valor superior ao que sempre constou da contabilidade (fevereiro de 2020), não sendo este facto irrelevante, inclusivamente, porque cabia à Recorrida, e, bem assim ao Sr. CC enquanto gerente/administrador, como órgão da sociedade Recorrida, atuarem com boa-fé.
25. Ora, tratando-se a decisão tomada em 2016 por gerentes com plenos poderes, agindo em nome da sociedade, quanto ao valor a ser liquidado, a decisão tem eficácia perante o terceiro e como tal vinculava a sociedade. Isto, por si, impede que a administração posterior desconsidere o anteriormente decidido pelo órgão competente para o efeito. Deste modo, no caso concreto, também no plano da equidade, é relevante que este Tribunal Superior tome os referidos factos em consideração e bem assim os referidos princípios, esteja perante um contrato nulo ou um contrato válido, qualquer que seja o tipo contratual. Mas ainda há mais: pese embora se reconheça que, apesar de existir uma obrigação de restituição no caso do artigo 289.º n.º 1 e do enriquecimento sem causa, e que a restituição supõe a deslocação de um valor entre patrimónios (isto é, entre um património beneficiado e outro desfalcado) e que há diferenças entre os efeitos da declaração de nulidade e do enriquecimento sem causa, vindo este Tribunal Superior a entender que o contrato, independentemente do tipo contratual, é nulo, sempre será também necessário, à luz dos factos concretos, não perder de vista que o regime da restituição no enriquecimento sem causa também deve servir de baliza para nortear o âmbito da restituição no caso da nulidade a que é aplicável o regime do artigo 289.º n.º 1 do CC. Veja-se que o enriquecimento sem causa não privilegia ou consente direito ao infrator. Recorde-se que vindo a ser declarada a nulidade do contrato, esta sempre decorre de ato culposo da Recorrida, que não observou obrigação que impendia e só impende sobre si. Assim, também por via deste paralelismo não se pode consentir que a Recorrida receba mais do que receberia se o contrato fosse válido e daquilo que os Recorrentes pagariam se tivessem efetuado o pagamento em dezembro de 2016 (Vd. Ponto IV.3., letra C) das Alegações de Revista).
26. Assim sendo, só se pode concluir que ao aplicar o artigo 883.º do CC para estabelecer o valor da contrapartida o Tribunal da Relação incorreu em erro, porquanto esta disposição é aplicada por remissão do artigo 1211.º do CC, quando esteja em causa contrato válido. Diferentemente, quando esteja em causa contrato nulo, a solução é distinta: devendo o valor da restituição determinada pelo artigo 289.º n.º 1 do CC ser apurado com base na equidade, e sempre com respeito aos princípios da boa-fé e da confiança. Diga-se mais. Vindo este Tribunal Superior a entender que efetivamente não existe qualquer contrato, quiçá por não estarem preenchidos todos os requisitos necessários à sua formação, e que o direito da Recorrida à restituição se funda no enriquecimento sem causa, conforme o quinto pedido (pedido subsidiário), invoca-se desde já a prescrição do direito. (Vd. Ponto IV.3., letra C) das Alegações de Revista).
27. Relativamente ao erro de julgamento pela não imputação dos valores pagos nos termos da lei, conforme sublinha o Professor Filipe Cassiano dos Santos no Parecer, “provado que os réus deviam uma quantia em dinheiro à autora, se se vier a provar que fizeram a esta um pagamento em dinheiro e que essa era a única dívida em dinheiro dos réus diante da autora, então o pagamento que os réus fizeram, não se tendo embora provado que tenha havido acordo ad hoc ou que os devedores tivessem determinado que estavam a pagar essa dívida, não pode deixar de ser imputado, por ser essa a imputação natural e que resulta da aplicação da lei, ao cumprimento da dívida única que tinha por objecto o bem prestado. O possível pagamento, a ter-se provado, teria claro relevo jurídico. O TRG não poderia, por essa razão, ter renunciado – diante de um recurso sobre esse ponto – a averiguar a existência do pagamento.” No caso dos autos da prova resulta que o Recorrente marido entregou € 28.000,00 à Recorrida e três declarações de quitação (vd, nomeadamente, pontos 82 e 83 das Alegações de Revista) (Vd. Ponto IV.3., letra D) das Alegações de Revista).
28. Ora, apesar de a sentença, ainda que não tendo apurado a finalidade dos pagamentos que o Recorrente marido fez, e a Relação também não tenha tomado tal pagamento/entrega dos € 28.000,00 à Recorrida, a Relação não poderia ter retirado daí, como um facto, que não houve qualquer pagamento e que a obrigação cujo cumprimento é pedido não foi cumprida. Antes, tendo existido a entrega de € 28.000,00, e não tendo sido indicada a dívida a ser paga, os artigos 783.º e 784.º do CC resolvem o problema da imputação de uma prestação a uma obrigação. Mas, se é verdade que a lei não resolve diretamente os casos em que o devedor tem apenas uma dívida diante de um certo credor ou em que tem dívidas de espécies diferentes, de forma que se deve socorrer do princípio geral de que, quem realiza a prestação tem a faculdade de indicar a obrigação a que aquela prestação se refere. Vertendo ao caso dos autos, há, por um lado, uma única dívida e, por outro lado, valores entregues. Assim, nos ensinamentos do Professor Filipe Cassiano dos Santos, “a imputação, na falta de indicação pelo devedor, faz-se por via daquilo que é a imputação natural, ou seja, faz-se por aplicação do critério da identidade, com o que a prestação em dinheiro se considera feita em cumprimento dessa obrigação em dinheiro”. Assim, provado que os Recorrentes deviam uma quantia em dinheiro à Recorrida, sendo certo que o Recorrente marido fez a entrega/ pagamento dos € 28.000,00, e sendo o valor da obra a única dívida em dinheiro dos Recorrentes à Recorrida, então o pagamento que os Recorrentes fizeram, não se tendo embora provado que tenha havido acordo ad hoc ou que os mesmos tivessem determinado que estavam a pagar essa dívida, não pode o valor deixar de ser imputado ao cumprimento da obrigação, por ser essa a imputação natural e que resulta da aplicação da lei, ao cumprimento da dívida única que tinha por objeto a realização da obra. Pelo que, ao não considerar a entrega do valor (€ 28.000,00) e não fazer a sua imputação nos termos legais, errou a Relação de Lisboa (Vd. Ponto IV.3., letra D) das Alegações de Revista).
29. Por tudo o quanto antes exposto no Ponto IV.3, foram assim violados os artigos 9.º, n.º 1, 219.º, 220.º, 280.º, 286.º, 289.º n.º 1, 234.º, 334.º, 400.º n.º 2, 783.º, 784.º, 883.º, 1156.º, 1158.º, 1167.º, 1207.º, 1208.º, 1211.º, 1212.º, 1214.º, todos do Código Civil (CC), artigo 29.º do Dec.-Lei nº 12/2004, cuja redação manteve-se no artigo 26.º da Lei n.º 41/2015 de 03 de junho que o revogou.
A recorrida respondeu, sustentando a manutenção do acórdão recorrido. Para o efeito alegou em síntese:
1. A revista “normal” deduzida no recurso sub judice não deve, nem pode, ser admitida por força da “dupla conforme” mitigada, racional ou ponderada, verificada no processo atento o facto de ambas as instâncias terem decidido, de forma igual, condenar (1) os RR. a pagarem à A. a quantia de €93.592,94, com IVA incluído, (2) acrescida de juros legais desde a citação até integral pagamento, por, na fundamentação, (3) terem decidido ter sido celebrado contrato verbal de empreitada (de obras de construção civil) entre as partes, (4) considerando a 1ª instância tal contrato válido e a Relação tal contrato nulo por força da forma verbal que revestiu, e (5) aplicando ambas o regime legal decorrente de tais entendimentos, mas com resultado absolutamente igual.
2. Ora, a existência no processo de duas decisões com resultado igual quanto ao montante da obrigação pecuniária reconhecida contra os RR. a favor da A., com resultado igual quanto à obrigação do seu pagamento pelos RR. à A., com resultado igual quanto à composição dessa obrigação pecuniária, incluindo-lhe o IVA, com resultado igual quanto à obrigação de pagamento de juros legais desde a citação até integral pagamento, tudo baseado na mesma questão jurídica, isto é, ter sido celebrado entre as partes contrato verbal de empreitada de obras de construção civil, independentemente da sua validade ou não, impõe a conclusão de ter ocorrido dupla conforme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, porquanto há coincidência racional na condenação pelas 2 instâncias anteriores na obrigação dos RR. pagarem à A. exactamente o mesmo valor, com base no mesmo contrato de empreitada.
3. Dupla conforme verificada também, e nomeadamente, nos segmentos decisórios essenciais no processo e vertidos em ambas as decisões condenatórias dos RR., isto é, (1) o de saber se o contrato verbal celebrado entre as partes é de empreitada de obras de construção civil, (2) o de saber se por força do respectivo regime os RR. devem ou não o valor das obras à A., com IVA incluído, (3) o de saber se por isso os RR. devem ou não ser condenados ao seu pagamento à A., (4) o de saber qual o montante desse valor, (5) o de saber se ao mesmo acrescem juros de mora à taxa legal desde a citação; porque obtiveram todos, sem excepção, decisões absolutamente idênticas entre as instâncias.
4. Por outro lado, a admitir-se a revista “excepcional” deduzida no recurso em causa, o que se concede por mera cautela, então, esta revista está limitada às questões resultantes da diferença entre as decisões proferidas pelo acórdão recorrido e pelo acórdão fundamento, a saber, se na restituição do indevidamente recebido em contrato de empreitada nulo por vício de forma, no caso de a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente a restituir pode corresponder ao valor de mercado à data da obra, incluindo o lucro respectivo, acrescido do IVA que for devido e, ainda, os juros à taxa legal contados desde a citação, tida como interpelação para a restituição
5. E, neste caso da revista “excepcional”, se admitida, deve, tem de decidir-se no sentido propugnado e decidido pelo acórdão recorrido, que decidiu ser de restituir o valor correspondente ao valor de mercado à data da obra, acrescido do IVA, por ser imposto devido ao Estado pelo dono da obra, e dos juros legais contados desde a data da citação e até efectivo pagamento.
6. Por mera cautela e se, por hipótese que se aventa apenas por dever de patrocínio, se considerar admitida a revista “normal”, pese embora a dupla conforme verificada, então devem improceder todas as conclusões do recurso de revista ora em análise, proferindo-se douto Acórdão que mantenha integralmente o acórdão recorrido, só assim se fazendo a usual e esperada JUSTIÇA.
O Tribunal da Relação, pronunciando-se sobre as nulidades do acórdão, indeferiu a arguição delas.
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Síntese das questões suscitadas pelo recurso:
• Saber se o acórdão é nulo por omissão de pronúncia;
• Saber se no julgamento da impugnação do ponto n.º 14 dos factos provados e do ponto n.º 5 dos julgados não provados, o tribunal da Relação não fez uso dos poderes deveres que lhe são conferidos, em sede de reapreciação da decisão de facto, pelas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC;
• Saber se, no julgamento da impugnação do ponto n.º 7 dos factos julgados provados, o tribunal incorreu em erro de interpretação e aplicação do disposto no artigo 5.º do CPC;
• Saber se facto não provado descrito sob o ponto n.º 1 está em contradição com os factos provados descritos sob os n.ºs 6, 24 e 25;
• Saber se o facto não provado n.º 3 está em contradição com os factos provados números 6, 23, 24 e 25;
• Saber se a sociedade recorrida, ao agir judicialmente contra os recorrentes, requerendo a sua condenação no pagamento da quantia de € 94.701,41 (noventa e quatro mil setecentos e um euros e quarenta e um cêntimos) a título de preço, ao abrigo de um contrato de empreitada, volvidos cerca de 9 (nove) anos após a execução das obras, com base na elaboração unilateral de um documento denominado “descrição dos trabalhos”, bem como, à emissão de uma fatura está a agir em manifesto abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium;
• Saber se a ora recorrida, ao vir passados cerca de 9 (nove) anos, invocar a celebração de um contrato de empreitada, apresentar um mapa de trabalhos e uma fatura, está a agir, indubitavelmente em manifesto abuso de direito, na modalidade da supressio;
• Saber se o acórdão recorrido incorreu em erro ao qualificar o acordo celebrado entre R..., Lda e o réu como contrato de empreitada;
• Saber se o acórdão recorrido incorreu em erro ao decidir que o objecto do contrato era determinado;
• Saber se o acórdão recorrido incorreu em erro ao decidir que, por efeito da declaração da nulidade do contrato, os réus estavam constituídos na obrigação de restituírem à autora a quantia de € 93.592,94 (noventa e três mil, quinhentos e noventa e dois euros e noventa e quatro cêntimo), com IVA incluído, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal de 4% ao ano (ou a outra que vier legalmente a ser fixada), desde a data da citação até integral pagamento;
• Saber se o acórdão recorrido incorreu em erro ao não imputar no valor a restituir o montante de 28 000 euros.
