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Jurisprudência
N.º de Processo:
503/23.9T8LRS.L1.S1
www.dgsi.pt Fonte: STJ (DGSI)
Meio Processual:
Jurisprudência:
Votação:
Sumário

I - O dever de lealdade radica-se, desde logo, no dever geral de boa-fé que se mostra previsto, por exemplo, no artigo 126.º, número 1 do Código do Trabalho de 2009 e encontra-se especificado, como uma das obrigações contratuais e legais dos trabalhadores, na alínea f) do número 1 do artigo 128.º do mesmo diploma legal, ainda que sem reflexo expresso e direto na enumeração – exemplificativa, realce-se - das causas de despedimento unilateral por iniciativa do empregador do número 2 do artigo 351.º do CT/2009.

II – A violação do dever de lealdade pode assumir distintas vertentes e cambiantes – por exemplo e entre muitas outras, divulgação de informações confidenciais junto de outras empresas do ramo, queixas anónimas ou identificadas que, acerca da organização e funcionamento da empregadora, sejam divulgadas, em moldes imediatos, à comunicação social e ao público em geral, ocultação de dados essenciais e obrigatórios, de cariz porfissional ou institucional à entidade patronal, etc. -, sendo as mais vulgares as ligadas à concorrência desleal levada a cabo pelos trabalhadores por referência às suas empregadoras, com a constituição de sociedades com idêntico objeto ou objetos afins e/ou o desenvolvimento individualizado de atividade paralela e similar à laboralmente executada, dentro do mesmo setor produtivo [aqui encarado em termos latos] daquelas, em termos de competirem, confrontarem ou conflituarem de forma mais ou menos direta com a sua prestação económica de bens e serviços, independemente de, com tais condutas prejudicarem ou não, em termos efetivos, as suas entidades patronais.

III - A prova efetuada pela empregadora não se revela suficiente para se poder afirmar, de uma forma consequente, incisiva, objetiva, segura, que a trabalhadora assumiu os demonstrados comportamentos próprios de mediadora imobiliária durante os períodos de baixa médica e em expressa violação das restrições medicamente impostas pelo médico que emitiu os respetivos certificados.

IV - Não existindo qualquer obrigação contratual da parte da trabalhadora para com a empregadora no sentido de laborar apenas, em termos remunerados, para esta última, nada impedia, em princípio, que a recorrida assumisse, por conta de outrém ou por conta própria, uma outra atividade profissional, se bem que esta última não deveria, em regra, obstar, dificultar ou, simplesmente, perturbar as funções contratadas com a Ré de Tripulante de Cabine.

V - Em regra, não existe uma obrigação do trabalhador em informar a sua empregadora de que executa essa outra atividade não concorrente e paralela às funções profissionais que para ela assegura, quando a mesma é esporádica, irregular, sem carácter constante ou, pelo menos, frequente [não faz qualquer sentido impor a um trabalhador que comunique à sua entidade patronal que trabalha, ocasionalmente, como ... ou ... ou numa ... qualquer ou que, também, nos seus tempos livres faz ... ou ... num bar ou é, por vezes, esporadicamente, ..., cuidador de ... ou ... ou vendedor de ..., ..., ... ou outros bens ou serviços.

VI - Quando essa sua segunda atividade assume já um cariz profissional, mais ou menos certo e permanente, em que o número de horas semanal ou mensalmente prestadas são significativas, existe, nem que seja por razões de saúde e segurança do trabalhador no desenvolvimento da atividade principal, o dever deste último informar a sua empregadora dessa outra profissão ou profissões secundárias.

VII - No caso dos autos e ainda que a segunda atividade da Autora apenas se evidencie durante cerca de 3 meses e relativamente a atos que não permitem assegurar que queria fazer ou veio a fazer dela uma segunda profissão [secundária], certo é que a recorrida era Tripulante de Cabine e a atividade económica da TAP é o do transporte aéreo de passageiros e mercadorias, onde são conhecidas as exigências acrescidas de segurança e saúde dos respetivos trabalhadores, por referência, designadamente, aos tempos de trabalho e de descanso dos mesmos, o que impunha à Autora informar a Ré de que era sua intenção desenvolver a atividade de mediadora imobiliária e de que estava a obter formação para o efeito.

VIII - Tendo em atenção o quadro factual constante dos autos e os anos de atividade da recorrida para com a recorrente [durante 17 anos e 10 meses], tal infração disciplinar [não comunicação à empregadora da atividade profissional secundária] é de diminuta gravidade e insuscetível, nos termos e para os efeitos do número 1 do artigo 351.º do Código do Trabalho de 2009, de fundar o despedimento com justa causa promovido pela Ré contra a Autora, por não tornar imediata e praticamente impossível a subsistência do vínculo laboral existente.

Decisão Texto Integral

RECURSO DE REVISTA N.º 503/23.9T8LRS.L1.S1 (4.ª Secção)

Recorrente: TRANSPORTES AÉREOS PORTUGUESES, S.A.

Recorrida: AA

(Processo n.º 503/23.9T8LRS.L1.S1– Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte - Juízo do Trabalho de... - Juiz ...)

ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DESTE SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

I – RELATÓRIO

AA, com os sinais constantes dos autos, intentou, em 16/01/2023, contra TRANSPORTES AÉREOS PORTUGUESES, S.A., igualmente com os sinais constantes dos autos, acção de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento com processo especial, tendo para o efeito apresentado o correspondente formulário e junto a decisão formal de despedimento contra ela deduzida pela Ré.


*

Realizada sem sucesso a Audiência de Partes e tendo a Ré sido notificada para apresentar o seu articulado motivador de despedimento, veio a mesma a fazê-lo em 23/2/023, ou seja, dentro do prazo legal [tendo igualmente e em simultâneo junto cópia do procedimento disciplinar], concluindo tal peça processual nos seguintes moldes:

Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis, deve a Ré ser totalmente absolvida das pretensões e dos pedidos formulados pela Autora, devendo:

a) A presente ação de impugnação da regularidade e licitude de despedimento ser julgada totalmente não provada e, como tal, integralmente improcedente;

b) O despedimento da Autora ser, pelo contrário, declarado regular e lícito, por existência de justa causa devidamente motivada, sendo declarada válida e eficaz a resolução contratual operada pela Ré e a concomitante cessação contratual e, por isso, ser esta integralmente absolvida de todos os pedidos formulados por aquele, com todas as demais e legais consequências.

Sem prescindir, nem de qualquer modo conceder,

Sempre deveriam ser deduzidos os montantes indicados no artigo 390.º, n.º 2 do Código do Trabalho, referidos no capítulo V do presente articulado (mormente os montantes auferidos pela Autora a título de trabalho dependente ou independente após o despedimento, bem como quaisquer montantes auferidos a título de prestação de desemprego) e ser aplicada a indemnização pelo limite mínimo, o que subsidiária e expressamente se requer.

Sempre sem conceder,

Caso viesse a ser proferida decisão por este Tribunal que considere o despedimento da Autora ilícito (no que não se concede e apenas por hipótese se concebe) em data posterior a 12 meses contados da data da apresentação do formulário que deu impulso processual à presente ação nos termos do artigo 98.º-C do Código de Processo do Trabalho, que seja declarada a responsabilidade da entidade competente na área da Segurança Social pelo pagamento dos salários intercalares que eventualmente sejam devidos ao Trabalhador posteriores a essa data, nos termos do disposto no artigo 98.º-N do CPT.”.


*

A Autora, depois de notificada desse articulado motivador de despedimento da Ré veio, por seu turno, em 9/03/2023, apresentar a «contestação/reconvenção», que finalizou nos seguintes termos:

«Termos em que deve a presente acção ser julgada procedente e o despedimento da Autora ser julgado ilícito, com as consequências legais, maxime com a condenação da Ré na sua reintegração, mais devendo a mesma Ré ser condenada a pagar-lhe as retribuições intercalares, incluindo-se todas as rubricas salariais constantes do art.º 101.º da presente Contestação.”.


*

Após a realização oportuna da Audiência Final, foi proferida, em 3/02/2024, sentença judicial pelo tribunal da 1.ª instância, com o seguinte dispositivo:

“«A. Declarar ilícito o despedimento da trabalhadora AA ocorrido em 15-12-2022:

B. Condenar a Ré, “TRANSPORTES AÉREOS PORTUGUESES, S.A.”, a reintegrar a trabalhadora AA na mesma base e sem prejuízo da sua categoria e antiguidade;

C. Condenar a Ré, “TRANSPORTES AÉREOS PORTUGUESES, S.A.”, a pagar à trabalhadora as retribuições [retribuição base, “vencimento senioridade PNC” e comissões de vendas a bordo] que ela deixou de auferir desde o dia 17-12-2022 até ao trânsito em julgado desta decisão ou outra que a confirme, e que ascendem [apenas nas suas componentes retribuição base e “vencimento senioridade PNC”], à data de hoje, a € 34.611,24 (trinta e quatro mil, seiscentos e onze euros e vinte e quatro cêntimos) - sendo o valor correspondente à componente retributiva variável, a título de comissões de vendas a bordo, a liquidar posteriormente - , deduzidas as quantias recebidas pela trabalhadora a título de subsídio de desemprego, ou seja, € 14.317,04 (catorze mil, trezentos e dezassete euros e quatro cêntimos), as quais deverão ser entregues pela Ré ao INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, I.P.;

D. Absolver a Ré do mais peticionado, ou seja, na parte em que a Autora pretendia a inclusão dos montantes a título de ajudas de custo no cálculo das retribuições intercalares.


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Custas a cargo da Ré – art.º 527.º, n.º 1 do CPC.

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Valor da causa – € 34.611,24.

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Notifique às partes e comunique ao INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, I.P.».

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A Ré interpôs recurso de Apelação de tal sentença, que foi admitido e seguiu a sua normal tramitação, quer no tribunal da 1.ª instância, como no tribunal da 2.ª instância.

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Por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19/6/2024, foi decidido, a final, o seguinte:

«Pelo exposto acorda-se:

I – Julgar a impugnação da matéria de facto parcialmente procedente, alterando a redação do ponto xxi. dos factos provados e da al. d) dos factos não provados, nos termos já acima consignados.

II – Julgar a apelação improcedente, mantendo-se a sentença recorrida.».


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A Ré TRANSPORTES AÉREOS PORTUGUESES, S.A., inconformada com tal acórdão veio interpor, no dia 09/7/2024, recurso do mesmo para este Supremo Tribunal de Justiça, que foi admitido pelo Tribunal da Relação de Lisboa por despacho judicial de 1/08/2024, como de Revista, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Vindo os autos a subir a este Supremo Tribunal de Justiça e depois de ouvidas previamente as partes quanto a essa rejeição parcial, tal recurso de revista da Ré só veio a ser admitido em parte, quanto ao segundo fundamento invocado pela empregadora para justificar o despedimento com justa causa da Autora [violação do dever de lealdade], dado quanto ao primeiro [faltas fraudulentas e injustificadas] se verificar uma situação de dupla conforme, que não se mostrava coberta pelo presente recurso ordinário de revista.


