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Jurisprudência
Sumário

I -    É competente para o processo judicial de execução do Mandado de Detenção Europeu, o Tribunal da Relação da área do domicílio da pessoa procurada, ou, se não o tiver, da área onde se encontrar, à data da emissão do Mandado.

II -   Atentas as disposições conjugadas dos arts. 13.º, n.os 1 e 2, 24.º, n.º 1, al. b) ambos da Lei 65/2003, dos arts. 73.º, 74.º, n.º 1, 56.º, n.º 1, todos da Lei 62/2013, de 23-08, e art. 12.º, n.º 3, al. e), do CPP, resulta que no julgamento do processo judicial de execução do Mandado de Detenção Europeu, o Tribunal da Relação, não intervém como tribunal de recurso, mas antes como tribunal de 1.ª instância.

III - O julgamento é da competência da secção criminal. As secções funcionam com três juízes – art. 12.º, n.º 4, do CPP e art. 56.º, n.º 1 da Lei 62/2013, de 26-08 -, (um relator e dois adjuntos que participam no julgamento e na elaboração e assinatura do respectivo acórdão).

IV - Não sendo admissível decidir o processo de execução do Mandado de Detenção Europeu por decisão sumária, do relator, como previsto para os recursos ordinários, no art. 417.º, n.º 6, do CPP.

V -  Sendo proferida decisão sumária nos termos desta disposição legal, foram violadas as regras legais relativas ao modo de determinar a composição do tribunal, vício que constitui nulidade insanável, sanção cominada pelo disposto no art. 119.º, al. a), do CPP.

Decisão Texto Integral

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


1. Relatório

1.1.No presente processo n.º 41/24.2YRGMR.S1 – Extradição, Mandado de Detenção Europeu, reconhecimento de sentença estrangeira – em execução de mandado de detenção europeu – MDE – emitido pelas autoridades judiciárias de Espanha, requereu o Ministério Público que lhe fosse entregue mandado de detenção do requerido AA ou BB, com dupla nacionalidade, portuguesa e espanhola, nascido a ... de ... de 1948, na freguesia de ..., filho de CC e DD titular do DNI espanhol n.º ......01P, e o cartão de cidadão n.º ....... 7, residente na Rua ..., ..., ... ..., a fim de se proceder à sua audição no Tribunal da Relação, com vista à sua futura entrega às autoridades judiciais espanholas para cumprimento de pena de prisão, de seis meses, cuja suspensão não foi decretada, pela prática de um crime de violação da pena, p. e p. pelo art.º 468.º, n.º 2, do Código Penal Espanhol, infração punível pela Lei Penal Portuguesa, nomeadamente o crime de violação de imposições, proibições e interdições, do artigo 353.º do Código Penal, punível com pena máxima de 2 anos de prisão.

Passado e cumprido aquele mandado de detenção, com a constituição de arguido e a prestação de termo de identidade e residência, foi o requerido ouvido a 21 de Março de 2024.

1.2. Requereu o arguido,

(i)que seja recusada a execução do mandado de detenção europeu em análise e o requerido não seja extraditado para o Reino de Espanha, para cumprimento da pena de prisão efectiva em que foi aí condenado, quer pelo facto de o crime em causa não constar de nenhuma das alíneas do art. 2.º, n.º 2, da Lei n.º 65/2003, quer pela circunstância de o arguido ser cidadão português, a residir habitualmente em Portugal e há mais de dois anos em ...;

(ii)que o Estado Português se comprometa a executar em território nacional a pena de seis meses de prisão efectiva (menos dois dias de detenção), se possível no E.P. de ..., de acordo com a lei Portuguesa, nos termos do art. 12.º, n.º 1, g), da mesma Lei, pelo facto de o arguido, companheira e familiares residirem em ..., bem como uma sua filha menor em ...; (iii)que na decisão final seja decretada a recusa de entrega do requerido por se achar verificada a causa prevista na citada alínea g), e ser indeferido o pedido de extradição, tendo em conta a não renúncia do arguido ao princípio da especialidade.

