Sumário
É de imputar a uma sociedade o abuso do direito no pedido de restituição de um imóvel de que é proprietária, quando os factos demonstrativos do abuso se verificam na pessoa do administrador e foi com base em decisões dele que o imóvel transitou da titularidade dele para a da sociedade.
Decisão Texto Integral
Acordam na 2.ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça
Urbiponte – Construções e Imobiliária, SA, com sede com sede social na Rua de ..., nº 219, ..., freguesia de ..., propôs a presente acção contra AA e BB, ambos residentes na Rua ... n.º 118, ..., freguesia de ..., pedindo:
a. Se reconhecesse a propriedade da autora sobre o prédio identificado no art.º 1.º da petição: prédio urbano composto por uma casa de dois pavimentos com logradouro, sito na Rua de ... n.º 118, freguesia de ..., descrito na competente conservatória sob o nº ..20 e inscrito no art.º ..31 da respetiva matriz;
b. A condenação dos réus a restituírem esse prédio livre de pessoas e bens à autora;
c. A condenação dos réus no pagamento de sanção pecuniária compulsória desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado, no montante de € 50,00 por cada dia de atraso no cumprimento da decisão, nos termos do art.º 829.º-A, n.º 4, do Código Civil.
Para o efeito alegou em síntese que é proprietária do prédio acima descrito e que os réus ocupam-no ilícita e abusivamente e que, interpelados para o restituírem, recusam-se a fazê-lo.
Os réus contestaram, pedindo se julgasse improcedente a acção e se condenasse a autora como litigante de má-fé, em multa e indemnização exemplares, e deduziram, a título subsidiário, reconvenção.
Em sede de defesa alegaram:
• Que já foi decidido com trânsito em julgado, na acção que correu termos no 4.º juízo cível do tribunal judicial de ... sob o n.º 583/96, que os réus não estão obrigados a restituir o prédio que ocupam e esse caso julgado é oponível à autora;
• Que os réus ocupam o prédio ao abrigo de um contrato oneroso de arrendamento ou, pelo menos, de promessa de arrendamento, que é oponível à autora;
• Que ainda que o contrato celebrado pelos réus com os anteriores proprietários fosse de comodato, sempre seria oponível à autora, nos termos do artigo 431.º do Código Civil;
• Que caso a autora quisesse, por ter esse direito, resolver o contrato de comodato que alega, teria de nos termos do Acórdão da Relação que cita, antes do mais, decidir construir uma pousada no prédio arrendado e construir uma nova casa no mesmo prédio, para instalar os réus, mediante um contrato de arrendamento;
• Que ainda que à autora pudesse ser reconhecido o direito de incumprir o contrato de comodato e as condições de resolução deste, facto é que os réus teriam direito de paralisar qualquer propósito de desocupação, uma vez que a autora não passa de ser o mesmo anterior proprietário, travestido de terceiro, por força da figura da desconsideração da personalidade societária.
Para a hipótese de se entender que a defesa, no que respeitava ao invocado direito de retenção e à descaraterização da personalidade societária da autora só poderia ser admitida em reconvenção, pediram:
a. Se reconhecesse que os réus tinham direito de retenção sobre o imóvel reivindicado, que lhes permitia continuar a ocupá-lo e nele habitar, enquanto o contrato ajuizado não fosse legalmente resolvido, nos termos exprimidos na contestação;
b. Se desconsiderasse a personalidade societária, por agir em abuso de direito, ao procurar aproveitar-se ilicitamente da personalidade coletiva para impor aos réus a sua desresponsabilização em relação ao cumprimento do contrato, contornando a obrigação de cumprir os deveres contratuais em que o seu principal acionista e administrador único se encontra vinculado perante os réus; e, em consequência, reconhecer que lhe é inteiramente oponível o contrato celebrado que permite aos réus a ocupação do prédio reivindicado, assim ficando inibidos os efeitos normais da autonomia da personalidade, porque esta foi ilicitamente empregue.
A autora respondeu.
No despacho saneador, foi julgada improcedente a excepção de caso jugado.
O processo prosseguiu os seus termos e, após a audiência final, foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente e a reconvenção improcedente, decidiu:
• Reconhecer a propriedade da autora sobre o prédio identificado sob 1.º dos factos provados;
• Condenar os réus a restituírem esse prédio livre de pessoas e bens à autora;
• Absolver os réus dos demais pedido;
• Absolver a autora da instância reconvencional.
Apelação:
Os réus não se conformaram com a sentença e interpuseram recurso de apelação, pedindo a revogação e a substituição da sentença recorrida por decisão que julgasse improcedente o pedido de restituição do prédio à autora e julgasse procedente o pedido reconvencional.
O Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão proferido em 27-06-2024, julgou procedente a apelação e, em consequência, revogou a sentença recorrida, absolvendo os réus do pedido formulado na alínea b) – restituição do prédio que ocupam, livre de pessoas e bens à autora -, mantendo, no mais, a sentença recorrida.
Revista:
A autora não se conformou com o acórdão e interpôs recurso de revista, pedindo se revogasse a decisão recorrida e se repristinasse a decisão tomada em 1.ª instância.
Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. Foi a intencionalidade existente na criação da Autora, quer na transmissão do reivindicado que foi alegada pelos Réus na contestação e que, por esse motivo, foi fixada como tema da prova, sendo essa intencionalidade que incumbia àqueles provar.
2. A decisão recorrida contraria de forma clara o que vem sendo decidido no processo e mesmo assumido por ambas as partes, designadamente o que se decidiu em sede de saneador quando fixou os temas da prova; a sentença de 1ª instância que expressamente deu como não provada essa intencionalidade e mesmo a posição assumida pelos Réus que impugnaram a matéria de facto.
3. A materialidade que os Réus pretendiam acrescentar à matéria de facto não encontra respaldo nos factos dados como provados.
4. O Tribunal a quo, não tendo decidido favoravelmente a impugnação factual deduzida pelos Réus, não podia concluir, como concluiu, que a transferência da propriedade do imóvel ocupado pelos RR, primeiro para o filho dos proprietários, e depois para a sociedade A, foi um ato, que embora formalmente válido, se destinou exclusivamente a permitir a restituição do imóvel ocupado pelos RR.