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A recorrente TRANSPORTES AÉREOS PORTUGUESES, S.A. apresentou alegações de recurso, onde, formulou as seguintes conclusões:

“1. O presente recurso de revista vem interposto do acórdão de 19.06.2024, proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, na parte em que “julgou a apelação improcedente, mantendo a sentença recorrida”, que, por sua vez, declarou o despedimento ilícito, condenando a Recorrente a reintegrar à Recorrida e respeitar a progressão salarial que teria caso o despedimento não tivesse ocorrido, assim como a pagar as retribuições que a Recorrida deixou de auferir desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão final.

2. O acórdão recorrido confirmou a decisão proferida na 1.ª instância com fundamentação essencialmente diferente, pelo que é admitida revista do acórdão recorrido, nos termos do disposto no artigo 671.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Civil.

3. No entender da Recorrente e salvo melhor opinião, o raciocínio perfilhado pelo acórdão recorrido, que decidiu pela inexistência de justa causa no caso dos presentes autos e, consequentemente, pela ilicitude do despedimento da Recorrida, com as respetivas consequências, não deve, de todo, proceder.

4. Não só a Recorrida manteve com uma terceira entidade “P..., S.A. (“R...”), no período que compreendeu os períodos de incapacidade para o trabalho, um contrato de prestação de serviços de angariadora imobiliária, como mesmo foi efetivamente executado,

5. Pelo que, por um lado, existem factos provados que demonstram que a Recorrida justificou faltas através da apresentação de certificados qua não atestam (nem poderiam atestar) qualquer situação de incapacidade, encontrando-se afinal apta para o exercício da atividade profissional na Recorrente.

6. A título de exemplo, apontam-se diversas circunstâncias que deveriam ter sido tidas em conta pelo Douto Tribunal a quo, tais como: (i) a Recorrida ter realizado um serviço de voo durante um período de incapacidade para o exercício da atividade de voo; (ii) a circunstância de alguns dos certificados de incapacidade para o trabalho terem sido emitidos sem que a Recorrida tenha sido sequer observada por um médico; (iii) a circunstância de muitos dos certificados de incapacidade para o trabalho terem sido emitidos muito após o início do alegado estado de incapacidade; e (iv) a coincidência temporal entre o regresso antecipado ao trabalho da Recorrida e o descobrimento por parte da Recorrente da atividade de angariadora imobiliária desenvolvida por parte da Recorrida, que chegou ao conhecimento desta última.

7. Assim, resulta por demais evidente que a Recorrida prestou falsas declarações relativas à justificação de faltas, pelo que a sua conduta, além de consubstanciar a prática de uma infração disciplinar, integra justa causa de despedimento, nos termos do disposto no artigo 351.º, n.º 2, alínea f), do Código do Trabalho.

8. Por outro lado, e conforme decidido no acórdão recorrido, a Recorrida violou, culposamente e de forma grave, o seu dever de lealdade, comportamento esse que terá igualmente de ser considerado para os mesmos efeitos.

9. Na verdade, a diminuição de confiança resultante da violação do dever de lealdade não está dependente da verificação de prejuízos, nem da existência de culpa grave do trabalhador, já que a simples materialidade desse comportamento, aliado a um moderado grau de culpa pode, em determinado contexto, levar razoavelmente a um efeito redutor das expectativas de confiança.

10. Efetivamente, os comportamentos ilícitos e culposos da Recorrida apresentam-se claramente contrários aos padrões de conduta pressupostos na expectativa criada no espírito da Recorrente de que o mesmo adotaria, sempre, comportamentos orientados por padrões de normalidade nas relações sociais e laborais, tendo suscitado, deste modo, fortes dúvidas no espírito da Recorrente, legitimadores da decisão de despedimento.

11. Nestes termos, o acórdão recorrido, ao julgar a apelação improcedente, mantendo a sentença da 1.ª instância, que, por sua vez, declarou o despedimento ilícito, condenando a Recorrente a reintegrar à Recorrida e respeitar a progressão salarial que teria caso o despedimento não tivesse ocorrido, assim como a pagar as retribuições que a Recorrida deixou de auferir desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão final, padece de erro de julgamento da matéria de direito.

Nestes termos, e nos que V. Exas. mui doutamente suprirão, pelos fundamentos expostos nas alegações e conclusões apresentadas, deve ser concedido integral provimento ao presente recurso de revista, revogando-se o acórdão recorrido e substituindo-se o mesmo por outro que absolva a Recorrente de todos os pedidos formulados pela Recorrida, com o que farão, como sempre, inteira e sã JUSTIÇA!”


*

A Autora AA apresentou contra-alegações dentro do prazo legal, na sequência da notificação que para esse efeito lhe foi feita, tendo formulado as seguintes conclusões:

«1.º - O pedido era a declaração de inexistência de justa causa e o Tribunal da Relação de Lisboa manteve a decisão do Tribunal de 1.ª instância, pelo que se entende que o presente recurso não deve ser admitido. Sem nada conceder,

2 .º - Tanto o acórdão quanto a sentença que se procuram por em crise não padecem de quaisquer erros, conduzindo a um resultado final que se revela absolutamente conforme à Justiça, à Lei e ao Direito, e que por isso deverão ser integralmente mantidos.

3.º - O que está em causa nos presentes autos é saber se o despedimento daquela, sob a fundamentação inicial de falsas justificações de faltas - depois corrigida para ter trabalhado durante baixas-, é conforme à lei, apesar de a Autora e Recorrida ter conseguido efectivamente demonstrar que estava impedida de trabalhar na sua profissão por doença. Por outro lado,

4 .º - Ao contrário do que se decidiu no douto Acórdão do Tribunal da Relação, não se pode, de facto, dizer que pedir umas fotografias e publicá-las numa rede social entre 12 de Fevereiro e 30 de Abril de 2022 signifique que a Autora tinha uma actividade profissional.

5 .º- Importa não perder de vista que a Ré despediu a Autora sob a invocação de justa causa subjectiva, invocando que esta última tinha apresentado falsas justificações de faltas e, corrigindo depois a mão, perante o facto de nunca ter desencadeado qualquer verificação de situação de doença e até de terem sido os serviços de medicina contratados por si a atestarem a situação de doença, passou a imputar-lhe o exercício de uma actividade profissional durante a baixa. Sucede que,

6 .º- Importa também ter presente que os dois únicos critérios que a Ré usou para considerar as faltas como injustificadas foram o considerar que os motivos eram falsos e/ou a sua apresentação tardia. Ora,

7 .º- Não tem, portanto, a nosso ver razão a tese no Acórdão segundo a qual esta teria violado os deveres de lealdade por não ter alertado a Empregadora, desde logo porque a Autora não iniciou uma actividade propriamente dita. Mas,

8 .º- Em segundo lugar, a Autora não tinha qualquer dever de exclusividade, não tendo a mesma Ré e ora Recorrente feito a cabal prova de que o facto desta ter feito publicações no FACEBOOK teria, de alguma forma, prejudicado as suas hipóteses de recuperação.

9 .º- O que está aqui em causa é o despedimento, sob a invocação de justa causa, de uma Trabalhadora com cerca de dezoito anos de antiguidade, sobre a qual não se provou a existência de qualquer antecedente disciplinar, sob a justificação de que estaria em faltas injustificadas por ser falsa a razão subjacente à situação de doença e por estar, alegadamente, trabalhar durante a baixa, não sendo, portanto, lícito que se venha agora a invocar a violação do dever de lealdade por não ter avisado quando o mesmo não constava da Nota de Culpa nem da Decisão de Despedimento.

10.º- Não pode também, ressalvado o devido respeito por entendimento diverso, a Ré vir agora invocar que o despedimento ocorreu porque a A. incorreu em falsas justificações de faltas, uma vez que efectuou voos entre baixas e até antecipou a data de termo de uma. É que,

11.º- O episódio a que a Ré se refere relativo ao voo nos dias 15 e 16 de Abril é explicado pela médica da UCS a que a sentença se refere, ou seja, de que a Autora quando se sentia melhor tentou voar.

12 .º- Também com o devido respeito, não compete à Ré tecer conjecturas sobre o estado de saúde da Autora, sem ter curado de desencadear os procedimentos básicos a este respeito.

13 .º- Não deixa de ser curioso que a mesma Ré que causou inexorável pressão aos seus trabalhadores para que se apresentem a trabalhar sob pena de poderem vir a ser despedidos, ainda que no âmbito de faltas justificadas, venha agora invocar manifesto prejuízo em a Autora se apresentar mais cedo para voar…

14 .º- Acresce – e isto mesmo com todos os factos dados como provados ou não provados pela sentença – que a sanção disciplinar do despedimento – a mais grave prevista na lei – se aplicada à Autora se afigura completamente desproporcional para penalizar seu o comportamento naquilo que ele corresponde a efectivos factos, e não a juízos valorativos ou conclusivos, ou até a meras cogitações ou especulações da decisão ora recorrida.

15 .º- O facto incontornável destes autos é antes o de que, em conformidade com os pressupostos legais e a melhor jurisprudência, não foi de forma alguma demonstrado que havia impossibilidade prática e imediata de subsistência do vínculo laboral. Tanto mais que,

Termos em que, julgando totalmente improcedente o recurso, V. Exas farão a habitual JUSTIÇA!»


*

O ilustre Procurador Geral Adjunto colocado junto deste Supremo Tribunal de Justiça proferiu, ao abrigo do número 3 do artigo 87.º do Código de Processo do trabalho, Parecer com data de 7/10/2024 e que vai no seguinte sentido:

«Pelo exposto, somos de parecer que o presente recurso dever ser considerado improcedente, mantendo-se o douto acórdão recorrido.»


***

Tendo as partes sido notificadas do teor de tal Parecer, não vieram as mesmas responder-lhe dentro do prazo legal de 10 dias.

*

Cumpre apreciar e decidir em Conferência.