1.3. Juntos elementos considerados necessários, entendeu-se, no Tribunal da Relação, nos termos do art.º 417.º, n.º 6, d), do Código de Processo Penal, ser caso de prolação de decisão sumária, que foi proferida, com o seguinte,

dispositivo:

Face ao exposto, decide-se recusar o cumprimento do mandado de detenção europeu emitido pelo Tribunal de Violência Contra a Mulher n.º ... de ..., Espanha, em relação ao requerido BB – que, em Portugal, usa o nome de AA –, e declara-se a sentença daquele Tribunal exequível em Portugal, ordenando-se, após transito, a remessa dos autos ao Juízo Local Criminal de ..., nessa Comarca, para os ulteriores termos do processo.

Envie de imediato cópia à autoridade judiciária espanhola emitente do mandado de detenção europeu.”

1.4. Inconformado com esta decisão dela recorre o requerido AA, formulando, a final, as seguintes B) CONCLUSÕES:

1º)

O presente Recurso versará apenas sobre uma questão de direito, requisito não apreciado na decisão revidenda, aqui posta em crise e que entendemos ser deveras relevante na validade e exequibilidade da mesma ora proferida.

2º)

O artigo 26º da Lei nº 65/2003 de 23 de Agosto, consagra o seguinte: “Artigo 26.º Prazos e regras relativos à decisão sobre a execução do mandado de detenção europeu.

1 - Se a pessoa procurada consentir na sua entrega ao Estado membro de emissão, a decisão definitiva sobre a execução do mandado de detenção europeu deve ser tomada no prazo de 10 dias a contar da data em que foi prestado o consentimento.

2 - Nos outros casos a decisão definitiva sobre a execução do mandado de detenção europeu deve ser tomada no prazo de 60 dias após a detenção da pessoa procurada.

3 - Quando o mandado de detenção europeu não puder ser executado nos prazos previstos nos n.os 1 ou 2, a autoridade judiciária de emissão é informada do facto e das suas razões, podendo os prazos ser prorrogados por mais 30 dias.

4 - Serão asseguradas as condições materiais necessárias para a entrega efectiva da pessoa procurada enquanto não for tomada uma decisão definitiva sobre a execução do mandado de detenção europeu.

5 - Sempre que, devido a circunstâncias excepcionais, não for possível cumprir os prazos fixados no presente artigo, a Procuradoria-Geral da República informará a EUROJUST do facto e das suas razões.

3º)

Importam-nos os artigos 2º e 5º deste diploma legal.

4º)

Estamos perante um processo urgente com prazos mais reduzidos do que normalmente ocorre no processo penal, basta atentar ao prazo de Recurso de apenas 5 dias em vez dos 30 dias de recurso. Atente-se no artigo 16º, nºs 1 e 2 do DL 65/2003:

“Recebido o mandado de detenção europeu o Ministério Público junto do tribunal da Relação promove a sua execução no prazo de quarenta e oito horas.”

- nº 2: “Efectuada a distribuição, o processo é imediatamente concluso ao juiz relator, para no prazo de cinco dias…..” Mais, - Artigo 18º, nº 1 da mesma lei: “A entidade que proceder à detenção comunica-a de imediato, pela via mais expedita e que permita o

registo, ao Ministério Publico junto do tribunal da relação competente.”

2 - A pessoa procurada é apresentada ao Ministério Público, para audição pessoal, imediatamente ou no mais curto prazo possível.

3 - O juiz relator procede à audição do detido, no prazo máximo de quarenta e oito horas após a detenção, e decide sobre a validade e manutenção desta, podendo aplicar-lhe medida de coacção prevista no Código de Processo Penal.

5º)

Por se tratar de um prazo e processo urgente, os prazos indicados na Lei nº 65/2003 de 28/08 são peremptórios e não meramente indicativos, entendemos nós. Sendo certo que muitas vezes (quase sempre) os prazos são letra morta a não ser para os intervenientes processuais (sob pena de multas), certo é que os prazos referidos no artigo 2º deste dispositivo legal são para cumprir e não para depender da disponibilidade do julgador.