5. Tendo a intencionalidade alegada pelos Réus sido dada como não provada, pelo Tribunal de 1ª instância, apenas pela procedência do recurso da matéria de facto o Tribunal da Relação poderia alterar o decidido a esse respeito.
6. O instituto da desconsideração da personalidade jurídica tem natureza excecional, é de aplicação subsidiária e implica que tenha existido um comportamento ilícito, abusivo ou fraudulento, ou que o agente tenha agido desonestamente.
7. Nada disso se provou no presente processo, antes tal se tendo dado como NÃO PROVADO, sendo que a decisão sobre a matéria de facto ficou intocada no segundo grau de jurisdição, não tendo, designadamente, a Relação feito uso do disposto no art.º 662.º nº 1, do Código de Processo Civil.
8. Ao tê-lo feito, violou a decisão recorrida o disposto no art.º 334.º do Código Civil e 607.º n.º 4 e 662.º nº 1 do Código de Processo Civil.
Os réus responderam e interpuseram recurso subordinado, nos termos do artigo 633.º, n.º 1, do CPC – ou, se assim não se entendesse, a ampliação do âmbito do recurso ao abrigo do disposto no art.º 636º, n.º 1, do Código de Processo Civil - para acautelar a eventual procedência do pedido da recorrente no que tangia ao afastamento da desconsideração da sua personalidade colectiva. Remataram a resposta, pedindo a improcedência do recurso e a manutenção do acórdão recorrido. Em relação ao recurso subordinado, pediram a sua procedência e a improcedência do pedido de restituição do prédio à autora.
Os fundamentos da resposta e do recurso subordinado expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. O recurso de revista interposto deve ser imediatamente rejeitado/improceder de imediato pois insurge-se contra uma suposta fundamentação de direito (a desconsideração da personalidade coletiva) que não tem qualquer correspondência com a realidade.
2. Com efeito, o recurso de apelação foi julgado – e bem – parcialmente procedente por ter sido entendido que o contrato de comodato outorgado entre os primitivos proprietários da quinta, CC e mulher DD e o pai dos aqui Recorridos, tem eficácia externa, por aquela Urbiponte ser conhecedora da existência do contrato de comodato desde o momento em que adquiriu a quinta e se conforma com a situação de ocupação,
3. Determinando ainda que, mesmo que assim não fosse, a Urbiponte sempre estaria a agir em abuso de direito ao vir apenas agora a exigir a entrega do imóvel sem oferecer, em simultâneo, o cumprimento das cláusulas do contrato de comodato que impunham as obrigações plasmadas nas alíneas Q) e R) dos factos assentes:
4. Da matéria de facto provada nos autos resulta, inequivocamente, que CC e mulher DD agem a coberto da sociedade Urbiponte, em nome de quem se encontra agora registado o imóvel em causa nos autos, para se furtarem à obrigação de, para deles obter a entrega do prédio em questão, lhes facultar uma habitação com renda reduzida em 20% em face dos valores de mercado.
5. Com efeito, a mera leitura dos factos provados (F, G, M, N, O, P, Q, R, T, U, V, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32 e 33) permite concluir que a Urbiponte foi usada como veículo de afastamento do prédio em causa nos autos do nome dos citados CC e mulher DD, o que, só por si, sempre determinaria a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica coletiva sob pena de se verificar um abuso de direito por parte dos obrigados CC e mulher DD.
6. A circunstância dos factos alegados pelos aqui Recorridos nos art.s 68º e 75º da sua contestação não terem ficado provados, em nada afasta a possibilidade de se poder entender que houve uso abusivo da personalidade coletiva da Recorrente – como efetivamente houve e se logrou demonstrar nos autos.
7. Desde logo importa, pois, considerar, e parece que será a hipótese dos autos, que a desconsideração da personalidade jurídica tem lugar quando uma pessoa coletiva apareça a fugir a uma lei, violar deveres contratuais e prejudicar direitos de terceiros, e ainda quando a pessoa coletiva é usada, como no caso sucedeu para tentar frustrar os escopos de uma norma ou de um negócio jurídico.
8. Lida toda esta factualidade assente, dúvidas não restaram aos Ex.mos Desembargadores, nem restarão aos Ex.mos Conselheiros, de que: 8.1) A Urbiponte assumiu integralmente a posição que nos contratos citados haviam assumido o CC e a DD (anteriores proprietários da quinta); 8.2) Sendo que a esta solução sempre se chegaria porque: a) Aqueles CC e a DD fizeram um uso abusivo da personalidade coletiva da Urbiponte que, por vias disso, é responsável pelo cumprimento dos contratos outorgados, apenas podendo exigir a entrega da quinta se b) Mantivessem o prédio existente ou construísse uma nova casa na “...”, na qual ficariam a viver os aqui Réus mediante uma renda a fixar de valor corrente no mercado para casas do mesmo tipo com uma redução de 20%., e c) Lhes pagasse uma indemnização de esc.500.000$00.
9. Na eventual procedência do recurso interposto pela aqui Recorrente Urbiponte, deve este Venerando tribunal pronunciar-se sobre todos os fundamentos em que os aqui Recorridos decaíram no recurso de apelação.
10. Como resulta do acórdão recorrido, bem como da sentença da primeira instância, e está provado documentalmente, a Recorrente assumiu expressamente que se substituiu aos anteriores proprietários na relação estabelecida entre estes e os Recorridos, uma vez que (documento n.º 3 junto com a petição) no dia 13 de Novembro de 2019 lhes dirigiu uma carta, reconhecendo expressamente que eles são “comodatários do imóvel” e que a ela (Recorrente) e os seus sócios são “atuais proprietários e comodantes”, pelo que sempre lhe assistiria o direito de excecionar o seu cumprimento entrega do prédio) enquanto a Recorrente não oferecesse o seu cumprimento (arrendamento de prédio da quinta ou de um novo a construir, mediante o pagamento de uma renda a fixar de valor corrente no mercado para casas do mesmo tipo com uma redução de 20%. E pagamento de uma indemnização de esc.500.000$00), nos termos do disposto no art.º 431º do Código Civil.