II – OS FACTOS

Os tribunais da 1.ª e 2.ª instância consideraram provados e não provados os seguintes factos:

«i. [8.° e 9.°] Na sequência da abertura do processo disciplinar, foi elaborada nota de culpa, na qual a Ré manifestou a intenção de despedimento com justa causa, e que foi enviada por correio registado com aviso de receção à Autora, no dia 16 de agosto de 2022, tendo sido entregue à Autora no dia 25 de agosto de 2022;

ii. [10.° (parte)] No dia 12 de setembro de 2022, foi recebida a Resposta à Nota de Culpa, por correio eletrónico;

iii. [13.° e 14.°] A 16 de novembro de 2022, foi elaborado o Relatório Final do processo disciplinar, o qual foi remetido, em 18 de novembro de 2022, à Comissão de Trabalhadores da TAP, com cópia do Processo Disciplinar n.º 26/TA-2022, o qual, posteriormente, em 30 de novembro, devolvido juntamente com parecer proferido por esta comissão, vindo, a 05-12-2022, o Conselho de Administração da TAP a deliberar pelo imediato despedimento com justa causa, sem qualquer indemnização ou compensação,«... ponderadas

1. As baixas médicas fraudulentas e as faltas injustificadas praticadas, num total de 96 dias, verificando-se que nos períodos de alegada baixa médica, a trabalhadora desenvolvia outra atividade profissional.

2. A violação da obrigação de permanência no domicílio imposta pelo médico que subscreveu os atestados, contribuindo a trabalhadora para agravar o seu estado de saúde, traduzindo ambos os comportamentos uma violação grave do dever de lealdade.

3. A violação da obrigação de não exercido de atividade profissional durante as férias, o que configura igualmente infração disciplinar. A tudo acrescendo atrasos na entrega dos atestados médicos, em desrespeito dos deveres de diligência e zelo.

4. A proposta de despedimento com justa causa dos Senhores Instrutores;»

iv. [15.° e 16.°] A decisão de aplicação de sanção disciplinar de despedimento com justa causa do Autora, foi-lhe comunicada no dia 6 de dezembro de 2022, por carta com aviso de receção, a qual foi devolvida à Ré, por ter sido deixado aviso na caixa do correio e o objeto não ter sido reclamado, pelo que a Ré enviou cópia da decisão por correio eletrónico à Ilustre Mandatária da Autora, a 15 de dezembro de 2022;

v. [17.°] Tendo tal decisão chegado ao conhecimento da Autora;

vi. [18.°] No dia 9 de dezembro de 2022 foi dado conhecimento à Comissão de Trabalhadores da TAP da carta enviada à Autora com a decisão final referente ao Procedimento Disciplinar n.º 26/TA/2022;

vii. [23.°] A TAP é uma empresa que se dedica ao transporte aéreo de passageiros.

viii. [24.°] A Autora encontrava-se vinculada à Ré desde 11 de fevereiro de 2005, por meio de contrato de trabalho por tempo indeterminado.

ix. [25.°] A Autora desempenhava as funções correspondentes à categoria profissional de Tripulante de Cabine.

x. [26.°] Nos termos da Circular n.º C4/03/2019 da Ré, à qual a Autora se encontra obrigada, e que se encontra publicada na Intranet da Ré e à qual a Autora tem acesso desde 4 de janeiro de 2019, em caso de falta, encontra-se determinado na Ré, que:

- Sempre que não possa comparecer ao trabalho, o trabalhador deve comunicar a ausência - com a máxima antecedência ou nos momentos previstos na Lei e respetivos A.E.s.

- O trabalhador tem o dever indeclinável de justificar a sua ausência ao trabalho no próprio dia, salvo impedimento de força maior, comprovado. O cumprimento deste dever é da exclusiva iniciativa e responsabilidade do trabalhador, não carecendo de qualquer solicitação por parte da Empresa.

- A comunicação da ausência, sempre que possível, deve ser acompanhada de documento comprovativo do motivo da mesma. Quando o comprovativo não seja apresentado no momento da comunicação, apenas será aceite, como justificativo, até 5 (cinco) dias após a ocorrência da ausência invocada, salvo prova de impossibilidade de cumprimento desse prazo.

- Na falta de comprovativo do motivo da ausência nos termos indicados no ponto anterior, a falta será definitivamente qualificada como injustificada.

- Nos casos de ausência por motivo de doença, o trabalhador tem o dever de informar a Empresa dessa situação e apresentar o documento justificativo da mesma, com a data em que a mesma foi verificada.

xi. [27.°] A Autora sofreu um acidente de trabalho em 8 de fevereiro de 2022.

xii. [28.°] Na sequência do referido acidente, apresentou diversos atestados de incapacidade para o trabalho, para o período compreendido entre 10 de fevereiro de 2022 e 21 de fevereiro de 2022;

xiii. [29.°] Posteriormente a este período de incapacidade por acidente de trabalho, a Autora apresentou igualmente diversos certificados de incapacidade, por alegada razão de doença, para as seguintes datas:

- 24 de fevereiro de 2022 a 25 de fevereiro de 2022, emitido pela UCS — CUIDADOS INTEGRADOS DE SAÚDE, S.A. (“UCS”), em 24-02-2022 (fls. 57 do PD);

-19 de março de 2022 a 21 de março de 2022, emitido pela UCS, em 23-03-2022 (fls. 56 do PD);

- 19 de março de 2022 a 27 de março de 2022, emitido pelo Serviço Nacional de Saúde, em 24- 03-2022 (fls. 84 v.);

- 2 de abril de 2022 a 3 de abril de 2022, emitido pela UCS, em 08-04-2022 (fls. 84);

- 6 de abril de 2022 a 10 de abril de 2022, emitido pelo SNS, em 13-04-2022 (fls. 83 v.);

-11 de abril de 2022 a 14 de abril de 2022, emitido pelo SNS, em 13-04-2022 (fls. 82 v.);

- 17 de abril de 2022 a 19 de abril de 2022, emitido pela UCS, 17-04-2022 (doc. junto com a Contestação);

- 15 de abril de 2022 a 26 de abril de 2022, emitido pelo SNS, em 27-04-2022 (fls. 81 v.);

- 7 de maio de 2022 a 9 de maio de 2022, emitido pela UCS, em 07-05-2022 (fls.81);

- 7 de maio de 2022 a 18 de maio de 2022, emitido pelo SNS, em 17-05-2022 (fls. 80 v.);

-19 de maio de 2022 a 24 de maio de 2022, emitido pelo SNS, em 25-05-2022 (fls.79v.); - 30 de maio de 2022 a 31 de maio de 2022, emitido pela UCS, em 30-05-2022 (fls. 79);

-12 de junho de 2022 a 14 de junho de 2022, emitido pela UCS, em 12-06-2022 (fls.78 v.);

- 12 de junho de 2022 a 19 de junho de 2022, emitido pelo SNS, em 21-06-2022 (Doc. junto com a Contestação);

- 20 de junho de 2022 a 28 de junho de 2022, emitido pelo SNS, em 22-06-2022 (Doc. junto com a Contestação);

- 29 de junho de 2022 a 28 de julho de 2022, emitido pelo SNS, em 30-06-2022 (Doc. junto com a Contestação).

xiv. [30.°] Relativamente aos períodos entre 19 de março de 2022 e 27 de março de 2022, 6 de abril de 2022 e 10 de abril de 2022 e 11 de abril de 2022 e 14 de abril de 2022, a Autora requereu as respetivas baixas junto da USF ..., a fim de ser sujeita a tratamento médico, invocando “condição de saúde vulnerável a nível do ouvido direito”;

xv. [31.°] Relativamente ao período entre 15 de abril de 2022 e 29 de abril de 2022, a Autora solicitou prorrogação da baixa, junto à USF ...;

xvi. [32.°] Relativamente ao período entre 12 de junho e 19 de junho, a Autora solicitou a referida baixa, invocando “situação de rinite dificultante” e “dores nos seios perinasais com possibilidade de levar a barotraumatismo em voos".

xvii. [33.°] A Autora solicitou a prorrogação da referida baixa até 29 de junho e posteriormente até 3 de julho “por forma a potenciar a frequência do tratamento indicado a rinossinusite recorrente”;

xviii. [34.°] Pela Autora foi ainda transmitido à USF ... que “tinha ocorrência de enxaqueca intermitente”, fazendo igualmente referência aos valores de um timpanograma efetuado, que estariam abaixo dos recomendados para o exercício de funções a bordo;

xix. [35.°] Relativamente ao período de 29 de junho de 2022 a 28 de julho de 2022, a Autora apenas permaneceu de baixa até dia 20 de julho de 2022, tendo nessa data retomado funções.

xx. [36.° (parte)] Os certificados referentes aos períodos de baixa de 7 a 18 de maio de 2022, 19 a 24 de maio de 2022 e 14 a 26 de abril de 2022, foram submetidos à Ré, respetivamente, em 23 de maio de 2022, 27 de maio de 2022, os dois primeiros, e em data não apurada o terceiro, tendo sido consideradas, pela entidade empregadora, injustificadas 22 faltas relativas aos dias 20-04-2022 a 26-04-2022 e de 10-05-2022 a 24-05-2022;

xxi. [37.°] A Autora e a “P..., S.A.” (“R...”) celebraram um contrato de prestação de serviços de angariadora imobiliária no início de fevereiro de 2022; - ALTERADO PELO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

Redação anterior

xxi. [37.°] A Autora e a “P..., S.A.” (“R...”) celebraram um contrato de prestação de serviços de angariadora imobiliária;

xxii. [38.° e 39.°] Quando tal facto chegou ao conhecimento da Ré, esta contactou a “R...” a fim de esclarecer a situação, através de carta registada recebida por esta a 22 de julho de 2022, tendo-lhe sido respondido, através de mensagem de correio eletrónico, datada de 3 de agosto de 2022, que a Autora “não exercia qualquer função, seja a que título for”;

xxiii. [41.°] No desenvolvimento dessa atividade, a Autora criou, em 9 de fevereiro de 2022, uma página na rede social FACEBOOK, a fim de divulgar e publicitar imóveis, prestar informação sobre o negócio imobiliário em geral e angariar novos clientes;

xxiv. [42.°] Na referida página, no site da R..., assim como na rede social WHATSAPP, a Autora apresentava-se como agente imobiliária da R..., fazendo parte da equipa do consultor e agente associado BB, publicitando vários serviços associados ao negócio imobiliário (H..., obtenção de documentação, remodelação de interiores, estudos de mercado, etc.);

xxv. [43.°] Entre 12 de fevereiro de 2022 e 30 de abril de 2022, a Autora publicou na sua página dedicada à atividade imobiliária, diversas fotografias de imóveis que se encontravam para venda, assim como informações sobre o negócio imobiliário, disponibilizando os seus contactos, nomeadamente número de telefone e Email com o domínio da R..., com o objetivo claro de realizar visitas e angariar clientes;

xxvi. [45.°] Numa das referidas publicações, com data de 20 de março de 2022, a Autora partilhou uma fotografia sua no interior de uma viatura automóvel, a agradecer a confiança nela depositada pela empresa R... e pela sua equipa de consultores, informando que se encontrava “quase concluída” a segunda semana de formação, junto da referida empresa;