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Factos considerados provados e não provados pelo acórdão recorrido:
1. A sociedade “Onirodrigues, S.A” dedica-se ao exercício da actividade da construção de edifícios, promoção imobiliária, compra e venda de bens imobiliários, aluguer de equipamentos para a construção civil, arrendamento de bens imobiliários, administração de imóveis por conta de outrem, mediação e angariação imobiliária, com intuito lucrativo, tendo sede na Av. ..., em ....
2. São seus administradores, desde 26 de Maio de 2020, FF, ... do respectivo Conselho de administração, e GG, ... daquele mesmo órgão, os quais substituíram CC e HH, os quais renunciaram ao cargo a 15.05.2020 e a 31.01.2020, respectivamente.
3. A sociedade R..., Lda foi constituída em 1981; por deliberação de 21/04/2018 foi objecto de cisão com destaque de parte do seu património para constituir a sociedade “R...2, Lda”; e por deliberações de 31/10/2018, foi objecto de aumento do capital social, de transformação da sociedade de quotas para sociedade anónima, e de alteração da firma para “Onirorodrigues, SA”, tendo sido nomeados para o conselho de administração (quadriênio 2018/2021), CC, HH e FF.
4. Tal sociedade (R..., Lda) iniciou a sua actividade e giro comercial em 1981, sendo o seu capital social representado por duas quotas, uma detida por DD e a outra por CC, ambos únicos gerentes da sociedade, situação que se manteve até 27/03/2018, data em que DD renunciou à gerência e foi nomeado, em sua substituição, FF».
5. Entre a referida sociedade ((R..., Lda) e o réu marido foi celebrado, no ano de 2011, e por forma verbal, um acordo através do qual a primeira se obrigou a realizar obras de melhoramento e adaptação que viessem a revelar-se necessárias no prédio urbano adquirido pelos réus, sito na Rua ..., Quinta da N..., em ..., e o segundo obrigou-se a pagar as obras, tendo no âmbito deste acordo a Autora realizado as obras e trabalhos e fornecido os materiais e equipamentos referidos nos arts. 9.º e 10.º da petição inicial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido».
6. O réu marido, ao tempo da celebração de tal acordo e sua integral execução, era prestador de serviços da “R..., Lda.”, assumindo ainda funções de director financeiro da “B..., S.A.” e da “C..., S.A.”.
7. A “R..., Lda” executou para os réus obras e trabalhos, forneceu materiais, mão-de-obra e equipamentos de construção civil na remodelação e ampliação do aludido prédio urbano, que ascenderam, a preços correntes de mercado, ao valor global de 94.701,41 Euros (noventa e quatro mil setecentos e um euros e quarenta e um cêntimo), com IVA incluído».
8. As referidas obras, trabalhos, fornecimento de mão-de-obra materiais e equipamentos fornecidos, que foram realizados e prestados pela sociedade comercial R..., Lda, ocorreram em duas fases, sendo a 1ª fase entre Fevereiro a Dezembro de 2011 e sendo a 2ª fase no período de tempo compreendido entre Agosto de 2014 a Julho de 2016.
9. Os réus fiscalizaram directamente todos os trabalhos, fornecimento de materiais e equipamentos, não tendo denunciado a existência de qualquer vício ou defeito, tendo aceitado a obra nas suas duas fases.
10. Os aludidos trabalhos foram realizados e implantados de acordo com as plantas existentes de distribuição e drenagem de águas pluviais, saneamento e quadro de sapatas de fundação.
11. Mediante carta registada, com aviso de recepção, expedida pela sociedade autora, em 6 de Fevereiro de 2020 e recebida pelos réus no dia 11 de Fevereiro de 2020, acompanhada do auto com a discriminação dos trabalhos realizados, aquela endereçou ao réu marido a factura n.º FA 2020/80.
12. E solicitou a liquidação do seu valor no prazo de 30 dias a contar da recepção da aludida carta, por meio de transferência bancária para a conta com IBAN ali indicado.
13. O réu marido comunicou à autora, por escrito, não lhe ser devedor de qualquer quantia e a qualquer título.
14. Até à data os réus não pagaram qualquer valor à autora.
15. A realização dos aludidos trabalhos, fornecimento de materiais e equipamentos foi feita com conhecimento e consentimento da ré mulher.
16. A qual assistiu e acompanhou a execução desses trabalhos e definiu, perante a R..., Lda” e seus colaboradores, pormenores da sua execução.
17. Tais obras e trabalhos visaram satisfazer interesses de conforto, beneficiação, melhoria, segurança e amplificação da moradia habitacional onde os réus residem, e visaram ainda satisfazer interesses económicos daqueles, por via da valorização do seu imóvel.
18. As aludidas obras e trabalhos, materiais e equipamentos fornecidos foram realizadas na constância do seu matrimónio.
19. CC e DD foram sócios e/ou accionistas, bem como gerentes e/ou administradores, quer da “R..., Lda”, aquele último nesta sociedade até 27.03.2018, data em que renunciou ao cargo de gerente, bem como da “B..., S.A.” e a da “C..., S.A.” e de muitas outras empresas do mesmo grupo.
20. Após diversos litígios entre os aludidos accionistas, estes decidiram avançar para um processo global de partilha dos activos que detinham em comum e onde se englobava a sociedade “R..., Lda”.
21. Em 26 de Março de 2018, os aludidos accionistas assinaram um denominado “acordo de princípios”, no âmbito do qual partilhar diversos activos, sendo que a “R..., Lda” foi adjudicada a CC.
22. Está pendente, desde 2 de Março de 2020, a acção comum distribuída com o n.º 1356/20.4..., no J3 dos juízos centrais cíveis de ..., em que são autores DD e mulher e a sociedade “N..., S.A.” e são réus CC e esposa e as sociedades “Onires, S.A” e “I..., S.A.”, onde foi arrolado como testemunha o aqui réu marido.
23. À data da celebração do acordo referido em 5), CC e DD mantinham uma relação de confiança e proximidade com o réu marido.
24. O ora réu marido foi contratado quando residia no Porto e não dispunha de habitação em Braga (sede de diversas sociedades e residência dos accionistas do referido grupo empresarial).
25. O réu marido e a família decidiram mudar-se para Braga, onde residiram num apartamento que foi cedido pelo referido grupo empresarial, entre Setembro de 2003 e Dezembro de 2011, sito em Braga, sem pagar renda.
26. O acordo descrito em 5. foi alcançado no âmbito das relações profissionais que existiam entre o R. marido e a R..., Lda” e a “B..., S.A.” e os seus accionistas».
27. A obra executada, após a sua conclusão e até 11/12/2019, esteve lançada na contabilidade da Autora a título de custo no montante total de € 37.839,18»
Não provados:
a. Que o acordo descrito em 5. foi alcançado no âmbito das relações laborais que existiam entre o R. marido e a R..., Lda” e/ou a “B..., S.A.” e os seus accionistas.
b. Que, em Setembro de 2003, ficou acordado entre as partes que, o ora réu e a sua família passariam a residir em Braga.
c. Que o alojamento do réu sempre foi considerado como um custo, como uma responsabilidade a assumir pela R..., Lda” e/ou a “B..., S.A.”.
d. Que ficou acordado entre as partes que o réu marido pagaria o custo efectivo da obra, conforme veio a ocorrer, através da entrega directa de numerário na empresa ou aos respectivos sócios.
e. Que o valor de 37.840,18 euros (trinta e sete mil, oitocentos e quarenta euros e dezoito cêntimos) foi integralmente liquidado pelo réu marido
f. Que, no âmbito do acordo referido em 5., a Autora e o Réu acordaram que as obras seriam realizadas mediante o preço normalmente praticado no mercado à data da sua conclusão, em relação à obra global;
g. Que no âmbito do acordo referido em 5., a Autora e o Réu mais acordaram que este apenas iria proceder ao pagamento do custo efectivo da obra».
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Descritos os factos provados e não provados, passemos à resolução das questões suscitadas pelo recurso.
A primeira é a de saber se o acórdão é nulo por omissão de pronúncia.
Segundo os recorrentes, o acórdão incorreu nesta causa de nulidade por não se ter pronunciado sobre a questão de saber se a autora, ao agir judicialmente contra os recorrentes, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 94.701,41 (noventa e quatro mil setecentos e um euros e quarenta e um cêntimos), age com abuso do direito, nas modalidades de venire contra factum proprium e supressio.
Este fundamento do recurso é de julgar improcedente.
A nulidade da sentença por omissão de pronúncia (prevista na 1.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, aplicável ao acórdão da Relação por remissão do n.º 1 do artigo 666.º do mesmo diploma) está directamente relacionada com o n.º 2 do artigo 608.º do CPC, na parte em que dispõe que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
São exactas as premissas de que partem os recorrentes para arguir a nulidade do acórdão, concretamente: 1) que uma das questões suscitadas no recurso de apelação era a de saber se a autora, ao pedir a condenação dos réus, nos termos em que o fez, estava a agir com abuso do direito; 2) que o acórdão recorrido não conheceu de tal questão.
São exactas as premissas, mas não os efeitos que delas retiram os recorrentes. É que, se é certo que o acórdão sob recurso não conheceu da questão do abuso do direito, também é certo que justificou a decisão de não conhecimento, como o atesta o seguinte trecho dele: “Tendo-se respondido afirmativamente à questão sobre a verificação da nulidade do contrato de empreitada celebrado entre Autora e Réu marido e tendo-se apurado o valor a restituir como efeito dessa nulidade, então está absoluta e definitivamente prejudicada a apreciação das questões relativas ao apuramento do valor devido pelos Réus à Autora a título de preço das obras executadas, no caso do contrato de empreitada não ser nulo, e/ou ao apuramento da quantia a receber dos Réus pela Autora a título do enriquecimento sem causa, no caso de inexistência de contrato de empreitada, tal como está absoluta e definitivamente prejudicada a apreciação das excepções peremptórias deduzidas pelos Réus de forma inerente a cada uma daqueles questões (abuso de direito e prescrição respectivamente).
Quando o juiz não conhece de uma questão suscitada pelas partes, mas justifica a decisão de não conhecimento, não há omissão de pronúncia para efeitos da 1.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC. Esta pressupõe não só o silêncio do julgador sobre a questão, mas também a ausência de justificação para tal silêncio. Socorrendo-nos das palavras de Alberto dos Reis, precisamente a propósito da omissão de pronúncia como causa de nulidade, “… uma coisa é o tribunal deixar de pronunciar-se sobre questão que devia apreciar; outra invocar razão, boa ou má, procedente ou improcedente para justificar a sua abstenção” (Código de Processo Civil anotado Volume V, Coimbra Editora, Limitada, página 143).
Pelo exposto, indefere-se a arguição de nulidade do acórdão baseada na omissão de pronúncia sobre a questão do abuso do direito.
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A segunda questão que importa solucionar é a de saber se, no julgamento da impugnação do ponto n.º 14 dos factos provados e do ponto n.º 5 dos julgados não provados, o tribunal da Relação não fez uso dos poderes-deveres que lhe são conferidos, em sede de reapreciação da decisão de facto, pelas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC.