11. Aos Recorridos sempre assistiria direito de retenção (conforme previsto no artigo 755.º, n.º 1 al. d) do Código Civil), uma vez que dispõem de um crédito que lhes faculta o direito de não entregar o prédio enquanto não estiverem cumpridas as obrigações da contraparte;
12. Por outro lado, que esse direito de retenção constitui “causa legítima de incumprimento da obrigação de responsabilidade à semelhança da “exceptio non adimpleti contractus” ou da “non rite adempleti contractus” contemplada no artigo 426.º do Código Civil”, ou seja, causa legítima de ocupação do prédio.
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O recurso subordinado, como bem entendeu a Exm.a Desembargadora, ao apreciar os requerimentos de interposição de recurso, é de admitir como ampliação do âmbito do recurso prevista no artigo 636.º do CPC. Na verdade, só pode interpor recurso quem, sendo parte principal, tenha ficado vencido (n.º 1 do artigo 631.º do Código Civil) e os réus não ficaram vencidos quanto à questão da restituição do imóvel.
As questões suscitadas pelo recurso e pela ampliação do âmbito do recurso são as seguintes:
O recurso suscita a questão de saber se, ao revogar a decisão proferida na 1.ª instância de condenar os réus a restituírem à autora o imóvel supra descrito, o acórdão recorrido violou o disposto no artigo 334.º do Código Civil e nos artigos 607.º, n.º 4 e 662.º, n.º 1, ambos do CPC.
Por sua vez, a ampliação do âmbito do recurso suscita as seguintes questões:
• Saber se assiste aos recorridos o direito de recusarem a entrega do prédio enquanto a recorrente não oferecer o cumprimento do contrato (arrendamento de prédio da quinta ou de um novo a construir, mediante o pagamento de uma renda a fixar de valor corrente no mercado para casas do mesmo tipo, com uma redução de 20%) e pagamento de uma indemnização de esc. 500.000$00;
• Saber se assiste aos recorridos o direito de retenção sobre o prédio.
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Factos considerados provados e não provados pelo acórdão recorrido:
Provados:
1. O prédio urbano composto por uma casa de dois pavimentos com logradouro, sito na Rua de ... nº 118, freguesia de ..., descrito na competente conservatória sob o nº ..20 e inscrito no art.º ..31 da respetiva matriz e inscrito no registo a favor da A.
2. O qual foi adquirido a EE, por escritura de compra e venda outorgada aos 20 de Outubro de 2005, no Cartório Notarial do Notário ....
3. Independentemente disso, a autora por si e ante possuidores e ante proprietários, há mais de 10, 15 e 20 anos que vêm usando esse prédio e fruindo-lhe todas as utilidades e rendimentos, transformando-o, pagando as respetivas contribuições e impostos, enfim, dando-lhe o destino que muito bem quer e entende,
4. Tudo isto ininterruptamente, à vista de toda a gente, com exclusão de terceiros, sem oposição de ninguém,
5. E convicta de não lesar direitos de outrem, antes com o ânimo de exercer um direito próprio, com conteúdo semelhante ao de propriedade.
6. O supramencionado EE havia adquirido o prédio acima referido a CC e esposa DD
7. Sucede que os RR. estão a ocupar o dito prédio.
8. Na verdade, apesar de já terem sido interpelados pela A. para restituir o prédio ora reivindicado, os RR. recusam-se a fazê-lo.
9. A 24 de outubro de 1996, os já aludidos CC e esposa DD intentaram ação sumária de reivindicação contra os aqui RR., a qual correu termos pelo então Tribunal Judicial de ... – 4º Juízo Cível, sob o nº 583/96.
10. Nessa ação, invocavam os então AA. a propriedade do prédio a que acima se referiu em 1. e peticionavam fossem eles declarados como seus verdadeiros e legítimos donos, a posse dos RR. como abusiva e de má-fé, e estes condenados a reconhecerem aquele direito e a restituírem o prédio livre e desocupado de pessoas e coisas.
11. Por sentença proferida aos 15/07/1999, e confirmada, ainda que com diferente fundamento, por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22/02/2000, essa ação foi julgada apenas parcialmente provada e procedente, tendo os AA. sido declarados como verdadeiros e legítimos donos do prédio supra aludido em 1. e condenados os RR. apenas a reconhecerem esse direito de propriedade, improcedendo os demais pedidos.
12. As instâncias deram como provados os factos vertidos quer na sentença, quer no acórdão, que juntaram e que aqui se dão todos por integralmente reproduzidos.
13. No mencionado acórdão se concluiu que o contrato que vigorava entre os ante proprietários referidos, CC e esposa DD, revestia o carácter de um comodato: “A ocupação de um prédio, a título gratuito, com autorização do seu proprietário constitui um contrato de comodato, que subsiste enquanto não for resolvido pelo meio próprio, a tal não obstando que o imóvel se destine exclusivamente a habitação”.
14. Os primitivos proprietários do imóvel descrito em 1. supra tinham entregado a título gratuito o aludido bem imóvel ao pai dos aqui RR., situação que, na decisão que se citou, fundamentava então a respetiva ocupação e a improcedência parcial da ação.
15. No dia 13/11/2019, através de carta registada subscrita pelo referido CC, repetiu intimação semelhante à desses autores: são comodatários do imóvel, pelo que “na qualidade de atuais proprietários e comodantes, vimos pela presente manifestar a intenção de ver restituído o imóvel dado em comodato”, pelo que “devem Vªs Exªs entregar o devido imóvel livre de pessoas e bens no prazo de 30 (trinta) dias”.
16. A pessoa física que subscreveu a carta referida no anterior processo (cfr. o facto B adiante citado) é a mesma que subscreveu a carta dirigida aos Réus em nome da sociedade Autora, como é a mesma que subscreveu a procuração forense que instruiu a petição inicial, e é a mesma que em representação da Autora subscreve a versão constante da petição.
17. Em 24/10/1996, CC e mulher DD – ele desde sempre o administrador único da Autora (que, como tal conferiu procuração forense ao seu Exmo. Mandatário), e que é cunhado dos Réus, e ela irmã dos mesmos Réus – intentaram uma ação de reivindicação contra os Réus que correu termos pelo 4.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de ... sob o n.º 583/96.