xxvii. [46.°] A Autora recebeu Formação presencial ministrada pela Equipa “R...”, enquanto se encontrava de férias, no período entre 28 de fevereiro de 2022 e 4 de março de 2022;

xxviii. [47.°] A 15 e 16 de abril de 2022 a Autora realizou dois voos para a Ré;

xxix. [50.°] Durante os períodos de baixa referentes aos períodos de 19 de março de 2022 a 27 de março de 2022, 6 de abril de 2022 a 10 de abril de 2022, 11 de abril de 2022 a 14 de abril de 2022, 15 de abril de 2022 a 26 de abril de 2022, 12 de junho de 2022 a 14 de junho de 2022, 12 de junho de 2022 a 19 de junho de 2022, 20 de junho de 2022 a 28 de junho de 2022 e 29 de junho de 2022 a 28 de julho de 2022, a Autora estava obrigada a permanecer no seu domicílio, podendo apenas ausentar-se do mesmo para a realização de exames médicos;

xxx. [56.° (parte)] A Autora não vendeu qualquer imóvel;

xxxi. [7.° Contestação (parte)] No âmbito da execução do processo de restruturação da TAP, um dos critérios para a seleção de trabalhadores cujo vínculo deveria cessar foi o absentismo;

xxxii. [8.° Contestação] Como tal, os trabalhadores passaram a estar particularmente pressionados para não faltarem, ainda que justificadamente, como sucedeu com a aqui Autora, a qual, apesar de estar com uma lesão no ouvido, sempre que se sentia melhor ia trabalhar;

xxxiii. [11.° Contestação] A profissão de Tripulante de Cabine apresenta manifesta especificidades quanto à aptidão física para trabalhar, determinando que, para estarem aptos para voar, tenham que estar cumpridos requisitos mais exigentes, não podendo os mesmos laborar sempre que apresentem sintomatologia impeditiva;

xxxiv. [12.° Contestação] Um Tripulante de Cabine para estar apto para voar não pode apresentar-se, por exemplo, com barotraumatismos ou com meros episódios de sinusite, gripe ou até constipação, o que se justifica, desde logo, pelas diferenças de pressão a que estão sujeitos;

xxxv. [13.° Contestação] A Ré mantém um contrato com a empresa que presta serviço de medicina do trabalho, a “UCS”, que tem um quadro de profissionais médicos para aferir a aptidão deste tipo de profissionais (tripulantes de cabine);

xxxvi. [18.° e 19.° Contestação (parte)] As queixas do ouvido direito, incluindo com episódios de aparecimento de sangue determinaram que procurasse ajuda médica externa, a conselho da própria UCS;

xxxvii. [16.° Contestação] Entre 19-07-2022 e 28-07-2022, a Autora, apesar de ter baixa médica, levantou-a e foi voar;

xxxviii. [101.° Contestação] À data do despedimento, a Autora auferia:

- € 1.898,00, a título de salário base;

- € 284,70, a título de vencimento senioridade PNC;

- Comissões de vendas a bordo, em montante variável, consoante as vendas efetuadas pela equipa durante cada voo;

- Ajudas de custo, no montante unitário de € 73,83, por cada dia fora da base.

xxxix. Foi atribuído à Autora subsídio de desemprego, desde 01-02-2023, por um período de 720 dias, com o valor diário de € 38,905003.

xl. Foi outorgado em nome da Autora um “Ato Único", datado de 7 de fevereiro de 2023, no montante de € 684,00, acrescido de IVA à taxa legal, num total de € 841,32. Acresce que este montante foi identificado a título de descrição de "vendas" de dezembro de 2022, novembro de 2022 e maio de 2022.

E FORAM CONSIDERADOS COMO NÃO PROVADOS OS SEGUINTES FACTOS:

«a) [10.° (parte)] A resposta à nota de culpa foi recebida no dia 13 de setembro de 2022, por correio simples;

b) [36.° (parte)] O certificado referente ao período de baixa de 14 a 26 de abril de 2022 só foi submetido à Ré a 6 de junho de 2022;

c) [36.° (parte)] Com referência aos dias de baixa mencionados no Ponto xx.) dos Factos Provados, foram consideradas injustificadas 28 faltas, e não apenas as 22 ali mencionadas;

d) [37.°] Durante os períodos de ausência ao trabalho, por alegado motivo de doença, a Autora encontrou-se a desenvolver a atividade de angariadora imobiliária, para a agência R.... – ALTERADO PELO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

Redação anterior: [[37.°] O contrato de prestação de serviços de angariadora imobiliária, referido no Ponto xxi.) dos Factos Provados, foi celebrado em inícios de fevereiro de 2022 e durante os períodos de ausência da Autora ao trabalho, por alegado motivo de doença, se encontrou a desenvolver a atividade de angariadora imobiliária, para a agência R....]

e) [40.°] O contrato da Autora com a referida R... cessou a 25 de julho de 2022, data posterior ao contacto acima referido efetuado pela Ré.

f) [46.° (parte)] A restante formação, a Autora recebeu-a em diversos módulos, já quando se encontrava de baixa médica.

g) [49.°] Atividade essa que envolveu diversas deslocações por parte da Autora para fora do seu domicílio;

h) [52.°] No dia 20 março, altura em que já se encontrava de baixa médica, ainda se encontrava a frequentar a formação inicial presencial dada pela R..., e que, portanto, dessa data em diante ainda iria frequentar formações presenciais que a obrigariam a ausentar-se do seu domicílio;

i) [88.° e 89.°] A atividade que a Autora desenvolveu para a R... foi remunerada.

j) [7.° Contestação (parte)] O critério referido no Ponto xxxi.) dos Factos Provados era o principal;

k) [10.° Contestação] Tal pressão passou, de igual forma, a refletir-se nos serviços médicos da TAP, a designada UCS, a qual, por exemplo, passou a conceder menos dias para a recuperação dos tripulantes, em especial no caso do barotraumatismo;

l) [19.° Contestação (parte)] Durante os vinte anos de exercício de funções, nunca a Autora apresentou queixas do ouvido direito, incluindo com episódios de aparecimento de sangue.»


***

III – OS FACTOS E O DIREITO

É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e 679.º, 639.º e 635.º, n.º 4, todos do Novo Código de Processo Civil, salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 608.º n.º 2 do NCPC).


*

A – REGIME ADJECTIVO E SUBSTANTIVO APLICÁVEIS

Importa, antes de mais, definir o regime processual aplicável aos autos dos quais depende o presente recurso de revista, atendendo à circunstância da instância da ação declarativa com processo comum laboral ter sido intentada no dia 16/01/2023, com a apresentação, pela Autora, do Formulário que dá origem à presente acção de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento com processo especial, ou seja, muito depois das alterações introduzidas pela Lei n.º 107/2019, datada de 4/9/2019 e que começou a produzir efeitos em 9/10/2019.

Tal ação, para efeitos de aplicação supletiva do regime adjetivo comum, foi instaurada depois da entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil, que ocorreu no dia 1/9/2013.

Será, portanto e essencialmente, com os regimes legais decorrentes da atual redação do Código do Processo do Trabalho e do Novo Código de Processo Civil como pano de fundo adjetivo, que iremos apreciar as diversas questões suscitadas neste recurso de Revista.

Também se irá considerar, em termos de custas devidas no processo, o Regulamento das Custas Processuais, que entrou em vigor no dia 20 de Abril de 2009 e se aplica a processos instaurados após essa data.

Importa, finalmente, atentar na circunstância dos factos que se discutem no quadro destes autos recursórios terem ocorrido sucessivamente na vigência dos Códigos de Trabalho de 2003 e 2009, que, como se sabe, entraram respetivamente em vigor em 1/12/2003 e 17/02/2009, sendo, portanto, os regimes deles decorrentes que aqui irão ser chamados à colação em função da factualidade a considerar e consoante as normas que se revelarem necessárias à apreciação e julgamento do objeto do presente recurso de Revista.

B – OBJETO DA PRESENTE REVISTA

Neste recurso está em causa saber se se verifica justa causa para o despedimento da Autora por referência ao segundo conjunto de factos que, na perspetiva da Ré - achando-se as instâncias divididas quanto a tal qualificação, com base, naturalmente, em argumentação jurídica diversa -, integra a violação grave do dever de lealdade por parte da trabalhadora.

C – FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA DA 1.ª INSTÂNCIA

A sentença do Juízo do Trabalho de ... decidiu as questões jurídicas que se suscitam no presente recurso de Revista, nos moldes constantes da sua argumentação que agora se reproduz:

«Afirma a ré que a autora violou o dever de lealdade por ter prestado falsas declarações quanto à justificação das faltas apresentadas, uma vez que se encontrava a desenvolver outra atividade profissional, estando, afinal, apta para o trabalho.

Para sustentar esta afirmação, a ré teria de concatenar os dias em que a autora esteve de baixa com os dias em que estaria a prestar outra atividade profissional. Acontece que, no AMD, para além de alegar que a autora criou uma página no Facebook no dia 09-02-2022, apenas refere vagamente que entre 12 de fevereiro de 2022 e 30 de abril de 2022 a autora publicou na sua página dedicada à atividade imobiliária, diversas fotografias de imóveis que se encontravam para venda, assim como informações sobre o negócio imobiliário, disponibilizando os seus contactos, nomeadamente número de telefone e endereço de email com o domínio da R..., com o objetivo claro de realizar visitas e angariar clientes, acrescentando, de forma totalmente conclusiva que “as referidas publicações ocorreram em dias em que a autora se encontrava ausente do trabalho por motivo de doença” – cf. artigos 43.º e 44.º do AMD.

Como no período de 12-02-2022 a 30-04-2022 a autora não esteve sempre de baixa [cf. ponto xiii.) dos Factos Provados], cabia à ré alegar e provar todos os dias em que foram efetuadas tais publicações ou em que prestou alguma outra atividade de mediação imobiliária. Mesmo quanto a esta, apenas se provaram os atos praticados no Facebook. Aliás, a própria convicção da entidade empregadora sobre esse facto parece ter vindo a desvanecer-se ao longo do procedimento disciplinar e do presente processo, pois no AMD deixou cair o ponto 16 da Nota de Culpa, no qual se dizia que «para poder divulgar/angariar os imóveis, a arguida deslocou-se às localidades onde os mesmos estão situados, falou com os clientes e/ou proprietários, tirou fotografias, assim como realizou as demais tarefas inerentes à atividade de agente imobiliário, ou seja, tratou de todo o processo…» Com efeito, não foi feita qualquer prova destes factos vagos (não concretizados) que poderiam, em abstrato, consubstanciar o serviço prestado pela trabalhadora na lógica da Decisão de Despedimento.