Os recorrentes imputam ao tribunal da Relação a violação destes poderes-deveres com base, em síntese, na seguinte alegação:
• No recurso de apelação impugnaram a decisão do tribunal da 1.ª instância de julgar provada a matéria do ponto n.º 14 e a de julgar não provada a matéria do ponto n.º 5 dos factos não provados;
• O Tribunal da Relação manteve inalterada a matéria do ponto n.º 14, e não alterou o ponto n.º 5 nos termos pretendidos pelos recorrentes, mais concretamente não julgou provado que o valor de 37 840,18 euros tenha sido integralmente liquidado pelo réu marido. E não julgou provado o pagamento por considerar que o depoimento/declarações de parte do recorrente revelou incongruências e contradições e que as declarações/depoimentos juntos aos autos a fls. 221, 22 e 223 comprovam a recepção das referidas quantias, dado que estão assinadas pelos gerentes da recorrida, CC e DD; porém afinal vem a considerar que são manifestamente insuficientes para se demonstrar que estão relacionadas com o pagamento efectuado pelo recorrente marido, dado que não contêm qualquer referência às obras executadas na casa dos recorrentes e/ou pagamento das mesmas;
• O Tribunal da Relação não só agiu de forma deficiente, como não fez uso dos poderes/deveres que lhe são conferidos em sede de reapreciação da matéria de facto (alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC) e isto porque não só estava obrigado a proceder à remoção das eventuais incongruências do depoimento/declarações do recorrente, como também deveria ordenar todas as diligências de prova necessárias para se apurar o contexto em que foram emitidos os referidos cheques e as declarações emitidas pelos legais representantes da recorrida e ainda a relação subjacente á emissão dos referidos cheques;
• Tais diligências eram fundamentais para o apuramento da verdade material, pelo que a Relação devia ter ordenado a repetição do depoimento/declarações do recorrente marido e, ainda, ordenar todas as diligências probatórias necessárias, isto porque só após a produção dos respectivos meios de prova estaria em condições de decidir se tais «pagamentos estão diretamente relacionados com o pagamento dos trabalhos executados ou não.
O fundamento do recurso em apreciação é de julgar improcedente.
Antes de mais, vejamos o sentido das decisões de facto em questão. Sob o ponto n.º 14, o tribunal da 1.ª instância julgou provado: “Até à data os réus não pagaram qualquer valor à autora”. Sob o n.º 5 dos factos julgados julgou não provado que “a obra executada foi lançada na contabilidade a título de custo no montante de 37 840,18 euros e tal valor não foi integralmente liquidado pelo réu marido”.
É, em parte, exacta a alegação dos recorrentes de que o tribunal da Relação julgou improcedente a impugnação do ponto n.º 14 e parte do ponto n.º 5 por considerar que o depoimento/declarações do réu revelou várias incongruências e contradições (que foram expostas com pormenor) e que as declarações/documentos de fls. 221, 222 e 223 não continham qualquer referência às obras executadas na casa dos réus e/ou ao pagamento das mesmas. E diz-se que só em parte é exacta a alegação dos recorrentes porque não foram estas apenas as razões que levaram o tribunal da Relação a julgar improcedente a impugnação quanto a tais pontos da matéria de facto.
Ao julgar a impugnação, o tribunal da Relação não violou os poderes/deveres que lhe são conferidos pelas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC. Vejamos.
Segundo a alínea a), a Relação deve, mesmo oficiosamente, ordenar a renovação da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento; segundo a alínea b) deve ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova.
A renovação dos meios de prova produzidos na 1.ª instância não é uma novidade do Código de Processo Civil em vigor. O Código de Processo Civil anterior já previa, no n.º 3 do artigo 712.º do CPC, a hipótese de a Relação determinar a renovação dos meios de prova produzidos em 1.ª instância. Sucede que, enquanto no CPC anterior a Relação podia fazer uso deste poder-dever quando os meios de prova a renovar se mostrassem absolutamente indispensáveis ao apuramento da verdade, quanto à matéria de facto impugnada, agora a Relação tem o poder/dever de ordenar tal renovação quando “houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento”.
A renovação dos meios de prova, nos termos em que estão previstos no CPC em vigor, inscreve-se no reforço dos poderes da 2.ª instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material, como se diz na exposição de motivos da proposta de Lei n.º 113/XII que esteve na origem da Lei n.º 41/2013, que aprovou o Código de Processo Civil em vigor.
A situação que justifica a renovação dos meios de prova e/ou a produção de novos meios de prova é, nos termos da Proposta de Lei acima referida, a seguinte: “se os elementos constantes do processo, incluindo a gravação da prova produzida na audiência final, não forem suficientes para a Relação formar a sua própria convicção sobre os pontos da matéria de facto impugnados, tem a possibilidade, mesmo oficiosamente, de ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento e de ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova”.
Como se vê, o exercício dos poderes da Relação previstos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC pressupõem que, na avaliação da Relação, os elementos constantes do processo, nos quais se inclui a gravação da prova produzida em audiência final, não são suficientes para ela (Relação) formar a sua própria convicção sobre os pontos da matéria de facto impugnada. Poderes que poderão ser exercidos tanto oficiosamente como a requerimento de alguma das partes.
Dizendo o n.º 4 do artigo 662.º do CPC que das decisões da Relação previstas no n.º 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, é de afirmar que, em regra, o exercício dos poderes previstos nas alíneas acima referidas escapa ao controlo do Supremo Tribunal de Justiça. Compreende-se. É que, para controlar o exercício de tais poderes, seria necessário que coubesse na competência do STJ, em matéria de revista, a apreciação dos elementos constantes do processo sujeitos à livre apreciação e a formação da sua própria convicção sobre cada um dos factos julgados pela Relação, o que lhe está vedado pelo n.º 2 do artigo 682.º do CPC, combinado com a 1.ª parte do n.º 3 do artigo 674.º do mesmo diploma.
Pode, assim, afirmar-se que quando o tribunal da Relação não faz uso dos poderes/deveres previstos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC porque, na sua avaliação, os elementos constantes do processo eram suficientes para formar a sua própria convicção sobre os pontos da matéria de facto impugnados, tal posição da Relação está subtraída ao controlo do Supremo Tribunal de Justiça.
O não uso dos mencionados poderes/deveres apenas está sujeito ao controlo do STJ na seguinte situação: quando o tribunal da Relação, apesar de reconhecer, na decisão que julga a impugnação de facto, que os elementos constantes do processo não são suficientes para formar a sua própria convicção sobre os pontos da matéria de facto impugnados e que tal insuficiência deriva de alguma das situações previstas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC, não faz uso dos poderes de facto que lhe a lei lhe confere. Isto é, e para usarmos as palavras do acórdão do STJ proferido em 2-11-2023, no processo n.º 8988/19.1T8VNG-B.P1.S1 “… os únicos erros processuais/adjetivos (do art. 662.º/2 do CPC) que o Supremo pode escrutinar são erros que são suscetíveis de ser “caçados” a partir do próprio texto do Acórdão da Relação”. Assim:
Está-se perante um não uso indevido dos poderes conferidos pela alínea a) quando o Tribunal da Relação reconhece, no julgamento da impugnação de facto, que não está em condições de examinar criticamente alguns meios de prova (sujeitos à livre convicção do tribunal) ou por haver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou por haver dúvidas sobre o sentido do seu depoimento. Pense-se na hipótese de o depoente (por exemplo uma testemunha) não ter indicado (espontaneamente ou a solicitação do juiz ou dos advogados), como prescreve o n.º 1 do artigo 516.º do CPC, a sua razão de ciência e quaisquer circunstâncias que justificam o seu conhecimento. Pense-se na hipótese de não se perceber o sentido do depoimento. Na primeira hipótese, o tribunal não está em condições de exprimir um juízo sobre a credibilidade do depoente, pois este juízo depende da razão de ciência dela e esta não foi indicada. Na segunda, também não estará em condições de examinar criticamente o meio de prova porque não se sabe o sentido do depoimento. É para estas hipóteses que estão previstos os poderes/deveres da alínea a). O que esta alínea prevê são, pois, circunstâncias que impedem o tribunal da Relação de examinar criticamente meios de prova sujeitos à livre apreciação e de formar com base neles a sua convicção. Cita-se em abono desta interpretação Miguel Teixeira de Sousa que escreve a este propósito: “…a Relação teve dúvidas sobre o sentido do depoimento de uma testemunha, dado que, v.g. não percebeu a que facto se referia esse depoimento ou não entendeu se a testemunha tinha realmente presenciado o facto; no entanto em vez de, como lhe impõe o art.º 662.º, n.º 2, alínea a), do CPC, mandar renovar o depoimento da testemunha, a Relação considerou o facto não provado e decidiu de acordo com a regra do non liquet (cfr. art. 414.º do CPC); o Supremo pode censurar o não uso pela Relação do poder de ordenar a renovação da prova (Cadernos de Direito Privado, n.º 44, página 34).
Fora do alcance do preceito estão os casos em que o tribunal da Relação aprecia a razão de ciência e quaisquer outras circunstâncias que justificam o conhecimento do depoente e, dentro dos seus poderes de livre apreciação da prova, exprime dúvidas fundadas quanto à credibilidade do depoente. A alínea a) não abrange, pois, aquelas hipóteses em que o tribunal considera suficientes os elementos constantes do processo para formar a sua convicção, mas entende que o depoente ou o depoimento não merecem crédito ou lança dúvidas ou reservas sobre a credibilidade ou a veracidade do que foi afirmado pela testemunha. A alínea a) não abrange, pois, aqueles casos em que o tribunal da Relação, depois de examinar criticamente a prova produzida, não adquiriu a certeza da ocorrência de um facto.
Segue-se do exposto que só é de considerar que a Relação infringiu o poder/dever que lhe é imposto pela alínea a) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC quando resultar do acórdão que, no julgamento da impugnação da matéria de facto, o tribunal, apesar de entender que não estava em condições de examinar criticamente o depoimento ou algum aspecto dele e de formar a sua convicção sobre o facto impugnado, por alguma das circunstâncias mencionadas na citada alínea (dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do depoimento), absteve-se de ordenar a renovação desses meios de prova.
Quando, ao invés, a Relação não tenha invocado qualquer obstáculo ao exame crítico do ou dos depoimentos, embora tenha concluído que eles não eram credíveis, que eram contraditórios com outros elementos de prova ou que enfermavam de outras circunstâncias que o desvalorizavam, estamos caídos fora do alcance da alínea a). Em tais hipóteses, a Relação pode ter incorrido em erro no exame crítico desses meios de prova e errado no julgamento da matéria de facto. Porém, tal erro não é sindicável em sede de recurso de revista, por a tanto se opor tanto o n.º 4 do artigo 662.º do CPC, como a 1.ª parte do n.º 3 do artigo 674.º do CPC, que dispõe expressamente que “o erro na apreciação da prova e na fixação dos factos materiais da casa”.
Interpretado a alínea a) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC com o sentido e o alcance expostos, é de afirmar que a circunstância de o tribunal da Relação ter afirmado que as declarações/depoimento do réu revelaram incongruências e contradições não impunha a renovação do depoimento, com vista, às remoções das eventuais incongruências. Na verdade, o tribunal da Relação exprimiu esta convicção sobre o depoimento depois de um exame crítico minucioso e fundamentado. Foi na sequência deste exame que concluiu que o depoimento não merecia um mínimo de relevância e/ou credibilidade por parte do Tribunal para comprovar a liquidação de qualquer valor relativo às obras (e muito menos no valor total de € 37.840,18).
Pelo exposto improcede a alegação de que o Tribunal da Relação violou os poderes/deveres conferidos pela alínea a) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC.
Vejamos, de seguida, a questão da violação dos poderes/deveres conferidos pela alínea b) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC. Ao abrigo desta alínea, o tribunal da Relação pode ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova.
À primeira vista, dados os termos do preceito, podia pensar-se que ele abrange todos os casos em que o tribunal da Relação, exprimindo dúvidas sobre a prova produzida, julga não provada determinada realidade de facto. Não é, este, no entanto o sentido e o alcance do preceito.
A dúvida sobre a realidade de um facto é um dos resultados possíveis do exame crítico da prova produzida. Embora as provas tenham por função a demonstração da realidade dos factos (artigo 341.º do Código Civil), pode acontecer que, produzida a prova, o tribunal não tenha adquirido a convicção segura sobre a ocorrência do facto. A lei refere-se a este resultado, por exemplo, no artigo 346.º do Código Civil, ao dispor que, salvo o disposto no artigo seguinte, à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos.
O juiz pode, pois, ficar na dúvida sobre a realidade dos factos após a produção da prova, sem que o tribunal da Relação tenha o dever de ordenar a produção de novos meios de prova.
À semelhança do que se disse a propósito da alínea a), o estado de dúvida só constituirá o tribunal da Relação no poder/dever de ordenar a produção de novos meios de prova quando o tribunal reconhecer, no julgamento da impugnação de facto, que a dúvida em que ficou após o exame da prova produzida pode ser ultrapassada com a produção de um meio de prova, que necessariamente deverá identificar. Se o tribunal ficou na dúvida após examinar a prova produzida, mas se reconhecer que essa dúvida poderia ser superada com a produção de um novo meio de prova, é dever da Relação produzi-lo.
Daí que só é de considerar que a Relação infringiu o poder/dever que lhe é imposto pela alínea b) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC quando resultar do texto do acórdão que o tribunal ficou em dúvida quanto à ocorrência de um facto e que essa dúvida podia ser superada com um meio de prova que identifica, mas não ordena a sua produção.