6º)

Também não foi cumprido o disposto no artigo 5º deste referido preceito legal, porquanto em 13/06/2024 – Ref.ª Citius nº .....82 – o Ministério Público em desespero, vendo que o Tribunal de Violência Contra a Mulher n.º ... de ..., do Reino de Espanha, não atendia ao seu pedido, requereu a intervenção (tal como a lei preceitua) da Procuradoria-Geral da República – conforme Promoção de 13/06/2024

(fls. 3 de 4) “Por seu turno, tal como dispõe o artigo 9.º da referida Lei n.º 65/2003, a Procuradoria Geral da República é a autoridade central que assiste as autoridades judiciárias competentes e demais efeitos previstos nesta Lei, nomeadamente informando a EUROJUST do facto e das suas razões sempre que, devido a circunstâncias excecionais não for possível cumprir os prazos fixados no artigo 26.º (cfr, o n.º 5, do artigo 26.º).

7º)

Vejam-se as datas que corroboram a nossa posição e revolta contra a decisão proferida:

- Consagra o artigo 2º do artigo 26º da Lei nº 65/2033 que nos outros casos (ou seja ao arguido foi aplicada a medida de coação de apresentações diárias na Esquadra da P.S.P de ..., o que cumpriu e cumpre até novas ordens – não ficou detido posteriormente à sua apresentação no Tribunal da Relação de Guimarães em 21/03/2024 para audição). Deve (não é um poder é um dever) ser tomada no prazo de 60 dias após a detenção da pessoa procurada.

8º)

Não obstante toda a demora nos inúmeros envios pelo Tribunal da Relação de Guimarães de emails urgentes e ausência de resposta por parte do Tribunal espanhol, também não foi dado cumprimento como se referiu ao estipulado no artigo 26º, nº 5º da Lei nº 65/2003 de 23/08.

9º)

Interpretando correctamente o preceituado no artigo 26º, nº 2 da Lei nº 65/2003, o prazo impreterível para a prolação de uma decisão definitiva pelo Tribunal da Relação do Estado de execução é de 30 dias entre a detenção do arguido e a notificação ao mesmo ou seu defensor oficioso/mandatário, podendo excepcionalmente acrescer 30 dias no caso do nº 3 do artigo 26º, o que não se verifica porque a culpa na demora foi do Tribunal do Estado de emissão. Os prazos constantes no artigo 30º da Lei nº 65/2003 não se aplicam porque o arguido não esteve permanentemente detido nem se recorreu em momento algum para o Tribunal Constitucional.

10º)

Atente-se às datas concretas para averiguar se foi ou não ultrapassado o prazo máximo permitido por lei para conclusão com a decisão judicial o presente mandado de detenção europeu:

- O arguido foi detido no interior da Esquadra da Polícia de Segurança Publica de ... no dia 20/03/2024 pelas 16h40 – cfr. fls 6 e 7 do Auto de Constituição de Assistente.

11º)

Foi conduzido sob escolta policial ao Tribunal da Relação de Guimarães no dia seguinte – 21/03/2024 (Requerimento do M.P com a referência Citius nº ....33), tendo-lhe sido aplicada a medida de apresentação diária naquela entidade policial e ordenada a sua libertação imediata). Ref.ª Citius nº .....47.

12º)

Até que finalmente em 02/08/2024 o Tribunal de Violência Contra a Mulher n.º ...de ..., do Reino de Espanha, à 6ª tentativa lá se dignou enviar toda a documentação solicitada devidamente traduzida para a língua portuguesa.

13º)

Ou seja, o arguido foi policialmente detido em ... no dia 20/03/2024 e legalmente notificado da Decisão Sumária do Tribunal da Relação de Guimarães, aqui posta em crise, no dia 12/08/2024, seja, neste processo urgente de mandado de detenção europeu decorreram 145 dias, ultrapassando em muito os 60 dias obrigatórios consagrados no artigo 26º, nº 2 da Lei nº 65/2003 de 23/08. (negritos nossos).

14º)

Curioso que nem o Tribunal na prolação da decisão revidenda nem o Ministério Público que sempre se esforçou por obter as informações/documentos necessários se tenham pronunciado ou feito uma qualquer menção sobre a questão da ultrapassagem do referido prazo, até porque a responsabilidade no atraso se deve em nosso entender, em exclusivo ao Tribunal de Violência Contra a Mulher n.º ... de ..., Espanha.

15º)

Tal irregularidade deve ter como consequência a nulidade da Decisão Sumária proferida nos presentes autos, com as legais consequências, por ser manifestamente extemporânea, em clara violação do preceituado no artigo 26º, nº 2 da Lei nº 65/2003 de 23/08, devendo também decretar o Supremo Tribunal de Justiça a extinção da medida de coação da obrigação de apresentações diárias na Esquadra da Polícia de Segurança Pública de ..., atentos todos os fundamentos supra aduzidos.