É que o simples facto de a autora ter uma segunda atividade que visava obter rendimentos (embora não se tenha provado que alguma vez os tivesse obtido) não lhe estava vedada pelo contrato ou pela lei, nem viola deveres laborais. Aliás, quanto à violação de deveres laborais, a ré, na Nota de Culpa (cf. ponto 28), ainda ensaiou a conclusão de que os tripulantes de cabina estão obrigados a cumprir tempos de repouso obrigatórios impostos por lei, não podendo, a menos que autorizados pela empregadora, exercer outra atividade profissional. Porém, nem na Nota de Culpa a empregadora foi capaz de enunciar os tempos de repouso que, em concreto, teriam sido violados. Na Decisão Final do procedimento disciplinar, já não há referência aos tempos de repouso, tendo optado pela conclusão de que a “atividade de agente imobiliária não se mostrava compatível com as funções de tripulante de bordo, que pressupõem constantes deslocações para fora do território nacional”, mas, mais uma vez, sem concretizar – cf. art.º 28.º da Nota de Culpa e página 21 da Decisão Final do procedimento disciplinar.

Não obstante o facto de a ré não ter concretizado em que dias de baixa é que a autora prestou outra atividade, parece-nos importante referir, igualmente, que a condição clínica que pode ser incapacitante para uma tripulante de cabine efetuar um voo, pode não contender com a capacidade de essa mesma tripulante estar em casa a partilhar conteúdos nas redes sociais, pois não foi mais do que isso que se provou, ainda que os mesmos tivessem um objetivo comercial que não veio a concretizar-se. Com efeito, pode ler-se na recomendação de baixa escrita pela Dr.ª CC (a qual testemunhou em audiência nesse sentido) e dirigida ao médico de medicina geral e familiar da USF (fls.128v.): «Não pode exercer as suas funções profissionais por ter risco de barotraumatismo quer do ouvido quer dos seis perinasais, por ser assistente de bordo.» Essa recomendação, de 22-04-2022, veio a dar origem à emissão de um CITT, em 27-04-2022, que atestou tal incapacidade até ao dia 26-04-2022, tal como recomendado. O mesmo padrão encontramos, também, designadamente, na informação clínica exarada pelo Dr. DD, em 29-06-2022 (cf. fls.119 e 131v.), na qual se diz, referindo-se a um timpanograma que apresentava OD -45 e OE -40, que «…consideramos nesta instituição habitualmente <50dpa como incapacitante para voo (considerando adicionalmente à clínica) pelo que é um resultado borderline.» Esta informação, remetida para a USF (fls.131v.), veio a dar origem ao CITT emitido logo em 30-06-2022 para vigorar de 29-06-2022 até 28-07-2022 – cf. pontos xiii.) e xxxiv.).»

D – ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

O Tribunal da Relação de Lisboa, chamado a decidir o recurso de Apelação da Ré da mencionada sentença final, veio a julgar improcedente o mesmo com base na seguinte fundamentação jurídica, com relevo para o objeto deste recurso de revista interposto pela empregadora [na parte por nós admitida]:

«O dever de lealdade consagrado na alínea f) do n.º 1 do art.º 128.º do Código do Trabalho, constitui um conceito indeterminado que o legislador entendeu concretizar exemplificativamente (por um lado com a obrigação de o trabalhador não negociar por conta própria ou alheia em concorrência com o empregador, e por outro lado com a obrigação de não divulgar informações referentes à organização, métodos de produção ou negócios do empregador), mas que, em temos gerais, impõe ao trabalhador uma conduta de afetação do exercício da sua função aos interesses do empregador, não devendo atuar de forma a causar prejuízo desses interesses [1].

Na base deste dever, que vai para além da noção puramente obrigacional de cumprimento pontual dos deveres contratuais (ancorada no dever de boa-fé consagrado no n.º 2 do art.º 762.º do Código Civil e no específico domínio laboral no art.º 126.º, n.º 1 do Código do Trabalho), encontra-se uma ideia de comunidade ou comunhão de interesses entre o empregador e os trabalhadores, ou uma especial relação de confiança, uma lealdade pessoal que leva a que mesmo comportamentos extralaborais do trabalhador possam ter relevo para efeitos de justa causa de despedimento (art.º 126.º, n.º 2 do Código do Trabalho).

Para além de regras de comportamento da contraparte (lealdade ao empregador), exige-se ainda que o trabalhador empreenda uma conduta correta do ponto de vista dos interesses da organização (lealdade à organização do empregador).

Ou seja, no dever de guardar lealdade ao empregador, está contido um dever de honestidade que implica uma obrigação de abstenção de qualquer comportamento que possa fazer desaparecer a relação de confiança (enquanto obrigação de conteúdo mais amplo) que se move nas coordenadas impostas pelo princípio da boa-fé.

Referindo-se aos deveres acessórios do trabalhador refere Maria do Rosário Palma Ramalho [2] «Ainda em sede de apresentação geral dos deveres acessórios do trabalhador, importa realçar a dimensão pessoal de alguns destes deveres (como o dever de lealdade, mas também o dever de respeito e de urbanidade) e a dimensão organizacional de outros (ainda o dever de lealdade e o dever de respeito e urbanidade, mas também os deveres de promoção da produtividade da empresa e de cooperação na empresa, com colegas ou em matéria de segurança e saúde). Estas várias dimensões dos deveres do trabalhador projectam os elementos de pessoalidade e de inserção organizacional do vínculo de trabalho, oportunamente realçados.

A dimensão pessoal de alguns deveres do trabalhador decorre do envolvimento integral da sua personalidade no contrato e explica também a imposição ou a limitação de condutas pessoais do trabalhador em determinados parâmetros, bem como o relevo geral da confiança pessoal entre as partes no contrato de trabalho.»

É ainda de ter em conta que como afirma a mesma autora [3] «Enquanto dever independente da prestação principal, o dever de lealdade surge com a celebração do contrato de trabalho e mantém-se ao longo da respectiva execução, incluindo nas situações de não prestação da actividade de trabalho, seja no contexto da execução normal do contrato, seja, em situações de suspensão do contrato.»

Isso mesmo resulta do disposto pelo art.º 295.º, n.º 1 do código do Trabalho no que respeita às situações de redução da atividade ou de suspensão do contrato de trabalho, ao consagrar que “Durante a redução ou suspensão, mantêm-se os direitos, deveres e garantias das partes que não pressuponham a efetiva prestação de trabalho.”

No mesmo sentido veja-se o Ac. do STJ de 05/06/2019 [4] que refere: entre os deveres do trabalhador devem distinguir-se os acessórios integrantes da prestação principal [prestação do trabalho] e os acessórios independentes da prestação principal; na segunda categoria incluem-se aqueles deveres do trabalhador que não dependem da prestação do trabalho, pelo que se mantêm nas situações de não prestação de trabalho e nas situações de suspensão do contrato de trabalho; entre estes está o “dever de lealdade”, em geral.

No caso dos autos, o que se passou foi que a autora durante os mesmos períodos de tempo em que esteve ausente do trabalho por incapacidade temporária de exercer a sua atividade de tripulante de cabine ao serviço da ré, mantinha com um terceiro um contrato de prestação de serviços de angariadora imobiliária, tendo executado alguns atos próprios desta atividade, nomeadamente atos tendentes à divulgação de imóveis que se encontravam para venda e de informações sobre o negócio imobiliário, através de publicações das redes sociais.

Ora, não resulta dos autos que a autora estivesse contratual ou convencionalmente vinculada a qualquer dever de exclusividade perante a ré, pelo que lhe era lícito exercer outra atividade em simultâneo com a que desempenhava ao serviço da ré, desde que, como se verifica na situação em apreço, não se tratasse de atividade concorrente daquela a que se dedica a ré.

Ainda assim, não se pode deixar de considerar que, mesmo sendo legítimo o exercício de outra atividade pela autora durante os períodos de incapacidade temporária para o trabalho, nos termos do disposto pelo art.º 109.º, n.º 3 do Código do Trabalho, impendia sobre ela, pelo menos o dever de dar conhecimento à ré de que tal se verificava, já que do nosso ponto de vista está em causa uma circunstância relevante [5].

Na verdade, tendo o empregador interesse na recuperação de quem contratou para lhe prestar trabalho, é merecedora de tutela a expectativa do empregador de que o trabalhar ausente por doença que o incapacita de exercer a sua atividade profissional, não se encontre no mesmo período, durante o qual se mantêm todas as obrigações da empregadora não dependentes da efetiva prestação de trabalho, a exercer outra atividade, designadamente uma atividade remunerada [6].

E é relevante para a empregadora, sobretudo por questões de verdade do relacionamento, suscetíveis de contender com a confiança que deposita nos trabalhadores, o conhecimento de que um seu trabalhador tem uma outra atividade e sobretudo, que tendo-a, não esconde essa informação do empregador.

Nessa medida, a autora, foi no mínimo imprudente, sendo a sua atuação suscetível de pôr em causa a obrigação de boa-fé na execução do contrato de trabalho, violando, por isso, culposamente, o dever de lealdade.

A autora praticou, pois, infração disciplinar, entendida esta como a violação culposa, por ação ou omissão, dos deveres que para o trabalhador resultam do contrato de trabalho ou da lei [7].

A questão que se coloca é a de saber se essa infração disciplinar foi de tal modo grave que se justifique a sanção de despedimento, aplicada pela ré, ou seja, saber se a atuação da autora tornou impossível a subsistência da relação de trabalho com o sentido que já explicitámos acima, o que entronca com a obrigação de proporcionalidade entre a gravidade da infração e a culpa do trabalhador, por um lado, e a sanção disciplinar por outro (art.º 330.º, n.º 1 e 351.º, n.º 1, ambos do Código do Trabalho).

Como afirma Maria do Rosário da Palma Ramalho [8], in Tratado de Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, Almedina, 5.ª Edição, pág. 761:

«Os princípios gerais norteadores da aplicação das sanções disciplinares são o princípio da proporcionalidade, o princípio da processualidade, o princípio da celeridade e o princípio da cumulação da responsabilidade disciplinar com outras fontes de responsabilidade do trabalhador.

(…)

O princípio da proporcionalidade entre a infração e a sanção disciplinar é consagrado no artigo 330.º, n.º 1 do Código do Trabalho. Este princípio impõe ao empregador que proceda a um juízo de adequação entre a infração cometida e sanção a aplicar, com base na gravidade da infração e no grau de culpa do trabalhador.