É, assim, de afirmar que a alínea b) abrange os casos em o tribunal da Relação exprime dúvida sobre a prova realizada e aponta o ou os meios de prova que a poderia superar, mas nada faz. Fora do alcance do preceito estão os casos em que o tribunal exprime dúvida sobre os meios de prova, considera-os insuficientes, mas não aponta qualquer meio de prova capaz de superar a dúvida.
Interpretada a alínea b) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC com o sentido e alcance expostos, é de afirmar que a circunstância de o tribunal da Relação ter afirmado que as declarações/documentos juntos aos autos não continham quaisquer referências às obras executadas na casa dos recorrentes e/ou pagamento das mesmas não obrigava o tribunal a ordenar a “todas as diligências de prova necessárias para se apurar o contexto em que foram emitidos os referidos cheques e as declarações emitidas pelos legais representantes da recorrida e, ainda, a relação subjacente à emissão dos referidos cheques”. E não obrigava pois em nenhum passo do acórdão se identificam provas capazes de alcançar um outro resultado probatório.
Por todo o exposto conclui-se que, ao julgar improcedente a impugnação do ponto n.º 14 e parte do ponto n.º 5, o Tribunal da Relação não violou os poderes/deveres que lhe são conferidos pelas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC.
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Passemos, agora, à questão de saber se, no julgamento da impugnação do ponto n.º 7 dos factos julgados provados, o tribunal incorreu em erro de interpretação e aplicação do disposto no artigo 5.º do CPC.
Os recorrentes acusam o acórdão recorrido de, no julgamento da impugnação da decisão proferida sob o ponto n.º 7 dos factos julgados provados, ter incorrido em erro de interpretação e aplicação do disposto no artigo 5.º do CPC, pedindo que este Tribunal proceda à ampliação da matéria de facto, julgando provada a matéria invocada pelos recorrentes.
Para bem se perceber esta pretensão, importa expor os seguintes aspectos processuais.
O Tribunal da 1.ª instância julgou provado sob o ponto n.º 7 a seguinte matéria: “A R..., Lda, no âmbito das obrigações a que se vinculou, executou para os réus obras e trabalhos, forneceu materiais, mão-de-obra e equipamentos de construção civil na remodelação e ampliação do aludido prédio urbano, cujo preço importou no valor global de 93 592,94 euros (noventa e três mil, quinhentos e noventa e dois euros e noventa e quatro cêntimos), com IVA incluído”.
Os ora recorrentes impugnaram esta decisão e pediram a sua alteração no seguinte sentido: “A R..., Lda, no âmbito das obrigações a que se vinculou, executou para os réus obras e trabalhos, forneceu materiais, mão-de-obra e equipamentos de construção civil na remodelação e ampliação do aludido prédio urbano, tendo após a conclusão das obras, a Recorrida/CC fixado que o valor a pagar pelo réu marido seria correspondente a 50% (cinquenta por cento) dos custos incorridos com o pessoal e equipamentos pela Recorrida, para a realização da obra, cujo valor apurado para este efeito foi de € 37.840,18 (trinta e sete mil oitocentos e quarenta euros e dezoito cêntimos), conforme constava na contabilidade da Recorrida, independentemente do valor total e global de todos os custos (100%) incorridos com a obra”.
Como se vê a alteração pretendia pelos recorrentes consistia, em síntese, em julgar-se provado que “o preço a pagar pelo réu marido foi fixada pela recorrida e correspondia a 50% dos custos em que a recorrida incorreu com pessoal e equipamentos, valor apurado para este efeito foi de € 37 840,18 euros”.
O tribunal a quo alterou a decisão proferida no ponto n.º 7, mas não no sentido pretendido pelos recorrentes. A modificação consistiu em julgar provado que “os trabalhos, materiais, mão-de-obra e equipamentos de construção civil na remodelação e ampliação do aludido prédio ascenderam, a preços correntes de mercado, ao valor global de 94 701,41 euros, com IVA incluído”.
O tribunal da Relação não acolheu a alteração da decisão nos termos pedidos pelos recorrentes, dizendo, em síntese, que tal pretensão consistia na alegação de um facto novo, que não foi articulado, o qual, à luz da interpretação conjugada dos nºs. 1 e 2 do art.º 5º do CPC de 2013 (donde decorre o juiz só pode fundar a decisão nos factos essenciais alegados pelas partes), não foi nem podia ser considerado pelo Tribunal a quo na sentença recorrida e, por maioria de razão, o Tribunal ad quem estava impedido de proceder à sua apreciação.
Os recorrentes contrapõem:
• Que a sua pretensão consistia apenas em que se julgasse como provado o teor do email enviado por EE, relativo ao custo de obras da moradia “N...”, email que tem como anexo uma listagem com o logotipo da R..., Lda e a menção obra “N...”, dono de obra, AA;
• Que o Tribunal da Relação elaborou em erro, na medida em que os ora recorrentes nunca consideraram tal factualidade como um facto essencial, mas sim como facto meramente instrumental, complementar ou concretizador dos factos essenciais invocados na sua contestação;
• Que os factos essenciais invocados pelos recorrentes e directamente relacionados com esta matéria, são aqueles que foram invocados em sede de exceção, nomeadamente, no âmbito da exceção de inexistência de contrato de empreitada e da exceção de abuso de direito, mais concretamente os factos que elencou no ponto 36 das Alegações de Revista que se dão aqui por reproduzidos.
Como se vê pela exposição efectuada, a imputação ao acórdão recorrido da violação do artigo 5.º assenta na seguinte lógica argumentativa:
• É certo que os recorrentes não alegaram a matéria que querem ver julgada provada;
• Segundo as alíneas a) e b) n.º 2 do artigo 5.º, do CPC, além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz os factos instrumentais que resultem da instrução da causa e os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar e a matéria;
• O facto em causa em causa deve considerar-se como facto instrumental ou complementar ou concretizador dos factos essenciais invocados na contestação.
Este fundamento do recurso é de julgar improcedente.
Em primeiro lugar, sendo a noção de facto instrumental diferente da de facto complementar ou concretizador, não se vê - e os recorrentes também não explicam – como é que a realidade em causa podia revestir simultaneamente a natureza de facto instrumental e a de facto complementar ou concretizador.
Em segundo lugar, apesar de os recorrentes não terem indicado de que factos essenciais alegados na contestação é que a realidade em causa era instrumental, complementar ou concretizadora, é seguro afirmar-se que ela não pode considerar-se nem como instrumental nem complementar de todos os factos em que se basearam as excepções invocadas na contestação. Com efeito, tal facto não tem qualquer relação com o que os réus alegaram na contestação sobre a ineptidão da petição inicial, sobre a nulidade do contrato de empreitada sobre a inexistência do contrato de empreitada e sobre a questão do abuso do direito.
Tal facto diz respeito ao valor a pagar pelo réu marido pela realização da obra em causa nos autos. Logo, tal facto seria, quando muito, instrumental ou complementar ou concretizador do que os réus alegaram sobre o preço ou valor devido pela realização das obras. Ele seria instrumental se consistisse num indício do que os réus alegaram a esse propósito e seria complementar ou concretizador se complementasse ou concretizasse tal alegação. Sucede que não é uma coisa nem outra. Como bem se afirmou no acórdão sob recurso, trata-se de um facto novo e que é contraditório com o que foi alegado na contestação a propósito do preço devido pela realização das obras. Com efeito, tanto no artigo 56.º como no artigo 58.º, da contestação, o que os réus alegaram foi que houve um acordo entre as partes (leia-se R..., Lda e réu) no sentido de ele proceder ao pagamento do custo da referida obra. Esta alegação exprime realidade bem diferente daquela que os recorrentes queriam ver julgada provada: que o valor a pagar pelo réu marido pelas obras realizadas seria o correspondente a 50% dos custos incorridos, pela recorrida, em pessoal e equipamentos.
Tem, pois, amparo no artigo 5.º, n.ºs 2, alínea a) e b), do CPC, o entendimento do tribunal recorrido de que a matéria em causa era matéria nova, que estava em contradição com o que havia sido alegada e que não estava em condições de ser tomada em consideração pelo tribunal.
De resto, a existir violação do artigo 5.º, n.º 2, alíneas a) e b) do CPC, ela não teria as consequências que lhe assinalam os recorrentes, ou seja, a reapreciação da matéria de facto pelo Supremo Tribunal de Justiça, com alteração da decisão do tribunal da Relação. Se existisse violação tal significaria que era dever do tribunal da Relação pronunciar-se sobre a matéria em questão, julgando-a provada ou não provada. Tratava-se de um caso em que se justificava a ampliação da decisão relativa à matéria de facto. Em caso algum competia a este tribunal reapreciar a decisão de facto e alterar a decisão no sentido pretendido pelos recorrentes. Decorre do n.º 2 do artigo 682.º do CPC que a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto só pode ser alterada pelo Supremo Tribunal de Justiça nos casos previstos no n.º 3 do artigo 674.º do CPC, a saber:
• No caso de ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto;
• No caso de ofensa de uma disposição expressa da lei que fixe a força de determinado meio de prova.
Sucede que os recorrentes não pedem a alteração da matéria de facto por ter havido ofensa de alguma disposição com o conteúdo acima assinalado. Pedem a alteração com base no teor de um email enviado por EE em 26-12-2016. Este documento não prova plenamente a realidade que o recorrente quer ver julgada.
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Seguindo a ordem das conclusões, a questão que importa solucionar de seguida é a de saber se facto não provado descrito sob o ponto n.º 1 está em contradição com os factos provados descritos sob os n.ºs 6, 24 e 25.
Sob o ponto n.º 1 dos factos julgados não provados, o tribunal da Relação julgou não provado que “o acordo descrito em 5 foi alcançado no âmbito das relações laborais que existiam entre o réu marido e a R..., Lda, e/ou B..., S.A. e os seus accionistas”.
Sob o n.º 6 julgou provado que “o réu marido, ao tempo da celebração de tal acordo (descrito no ponto n.º 5), era prestador de serviços de R..., Lda, assumindo ainda funções de direcotr financeiro da B..., S.A. e da C..., S.A.”.
Sob o n.º 24 julgou provado que “o réu marido foi contratado quando residia no Porto e não dispunha de habitação em Braga (sede de diversas sociedades e residências de accionistas do referido grupo empresarial)”.
Sob o n.º 25 julgou provado que “o réu marido e a família decidiram mudar-se para Braga, onde residiram num apartamento que foi cedido pelo referido grupo empresarial, entre Setembro de 2003 e Dezembro de 2011, em Braga, sem pagar renda”.
Segundo os recorrentes, a contradição derivaria do seguinte:
• Era manifestamente inequívoco que: (i) à data da celebração do acordo, o recorrente marido detinha uma relação laboral não só com a sociedade R..., Lda”, como também com as demais empresas do referido grupo empresarial; (ii) à data em que foi contratado, o recorrente marido residia no Porto e não dispunha de alojamento em Braga, tendo residido entre Setembro de 2003 a Dezembro de 2011, num apartamento pertencente ao referido grupo empresarial, sem pagar qualquer renda;
• Logo, era perfeitamente evidente que o acordo alcançado entre as partes e diretamente relacionado com as obras executadas no imóvel adquirido pelos recorrentes não só foi concretizado tendo em consideração a relação profissional existente entre as partes, mas também e essencialmente as relações laborais que subsistiam à referida data;
• Que caso o recorrente marido não detivesse uma relação laboral com as referidas empresas e não tivesse procedido à desocupação do apartamento em que residia (sem que nunca tivesse procedido ao pagamento de qualquer contrapartida financeira), certamente, a ora recorrida não se teria disponibilizado para proceder à execução da obra, nos termos e condições em que se veio a concretizar.
Os recorrentes pedem, em consequência, se amplie a resposta dada ao ponto n.º 26 dos factos julgados provados, passando o mesmo a ter a redação proposta nas suas alegações de recurso.
Também este fundamento do recurso é de julgar improcedente.
Duas decisões sobre a matéria de facto são contraditórias entre si quando a afirmação de uma delas exclui necessariamente a outra, ou por outras palavras, quando tais decisões não podem afirmar-se em simultâneo.
Sendo este o sentido de decisões contraditórias, é de afirmar que a decisão de julgar não provado a matéria do ponto n.º 1 não é incompatível com a decisão de julgar provada a matéria dos pontos números 6, 24 e 25, pois versam sobre realidades diferentes.