18. Os referidos Autores pediram nessa ação a condenação dos Réus a reconhecerem o seu direito de propriedade sobre o prédio reivindicado e a restituírem-lho livre e desocupado de pessoas e coisas, fundando esse pedido no facto de serem proprietários do mesmo prédio e no de os Réus o ocuparem abusivamente e sem título, de má-fé.
19. Essa ação foi julgada por sentença de 15/07/1999 improcedente e não provada, no que respeita ao pedido de entrega do prédio, decisão que foi confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 22/02/2000, porque os Autores apenas provaram o seu direito de propriedade e não o direito de lhes ser entregue o prédio, visto que a ocupação que faziam foi julgada legítima e justificada, por emergente de um contrato oneroso e bilateral que lhes confere esse direito.
20. Os factos que suportam a ação e a defesa na presente ação são os seguidamente transcritos:
• “A) Os AA. são donos de um prédio constituído por uma casa de dois pavimentos com logradouro, sito no lugar de S. ..., freguesia de ..., inscrito na matriz sob o artigo .11 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..20, o qual adquiriram a FF e GG, mediante escritura pública de 21/03/1995, outorgada no 2.º Cartório de ... (…).
• B) Em 9 de abril de 1996, o A. marido, mediante carta dirigida aos RR. comunicou-lhes que dispunham de um prazo de 180 dias, contados do dia da receção da mesma, para lhe entregarem o prédio referido na alínea anterior, uma vez que o ocupavam sem qualquer título e por mero favor, desde 22 de agosto de 1993, ou seja, após a morte do pai deles.
• C) Os RR. são filhos de HH, o qual, por sua vez, é filho de II, sendo que este faleceu no estado de viúvo de JJ, no dia 22 de agosto de 1993.
• D) Os RR. estão a ocupar o prédio referido na alínea A) contra a vontade dos AA.
• E) O prédio referido na alínea A), além de casa de dois pavimentos e logradouro, é composto de cortes, barra, alpendre, eira e eido, fazendo parte da Quinta de ..., sita no lugar de S. ..., freguesia de ..., ....
• F) Pelo menos desde 1 de Novembro de 1927, que os avós dos RR., KK e mulher DD, mediante acordo com os então donos do prédio referido no quesito anterior, o passaram a ocupar.
• G) Agricultando-o e usando-o, pelo prazo de um ano, sucessivamente renovável por iguais períodos, mediante a contraprestação anual, a pagar conforme os usos e então, pelo dia 1 de Novembro e até ao Natal, na própria “Quinta de ...”, de 9 carros de milho, de centeio, feijão, e 2/3 da produção de vinho.
• H) Cerca do ano de 1996, altura em que faleceu KK, o então dono do prédio referido no quesito 2.º e DD (avó dos RR.) combinaram que o acordo referido nos quesitos anteriores fosse transmitido para HH, pai dos réus.
• I) Em 1974, os então donos do prédio referido no quesito anterior, LL e GG, pretendendo aí construir, como construíram, uma vacaria, e uma vinha de vinho branco, combinaram com o pai dos RR. que ficavam a explorar, sob sua responsabilidade, a “...”.
• J) Reduzindo-se o objeto do arrendamento às casas e dependências agrícolas, ficando ele (pai dos RR) a agricultar a terra e a tratar das vinhas e vacaria, mediante o pagamento de um salário mensal então combinado.
• L) HH, pai dos RR. e dois irmãos destes, MM e NN, ficaram a gerir com o seu trabalho executivo a vacaria e a vinha referidas no quesito anterior.
• M) Sendo que essa situação se manteve até 1990, altura em que os anteriores donos do prédio referido resolveram vendê-lo aos aqui AA.
• N) Em 1990, LL, GG, os AA., e o pai dos RR. fizeram um acordo, sendo o dos AA. com o pai dos RR. reduzido a escrito, segundo o qual os AA. compravam a “...”, construíam aí casas de habitação e apartamentos e pagavam o preço do solo aos proprietários através da entrega de vivendas e apartamentos, ou do preço do solo, à medida que vendessem esses prédios.
• O) E que o pai dos RR. ficava agricultando para si e sem pagar doravante qualquer renda, os terrenos da “...”, com obrigação de ir entregando os que fossem necessários para as construções.
• P) Que o pai dos RR. ficaria a habitar no prédio referido na alínea A) enquanto fosse vivo, gratuitamente, e, conjuntamente com três filhos, os Réus e o HH.
• Q) Que, para o caso de os AA. quererem construir uma pousada no aludido prédio ficaram com a faculdade de pedir-lhes a desocupação e a entrega do mesmo, desde que previamente construíssem uma nova casa na “...”, na qual ficaria a viver gratuitamente o pai dos RR. com os referidos filhos, e lhes pagasse uma indemnização de esc.500.000$00.
• R) E que, no caso de à morte do pai dos RR., qualquer dos seus filhos que com ele ainda vivessem quisessem permanecer vivendo no prédio ocupado pelo pai, fosse o velho ou o novo, os AA. obrigaram-se a dar-lhes o prédio de arrendamento, mediante uma renda a fixar de valor corrente no mercado para casas do mesmo tipo com uma redução de 20%.
• S) Quando o pai faleceu, os RR. abordaram os AA., dizendo-lhes que queriam tomar de arrendamento o prédio referido na alínea A), tendo ouvido como resposta que se deixassem estar pois que ninguém os molestaria.
• T) Em 22 de agosto de 1993, altura em que faleceu o pai dos RR., no estado de viúvo, com ele viviam os RR., os quais nasceram na “...” e sempre, sem interrupção, viveram no prédio referido.
• U) Os quais partilhavam o mesmo teto, tomavam refeições juntas, contribuindo com parte do seu salário e trabalho para o custeio das refeições e despesas domésticas.
• V) O que tudo era conhecido por toda a gente da freguesia de S. ..., inclusivamente pelos próprios AA.”
21. O tribunal concluiu que os Réus ocupavam o prédio reivindicado, por terem sucedido no arrendamento rural de seu pai por transmissão, sucedendo nos correspondentes direitos, pelo que a ocupação que faziam do prédio era inteiramente legítima – o que levou à necessária à improcedência da ação.