Em desenvolvimento deste princípio no âmbito do despedimento, o art.º 351.º, n.º 3 determina que a apreciação da infração disciplinar tenha em conta, no âmbito da empresa, o grau de lesão dos interesses do empregador, as suas relações com o trabalhador, e entre este e os colegas, e as demais circunstâncias relevantes no caso. Embora esta norma reporte especificamente à apreciação da infração disciplinar que consubstancia justa causa para despedimento, ela fornece critérios gerais para a aferição da gravidade do facto e da culpabilidade do trabalhador em qualquer infração disciplinar.»

Como se pode ler no Ac. STJ de 08/07/2020 [9] «É, assim, obrigação de qualquer entidade empregadora, perante uma infração disciplinar cometida pelo trabalhador, usar da proporcionalidade à gravidade da infração e à culpabilidade do infrator, conforme disposto pelo art.º 330.º, n.º 1 do Código do Trabalho, e, nessa conformidade, aplicar a sanção mais adequada e proporcional à gravidade da infração, ficando a sanção do despedimento reservada para os casos de maior gravidade, que comprometam em definitivo a manutenção da relação laboral. O que acontece, desde logo, devido à própria proteção constitucional do trabalho, - art.º 53.º da Constituição da República Portuguesa - que proíbe os despedimentos sem justa causa.»

No caso dos autos, apesar de termos concluído que a autora praticou infração disciplinar, a sanção de despedimento afigura-se excessiva, porquanto ao factos não demonstram que a manutenção da relação de trabalho se tenha tornado impossível.

Não podemos perder de vista que a infração imputável à autora ainda que configure a violação de dever de lealdade, é a omissão de informar a ré do exercício de outra atividade durante a “baixa médica” e não qualquer outra, o que, sendo o exercício de tal atividade lícita, constitui uma infração de reduzida gravidade.

De resto, não se apurou que a atuação da autora tenha determinado agravamento, mesmo que potencial, do estado de saúde que a impedida de prestar trabalho à ré, ou o prolongamento do impedimento, nem que tenha causado qualquer concreto prejuízo à ré.

Por outro lado, não se pode ignorar que a autora tinha cerca de 7 anos de antiguidade, sem que seja conhecida a prática de qualquer outra infração disciplinar.

Tudo ponderado, podemos afirmar que, no caso dos autos, é ainda positivo o juízo de prognose sobre a viabilidade da relação laboral, por se manterem as condições mínimas de suporte de uma vinculação duradoura, para o que releva ainda a dimensão da ré, no seio da qual as relações pessoais entre a trabalhadora e a empregadora se apresentam diluídas.

Isto é, à luz das palavras de Pedro Furtado Martins, que acima transcrevemos, a continuidade do vínculo não representa uma insuportável e injusta imposição ao empregador.

Neste contexto, não se pode concluir que era inexigível à ré a manutenção do contrato de trabalho, já que a atuação da autora não é de tal modo grave que se possa ou deva considerar definitivamente quebrada a relação de confiança que constitui uma das bases do contrato. A censura à atuação da autora era devida, mas através de sanção conservatória de entre as previstas pelo art.º 328.º do Código do Trabalho, sendo o despedimento manifestamente desproporcional à gravidade da infração.

Consequentemente, ainda que com fundamento parcialmente diferente, é de confirmar a sentença recorrida ao concluir pela inexistência de justa causa e, consequentemente, pela ilicitude do despedimento da autora, com as consequências ali extraídas.»

E – DEVER DE LEALDADE

O dever de lealdade que está em discussão no quadro do presente recurso de Revista, para efeitos da aferição da justa causa de despedimento da Autora por parte da Ré TAP, radica-se, desde logo, no dever geral de boa-fé que se mostra previsto, por exemplo, no artigo 126.º, número 1 do Código do Trabalho de 2009, quando estatui que «1 - O empregador e o trabalhador devem proceder de boa fé no exercício dos seus direitos e no cumprimento das respectivas obrigações.» e encontra-se especificado, como uma das obrigações contratuais e legais dos trabalhadores, na alínea f) do número 1 do artigo 128.º do mesmo diploma legal, quando se determina que «1 - Sem prejuízo de outras obrigações, o trabalhador deve: f) Guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios; », ainda que sem reflexo expresso e direto na enumeração – exemplificativa, realce-se - das causas de despedimento unilateral por iniciativa do empregador do número 2 do artigo 351.º do CT/2009 [10].

A nossa jurisprudência tem abordado o conteúdo de tal complexo e multifacetado dever de lealdade e das consequências mais ou menos gravosas quanto à sua violação por parte dos trabalhadores arguidos em procedimentos disciplinares nos seguintes moldes:

- Acordão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/04/2008, Processo n.º 07S3388, Relator: MÁRIO PEREIRA, publicado em ECLI:PT:STJ:2008:07S3388.0E, com o seguinte Sumário:

I - A violação do dever de lealdade, através da criação de uma situação de concorrência pelo trabalhador, não exige ou implica a efectividade de prejuízos para o empregador em causa, nem o efectivo desvio de clientela, sendo suficiente que esse desvio seja potencial, isto é, não é imperioso que se verifique a prática efectiva de negócios, bastando que o comportamento do trabalhador seja meramente preparatório ou de molde a criar a expectativa de uma actividade concorrencial.

II - O referido dever de lealdade é tanto mais acentuado quanto mais extensas e qualificadas forem as funções desempenhadas pelo trabalhador, sendo particularmente elevado o grau de confiança exigível a um trabalhador colocado em posição cimeira na hierarquia da empresa.

III - Configura justa causa de despedimento, por violação do disposto no art. 20.º, n.º 1, alínea c), da LCT e art. 121.º, n.º 1, alínea e), do CT, o comportamento de um trabalhador que, tendo a categoria profissional de Director de Produção e responsável técnico de uma pedreira do empregador, sem o conhecimento e a autorização deste, ao longo de quase três anos (de Janeiro de 2001 a Dezembro de 2003) prestou serviços a uma outra empresa de extracção de inertes, mediante retribuição.

- Acordão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/02/2012, Processo n.º 3061/03.7TTLSB.L1-4, Relatora: PAULA SÁ FERNANDES, publicado em ECLI:PT:TRL:2012:3061.03.7TTLSB.L1.4.9F, com o seguinte Sumário parcial:

1. O dever geral de lealdade decorre de uma estreita relação de confiança entre as partes em que se acentua o elemento fiduciário dessas relações, sendo necessário que a conduta do trabalhador seja de molde a não por em causa essa confiança, criando no espírito do empregador a dúvida sobre a idoneidade futura do comportamento do seu trabalhador.

2. Como tem sido amplamente afirmado quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, ele constitui uma manifestação do princípio da boa-fé contratual no cumprimento das obrigações, variando o seu conteúdo com a natureza das funções do trabalhador; esse dever é mais acentuado quanto mais qualificadas forem as funções desempenhadas pelo trabalhador na organização técnico-laboral do empregador,

3. No caso, dada a relevância do posicionamento do autor na empresa, a violação do dever geral de lealdade não está dependente da constatação ou verificação de prejuízos, nem da existência de culpa grave do trabalhador, já que a simples materialidade do seu comportamento leva razoavelmente a um efeito redutor das expectativas de confiança.

4. O autor era um trabalhador a quem lhe foram incumbidas funções relevantes, designadamente de negociação com as sociedades de que o mesmo era sócio. Assim ao omitir essa qualidade quando instado a fazê-lo, violou de forma grave o seu dever geral de lealdade, sendo para o efeito irrelevantes as consequências da sua actuação, constituindo justa causa de despedimento.

- Acordão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/09/2015, Processo n.º 477/11.9TTVRL.G1.S1, Relatora: ANA LUÍSA GERALDES, publicado em ECLI:PT:STJ:2015:477.11.9TTVRL.G1.S1.86, com o seguinte Sumário:

I. Integra justa causa de despedimento, por violação do dever de lealdade, na dimensão da proibição de não concorrência, o comportamento do trabalhador que se torna sócio de uma sociedade comercial com objecto social idêntico ao do empregador e que prossegue a mesma actividade.

II. A violação do dever de lealdade e a obrigação legal de não concorrência que impende sobre o trabalhador não dependem da verificação, em concreto, de um efectivo prejuízo para o empregador, nem do efectivo desvio de clientela, sendo suficiente a potencialidade desse prejuízo.

III. A quebra da confiança entre empregador e trabalhador não se afere pela existência de prejuízos, podendo existir sem estes, bastando que o comportamento do trabalhador seja apto a gerar no empregador a dúvida sobre a idoneidade da sua conduta futura.

IV. No âmbito da sua relação laboral o trabalhador está vinculado a vários deveres, com destaque, no que aqui releva, para os deveres de lealdade, de transparência e de boa fé, como forma de garantir, proteger e conservar a situação de confiança mútua indispensável à manutenção dessa relação contratual.

- Acordão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/06/2019, Processo n.º 6926/15.0T8FNC.L1.S1, Relator: FERREIRA PINTO, publicado em ECLI:PT:STJ:2019:6926.15.0T8FNC.L1.S1.65, com o seguinte Sumário:

«I) Prendendo-se o “thema decidendum” com a existência de justa causa para o despedimento do Trabalhador, por violação do dever de lealdade, na vertente de não concorrência, com a sua Empregadora, expressões, como “serviços de proteção e ...” e “como ... ...”, não definem o “thema decidendum”, uma vez que através delas não se chega ao motivo que determinou o despedimento do Trabalhador, devem ser mantidas, até porque são conceitos já utilizados na linguagem comum.

II) Entre os deveres do trabalhador devem distinguir-se os acessórios integrantes da prestação principal [prestação do trabalho] e os acessórios independentes da prestação principal.

III) Na segunda categoria incluem-se aqueles deveres do trabalhador que não dependem da prestação do trabalho, pelo que se mantêm nas situações de não prestação de trabalho e nas situações de suspensão do contrato de trabalho,

IV) Entre estes está o “dever de lealdade”, em geral e, nomeadamente, na manifestação especifica do “dever de não concorrência”.

V) Viola este dever o Trabalhador que, exercendo funções numa empresa cuja atividade consiste na proteção ... e ... de ... e ..., faz ... ..., fora do seu tempo de trabalho, em eventos, na generalidade de cariz partidário, em congressos, campanhas, festas, jantares, arruadas, etc,

VI) Com este comportamento foi quebrada a confiança entre as partes, pelo que não se torna exigível que a Empregadora o mantenha ao seu serviço, configurando, pois, justa causa para o seu despedimento.»

- Acordão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/02/2023, Processo n.º 625/21.0T8CSC.L1.S1, Relator: MÁRIO BELO MORGADO, publicado em ECLI:PT:STJ:2023:625.21.0T8CSC.L1.S1.76, com o seguinte Sumário:

«I. O dever de lealdade inclui um dever de honestidade, que implica uma obrigação de abstenção por parte do trabalhador de qualquer comportamento suscetível de colocar em crise a relação de confiança que deve pautar as suas relações com o empregador, enquanto corolário da boa-fé contratual.