16º)

Foram violadas as seguintes normas jurídicas:

- Artigo 40º, nº 1 do Código Penal e 26º, nº 2 da Lei nº 65/2003 de 23/08 (Mandado de Detenção Europeu).

Termina dizendo que “deve o presente Recurso ser julgado totalmente procedente, decretando o Supremo Tribunal de Justiça que atento o supra exposto, tal irregularidade tenha como consequência a nulidade da Decisão Sumária proferida nos presentes autos, com as legais consequências, por ter sido decretada de forma extemporânea, em clara violação do preceituado no artigo 26º, nº 2 da Lei nº 65/2003 de 23/08, devendo também ser ordenada a extinção da medida de coação da obrigação de apresentações diárias na Esquadra da Polícia de Segurança Pública de ..., pelos fundamentos aduzidos.”

1.5. Ao recurso respondeu o Ministério Público, pelo Senhora Procuradora-Geral Adjunta no Tribunal do Relação, concluindo do seguinte modo:

… “pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, a reflexão doutrinária e jurisprudencial que as questões equacionadas têm merecido, afigura-se-me que se deverá:

a) julgar o presente recurso improcedente, no que concerne à questões suscitadas pelo recorrente, relacionadas com a natureza dos prazos do artigo 26.º da Lei n.º 65/2003, de 23/8, para a decisão definitiva, devendo o requerido aguardar os ulteriores termos do processo na situação cautelar em que se encontra e sujeito à medida de coação aplicada;

b) não obstante, declarar a nulidade da decisão sumária recorrida e ordenar o julgamento do processo de execução do MDE pela secção criminal do tribunal da relação, funcionando com três juízes, em obediência ao disposto no n.º 2 do artigo 15.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, com todas as legais consequências substantivas e adjetivas.”

1.6. Foram os autos aos vistos e à conferência (artigo 25.º n.º 2 da Lei n.º 65/2003).

2. Fundamentação

2.1. Factos

2.1.1. No Tribunal da Relação foram dados como provados os seguintes factos:

a) O arguido, que em Portugal usa o nome de AA e tem o cartão de cidadão n.º ....... 7, nasceu a ... de ... de 1948 na freguesia de ..., é filho de CC e DD, tem também nacionalidade portuguesa, está aposentado e reside na Rua ..., ....

b) Apesar de ter estado durante 27 anos a trabalhar em ..., o requerido, já reformado, regressou a ..., onde quer continuar a residir e onde tem relações de amizade, não pretendendo voltar a Espanha.

c) Por contrato de 27 de Fevereiro de 2022, o requerido arrendou o apartamento aludido em a) a partir de 1 de Março do mesmo ano, onde desde essa altura reside.

d) A sua companheira desde Janeiro de 2024, EE, apesar de ter a sua casa, por vezes pernoita na companhia do arguido, sendo a relação descrita como gratificante e de interajuda.

e) O requerido aufere cerca de € 1.000,00 de reforma de ... e suporta o pagamento da renda do apartamento, fixada no contrato como sendo de € 400,00.

f) Tem uma filha menor, residente em ...; os dois filhos maiores continuam a residir em ..., havendo contactos telefónicos regulares com o requerido.

g) No actual meio de residência, o requerido tem uma imagem social positiva, sendo desconhecida da comunidade a sua condenação em Espanha.

h) Convive sobretudo com a companheira e amigos.

i) Tem problemas de saúde que implicam medicação e acompanhamento hospitalar.

j) O arguido não aceita a sua entrega às autoridades judiciais espanholas, pretendendo cumprir a pena em Portugal.

k) O arguido não é titular de passaporte nem tem antecedentes criminais registados.

2.1.2. Em sede de fundamentação da matéria de facto, escreveu-se na decisão recorrida:

Baseou-se este Tribunal, para o vertido supra em A., na certidão a que alude o art. 4.º, nºs. 1 e 5, da Decisão-Quadro 2008/909/JAI e na sentença condenatória juntas aos autos, ambas traduzidas para português (ref.ª ....18).