Contra a alegada contradição pode ainda dizer-se que, no plano processual, não há contradição entre um facto provado e um não provado, pois este não afirma qualquer realidade que se oponha a outra considerada provada. Um facto não provado significa tão só que ele não se impôs à convicção do tribunal. Daí que a decisão de julgar não provado, sob o ponto n.º 1, que o acordo descrito em 5 foi alcançado no âmbito das relações laborais que existiam entre o réu marido e a R..., Lda e/ou a B..., S.A. e os seus accionistas, significou tão só que o tribunal não se convenceu da realidade dessa alegação.
A verdade é que, sob a capa da contradição, o que os recorrentes alegam, em substância, é que dos factos julgados provados sob os números 6, 24 e 25 resulta demonstrada a matéria do ponto n.º 1 dos factos julgados não provados, ou seja, que o acordo foi alcançado no âmbito das relações laborais. Daí que rematem a sua alegação pedindo que este tribunal altere a resposta dada ao facto provado no ponto n.º 26, no sentido por eles proposto, ou seja que se julgue provado que o acordo descrito em 5) foi alcançado no âmbito das relações laborais e profissionais que existiam entre o R. marido e a R..., Lda” e/ou a “B..., S.A.” e os seus accionistas”.
A pretensão do recorrente tem contra si o n.º 2 do artigo 682.º do CPC combinado com a 1.ª parte do n.º 3 do artigo 674.º do CPC, dos quais resulta, como já se escreveu acima, que a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo nos casos excepcionais previstos no n.º 3 do artigo 674.º.
Casos a que não se ajusta a pretensão dos recorrentes, pois esta assenta em erro na interpretação dos factos apurados e na apreciação de provas sujeitas à livre apreciação do tribunal e não na ofensa de qualquer disposição legal sobre direito probatório.
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Apreciemos, de seguida, a questão de saber se o facto não provado n.º 3 está em contradição com os factos provados números 6, 23, 24 e 25.
Segundo os recorrentes a contradição residia no seguinte:
• Era por demais evidente que o alojamento do recorrente sempre foi considerado como um custo, como uma responsabilidade assumida pelo referido grupo empresarial;
• Ao encontrar-se demonstrado que o recorrente marido exercia funções de especial relevância e dimensão na referida sociedade, que mantinha uma relação de confiança e proximidade com os legais representantes da recorrida, que à data em que foi contratado residia no Porto e não dispunha de residência em Braga e, ainda, que desde essa data até Dezembro de 2011, ou seja, durante 8 (oito) anos residiu num apartamento pertencente ao referido grupo empresarial sem proceder ao pagamento de qualquer renda, era perfeitamente evidente que o alojamento do recorrente deveria ser considerado como um custo da ora recorrida, pois assim o foi, ou seja, a disponibilização de moradia é um benefício laboral inquestionável, que integrava a sua remuneração, assumindo nos termos da lei laboral a natureza de complemento remuneratório em espécie;
• Por conseguinte, atenta a notória contradição existente, seja dada como provado o facto não provado nº 3 e, em consequência, seja considerado como assente que o alojamento do recorrido sempre foi considerado como um custo, como uma responsabilidade pela R..., Lda e/ou B..., S.A.
Este fundamento do recurso também é de julgar improcedente.
Em primeiro lugar – como se escreveu acima a propósito da alegada contradição entre o ponto n.º 1 dos factos não provados e os pontos n.ºs 6, 24 e 25 dos factos julgados provados – a decisão de julgar não provado o ponto n.º 3 não é incompatível com a decisão de julgar provada a matéria dos pontos números 6, 23, 24 e 25, pois versam sobre realidades diferentes.
Em segundo lugar – e também como se escreveu acima - no plano processual, nunca há contradição entre um facto provado e um não provado.
Em terceiro lugar, também aqui, sob a capa de contradição entre o facto não provado n.º 3 e os factos provados n.ºs 6, 23, 24 e 25, o que os recorrentes alegam em substância é um erro na decisão da matéria de facto. Segundo eles, decorre dos factos provados sob os números 6, 23, 24 e 25 a realidade que o tribunal julgou não provada sob o n.º 3, ou seja, que o alojamento do réu sempre foi considerado como um custo, como uma responsabilidade a assumir pela R..., Lda e/ou B..., S.A.. Daí que rematem a sua alegação pedindo precisamente se julgue provada a matéria do ponto n.º 3.
Como já se escreveu, acima a pretensão dos recorrentes tem contra si o n.º 2 do artigo 682.º, do CPC e a 1.ª parte do n.º 3 do artigo 674.º do CPC, dos quais decorre que está vedado a este tribunal alterar a matéria de facto e que o erro na apreciação das provas sujeitas à livre apreciação e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista.
Pelo exposto, improcede o fundamento do recurso ora em apreciação.
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Seguindo a ordem das conclusões, apreciemos, agora, a questão de saber se a autora, ao agir judicialmente contra os recorrentes, pedindo a condenação deles no pagamento da quantia de € 94.701,41 (noventa e quatro mil setecentos e um euros e quarenta e um cêntimos) a título de preço, ao abrigo de um contrato de empreitada, volvidos cerca de 9 (nove) anos após a execução das obras, com base na elaboração unilateral de um documento denominado “descrição dos trabalhos”, bem como à emissão de uma fatura está a agir em manifesto abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium e supressio.
Comecemos pela questão do abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium.
Os recorrentes sustentam que a autora age com abuso do direito nesta modalidade com base na seguinte alegação:
• A sociedade recorrida vem exercer uma posição contraditória em relação à posição por si anteriormente assumida, na medida em que os seus legais representantes não podiam/não deviam transmitir ao recorrente marido em finais de 2016 o valor que o mesmo deveria pagar e, posteriormente, em início de 2020, vir notificá-lo para proceder ao pagamento do valor da fatura, muito superior ao que ficou estabelecido como devido;
• Que era do perfeito conhecimento da recorrida e dos seus legais representantes que o referido valor já se encontrava totalmente saldado pelos ora recorrentes;
• E mesmo que assim não se entendesse, o que não se concede, não era devido qualquer valor até em razão do que ficou decidido no contexto da partilha entre CC e DD, que não iriam cobrar qualquer valor aos seus funcionários;
• Que, além do mais, a recorrida, bem como os seus legais representantes, incluindo FF, que é legal representante da sociedade desde 27/03/2018 e participou das reuniões relativas à partilha onde o valor que constava na contabilidade com rubrica “Obra da N...” não foi valorada como ativo/crédito, antes foi valorada a zero, porque não existia nada para ser cobrado/exigido ao Recorrente marido, enquanto colaborador da Recorrida;
• Daí que, quer CC, quer FF não só tinham perfeita consciência de que nunca foi celebrado qualquer contrato de empreitada, que os trabalhos executados tinham por base um acordo celebrado entre as partes no âmbito das relações laborais existentes entre ambos, que jamais foi definido qualquer preço para a execução dos trabalhos, como também os mesmos sabiam que o valor lançado na contabilidade a título de custo pelo montante de € 37.840,18 e qualquer outro montante respeitante à obra já estava pago ou, sem conceder, no limite perdoado.
Este fundamento do recurso é de julgar improcedente. Vejamos.
O fundamento do recurso ora em apreciação remete-nos para a figura do abuso de direito prevista no artigo 334.º do Código Civil. Segundo este preceito, “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Apesar de o preceito não dizer quando é que o exercício de um direito ultrapassa manifestamente os limites que ele estabelece, nem sequer indicar, a título meramente exemplificativo, os casos em que tal sucede, a doutrina e a jurisprudência, a quem tem cabido identificar as situações que, sob o manto do exercício de um direito, caem nas malhas do abuso, incluem nas que excedem manifestamente os limites impostos pela boa fé aquelas em que o seu titular exerce um direito em contradição com um comportamento anterior. É o chamado venire contra factum proprium. É nestas águas que navega a alegação dos recorrentes.
Visto, no entanto, que não há uma proibição geral de comportamentos contraditórios, a mesma doutrina e jurisprudência têm entendido que o exercício de um direito em contradição com um comportamento anterior do seu titular só é de considerar abusivo quando concomitantemente se verifiquem as seguintes circunstâncias:
• Quando o comportamento anterior tenha criado na contraparte uma situação objectiva de confiança relativa ao modo de exercício do direito;
• Quando, com base nessa situação objectiva de confiança, a contraparte tenha tomado disposições ou organizado a sua vida (investimento da confiança), que se veriam frustradas com o exercício do direito ou com o modo como ele é exercido;
• Quando a contraparte tenha agido com boa fé e com cuidado e precauções usuais no tráfego.
Citam-se em abono deste entendimento - que se segue - na doutrina, J. Baptista Machado, em Tutela da Confiança, e “venire contra factum proprium”, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 118, páginas 171 e 172, Paulo Mota Pinto, Direito Civil, Estudos, páginas 442 a 446, GESTLEGAL, Pedro Pais Vasconcelos e Pedro Leitão de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 9.ª Edição, Almedina, página 279, e, na jurisprudência, os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça: o acórdão proferido em 24-09-2009, no recurso n.º 09B0659, o acórdão proferido em 16 de Dezembro de 2010, no processo n.º 1584/06.5TBPRD.P1.S1., o acórdão proferido em 12 de Novembro de 2013, no processo n.º 1464/h11.2TBGRD-A.C1.S1; o acórdão proferido em 8-09-2021, no processo n.º 2319/19.8T8VIS.C1.S1., acórdão proferido em 10-01-2023, no processo n.º 412/203T8PBL.C1.L1; acórdão proferido em 19-01-2023, no processo n.º 3244/19.8T8STB.E1.S1; acórdão proferido em 2-03-2023, no processo n.º 1558/21.6T8VIS.C1.S1; acórdão proferido em 12-10-2023, no processo n.º 19691/20.0T8PRT.P1.S1., todos publicados em www.dgsi.pt.
Observe-se que foi com base nesta interpretação do artigo 334.º do Código Civil que o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 14/2016, publicado no DR, I Série de 28 de Outubro de 2016, uniformizou a jurisprudência no sentido de que “Age com abuso de direito, na vertente da tutela da confiança, a massa falida, representada pelo respectivo administrador, que invoca contra terceiro — adquirente de boa fé de bem imóvel nela compreendido — a ineficácia da venda por negociação particular, por nela ter outorgado auxiliar daquele administrador, desprovido de poderes de representação(arts. 1211.º e 1248.º do CPC, na versão vigente em 1992), num caso em que é imputável ao administrador a criação de uma situação de representação tolerada e aparente por aquele auxiliar, consentindo que vários negócios de venda fossem por aquela entidade realizados e permitindo que entrasse em circulação no comércio jurídico certidão, extraída dos autos de falência, em que o citado auxiliar era qualificado como encarregado de venda”.
Interpretado o artigo 334.º n.º 1, do Código Civil, na parte em que se refere ao exercício ilegítimo de um direito quando o seu titular excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, com o sentido e o alcance expostos, é de afirmar que a alegação dos recorrentes não colhe.
E não colhe porque ela assenta em pressupostos de facto que não estão demonstrados. Concretamente não está provado:
• Que era do perfeito conhecimento dos legais representantes da recorrida quando lhe enviaram a factura n.º FA 2020/80 que o valor das obras estava totalmente saldado pelos recorrentes;
• Que ficou decidido no contexto da partilha entre CC e DD, que não iriam cobrar qualquer valor aos seus funcionários;
• Que, na partilha, o valor que constava na contabilidade com rubrica “Obra da N...” não foi valorado como activo/crédito, antes foi valorado a zero, porque não existia nada para ser cobrado/exigido ao recorrente marido, enquanto colaborador da requerida;
• Que CC e FF tinham não só perfeita consciência de que nunca foi celebrado qualquer contrato de empreitada, mas também que os trabalhos executados tinham por base um acordo celebrado entre as partes no âmbito das relações laborais existentes entre ambos;
• Que os mesmos sabiam que o valor lançado na contabilidade a título de custo pelo montante de € 37 840,18 e qualquer outro montante respeitante à obra já estava pago ou, sem conceder, no limite perdoado.
Se os pressupostos de facto de facto em que assenta a imputação do abuso do direito estivessem demonstrados, a pretensão da autora, ora recorrida, de condenação dos réus no pagamento da quantia de € 94 701,41 claudicaria não pelo exercício ilegítimo de qualquer direito, mas por falta de prova dos factos constitutivos do direito de crédito que invocara. Além disso, existiria fundamento para condenar a autora como litigante de má-fé, visto que os factos configuravam, por um lado, a dedução de pretensão cuja falta de fundamento ela não podia ignorar e, por outro, a alteração consciente da verdade dos factos relevantes para a decisão da causa (alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 542.º do Código Civil).