22. Em recurso interposto pelos Autores da referida sentença, o Tribunal da Relação manteve a decisão recorrida, concluindo pela improcedência do recurso, embora com diverso fundamento, uma vez que considerou que, embora não lhe parecendo relevante trazer à colação a natureza e fins do contrato, este assumiria o carácter essencial de um comodato.
23. O Tribunal da Relação decidiu que “o meio próprio, no caso concreto para resolver o contrato está contido no aludido acordo, subscrito pelos AA. e que estes, instados pelos RR. a fazê-lo, se recusam a cumprir”.
24. Para isso, no dia 20/10/2005, “doaram”, por escritura pública então celebrada, o referido prédio ao seu referido filho, EE, que, aliás, então como hoje, não vive com autonomia em relação aos pais, visto que vive com eles e em inteira dependência económica deles.
25. E esse filho desses Autores da anterior ação, cumprindo instruções destes, nesse mesmo dia e em ato seguido, igualmente por escritura pública, declarou vender o referido prédio à sociedade que agora aparece como autora, Urbiponte – Construções e Imobiliária S.A., referindo que a venda foi feita pelo preço de 130 000€.
26. Pelo menos desde 1 de Novembro de 1927, que os avós dos RR., (a quem o pai dos Réus sucederia, como arrendatário rural), mediante acordo com os então donos do prédio, passaram a ocupá-lo, agricultando-o e usando-o, pelo prazo de um ano, sucessivamente renovável por iguais períodos de tempo, mediante a contraprestação anual, a pagar conforme os usos de então, pelo dia 1 de novembro e até ao Natal, na própria “Quinta de ...”, de 9 carros de milho, de centeio, de feijão, e 2/3 da produção de vinho.
27. Em 1974, os então donos da quinta, pretendendo aí construir, como construíram, uma vacaria, e uma vinha de vinho branco, para exploração direta, combinaram com o pai dos RR. alterar o acordo por forma tal que este fosse reduzido às casas e dependências agrícolas, ficando ele a agricultar a terra e a tratar das vinhas e vacaria, mediante o pagamento de um salário mensal então combinado e passando o pai dos RR. e dois irmãos destes a gerir com o seu trabalho executivo a vacaria e a vinha referidas.
28. Em 1990, os senhorios, os antecessores da Autora e o pai dos RR. fizeram um novo acordo, por documento escrito, segundo o qual os mesmos antecessores da Autora compravam a “...”, construíam aí casas de habitação e apartamentos e pagavam o preço do solo aos senhorios através da entrega de vivendas e de apartamentos, ou do preço do solo, à medida que vendessem esses prédios, e que o pai dos RR. ficava agricultando para si e sem pagar doravante qualquer renda, os terrenos da “...” com obrigação de ir entregando os que fossem necessários para as construções, ficando a habitar na casa de habitação enquanto fosse vivo, gratuitamente, e, conjuntamente com os três filhos, os Réus e o HH.
29. Combinaram ainda que, no caso de os antecessores da Autora quererem construir uma pousada no aludido prédio ficavam com a faculdade de lhes pedir a desocupação e a entrega do mesmo, desde que previamente construíssem uma nova casa na “...”, na qual ficaria a viver gratuitamente o pai dos RR. com os referidos filhos, e lhes pagasse uma indemnização de esc.500.000$00. E que se o pai dos Réus, entretanto falecesse igual faculdade era concedida aos próprios Réus, mas nesse caso, através de um contrato de arrendamento, no qual se estabeleceria a obrigação de os Réus pagarem uma renda normal de mercado reduzida de 20%.
30. Ora, uma vez que quando o pai faleceu, os Réus viviam com ele na casa da “...”, utilizando, como sempre, o prédio onde o pai vivia, resultou do acordo supracitado que se os antecessores da Autora decidissem construir uma pousada nesse prédio, podiam exigir aos Réus a desocupação do mesmo, desde que previamente lhes entregassem um prédio de substituição, por eles construído de novo na quinta, destinado a habitação dos Réus, mediante uma retribuição mensal a estabelecer, correspondente à renda normal de mercado reduzida de 20%.
31. Em 10 de Outubro de 2003, menos de três anos mais tarde, foi constituída a sociedade Autora, já com a denominação de Urbiponte – Construções e Imobiliária SA, para o que compareceram na secretaria notarial respetiva CC e KK, EE, OO e PP, que são respetivamente filhos, os três primeiros, do CC e genro o último.
Não provados:
a. Que a sociedade, apesar de ter adotado a forma anónima, é uma sociedade estritamente familiar composta por pais, por filhos e por um genro, destinada unicamente a simular o papel de estranha e de terceiro, para demandar parentes próximos dos seus acionistas, uma vez que os Réus são tios dos filhos de CC e de mulher, DD, e, por isso, cunhados daquele e irmãos desta;
b. Que quem tem o poder absoluto na sociedade, basta atentar em que, sendo o capital social de 50.000 ações, foi o CC que o realizou integralmente, foi ele quem foi nomeado no pacto administrador único, distribuindo os restantes acionistas entre si todos os demais cargos dos órgão sociais, sendo certo que o referido CC foi nomeado e ficou exercendo o cargo, pelo menos desde 2003, de administrador único da Autora, com poderes para por si só obrigar a sociedade, posição e cargo que mantém até hoje, com exclusão dos demais figurantes fictícios como acionistas da Autora, que mantém um papel passivo e ausente de meros figurantes;
c. Que o negócio de “transmissão” do prédio para a Autora é de muito duvidosa autenticidade e justificação ante o tráfego comercial normal num negócio como o da Autora, resulta do facto de esta, com um capital social de apenas 50.000€, procurar convencer que “comprou” o prédio em questão por 130.000€, ou seja, por dinheiro que seguramente não tinha”.
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Descritos os factos, passemos à resolução das questões suscitadas pelo recurso.
Como se escreveu acima, o recurso suscita a questão de saber se o acórdão recorrido violou o disposto no artigo 334.º do Código Civil e nos artigos 607.º, n.º 4 e 662.º, n.º 1, ambos do CPC.