Relativamente à matéria de B.1., foram relevantes as informações da Identificação Civil (refªs. .....66 e ....29), o assento de nascimento do requerido (ref.ª .....65), o contrato de arrendamento (ref.ª ....94), o certificado de registo criminal (ref.ª .....66), as declarações do arguido na respectiva audição e os depoimentos de EE (companheira do arguido), FF (senhorio deste) e GG (irmã da primeira e companheira do segundo), complementados e precisados pelo relatório social (ref.ª ....83).”

2.2. Direito

2.2.1. É pelas conclusões que se afere o objecto do recurso (402º, 403º, 410º e 412º do CPP), sem prejuízo, dos poderes de conhecimento oficioso (artigo 410.º, n.º 2, do CPP, AFJ n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995, 410º, n.º 3 e artigo 379.º, n.º 2, do CPP).

O recurso tem por objeto uma decisão sumária proferida, em primeira instância, pelo Tribunal da Relação, que é o competente para conhecer do processo judicial de execução do mandado de detenção europeu - artigo 15.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto.

2.2.2. Levando em conta as conclusões do arguido recorrente, sobretudo as conclusões 1ª e 13ª, onde resume que “o presente Recurso versará apenas sobre uma questão de direito, requisito não apreciado na decisão revidenda, aqui posta em crise e que entendemos ser deveras relevante na validade e exequibilidade da mesma ora proferida,” ou seja, “o arguido foi policialmente detido em ... no dia 20/03/2024 e legalmente notificado da Decisão Sumária do Tribunal da Relação de Guimarães, aqui posta em crise, no dia 12/08/2024, seja, neste processo urgente de mandado de detenção europeu decorreram 145 dias, ultrapassando em muito os 60 dias obrigatórios consagrados no artigo 26º, nº 2 da Lei nº 65/2003 de 23/08” são questões a decidir, as seguintes (pela ordem indicada):

(i)- saber se foi ultrapassado o prazo para a decisão sobre a execução do mandado de detenção europeu;

(ii)- conhecer da nulidade da decisão sumária recorrida, arguida pelo Ministério Público.

2.2.3. Deverá, ainda, o tribunal começar por conhecer e decidir das nulidades e de quaisquer outras questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa acerca das quais não tenha havido decisão e que possa desde logo apreciar (v. art.ºs 311º, 338º e 368º do CPP), como a nulidade arguida pelo MP, ou outras, de conhecimento oficioso.

2.2.4. Nulidade insanável da decisão recorrida

2.2.4.1. O regime jurídico do mandado de detenção europeu (em cumprimento da Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho), foi aprovado pela Lei 65/2003, de 23 de Agosto, (actualizada pelas Leis 35/2015, de 04.05, 115/2019, de 12.09 e 52/2023, de 28.08).

Dispõe o art.º 15.º, desta Lei, sob a epigrafe “Competência para a execução do mandado de detenção europeu”, que é competente para o processo judicial de execução do mandado de detenção europeu o tribunal da relação da área do seu domicílio ou, se não o tiver, da área onde se encontrar a pessoa procurada à data da emissão do mandado – n.º 1.

E que o julgamento é da competência da secção criminal – n.º 2.

Desta disposição legal, em conjugação com o disposto no art.º 24º, n.º 1, al. b), da mesma Lei 65/2003, bem como nos art.ºs 73º, 74º, n.º 1, 56, n.º 1, todos da Lei 62/2013, de 23.08 - LOSJ -, 12º, n.º 3, al. e), do CPP, resulta que no julgamento do processo judicial de execução de Mandado de Detenção Europeu – MDE -, o Tribunal da Relação não intervém como um tribunal de recurso, mas antes, como tribunal de 1ª instância.

Neste processo judicial de execução do MDE, o Tribunal da Relação reunindo em primeira instância, tem a composição que resulta do disposto no n.º 1 do art.º 56º da Lei 62/2013, de 26.08 – LOSJ -, e art.º 12º, n.º 4 do CPP, sendo integrado por um juiz relator e dois juízes adjuntos, que participam no julgamento e na elaboração e assinatura do respectivo acórdão(1).

Com efeito, “os tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo (art.º 205º da CRP), constituindo o número de juízes, bem como as regras relativas à sua composição, pressupostos legitimadores dessa mesma administração(2).