Vejamos, agora, a questão de saber se a ora recorrida, ao vir passados cerca de 9 (nove) anos, invocar a celebração de um contrato de empreitada, apresentar um mapa de trabalhos e uma fatura está a agir, indubitavelmente em manifesto abuso de direito, na modalidade de supressio.
A recorrente sustenta esta tese com base no seguinte:
• O seu comportamento ao longo dos anos e os atos por si praticados - acordo aprovado e aceite por ambos os intervenientes, realização dos trabalhos ao longo do tempo e de forma faseada de acordo com a disponibilidade da sociedade Recorrida e lançamento da obra na sua contabilidade da Recorrida, única e exclusivamente a título de custo, apresentação de proposta de pagamento de valor em 26/12/2016, não valoração de qualquer valor de crédito da Recorrida sobre o Recorrente marido aquando da partilha da Recorrida -, foi adequado a criar a convicção a quem quer que fosse, que estava em causa uma situação de inexistência de dívida definitivamente consolidada;
• Existia uma justificada confiança e compromisso na validade das decisões tomadas entre as partes.
Sobre o abuso do direito, na modalidade da supressio, importa dizer o seguinte.
Entre as acções que a doutrina e a jurisprudência identificam como atentando contra a boa fé figuram as que se traduzem no exercício de um direito depois da inacção do seu titular durante um período considerável [Pedro Pais Vasconcelos e Pedro Leitão Pais Vasconcelos Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, 9.ª Edição, página 285].
Socorrendo-nos do que foi decidido em outras decisões judiciais a propósito desta questão, para que o exercício de um direito depois de um período de inacção prolongada do seu titular seja considerado abusivo é necessário:
• Que com base no decurso do tempo e com base ainda numa particular conduta do titular do direito ou noutras circunstâncias, o sujeito passivo do direito adquira a convicção justificada de que o direito não será exercido (situação de confiança);
• Que, com base nessa confiança, o sujeito passivo tenha orientado em conformidade a sua vida, tomando medidas ou adoptando programas de acção, pelo que o exercício tardio e inesperado do direito em causa lhe acarretaria agora uma desvantagem maior do que o seu exercício atempado;
• Que o sujeito passivo tenha actuado com boa fé e com cuidado e precauções usuais no tráfego.
Citam-se em bono desta interpretação a seguintes decisões do STJ: o acórdão do STJ proferido em 28 de Junho de 1994, no recurso n.º 84674, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do STJ, Ano II, Tomo II – 1994, páginas 157 a 159, o acórdão do STJ proferido em 5 de Março de 1996, no recurso n.º 87 846, publicado em Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano IV, Tomo I, 1996, páginas 115 a 118, acórdão do STJ de 14 de Outubro de 1997, recurso n.º 540/97, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano V, Tomo III – 1997, páginas 71 a 76, o acórdão do STJ proferido em 7 de Fevereiro de 2008, no recurso n.º 3934/07, e acórdão do STJ proferido em 28 de Fevereiro de 2008, no recurso n.º 47/08, ambos publicados na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do STJ, Ano XVI, Tomo I/2008, respectivamente páginas 77 a 82, e 122 a 126, acórdão do STJ de 12 de Novembro de 2013, proferido no processo n.º 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1, publicado em www.dgsi.pt.
Este fundamento do recurso também é de julgar improcedente pois também ele assenta em pressupostos que não estão provados, concretamente:
• Que os trabalhos executados tinham por base um acordo celebrado entre as partes no âmbito das relações laborais existentes entre ambos;
• Apresentação de proposta de pagamento em 2016;
• Não valoração de qualquer crédito da recorrida sobre o recorrente aquando da partilha da recorrida;
• Que o réu tenha criado a convicção de que estava em causa uma situação de inexistência de dívida definitivamente consolidada;
• Que o mapa de trabalhos e a factura estejam completamente desfasados da realidade;
• Que o mapa de trabalhos e a factura tenham sido apresentados com única objectivo de obter uma vantagem patrimonial indevida.
Como se escreveu a propósito do abuso do direito na modalidade do venire contra factum proprium, se, como alegam os recorrentes, o mapa de trabalhos e a factura estivessem completamente desfasados da realidade, não tivessem qualquer fundamentação e se houvessem sido apresentados com o objectivo de a recorrida obter uma vantagem patrimonial indevida, a pretensão da autora seria de julgar improcedente não pelo exercício ilegítimo de qualquer direito, mas por falta de prova dos factos constitutivos do direito de crédito invocado. Além disso, existiria fundamento para condenar a autora como litigante de má-fé, visto que os factos configuravam, por um lado, a dedução de pretensão cuja falta de fundamento ela não podia ignorar e, por outro, a alteração consciente da verdade dos factos relevantes para a decisão (alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 542.º do Código Civil).
*
Passemos, de seguida, à questão de saber se o acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento ao qualificar o acordo celebrado entre a sociedade R..., Lda e o réu como um contrato de empreitada previsto no artigo 1207.º do Código Civil e ao decidir que o objecto de tal contrato não era indeterminado.
As razões do acórdão foram, em suma, as seguintes:
• A matéria julgada provada sob os números 1, 4, 5, 6, 23 e 26, demonstrava de forma inequívoca, a existência de um acordo de vontades entre a Autora e o Réu marido que abrange os elementos essenciais do contrato de empreitada: aquela comprometeu-se a realizar obras de melhoramento e adaptação que viessem a revelar-se necessárias no prédio urbano adquirido pelos réus, sito na Rua ..., Quinta da N..., em ... (requisito da «realização de uma obra» - obrigação do empreiteiro) e o Réu comprometeu-se a pagar as obras (requisito do «pagamento de uma contrapartida, uma retribuição, pela execução da obra» - obrigação do dono da obra);
• Na presente acção nunca foi objecto de dissenso entre as partes a obrigação de o réu pagara as obras;
• Não tinha cabimento a alegação dos réus recorrentes de que inexistia empreitada «porque não foram previamente determinados ou discriminados os trabalhos a realizar»: com efeito, o acordo de vontade é suficientemente concreto (e a posterior realidade da sua execução – cfr. factos provados nºs. 5 e 7 a 10) sobre a obra a executar, a qual consistiria «no melhoramento e adaptação que viessem a revelar-se necessárias no prédio urbano adquirido pelos réus», isto é, todos os trabalhos que os Réus viessem a solicitar à Autora que fossem de melhoramento e adaptação da sua casa, sendo que a falta de fixação de qualquer prazo (ou calendário) é totalmente irrelevante para a formação deste tipo de contrato;
• Carecia de fundamento legal, a alegação dos recorrentes de que o contrato não podia ser qualificado como empreitada «porque nunca foi fixado qualquer preço, nunca foram definidos os critérios para a fixação do valor a liquidar pelos Recorrentes, nunca foi elaborado qualquer orçamento, pois, segundo o acórdão recorrido, a fixação ab initio do preço não é essencial à caracterização do contrato de empreitada e, por via disso, a sua falta (mesmo quando as partes não lograram provar a factualidade no sentido de que o mesmo foi ajustado no momento da celebração do contrato) não constitui motivo de descaracterização do contrato de empreitada, até porque estando suficientemente definida a obra a executar, sempre será determinável o respectivo preço;
• Que não resultou provada a matéria de facto que os Réus/Recorrentes alegaram (no âmbito da apelidada «excepção peremptória da inexistência contrato de empreitada») para sustentar que o negócio jurídico celebrado constitui um contrato atípico no âmbito das relações laborais;
• Não resultou provada a matéria de facto que os Réus/Recorrentes alegaram (no âmbito da apelidada «excepção peremptória da inexistência contrato de empreitada») para sustentar que o negócio jurídico celebrado constitui um contrato atípico no âmbito das relações laborais.
Os recorrentes sustentam que o acordo celebrado configura um contrato de prestação de serviços atípico, celebrado em razão das relações de proximidade e profissionais entre as partes, sujeito às regras do mandato por força do artigo 1156.º do Código Civil, tendo, de acordo com o disposto na alínea c) do artigo 1167.º do CC, no final, os representantes da recorrido indicado o critério para o pagamento e o recorrente marido aceite. Para tanto alegaram:
• Dos factos provados sob os números 5, 6, 7, 26 e 27 resultava que a vontade das partes não foi a sua vinculação através de um contrato de empreitado, pois nunca existiu a redução a escrito de um qualquer contrato, nem no momento da conclusão do acordo ficaram definidas ou acordadas todas as condições essenciais de um contrato de empreitada, nomeadamente a clara identificação do seu objecto, prazo e condições de pagamento;
• Esta falta é compreensível porque no caso em apreço o que existiu foi única e exclusivamente um acordo alcançado no âmbito das relações laborais e profissionais que existiam entre ambas as partes;
• Não houve a delimitação/identificação da obra;
• Dos artigos 1207.º, 1208.º e 1214.º resulta que quando a lei portuguesa refere que a obra deve ser certa, quer dizer que a obra deve estar devidamente especificada no contrato, ou seja, estar determinada ou ser facilmente determinável, não sendo suficiente menção genérica à finalidade última da obra (construção de imóvel, melhoramento, ampliação, remodelação). Exige mais. Exige a delimitação da obra e especificação dos contratos a realizar, segundo um plano e com características definidas no conteúdo contratual acordado com o dono da oba.
Como se vê pela exposição acabada de fazer, a tese dos recorrentes é a de que as partes (R..., Lda, e o réu) não tiveram a vontade de celebrar um contrato de empreitada. Segundo eles, se fosse essa a sua vontade, teriam reduzido a escrito o acordo e definido todas as condições, designadamente a identificação do seu objecto, o preço, prazo e condições de pagamento. Segundo eles, este procedimento era compreensível porque o que existiu foi única e exclusivamente um acordo alcançado no âmbito das relações laborais e profissionais que existiam entre ambas as partes.
A tese não tem apoio nem nos factos provados nem nas regras de interpretação dos negócios jurídicos previstas no artigo 236.º do Código Civil. Vejamos.
Em primeiro lugar, não está provado que o acordo foi alcançado no âmbito das relações laborais que existiam entre o réu e a sociedade R..., Lda e/ou B..., S.A. e os seus accionistas. Apurou-se tão só que foi alcançado no âmbito das relações profissionais que existiam entre o réu e a sociedade R..., Lda e a B..., S.A. e os seus accionistas (ponto n.º 26). Estas relações profissionais não são incompatíveis com a celebração de um contrato de empreitada entre R..., Lda e o réu. Quando muito explicam a razão pela qual o contrato não foi reduzido a escrito, não se descreveu a obra a realizar e não se ficou o preço e prazo e condições de pagamento.
Em segundo lugar, embora seja certo que decorre do n.º 2 do artigo 236.º do Código Civil que, quando se conheça a vontade real das partes, é de acordo com ela que vale a declaração emitida (não consideramos aqui a excepção prevista na 2.ª parte do n.º 2 do artigo 238.º do mesmo diploma porque ela vale para os negócios formais), também é certo que, como é repetidamente afirmado pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, a vontade real das partes é matéria de facto a apurar pelas instâncias. Cita-se em abono deste entendimento e a título exemplificativo os seguintes acórdãos do STJ: acórdão proferido em 12-06-2012, no processo n.º 14/06.7TBCMG.G1.S1; acórdão proferido em 17-11-2021, no processo n.º 4113/18.4T8ALM.L1.S1; acórdão proferido em 7-06-2022, no processo n.º 1517/20.6T8FAR.E1.S1, todos publicados em www.dgsi.pt.
Logo, para se afirmar que a vontade real das partes (R..., Lda e a do réu), ao acordaram nos termos descritos no ponto n.º 5 dos factos provados, não foi a de se vincularem a um contrato de empreitada, seria necessário que tal figurasse na matéria de facto, e tal não acontece. Daí que, a interpretação do acordo descrito no ponto n.º 5 dos factos provados (segundo o qual a sociedade R..., Lda & o réu acordaram verbalmente, no ano de 2011, que aquela se obrigaria a realizar obras de melhoramentos e adaptação que viessem a revelar-se necessárias no prédio urbano adquirido pelos réus, na Rua ..., Quinta da N..., ..., e o segundo obrigou-se a pagar as obras) deve fazer-se de acordo com o critério constante do artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil.