Esta imputação labora no pressuposto de que o acórdão sob recurso revogou a decisão da 1.ª instância de condenar os réus a restituírem à autora o imóvel em causa nos autos com fundamento no mecanismo da desconsideração da personalidade colectiva e que tal decisão padecia de erro porque os factos em que os réus assentaram essa desconsideração (alegados nos artigos 68.º e 75.º da contestação) foram julgados não provados e, contrariamente ao decidido no acórdão, tais factos não de deduziam dos que foram julgados provados sob os números 17.º, 18.º, 19.º, 25.º, 26.º, 27.º e 33. Acrescia, contra a aplicação do mecanismo desconsideração da personalidade colectiva, que ele tinha natureza excepcional, era de aplicação subsidiária e implicava que tivesse existido um comportamento ilícito, abusivo ou fraudulento ou que o agente tivesse agido desonestamente, nada disso se tendo provado no processo.
O recurso é de julgar improcedente, apesar de serem exactas algumas alegações da recorrente, designadamente que na fundamentação do acórdão se afirmou:
• Que “a transferência da propriedade do imóvel ocupado pelos réus, primeiro para o filho dos proprietários e depois para a sociedade autora foi um ato que, embora formalmente válido, destinou-se exclusivamente a permitir a restituição do imóvel ocupado pelos réus”;
• Que a alienação do imóvel e a sua aquisição pela autora se destinou unicamente a contornar os efeitos prático-jurídicos do comodato, que culminou com a instauração da presente acção, na qual se pede a restituição do imóvel, que havia sido negada em acção anterior”;
• Que a “… a Autora, por detrás das aparências, não pode ser considerada uma terceira relativamente ao negócio anteriormente celebrado com os réus, totalmente indiferente ao que se passou antes de se ter tornado proprietário do imóvel”.
Sucede que apesar de estas afirmações integraram a parte do acórdão relativa à fundamentação de direito, o Tribunal da Relação não revogou a sentença, na parte em que ordenou a restituição do imóvel aos réus, exclusivamente com base nelas.
As razões da revogação foram as seguintes.
A primeira consistiu na afirmação de que a autora, ora recorrente, não tinha o poder de exigir dos réus a restituição do imóvel porque – e passamos a citar – “a mesma, depois de adquirir o direito de propriedade, aceitou e assumiu a existência do contrato anteriormente celebrado (através da figura jurídica do seu administrador)”. O acórdão enquadrou juridicamente esta aceitação e assunção do contrato no artigo 595.º, n.º 1, alínea b) do Código Civil.
A segunda, invocada a título adicional, consistiu na afirmação de que a pretensão de restituição configurava um objectivo manifestamente contrário aos princípios da boa fé e antagónico com o fim social ou económico do direito de propriedade, que assim foi instrumentalizado pelos anteriores proprietários em prejuízo dos réus, e que a A. agora pretende exercer”. Esta razão foi enquadrada no artigo 334.º do Código Civil.
Destas razões, a única que têm relação com as afirmações acima transcritas e constantes da fundamentação é a que consistiu na afirmação de que “a pretendida restituição configurou-se como antagónica com o fim social ou económico do direito de propriedade, que assim “foi instrumentalizado pelos anteriores proprietários em prejuízo dos réus”. Com efeito, só se poderia dizer que o direito de propriedade foi instrumentalizado para prejudicar os réus se se tivesse provado que a transferência do imóvel primeiro para EE (filho de CC e de DD) e depois deste para a sociedade autora, ora recorrente, se destinou exclusivamente a permitir a restituição do imóvel ocupado pelos réus e a contornar os efeitos práticos e jurídicos do contrato de comodato.
A afirmação das outras razões (aceitação e assunção, pela ré, da existência do contrato anteriormente celebrado e contrariedade da pretensão de restituição ao princípio da boa fé) é compatível com a falta de prova da matéria indicada pela recorrente, designadamente com a falta de prova de que a sociedade foi criada com a intencionalidade que lhe foi assinalada pelos réus e com a falta de prova de que a transferência do direito de propriedade sobre o imóvel, primeiro de CC e mulher para o filho de ambos, EE, e depois deste para a sociedade, ora autora, foi efectuada para contornar o invocado contrato de comodato.
Questão diferente é a de saber se tais razões têm relação com o mecanismo da desconsideração da personalidade colectiva e se têm apoio nos factos e nas normas jurídicas invocadas no acórdão.
Sobre a relação de tais razões com o referido mecanismo ela é de afirmar. Vejamos.
A desconsideração da personalidade colectiva, embora tratada na doutrina e aplicada pelos tribunais na decisão de algumas questões, não está prevista no ordenamento jurídico português.
Nas palavras de Jorge Manuel Coutinho de Abreu, o referido fenómeno consiste “... na derrogação ou não observância da autonomia jurídico-subjectiva e/ou patrimonial das sociedades em face dos respectivos sócios” (Curso de Direito Comercial, Volume II, 2.ª Edição, páginas 176 a 184)). Vão no mesmo sentido autores como Pedro Pais Vasconcelos Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, ao escreverem: “A desconsideração da personalidade coletiva ocorre quando, não obstante a separação entre as esferas jurídicas da pessoa coletiva e dos respetivos sócios, o Direito imputa ao sócio a autoria ou a responsabilidade de atos da pessoa coletiva, ou vice-versa, como se, no caso concreto, a personalidade coletiva não houvesse...” ((Teoria Geral do Direito Civil, 9.ª Edição, Almedina, página 190).
Estes autores distinguem, na desconsideração da personalidade colectiva, dois grupos de casos. Coutinho de Abreu escreve: “... casos de imputação (…) e ... casos da responsabilidade. No primeiro grupo entram hipóteses em que determinados conhecimentos, qualidades ou comportamentos de sócios são referidos ou imputados á sociedade e vice-versa”. … no grupo dos casos de responsabilidade encontramos hipóteses em que a regra da responsabilidade limitada que beneficia certos sócios (de sociedades por quotas e anónimas) é quebrada” Curso de Direito Comercial, Volume II, 2.ª Edição, páginas 176 a 184).
Por sua vez, sobre a mesma questão escrevem Pedro Pais Vasconcelos Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos: “A desconsideração atua em dois campos principais: o da imputação subjetiva de conhecimentos, qualidades ou comportamentos juridicamente relevantes (…) e o da imputação da responsabilidade patrimonial (…). No primeiro caso, é imputado à sociedade o conhecimento ou consciência pelo sócio de certas situações como qualificantes de boa ou má fé…. No segundo caso, é a responsabilidade patrimonial que é imputada ao sócio, ou vice-versa, de modo a evitar a frustração dos créditos quando o património do formal devedor se revele insuficiente…” (Teoria Geral do Direito Civil, 9.ª Edição, Almedina, página 190).