Daí a especial gravidade da violação destas normas adjectiva e a, consequente, severidade da sanção processual. Se o número de juízes previstos na lei não for respeitado, a decisão arrisca-se, no mínimo, a ser suspeita, devendo ser revogada”(3).

2.2.4.2. Por outro lado, o disposto no art.º 119º, al. a) do CPP, comina com nulidade insanável a falta do número de juízes que devam constituir o tribunal, vício que, embora com diversa fundamentação, foi invocado, na resposta ao recurso do recorrente, pelo Ministério Público, pelo que se vai dele conhecer, como questão prévia.

Arguiu o Ministério Público a nulidade da decisão sumária recorrida, nos seguintes termos:

“Nessa conformidade, … afigura-se-me que se deverá:

… declarar a nulidade da decisão sumária recorrida e ordenar o julgamento do processo de execução do MDE pela secção criminal do tribunal da relação, funcionando com três juízes, em obediência ao disposto no n.º 2 do artigo 15.º da Lei n.º 65/2003 …”

Neste caso, tendo sido proferida decisão sumária nos termos do disposto no art.º 417º, n.º 6, al. d), do Código de Processo Penal, não foram respeitados aqueles comandos legais e não foi respeitada a composição do tribunal, sendo, então, evidente que foi violado o disposto neste art.º 119º, al. a) do CPP, vício que tem de ser declarado.

Está em causa a “ordem pública” instituída pela lei processual, e a probabilidade de agressão de garantias processuais, por ela previstas. “A resposta do ordenamento jurídico tem de ser rápida sem ter de aguardar pela arguição do vício, como seria normal em termos formais (ne procedat judex ex officio). O juiz deve declarar a invalidade do acto e repor a legalidade processual penal assim que o vício cometido seja detectado”(4).

A composição do tribunal há de respeitar a legislação processual quanto ao número de juízes que o integram, sob pena de nulidade insanável.

Não sendo admissível a decisão do processo de execução do mandado de detenção europeu, por decisão sumária, do relator, como previsto para os recursos ordinários, no art.º 417º, n.º 6, do CPP.

O que, aliás, tem sido entendimento pacífico do Supremo Tribunal de Justiça, segundo o qual as secções criminais são integradas por um relator e dois adjuntos na elaboração e assinatura do acórdão que decide sobre a entrega da pessoa procurada, quando esta se opõe àquela entrega(5).

A nulidade cominada no art.º 119º, al. a) do CPP, atento o disposto no art.º 122º, n.º 1, do CPP, torna inválida, não apenas a decisão sumária proferida, mas também os actos subsequentes.

Impõe-se, assim, declarar a nulidade desta decisão sumária recorrida, determinando-se a realização de julgamento e prolação de acórdão por tribunal, em cuja composição, intervenham, além do relator, dois juízes adjuntos.

2.2.5. Declarada a nulidade da decisão sumária proferida, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas, nomeadamente a questão de saber se foi ultrapassado o prazo para a decisão sobre a execução do mandado de detenção europeu.

3. Decisão

Pelo exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça - 3ª secção criminal - em declarar a nulidade da decisão sumária recorrida, devendo o tribunal a quo proceder a julgamento com a composição requerida pelo art.º 56º, n.º 1, da Lei 62/2013, de 26.08., e art.º 12º, n.º 4 do Código de Processo Penal.

Sem tributação.


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Supremo Tribunal de Justiça, 02 de Outubro de 2024

António Augusto Manso (relator)

Horácio Correia Pinto (1º Adjunto)

José A. Vaz Carreto (2º Adjunto)

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(1)- Acórdãos do STJ, de 09.05.2018, processo 65/14.8YREVR.S2, de 14.12.2016; de 09.02.2017, proc., 795/16.0YRLSB; de 13.12.2017, proc. 194/17.6YRPRT; de 11.01.2018, Proc 193/17.8RPRT.S1; de 16.05.2018, proc. 39/18.3YRERT.S1.

(2)-Henriques Gaspar, citado por João Conde Correia, CPP anotado, AAVV, I, p. 1272.

(3)(4)-João Conde Correia, CPP anotado, AAVV, vol. I, p. 1273.

(5)- António João Latas, Composição do Tribunal da Relação e outros aspetos do processo judicial de execução de Mandado de Detenção Europeu (MDE), revista Julgar online, Setembro de 2018, p. 2.