II. Dada a natureza fortemente fiduciária do contrato de trabalho, em regra assume especial significado a violação do dever laboral de lealdade, isto em função direta do grau de responsabilidade e posição hierárquica que o trabalhador detenha na empresa.

III. Um dos Autores excercia funções como Sales Diretor, sendo o outro responsável pela gestão dos parceiros comerciantes.

IV. Provou-se que os mesmos realizaram um negócio de compra e venda de veículos, com o recebimento dos pagamentos e o subsequente transporte das viaturas, sem prévia aprovação pelo departamento financeiro, em infração às regras estabelecidas pelo empregador, negócio que causou um prejuízo de cerca de 60.000,00 €, para além de custos de transporte e recondicionamento, em valor não apurado; bem como que os AA. não comumicaram ao departamento financeiro e aos seus superiores hierárquicos que já se mostrava efetuado o pagamento dos veículos, e entregues estes aos compradores, mormente em troca de e-mails e em reuniões convocadas para discutir os termos desse negócio.

V. Grave e culposamente, os Autores violaram os deveres laborais de obediência, lealdade e de promover atos tendentes à melhoria da produtividade da empresa.

VI. Tendo em conta a imagem global dos factos, incluindo todas as suas circunstância e consequências, conclui-se – à luz de critérios de razoabilidade, exigibilidade e proporcionalidade – que com a sua conduta os Autores tornaram prática e imediatamente impossível a subsistência da relação laboral.»

- Acordão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/03/2023, Processo n.º 17436/20.3T8LSB.L1.S1, Relator: RAMALHO PINTO, publicado em ECLI:PT:STJ:2023:17436.20.3T8LSB.L1.S1.13, com o seguinte Sumário:

I - O dever de lealdade inclui um dever de honestidade, que implica uma obrigação de abstenção por parte do trabalhador de qualquer comportamento susceptível de colocar em crise a relação de confiança que deve pautar as suas relações com o empregador, enquanto corolário da boa-fé contratual;

II - Constitui justa causa de despedimento o comportamento da trabalhadora, ... Comercial e de Marketing em Portugal, que se traduziu na concessão, sem autorização da entidade empregadora, como era necessária, de descontos significativos, na ordem dos 50%, a clientes daquela;

III - Está-se perante a violação, por parte da trabalhadora, dos seus deveres de obediência, mas com mais relevância e gravidade do de lealdade para com a sua empregadora, com a inerente quebra de confiança, tornando-se, assim, prática e imediatamente impossível a subsistência da relação laboral.

- Acordão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/04/2023, Processo n.º 23135/20.9T8LSB-A.L1.S1, Relator: MÁRIO BELO MORGADO, publicado em ECLI:PT:STJ:2023:23135.20.9T8LSB.A.L1.S.D2, com o seguinte Sumário:

I - O dever de lealdade inclui um dever de honestidade, que implica uma obrigação de abstenção por parte do trabalhador de qualquer comportamento suscetível de colocar em crise a relação de confiança que deve pautar as suas relações com o empregador, enquanto corolário da boa-fé contratual.

II - Dada a natureza fortemente fiduciária do contrato de trabalho, em regra assume especial significado a violação do dever laboral de lealdade,.

III - nscrever em parede das instalações interiores da empresa empregadora a expressão “abaixo as cunhas” viola, grave e culposamente, os deveres laborais de respeito, de lealdade e de conservar e bem utilizar os bens afetos à atividade laboral.

IV - Tendo em conta a imagem global dos factos, incluindo todas as suas circunstância e consequências, conclui-se – à luz de critérios de razoabilidade, exigibilidade e proporcionalidade – que com a sua conduta o Autor tornou prática e imediatamente impossível a subsistência da relação laboral.

- Acordão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/10/2024, Processo n.º 3523/23.0T8SNT.L1.S1, Relator: MÁRIO BELO MORGADO, publicado em ECLI:PT:STJ:2024:3523.23.0T8SNT.L1.S1.61, com o seguinte Sumário parcial:

«I. O dever de lealdade inclui um dever de honestidade, que implica uma obrigação de abstenção por parte do trabalhador de qualquer comportamento suscetível de colocar em crise a relação de confiança que deve pautar as suas relações com o empregador, enquanto corolário da boa-fé contratual.

II. Dada a natureza fortemente fiduciária do contrato de trabalho, em regra assume especial significado a violação do dever laboral de lealdade, em função direta do grau de responsabilidade e posição hierárquica que o trabalhador detenha na empresa.

III. Enquanto exercia funções como responsável de Recursos Humanos e Operações da Ré, a trabalhadora era a única sócia de uma sociedade que passou a prestar a um ex-cliente do empregador os mesmos serviços que até ao dia anterior este lhe prestara (recorrendo, para tanto, a seis consultores dispensados pelo empregador nesse mesmo dia), atos que infringem a proibição de não concorrência com o empregador e, assim, gravemente, o dever de lealdade a que se encontrava adstrita.»

Como já antes deixámos insinuado, o dever de lealdade e a sua violação pode assumir distintas vertentes e cambiantes – por exemplo e entre muitas outras, divulgação de informações confidenciais junto de outras empresas do ramo, queixas anónimas ou identificadas que, acerca da organização e funcionamento da empregadora, sejam divulgadas, em moldes imediatos, à comunicação social e ao público em geral, ocultação de dados essenciais e obrigatórios, de cariz porfissional ou institucional à entidade patronal, etc. -, sendo as mais vulgares são as ligadas à concorrência desleal levada a cabo pelos trabalhadores por referência às suas empregadoras, com a constituição de sociedades com idêntico objeto ou objetos afins e/ou o desenvolvimento individualizado de atividade paralela e similar à laboralmente executada, dentro do mesmo setor produtivo [aqui encarado em termos latos] daquelas, em termos de competirem, confrontarem ou conflituarem de forma mais ou menos direta com a sua prestação económica de bens e serviços, independemente de, com tais condutas prejudicarem ou não, em termos efetivos, as suas entidades patronais.

G – CASO CONCRETO EM ANÁLISE

Abordemos então a situação dos autos e que na perspetiva da TAP constitui fundamento para o despedimento com justa causa da Autora [muito embora importe relembrar que tal atuação da trabalhadora não foi a única invocada pela empregadora para tal acontecer, sendo que a referente à das faltas injustificadas da recorrida já se mostra ultrapassada, por dupla decisão conforme das duas instâncias, no sentido da sua irrelevância disciplinar, o que levou o relator deste Aresto, sem a oposição das partes, a rejeitar o presente recurso de revista no que toca a esse outro fundamento].

Os factos dados como assentes e não assentes são os seguintes:

«xxi. [37.°] A Autora e a “P..., S.A.” (“R...”) celebraram um contrato de prestação de serviços de angariadora imobiliária no início de fevereiro de 2022; - ALTERADO PELO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

xxii. [38.° e 39.°] Quando tal facto chegou ao conhecimento da Ré, esta contactou a “R...” a fim de esclarecer a situação, através de carta registada recebida por esta a 22 de julho de 2022, tendo-lhe sido respondido, através de mensagem de correio eletrónico, datada de 3 de agosto de 2022, que a Autora “não exercia qualquer função, seja a que título for”;

xxiii. [41.°] No desenvolvimento dessa atividade, a Autora criou, em 9 de fevereiro de 2022, uma página na rede social FACEBOOK, a fim de divulgar e publicitar imóveis, prestar informação sobre o negócio imobiliário em geral e angariar novos clientes;

xxiv. [42.°] Na referida página, no site da R..., assim como na rede social WHATSAPP, a Autora apresentava-se como agente imobiliária da R..., fazendo parte da equipa do consultor e agente associado BB, publicitando vários serviços associados ao negócio imobiliário (H..., obtenção de documentação, remodelação de interiores, estudos de mercado, etc.);

xxv. [43.°] Entre 12 de fevereiro de 2022 e 30 de abril de 2022, a Autora publicou na sua página dedicada à atividade imobiliária, diversas fotografias de imóveis que se encontravam para venda, assim como informações sobre o negócio imobiliário, disponibilizando os seus contactos, nomeadamente número de telefone e Email com o domínio da R..., com o objetivo claro de realizar visitas e angariar clientes;

xxvi. [45.°] Numa das referidas publicações, com data de 20 de março de 2022, a Autora partilhou uma fotografia sua no interior de uma viatura automóvel, a agradecer a confiança nela depositada pela empresa R... e pela sua equipa de consultores, informando que se encontrava “quase concluída” a segunda semana de formação, junto da referida empresa;

xxvii. [46.°] A Autora recebeu Formação presencial ministrada pela Equipa “R...”, enquanto se encontrava de férias, no período entre 28 de fevereiro de 2022 e 4 de março de 2022;

xxviii. [47.°] A 15 e 16 de abril de 2022 a Autora realizou dois voos para a Ré;

xxix. [50.°] Durante os períodos de baixa referentes aos períodos de 19 de março de 2022 a 27 de março de 2022, 6 de abril de 2022 a 10 de abril de 2022, 11 de abril de 2022 a 14 de abril de 2022, 15 de abril de 2022 a 26 de abril de 2022, 12 de junho de 2022 a 14 de junho de 2022, 12 de junho de 2022 a 19 de junho de 2022, 20 de junho de 2022 a 28 de junho de 2022 e 29 de junho de 2022 a 28 de julho de 2022, a Autora estava obrigada a permanecer no seu domicílio, podendo apenas ausentar-se do mesmo para a realização de exames médicos;

xxx. [56.° (parte)] A Autora não vendeu qualquer imóvel» [11]

Importa, nesta matéria, frisar, desde logo, o óbvio: a atividade de mediação imobiliária que a Autora tenciona[va] levar a cabo não é minimamente concorrente com a atividade económica da Ré recorrente, não se podendo, por tal motivo e nessa medida, encarar a alegada violação do dever de lealdade nessa faceta de competição desleal com a mesma, que deixámos antes enunciada.

Tal violação prende-se antes e em tese com a circunstância de a recorrida não ter informado oportunamente a sua entidade empregadora de que andava a ter formação e tinha o propósito de ser mediadora imobiliária por conta da R..., em simultâneo com as funções que desenvolvia profissionalmente para a TAP, como tripulante de cabine e de que terá, durante o período em que esteve de baixa por doença, executado diversos atos que se enquadram na aludida atividade de mediação imobiliária e que, pela sua natureza, seriam violadores das condições em que a dita baixa lhe foi concedida.