Dando à desconsideração da personalidade colectivo este duplo alcance, é de afirmar que as razões do acórdão recorrido têm relação com o primeiro grupo de casos. Com efeito, qualquer uma delas assentou na imputação à sociedade autora, ora recorrente, de acções e conhecimentos do seu administrador único, CC. Na verdade, o acórdão afirma que a autora, ora recorrente, aceitou e assumiu a existência do contrato denominado de comodato anteriormente celebrado porque CC, seu administrador único, o declarou; e afirmou que a pretensão de restituição deduzida pela autora era abusiva, contrária à boa fé, porque CC, seu administrador, contactado pelos réus no sentido de aquele lhes dar de arrendamento o prédio em questão respondeu-lhes que se deixassem estar pois que ninguém os molestaria.
Como se escreveu acima, o mecanismo da “desconsideração da personalidade colectiva” não está previsto no ordenamento jurídico. Daí que, como escreve Jorge Manuel Coutinho de Abreu “… a desconsideração legitimar-se-á através do recurso a operadores jurídicos, nomeadamente (e consoante os casos), a interpretação teleológica de disposições legais e negociais e o abuso de direito – apoiados por uma concepção substancialista da personalidade colectiva (não absolutizadora do princípio da separação" (obra supracitada página 177).
No caso, a imputação à sociedade dos actos do seu administrador fez-se através da invocação do artigo 595.º, n.º 1, alínea b), do Código Civil, e do artigo 334.º do mesmo diploma.
Se o recurso a este último preceito é justificado, já o mesmo não se poderá dizer da invocação do artigo 595.º, n.º 1, alínea b), do Código Civil. Vejamos.
Segundo este preceito, a transmissão a título singular de uma dívida pode verificar-se por contrato entre o novo devedor e o credor, com ou sem consentimento do antigo devedor.
O que se prevê neste artigo é a assunção de uma dívida por sujeito diferente do primitivo devedor por contrato entre o novo devedor e o credor. Ora, laborando no pressuposto de que parte o acórdão – que a sociedade assumiu as obrigações que o seu administrador havia assumido, no âmbito do denominado contrato de comodato, – então é de concluir que a assunção destas obrigações não decorre de qualquer contrato entre novo devedor (sociedade) e o credor (réus). Quando muito decorreu da vontade do administrador da sociedade, sem intervenção de qualquer outro sujeito, hipótese que não é a da alínea b), nem a da alínea a).
Acresce, contra a aplicação do artigo acima citado, que o que nele se prevê é assunção, por um novo devedor, de uma dívida, ou seja, do lado passivo da relação obrigacional, ao passo que o acórdão refere-se à assunção, pela autora, do contrato de comodato, ou seja, a assunção de uma posição contratual.
Como escrevemos acima, o recurso ao artigo 334.º do Código Civil, na parte em que nele se afirma que é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, tem fundamento nos factos apurados. Vejamos.
Apesar de o preceito não dizer quando é que o exercício de um direito ultrapassa manifestamente os limites da boa fé (bem como os restantes limites nele previstos), nem sequer indicar, a título meramente exemplificativo, os casos em que tal sucede, a doutrina e a jurisprudência, a quem tem cabido identificar as situações que, sob o manto do exercício de um direito, caem nas malhas do abuso, incluem nas que excedem manifestamente os limites impostos pela boa fé aquelas em que o seu titular exerce um direito em contradição com um comportamento anterior. É o chamado venire contra factum proprium. Apesar de o acórdão não o dizer expressamente foi nestas águas que navegou ao opor ao pedido de desocupação do imóvel a circunstância de a ocupação dele sido consentida por ato voluntário – e até sugerida – pelo administrador da autora.
Visto, no entanto, que não há uma proibição geral de comportamentos contraditórios, a mesma doutrina e jurisprudência têm entendido que o exercício de um direito em contradição com um comportamento anterior do seu titular só é de considerar abusivo quando concomitantemente se verifiquem as seguintes circunstâncias:
• Quando o comportamento anterior tenha criado na contraparte uma situação objectiva de confiança relativa ao modo de exercício do direito;
• Quando, com base nessa situação objectiva de confiança, a contraparte tenha tomado disposições ou organizado a sua vida (investimento da confiança), que se veriam frustradas com o exercício do direito ou com o modo como ele é exercido;
• Quando a contraparte tenha agido com boa fé e com cuidado e precauções usuais no tráfego.
Citam-se em abono deste entendimento - que se segue - na doutrina, J. Baptista Machado, em Tutela da Confiança, e “venire contra factum proprium”, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 118, páginas 171 e 172, Paulo Mota Pinto, Direito Civil, Estudos, páginas 442 a 446, GESTLEGAL, Pedro Pais Vasconcelos e Pedro Leitão de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 9.ª Edição, Almedina, página 279, e, na jurisprudência, os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça: o acórdão proferido em 24-09-2009, no recurso n.º 09B0659, o acórdão proferido em 16 de Dezembro de 2010, no processo n.º 1584/06.5TBPRD.P1.S1., o acórdão proferido em 12 de Novembro de 2013, no processo n.º 1464/h11.2TBGRD-A.C1.S1; o acórdão proferido em 8-09-2021, no processo n.º 2319/19.8T8VIS.C1.S1., acórdão proferido em 10-01-2023, no processo n.º 412/203T8PBL.C1.L1; acórdão proferido em 19-01-2023, no processo n.º 3244/19.8T8STB.E1.S1; acórdão proferido em 2-03-2023, no processo n.º 1558/21.6T8VIS.C1.S1; acórdão proferido em 12-10-2023, no processo n.º 19691/20.0T8PRT.P1.S1., todos publicados em www.dgsi.pt.