Segundo este critério, a declaração negocial vale com um sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. Socorrendo-nos das palavras de Carlos Alberto da Mota Pinto, “releva o sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo até onde ele podia conhecer” (Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª Edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, 4.ª Edição, 2005, página 444).
Um declaratário, com as características acima indicadas e sabedor que os réus haviam adquirido um prédio urbano que carecia de obras de melhoramento e adaptação, atribuiria à declaração de uma empresa que se dedicava à actividade de construção de edifícios (R..., Lda) de que se obrigava a fazer tais obras de melhoramento e adaptação, a assunção, por ela, da obrigação de realização de tais obras, ou seja, a assunção da obrigação que o artigo 1207.º do Código Civil (que contém a noção de empreitada) põe a cargo do empreiteiro. E atribuiria à declaração do proprietário do prédio, que carecia de obras de melhoramento e adaptação, de que se obrigava a pagar à empresa de construção as obras de melhoramento e de adaptação, a assunção por ele da obrigação que mesmo artigo põe a cargo do dono da obra, ou seja, a obrigação de pagar um preço.
Não merece, assim, qualquer reparo a conclusão a que chegou o acórdão recorrido, ou seja, o acordo ajusta-se ao contrato de empreitada previsto no artigo 1207.º do CC.
As circunstâncias onde os recorrentes vêem a falta de vontade de celebração de um contrato de empreitada - não redução a escrito do acordo, falta de clara identificação do objecto, preço e prazo e condições de pagamento – não põem em causa a conclusão acima exposta. Vejamos.
A falta de redução a escrito era susceptível de contender com a validade formal do contrato, atento o disposto no artigo 29.º do Decreto-lei n.º 12/2004, de 9 de Janeiro, sobre forma e conteúdo dos contratos de empreitada e subempreitada de obra particular, e o disposto no artigo 220.º do CC, segundo o qual “a declaração negocial que careça da forma legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei”.
A inexistência, no acordo, de referência ao preço devido pela realização das obras não põe em causa nem a qualificação dele como empreitada nem a sua validade. Como bem se afirmou no acórdão sob recurso, se é certo que é elemento essencial do contrato de empreitada a obrigação de pagar um preço pela realização da obra, como o atesta com suficiente clareza a parte final do artigo 1207.º do CC (mediante um preço), também é certo que não é condição de existência ou sequer de validade do contrato de empreitada que as partes determinem o preço e as condições do respectivo pagamento no momento da conclusão do acordo. É o que decorre da remissão do n.º 1 do artigo 1211.º do Código Civil, que dispõe sobre a determinação e pagamento do preço no contrato de empreitada, para o artigo 883.º do CC, que versa sobre a determinação do preço no contrato de compra e venda. Com efeito, este último preceito, ao dispor sobre a determinação do preço nos casos em que ele não estiver fixado por entidade pública e as partes o não determinaram nem convencionaram o modo de ele ser determinado, aponta inequivocamente no sentido de que é compatível com a existência e a validade do contrato de compra e venda – e por remissão do n.º 1 do artigo 1211.º da empreitada - a falta de indicação nele quer do preço devido pela realização das obras quer o modo de ele ser determinado.
De igual forma a omissão, no acordo, de qualquer referência ao prazo e condições de pagamento do preço devido pela realização das obras não põe em causa nem a qualificação dele como contrato de empreitada nem a sua validade, como o atesta, agora, o n.º 2 do artigo 1211.º do Código Civil, ao dispor que o preço deve ser pago, não havendo cláusula ou uso em sentido contrário, no acto de aceitação da obra.
Também não vale contra o acórdão recorrido a alegação de que no caso não houve delimitação/identificação da obra. Alegação que serve tanto para impugnar a decisão de qualificar o acordo como contrato de empreitada como para sustentar que o contrato é nulo por o seu objecto ser indeterminável.
A linha argumentativa dos recorrentes é a seguinte:
• Quando o artigo 1207.º do Código Civil se refere a obra certa quer dizer que a obra deve estar devidamente especificada no contrato (ou seja, estar determinada ou ser facilmente determinável), não sendo suficiente menção genérica à finalidade última da obra (construção de imóvel, melhoramento, ampliação, remodelação etc);
• A lei exige a devida delimitação da obra e especificação dos trabalhos a realizar, segundo um plano e com características definidas no conteúdo contratual acordado com o dono da obra;
• Este entendimento é reforçado pelo disposto no n.º 1 do artigo 26.º do da Lei n.º 41/2015, de 03 de Junho, aplicável à empreitadas de valor superior a € 16.600,00 que estabelece a forma e o conteúdo de um contrato de empreitada (esta redação repete o que constava do artigo 29.º do DL nº 12/2004 que foi revogado pela Lei nº 41/2015);
• Se se tiver em vista um contrato de empreitada (qualificação que não acompanhamos), a falta de especificação, no contrato, da obra, dos trabalhos certos a realizar leva à indeterminação e indeterminabilidade do objeto, e fere o contrato de nulidade nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 280.º do CC;
• Considerando a qualificação que a Relação de Guimarães deu ao contrato, contrato de empreitada, a par de outros vícios do contrato, máxime falta de forma, só se pode concluir que o “contrato” é nulo por falta de objeto;
• Pois, sem obra e sem critério objetivo para a definir, a manter-se a qualificação como empreitada, haverá, pois, que concluir inevitavelmente pela nulidade do contrato por indeterminação do objeto.
Esta alegação não vale contra o acórdão recorrido.
Se é certo, como alegam os recorrentes, que nos termos do artigo 1207.º do CC, empreitada é o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, já não é exacto que, para efeitos deste preceito, a obra só deva considerar-se certa se, no acordo estabelecido entre as partes, ela estiver delimitada e houver a especificação dos trabalhos a realizar, segundo um plano e com características definidas no conteúdo contratual acordado com o dono da obra. Como não é exacta a afirmação de que, na falta de especificação destes elementos, a obra é indeterminável e o contrato nulo por força do n.º 1 do artigo 280.º do CC.
O artigo 1207.º do CC, na parte em que se refere a “certa obra” é de interpretar em conformidade com o que dispõe o artigo 400.º do Código Civil sobre determinação da prestação e com o n.º 1 do artigo 280.º do CC sobre a nulidade do negócio jurídico cujo objecto é indeterminável.
E fazendo esta interpretação combinada, é de afirmar que só na hipótese de a obra que o empreiteiro se obrigou a realizar ser indeterminável é que o contrato é nulo por aplicação do n.º 1 do artigo 280.º do Código Civil. Esta hipótese não se identifica, no entanto, com obra não determinada no contrato de empreitada. Socorrendo-nos das palavras de Carlos Alberto da Mota Pinto, “Devem considerar-se, portanto, nulos, por falta deste requisito, os negócios cujo objecto não foi determinado nem é determinável, por nem as partes nem a lei terem estabelecido o critério de harmonia com o qual se deva fazer a individualização do objecto” ((Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª Edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, 2005, página 554). Este autor dá como exemplo, o caso “dos negócios de venda de um objecto designado com suma generalidade (uma coisa, um terreno,…, sem indicação de qualquer outra característica, pois o contrato não envolveria qualquer vinculação para o vendedor, que poderia desonerar-se entregando uma coisa insignificante”.
Assim, para efeitos do artigo 1207.º, a obra só não será certa quando as partes a não determinaram no momento da conclusão do acordo e não estabeleceram o critério da sua determinação.
Interpretando o artigo 1207.º com o sentido e o alcance exposto, é de afirmar que não vale contra o acórdão recorrido a alegação dos recorrentes. Se é certo que, no acordo estabelecido em 2011, as obras não estavam determinadas - pois foram descritas apenas com a fórmula vaga e genérica de “obras de melhoramento e adaptação no prédio urbano dos réus” - também é certo que eram determináveis. Por um lado, sabia-se qual era o imóvel que iria ser melhorado e beneficiado com as obras, concretamente o prédio urbano adquirido pelos réus sito na Rua ..., Quinta da N..., .... Por outro, ao acordarem que as obras a realizar seriam obras de melhoramento e adaptação que viessem a revelar-se necessárias no citado prédio, as partes confiaram ao réu a determinação das obras a realizar. Era a ele que cabia dizer que melhoramentos e adaptações é que carecia o prédio por si adquirido. Vai precisamente neste sentido, a prova de que a ré assistiu e acompanhou a execução dos trabalhos e definiu, perante a empreiteira (R..., Lda) pormenores da sua execução (facto provado n.º 16).
Estamos, pois, perante uma das hipóteses de determinação da prestação prevista no n.º 1 do artigo 400.º do Código Civil: determinação da prestação confiada a uma das partes, neste caso ao dono da obra. De resto, só assim e compreende que os réus que, fiscalizaram directamente todos os trabalhos, fornecimento de materiais e equipamentos, tenham aceitado a obra nas duas fases em que ela se desenvolveu.
É, pois, de manter, o acórdão recorrido tanto na parte em que qualificou o acordo celebrado entre a sociedade R..., Lda e o réu como contrato de empreitada previsto no artigo 1207.º do CC como na parte em que decidiu que a prestação a cargo da autora – realização das obras – não era indeterminável.
*
Seguindo a ordem das conclusões, a questão que importa solucionar é a de saber se o acórdão recorrido incorreu em erro ao decidir que, por efeito da declaração da nulidade do contrato, os réus estavam constituídos na obrigação de restituírem à autora a quantia de € 93.592,94 (noventa e três mil, quinhentos e noventa e dois euros e noventa e quatro cêntimo), com IVA incluído, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal de 4% ao ano (ou a outra que vier legalmente a ser fixada), desde a data da citação até integral pagamento.
As razões do acórdão foram, em síntese, as seguintes:
• Que sendo nulo o contrato de empreitada, incumbia à autora, na qualidade de empreiteira, devolver toda e qualquer quantia recebida do réu marido, na qualidade de dono da obra, e cabia a este devolver tudo o que aquela lhe prestou em execução do contrato;
• A autora nada tinha de restituir ao réu porque este nada lhe prestou;
• Quanto à prestação da autora – realização das obras descritas nos pontos n.ºs 5 e 7 – uma vez que não pode ser restituída em espécie, cabia ao réu restituir o valor correspondente;
• O valor correspondente seria o de € 94 701,41 com IVA incluído, por ser o valor correspondente ao valor da sobras executadas a preços correntes de mercado;
• Era este o valor porque se provou que a Autora executou para os réus obras e trabalhos, forneceu materiais, mão-de-obra e equipamentos de construção civil na remodelação e ampliação do aludido prédio urbano, que ascenderam, a preços correntes de mercado, ao valor global de € 94.701,41, com IVA incluído (cfr. facto provado nº7);
• E porque decorria do artigo 883.º do Código Civil, por remissão do artigo 1211.º do mesmo diploma legal, que o preço corrente de mercado corresponde ao terceiro critério legal de determinação do preço fixado naquele preceito, sendo certo que no caso em apreço não tinham aplicação dos dois primeiros;
• E porque a expressão valor correspondente da parte final do n.º 1 do artigo 289.º não permitiam uma interpretação no sentido de não incluir a margem de lucro e uma vez que um contrato nulo não correspondia a um nada jurídico, nem um acto inexistente;
• E porque apesar de estar provado que a obra executada, após a sua conclusão e até 11/12/2019, esteve lançada na contabilidade da autora, a título de custo no montante total de € 37 839,18, não se provou que tenha sido esse o critério ajustado pelas partes para a determinação do preço e uma vez que o custo da obra não corresponde a nenhum dos critérios legais consagrados no citado artigo 883.º do CC.
A final, condenou os recorrentes apenas na restituição do valor de € 93 592,94, com IVA incluído, por os mesmos terem sido condenados a pagar à autora apenas a quantia de «€ 93.592,94, com IVA incluído» e por, em virtude do principio da proibição da reformatio in pejus, consagrado no art.º 635.º/5 do Código de Processo Civil de 2013 (“Os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso nem pela anulação do processo”), ter aquele valor de € 94.701,41 de ser reduzido e limitado para o de € 93 592,94.