Adiantemos desde já a nossa posição quanto ao último aspeto assinalado para dizer que a prova efetuada pela recorrente não se revela suficiente para se poder afirmar, de uma forma consequente, incisiva, objetiva, segura, que a recorrida assumiu os demonstrados comportamentos próprios de mediadora imobiliária durante os períodos de baixa médica e em expressa violação das restrições medicamente impostas pelo médico que emitiu os respetivos certificados.

Faça-se notar que a formação de mediadora imobiliária foi realizada durante as férias pessoais da Autora, interessando ainda recordar que aqueles períodos de baixa não foram todos seguidos e consecutivos, que só parte dos certificados por incapacidade temporária determinavam a permanência da trabalhadora em casa – sem prejuízo dos exames médicos que tivesse de efetuar - e que, durante parte de tal baixa, a Autora sujeitou-se a diversos tratamentos para a cura ou, pelo menos, estabilização e controlo dos problemas que tinha ao nível do ouvido direito e que a impediam de voar – cf. Pontos de Facto xvi. a xvii.].

Dir-se-á agora, quanto ao primeiro aspeto, que não ressalta dos autos um qualquer cenário de exclusividade de funções por parte da Autora para com a Ré, ou seja, não existia qualquer obrigação contratual de parte da primeira no sentido de laborar apenas, em termos remunerados, para a segunda; logo, nada impedia, em princípio, que a recorrida assumisse, por conta de outrém ou por conta própria, uma outra atividade profissional, se bem que esta última não deveria, em regra, obstar, dificultar ou, simplesmente, perturbar as funções contratadas com a Ré de Tripulante de Cabine.

Afigura-se-nos, por outro lado, que, em regra e salvo se implicar sobreposição de horários ou brigar com as regras de segurança e saúde no trabalho, não existe uma obrigação do trabalhador em informar a sua empregadora de que executa essa outra atividade [não concorrente, naturalmente] e paralela às funções profissionais que para ela assegura, quando a mesma é esporádica, irregular, sem carácter constante ou, pelo menos, frequente [não faz qualquer sentido impor a um trabalhador que comunique à sua entidade patronal que trabalha, ocasionalmente, como ... ou ... ou numa loja qualquer ou que, também, nos seus tempos livres, faz ... ou ... num bar ou é, por vezes, esporadicamente, ..., cuidador de ... ou ... ou vendedor de ..., ..., ... ou outros bens ou serviços].

Pensamos, contudo, que quando essa sua segunda atividade assume já um cariz profissional, mais ou menos certo e permanente, em que o número de horas semanal ou mensalmente prestadas é significativo, existe, nem que seja por razões de saúde e segurança do trabalhador no desenvolvimento da atividade principal, o dever de o trabalhador informar a sua empregadora dessa outra profissão ou profissões [chamemos-lhe assim por facilidade de exposição].

No caso dos autos e ainda que a segunda atividade da Autora apenas se evidencie durante cerca de 3 meses e relativamente a atos que não permitem assegurar que queria fazer ou veio a fazer dela uma segunda profissão [secundária], certo é que a recorrida era Tripulante de Cabine e a atividade económica da TAP é o do transporte aéreo de passageiros e mercadorias, onde são conhecidas as exigências acrescidas de segurança e saúde dos respetivos trabalhadores, por referência, designadamente, aos tempos de trabalho e de descanso dos mesmos, o que impunha à Autora que informasse a Ré de que era sua intenção desenvolver a atividade de mediadora imobiliária e de que estava a obter formação para o efeito.

Tal, contudo, não aconteceu, constituindo, nessa medida, a violação de um dever funcional da trabalhadora para com a sua empregadora mas convirá não olvidar que os factos em causa tiveram lugar, nos meses de fevereiro a abril de 2022, quando ocorreu a dita formação e atividade de mediadora [ainda que sem resultados palpáveis, pois a trabalhadora não vendeu nenhum imóvel], sendo certo que a Autora, em alguns desses períodos temporais não voou por se encontrar de baixa por força de um acidente de trabalho e depois por doença natural.

Ora, tendo em atenção o quadro factual descrito e os anos de atividade da recorrida para com a recorrente [durante 17 anos e 10 meses], é manifesto que tal infração disciplinar é de relativa gravidade e não é suscetível, nos termos e para os efeitos do número 1 do artigo 351.º do Código do Trabalho de 2009, de fundar o despedimento com justa causa promovido pela Ré contra a Autora, por não tornar imediata e praticamente impossível a subsistência do vínculo laboral existente.

Logo, pelo conjunto de argumentos deixados expostos, tem este recurso de Revista de ser julgado improcedente, assim se confirmando o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.

IV – DECISÃO

Por todo o exposto, nos termos dos artigos 87.º, número 1, do Código do Processo do Trabalho e 679.º e 663.º do Novo Código de Processo Civil, acorda-se, neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o presente recurso de Revista interposto pela Ré TRANSPORTES AÉREOS PORTUGUESES, S.A., confirmando-se, nessa medida, o recorrido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.

Custas do presente recurso a cargo da recorrente - artigo 527.º, número 1 do Novo Código de Processo Civil.

Registe e notifique.

Lisboa, 11 de dezembro de 2024

José Eduardo Sapateiro - (Relator)

Albertina Pereira – 1.ª Adjunta

Júlio Gomes – 2.º Adjunto

_____________________________________________

1. «Nuno Abranches Pinto, “Instituto Disciplinar Laboral”, Coimbra Editora, págs. 63 a 65.» - NOTA DE RODAPÉ DO TEXTO TRANSCRITO, COM O NÚMERO 9.↩︎

2. «Tratado de direito do Trabalho, Parte II - Situações laborais Individuais, 9.ª edição, revista e atualizada à Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, pág. 339/349.» - NOTA DE RODAPÉ DO TEXTO TRANSCRITO, COM O NÚMERO 10.↩︎

3. «Ob. citada, pág. 347.» - NOTA DE RODAPÉ DO TEXTO TRANSCRITO, COM O NÚMERO 11↩︎

4. «Acessível em www.dgsi.pt.» - NOTA DE RODAPÉ DO TEXTO TRANSCRITO, COM O NÚMERO 12.↩︎

5. «Cfr. Ac. RP de 01/02/2016, acessível em www.dgsi.pt.» - NOTA DE RODAPÉ DO TEXTO TRANSCRITO, COM O NÚMERO 13.↩︎

6. «No caso não se provou que a autora tenha recebido qualquer quantia, mas tal ocorreu pela circunstância de não realizado qualquer venda, não pelo facto de a atividade não ser remunerada, ou pelo menos exercida com essa finalidade.» - NOTA DE RODAPÉ DO TEXTO TRANSCRITO, COM O NÚMERO 14.↩︎

7. 15 «A respeito da noção de infração disciplinar, vd. Maria do Rosário Palma Ramalho, ob. cit., pág. 712/713.» - NOTA DE RODAPÉ DO TEXTO TRANSCRITO, COM O NÚMERO 15.↩︎

8. 16 «Ob. cit., págs. 720/721.» - NOTA DE RODAPÉ DO TEXTO TRANSCRITO, COM O NÚMERO 16↩︎

9. «Acessível em www.dgsi.pt.» - NOTA DE RODAPÉ DO TEXTO TRANSCRITO, COM O NÚMERO 17.↩︎

10. Não deixa de ser relevante a posição crítica feita por parte da nossa doutrina – «CÓDIGO DE TRABALHO ANOTADO», 2017, 11.ª Edição, Almedina, anotação ao artigo 128.º de PEDRO ROMANO MARTINEZ, PEDRO MADEIRA DE BRITO e GUILHERME DRAY, página 363 -, quer relativamente à desconformidade entre a alínea f) do número 1 do artigo 128.º e o disposto no número 2 do artigo 351.º, ambos do CT/2009, quer por referência à interpretação e aplicação de tais normativos que os tribunais de trabalho nacionais têm vindo a adotar nas suas decisões:

«IX. A violação dos deveres enunciados no artigo em anotação pode constituir justa causa de despedimento, remetendo-se para o disposto no artigo 351.º e respetiva anotação; sendo que a enumeração exemplificativa de comportamentos que podem constituir justa causa de despedimento (n.º 2 do artigo 351.º) não coincide com o elenco de deveres do trabalhador, aqui mencionados.

No plano prático a divergência mais significativa respeita ao dever de lealdade, exemplificado com o dever de não concorrência (alínea f)), que não encontra correspondente direto nos exemplos do n.º 2 do artigo 351.º. Esta discrepância pode justificar alguma discrepância jurisprudencial no que respeita à lealdade. Assim, enquanto encontramos uma jurisprudência consolidada no que respeita à admissibilidade de justa causa por concorrência do trabalhador, independentemente do prejuízo causado ao empregador (p. ex., Ac. RC16/4/2015 (Felizardo Paiva), CJ 2015, II, p. 324), outras falhas de lealdade graves - assim assumidas em arestos - não consubstanciam justa causa se o eventual prejuízo do empregador não é significativo (v.g., Ac. STJ de U/2/2015 (Mário Belo Morgado) CJ (STJ) 20151, p. 244). A divergência é particularmente gritante, porquanto, no primeiro caso se tratava de concorrência desleal de um mecânico e, no segundo, de uma ocultação deliberada, por parte de uma professora universitária, de que cumulava com aulas em outro estabelecimento de ensino.»↩︎

11. Foram dados como não provados os seguintes factos:

«d) [37.°] Durante os períodos de ausência ao trabalho, por alegado motivo de doença, a Autora encontrou-se a desenvolver a atividade de angariadora imobiliária, para a agência R.... – ALTERADO PELO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

Redação anterior: [[37.°] O contrato de prestação de serviços de angariadora imobiliária, referido no Ponto xxi.) dos Factos Provados, foi celebrado em inícios de fevereiro de 2022 e durante os períodos de ausência da Autora ao trabalho, por alegado motivo de doença, se encontrou a desenvolver a atividade de angariadora imobiliária, para a agência R....]

e) [40.°] O contrato da Autora com a referida R... cessou a 25 de julho de 2022, data posterior ao contacto acima referido efetuado pela Ré.

f) [46.° (parte)] A restante formação, a Autora recebeu-a em diversos módulos, já quando se encontrava de baixa médica.

g) [49.°] Atividade essa que envolveu diversas deslocações por parte da Autora para fora do seu domicílio;

h) [52.°] No dia 20 março, altura em que já se encontrava de baixa médica, ainda se encontrava a frequentar a formação inicial presencial dada pela R..., e que, portanto, dessa data em diante ainda iria frequentar formações presenciais que a obrigariam a ausentar-se do seu domicílio;

i) [88.° e 89.°] A atividade que a Autora desenvolveu para a R... foi remunerada.»↩︎