Observe-se que foi com base nesta interpretação do artigo 334.º do Código Civil que o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 14/2016, publicado no DR, I Série de 28 de Outubro de 2016, uniformizou a jurisprudência no sentido de que “Age com abuso de direito, na vertente da tutela da confiança, a massa falida, representada pelo respectivo administrador, que invoca contra terceiro — adquirente de boa fé de bem imóvel nela compreendido — a ineficácia da venda por negociação particular, por nela ter outorgado auxiliar daquele administrador, desprovido de poderes de representação(arts. 1211.º e 1248.º do CPC, na versão vigente em 1992), num caso em que é imputável ao administrador a criação de uma situação de representação tolerada e aparente por aquele auxiliar, consentindo que vários negócios de venda fossem por aquela entidade realizados e permitindo que entrasse em circulação no comércio jurídico certidão, extraída dos autos de falência, em que o citado auxiliar era qualificado como encarregado de venda”.
Interpretado o artigo 334.º n.º 1, do Código Civil, na parte em que se refere ao exercício ilegítimo de um direito quando o seu titular excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, com o sentido e o alcance expostos, não merece qualquer censura o acórdão quando afirma que o pedido de restituição do imóvel configura um objectivo manifestamente contrário aos princípios da boa fé. Vejamos.
Está provado que CC (administrador da sociedade ora autora) e a mulher estabeleceram um acordo com os pais dos réus, em 1990, no qual se estabelecia, além do mais que, no caso de, à morte destes, qualquer dos seus filhos, que com ele vivessem, quisessem permanecer no prédio em questão nos autos, aqueles obrigavam-se a dá-lo de arrendamento, mediante uma renda a fixar de valor corrente no mercado para casas do mesmo tipo, com uma redução de 20%. E está provado que os réus viviam com os pais quando estes faleceram e que, depois da morte deles, foram ter com CC (na altura proprietário do imóvel), no sentido de ele cumprir a promessa a que se tinham obrigado - dar-lhes de arrendamento o prédio onde viviam -, mas CC respondeu-lhes para que se deixassem estar pois ninguém os molestaria.
Um declaratário normal, ou seja, nas palavras de Carlos Alberto Mota Pinto, “…pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário, (Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª Edição Por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, página 444), interpretaria esta resposta no sentido de que, mesmo sem o prometido arrendamento, os ora réus não seriam prejudicados, ou seja, poderiam continuar a viver no imóvel. Ela era, pois, adequada a criar nos réus a confiança de que continuariam a viver no imóvel como viveram os seus pais, ainda que não tivesse por base o arrendamento, como prometera CC. E os réus não podem ser censurados por, perante a resposta daquele, não terem recorrido à via judicial para, se necessário, o obrigar a cumprir a promessa de lhes dar de arrendamento o imóvel. É que não é censurável acreditar na palavra de alguém, quando esse alguém, como sucedia com CC, era familiar dos réus.
E a confiança dos réus na permanência no imóvel ficou naturalmente reforçada com o desfecho da acção proposta por CC e a mulher contra aqueles, que correu termos no 4.º juízo cível do Tribunal Judicial da Relação de Guimarães sob o n.º 583/96. Em tal acção, os aí autores pediam não só o reconhecimento do direito e propriedade sobre o imóvel, mas também a condenação dos réus a restituírem-no àqueles. Tal acção terminou com o reconhecimento do direito de propriedade a favor dos aí autores, mas com a improcedência da pretensão de restituição. E esta pretensão naufragou porque o tribunal reconheceu que havia um acordo entre os autores e os réus que tornava legítima a ocupação do imóvel por parte destes últimos.
Segue-se do exposto que, quando em 13/11/2019 interpelou os réus para, no prazo de 30 dias, lhes restituírem o imóvel livre de pessoas e bens e quando, a seguir, propôs, em nome da autora, (proprietário do imóvel) a presente acção de restituição, CC – administrador da sociedade ora autora - sabia que se havia comprometido a dar o imóvel de arrendamento aos réus, sabia que, quando foi contactado por estes para concretizar o arrendamento, deu-lhes uma resposta que apontava no sentido de que eles aí podiam continuar a viver e sabia, depois do desfecho da acção por ele proposta em 1996, que havia uma razão legítima para os réus ocuparem o imóvel. Nestas circunstâncias, a boa fé impunha a CC que respeitasse o compromisso assumido, que respeitasse a palavra dada aos réus e a confiança neles incutida, e que respeitasse a decisão judicial proferida na acção que propôs contra os réus.
O pedido de restituição do imóvel deduzido em nome da sociedade desprezou em grau elevado todas estas exigências da boa fé. Embora este desprezo proceda da acção e do conhecimento de CC, tanto a acção como o conhecimento devem ser imputados à sociedade autora, pois CC é o administrador da sociedade e foi com base em decisões dele que o prédio transitou da sua propriedade para a titularidade da autora. Com efeito, num primeiro momento, ele e a sua mulher doaram o imóvel a um filho (EE) e no mesmo dia, por instruções dele e da mulher, o filho transmitiu o imóvel para a sociedade.
É, pois, de manter o acórdão recorrido, na parte em que decidiu que a pretensão de restituição do imóvel era manifestamente contrária aos princípios da boa fé. E assim, por aplicação do artigo 334.º do Código Civil, é de considerar ilegítima, não merecedora da tutela do direito.
Segue-se do exposto que, ao revogar a decisão da 1.ª instância de ordenar a restituição do imóvel aos réus, o acórdão recorrido não violou o artigo 334.º do Código Civil.
E quanto à violação dos artigos 607.º, n.º 4 e 662.º, n.º 1, ambos do CPC, ela é destituída de fundamento. Com efeito estes preceitos não foram aplicados como fundamento jurídico do acórdão sob recurso e decorre das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 639.º do CPC que só tem sentido imputar à decisão recorrida a violação das normas que tenham constituído fundamento jurídico da decisão.
Sendo negada a revista, fica prejudicado o conhecimento da ampliação do âmbito do recurso.
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Decisão:
Nega-se a revista e, em consequência, mantém-se o acórdão recorrido.
Responsabilidade quanto a custas:
Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e a circunstância de a recorrente ter ficado vencida no recurso, condena-se a mesma nas respectivas custas.
Lisboa, 30 de Janeiro de 2025
Relator: Emídio Santos
1.º Adjunto: Fernando Baptista de Oliveira
2.º Adjunto: Isabel Salgado