Os recorrentes opõem-se à decisão e aos fundamentos, sustentando que, em casos como o dos autos (contrato nulo que tem por base uma relação especial de confiança) o critério de fixação do preço é o da equidade, não sendo de incluir nem a margem de lucro nem o IVA. No caso em apreço, a decisão com base na equidade devia ter ainda em conta o seguinte:
• Que foi a própria recorrida quem definiu o valor final a liquidar pelos recorrentes, conforme é indicado no email de 26/12/2016, que o valor de € 37 840,18 esteve lançado na contabilidade desde a altura da realização dos trabalhos até Dezembro de 2019, no centro de custos da obra N...;
• Que a recorrida alterou o valor da obra na sua contabilidade em final de 2019, ao arrepio do que antes estabelecera, actuando aqui como violação culposa do seu dever de boa-fé;
• Que nas contas da recorrida do ano de 2018 não constava qualquer valor em relação à obra N...;
• Que o Sr. CC era gerente da sociedade na data da celebração do acordo em 2011, na data do email de 26-12-2016, na data em que a recorrida alterou o valor na contabilidade (Dezembro de 2019) e na data da emissão e envio da factura no valor global de 94 701,41 com IVA;
• Tratando-se de decisão tomada em 2016, por gerentes com plenos poderes, agindo em nome da sociedade quanto ao valor a ser liquidado, a decisão tem eficácia perante terceiro e como tal vinculava a sociedade;
• Que o regime da restituição sem causa também deve servir de baliza para nortear o âmbito da restituição no caso da nulidade previsto no artigo 289.º, n.º 1, do Código Civil;
• Que a nulidade decorre de acto culposo da recorrida, que não observou a obrigação que impedia sobre si e também por esta via não s pode consentir que a recorrida receba mais do que receberia se o contrato fosse válido e daquilo que os recorrentes pagariam se tivessem efectuado o pagamento em Dezembro de 2016.
A resposta a esta questão remete-nos para a interpretação do n.º 1 do artigo 289.º do CC. Em concreto, trata-se de saber se, no caso de o contrato de empreitada ser nulo por falta de forma e não ser possível a restituição em espécie da obra realizada pelo empreiteiro, qual o valor correspondente para efeitos do n.º 1 do artigo 289.º do CC.
O acórdão recorrido entendeu que o valor correspondia ao montante global das obras executadas a preços correntes de mercado, isto é, o referido valor de € 94.701,41 (que inclui IVA). Invocou, para tanto, um dos critérios supletivos de determinação do preço previsto no artigo 883.º, n.º 1, do CC (preço do mercado), aplicável, como se escreveu acima, por remissão do n.º 1 do artigo 1211.º do mesmo diploma, ao contrato de empreitada. Os recorrentes contrapõem: o valor correspondente à prestação da empreiteira deve ser determinado segundo critérios de equidade.
O valor a restituir é o fixado no acórdão recorrido, embora não pelas exactas razões dele constantes.
Comecemos por expor as razões pelas quais o valor correspondente à prestação da empreiteira não é de determinar segundo a equidade.
Nos termos do artigo 4.º do Código Civil, os tribunais só podem resolver segundo a equidade:
a. Quando haja disposição legal que o permita;
b. Quando haja acordo das partes e a relação jurídica não seja indisponível;
c. Quando as partes tenham previamente convencionado o recurso à equidade, nos termos aplicáveis à cláusula compromissória.
Decorre do preceito acabado de transcrever que a resolução de um litígio segundo a equidade é excepcional, valendo apenas nos casos acima enunciados. Assim, o recurso à equidade para determinar o valor correspondente à prestação realizada pela empreiteira seria de admitir se se verificasse alguma das seguintes hipóteses: existência de disposição legal que o permitisse; acordo das partes; convenção prévia de recurso à equidade.
Não ocorre nenhuma delas. Observe-se que embora a parte final do n.º 1 do artigo 883.º do Código Civil preveja, por remissão do n.º 1 do artigo 1211.º do mesmo diploma, a determinação do preço da empreitada segundo juízos de equidade, tal preceito vale apenas para a determinação do preço e não para situações como a dos autos em que do que se trata é da averiguação do valor correspondente à prestação do empreiteiro no âmbito da liquidação do contrato de empreitada declarado nulo.
Vejamos, agora, as razões pelas quais entendemos que a decisão recorrida é de manter, embora não pela exacta justificação dela constante.
O acórdão recorrido entendeu que o valor dos serviços prestados pela autora – que incluíram o fornecimento de materiais, mão-de—obra e equipamentos de construção civil – era o de 94 701,41 euros, com IVA incluído. Invocou a favor da fixação deste valor os seguintes argumentos:
• Que de acordo com o n.º 2 do artigo 883.º do Código Civil um dos critérios supletivos de determinação do preço da empreitada era o critério do preço do mercado;
• Que a expressão «valor correspondente» consagrada na parte final do n.º 1 do art.º 289.º do C. Civil não permitia uma interpretação no sentido de não incluir a «margem de lucro» (porque não tem qualquer correspondência verbal na letra da lei – cfr. art.º 9.º/2 do C. Civil) e uma vez que um contrato nulo não corresponde a um «nada jurídico» nem um «acto inexistente»;
• Provou-se que o valor que correspondia ao “valor/preço corrente praticado no mercado (preço real e efectivo) dos trabalhos levados a cabo pela autora, ora recorrida, era o de 94 701,41 euros com IVA incluído.
Vê-se do exposto que o acórdão sob recurso invocou um dos critérios supletivos de determinação do preço da empreitada, concretamente o do “preço do mercado” (artigo 883.º, n.º 1 do Código Civil), para estimar o valor que correspondia à prestação da autora.
Assiste razão aos recorrentes quando censuram o acórdão por ter recorrido ao n.º 1 do artigo 883.º do Código Civil para determinar o valor correspondente à prestação da autora, ora recorrida, pois tal preceito vale para determinar o preço no contrato de empreitada, pressupondo que o mesmo seja válido, o que não acontece no caso.
Aqui trata-se de determinar o valor que corresponde à prestação realizada pela autora, considerando, por um lado, a nulidade desse contrato e os efeitos que o n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil lhe assinala e, por outro, a impossibilidade de essa prestação ser restituída em espécie.
O mencionado preceito não indica nem o critério nem o método de determinação o valor, como não indica o momento que serve de referência ao respectivo cálculo
O Supremo Tribunal de Justiça, nos casos que tem sido chamado a decidir a questão do valor correspondente a obras realizadas por empreiteiro, no âmbito de contratos de empreitada nulos, não tem seguido um critério uniforme. Temos em vista a este propósito o acórdão proferido em 16-05-2019 no processo n.º 2966/16.0T8PTM.E1.S2, e o proferido em 22-06-2021, no processo n.º 1901/17.2T8VRL, ambos publicado em www.dgsi.pt,
No primeiro – num caso com semelhanças ao dos autos – entendeu-se que o valor a restituir era o valor da sobras realizadas, sem inclusão do IVA.
No segundo entendeu-se que não havia necessidade de se recorrer, como havia feito o acórdão recorrido, à ficção jurídica de que os donos da obra tinham tinha de restituir o valor objetivo de mercado (acrescido de IVA) dos trabalhos feitos pelo autor, com desconto designadamente do montante que já havia sido pago pelos réus a título de preço. A solução mais simples e ajustada às circunstâncias do caso era a de tratar a situação jurídica dos autos – um contrato nulo parcialmente executado – como um caso em que o dever de restituição das prestações coincidia com o cumprimento parcial, já efetuado, do contrato nulo, nada mais havendo a restituir.
Na doutrina as soluções também não são uniformes quanto à questão da determinação do valor correspondente a prestação que não pode ser restituída em espécie.
Nuno Pinto de Oliveira, ao referir-se à hipótese de anulação de um contrato de arrendamento escreve que “o senhorio tem o dever de restituir ao inquilino aquilo que lhe foi prestado; o inquilino tem o dever de restituir ao senhorio o valor correspondente ao que lhe foi prestado – o dever de restituir ao senhorio as rendas que deveria pagar, por corresponderem ao valor objectivo do uso e fruição do prédio”. Por sua vez, comentando criticamente um acórdão do STJ que decidiu sobre os efeitos da declaração de nulidade de um contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial, escreve que, “tendo o contrato de cessão de exploração sido declarado nulo, o cessionário só deveria restituir ao cedente o valor objectivo do uso e fruição do estabelecimento (Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra Editora, 1.ª Edição Maio de 2011, página 114).
Menezes Cordeiro entende que “Nos contratos de execução continuada em que uma das partes beneficia do gozo de uma coisa – como no arrendamento – ou de serviços – como na empreitada, no mandato ou no depósito – a restituição em espécie não é, evidentemente possível. Nessa altura haverá que restituir o valor correspondente o qual, por expressa convenção das partes, não poderá deixar de ser o da contraprestação acordada (Tratado de Direito Civil Português, Volume I, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição da 3.ª Reimpressão 2005, página 874).
Maria Clara Sottomayor, em anotação ao artigo 289.º do Código Civil, escreve a propósito da liquidação do contrato inválido: “Em regra, o critério para calcular o valor do gozo da coisa e o valor do serviço prestado será aquele que foi adoptado no próprio contrato que fixou o valor da contraprestação, o que tem por consequência que cada uma das partes a prestação recebida, equivalendo, na prática, a liquidação do contrato inválido à execução do mesmo. Só não será assim, por exemplo, se o valor do serviço for superior ao valor da remuneração estipulada no contrato, a qual não teve em conta os critérios do mercado. Nesta hipótese, o prestador de serviço terá direito ao pagamento da diferença entre o valor recebido e o valor de mercado” (Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa 2014, página 718).
No entender deste tribunal, o valor correspondente à prestação que não pode ser restituída em espécie é o que esteja em conformidade com o seguinte propósito do n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil: a liquidação do negócio jurídico nulo não deve dar azo nem a lucros nem a prejuízos das partes.
Este propósito será alcance através do valor objectivo da prestação. Quando se trate de uma prestação como a dos autos, que compreende o fornecimento de materiais, mão-de-obra e equipamentos de construção civil, por parte de uma empresa que se dedica à construção civil, o seu valor objectivo corresponderá aos preços correntes, usuais, no sector (mercado) da construção civil, designadamente aos preços correntes, usuais, das empresas de construção civil que prestam serviços na área geográfica onde foram realizadas as obras.
Preços correntes, usuais, no mercado da construção civil, que não se confundem como o preço do mercado previsto no n.º 1 do artigo 883.º do CC. Aqui, o mercado que é tido em vista é o mercado organizado onde são definidos os preços dos bens nele negociados; mercado que não existe em matéria de empreitada. Daí que Pires de Lima e Antunes Varela escrevam, em anotação ao artigo 1211.º do Código Civil, o seguinte a propósito da aplicação do preço do mercado à determinação do preço da empreitada: “Não se tem em vista o preço do mercado ou da bolsa, por não se descortinar a possibilidade prática de aplicar semelhante critério em matéria de empreitada” (Código Civil Anotado Volume II, 4.ª Edição Revista e Actualizada, Reimpressão Coimbra Editora, página 873).
Considerando a interpretação da parte final do n.º 1 do artigo 289.º do CC acabada de expor e o facto de se ter provado que a prestação da empreiteira, que compreendeu o fornecimento de mão-de-obra, materiais e equipamentos de construção civil na remodelação e ampliação do prédio urbano dos réus, ascendeu, a preços correntes de mercado, ao valor global de 94 701,41, é de afirmar que tem apoio na lei e nos factos a decisão de considerar este valor como o correspondente à prestação da empreiteira.
Quanto à inclusão do IVA no valor a restituir, ela decorre do artigo 1.º, n.º 1, alínea a), do Código do Imposto Sobre o Valor Acrescentado, segundo o qual estão sujeitas a imposto sobre o valor acrescentado as prestações de serviços efectuadas no território nacional, a título oneroso, por um sujeito passivo. Ora, apesar da invalidade formal do contrato de empreitada, a empreiteira, que é sujeito passivo do imposto (alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA), prestou efectivamente serviços em território português, a título oneroso, e os réus foram os beneficiários de tal prestação.
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Por último, importa resolver a questão de saber se ao valor a restituir à autora (€ 93 592,94 e não 94 701,41 euros pelas razões expostas no acórdão recorrido) é de deduzir a importância de 28 euros que os recorrentes alegam ter-lhe entregado.
A resposta é negativa pois não se provou que os réus entregaram tal quantia à autora, ora recorrida. A falta de prova resolve-se contra os réus, recorrentes, por ser a eles que cabia a prova de tal facto (artigo 414.º do CPC).
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Decisão:
Julga-se improcedente o procedente o recurso e, em consequência, mantém-se o acórdão recorrido.
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Responsabilidade quanto a custas:
Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e a circunstância de os recorrentes terem ficado vencidos no recurso, condenam-se os mesmos nas custas.
Lisboa, 12 de Dezembro de 2024
Emídio Francisco Santos (relator)
Catarina Serra
Orlando dos Santos Nascimento