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Jurisprudência
Sumário

O art.º 500.º do Código Civil em que se estabelece a responsabilidade civil objectiva do comitente, em estrito benefício do lesado, não se identifica quem é o lesado, por referência a quaisquer características ou qualidades deste, nomeadamente de insusceptibilidade de poder estar numa hipotética relação de comissário com aquele mesmo comitente mas sem relação com o sinistro em causa nos autos. Responsabiliza-se o comitente pelos danos que o comissário causar, sem especificar qualquer atributo ou qualidade da pessoa que sofre esses danos, o que permite concluir ser intenção do legislador que beneficiem do referido regime todos os lesados independentemente das suas condições pessoais ou relações profissionais.
Decisão Texto Integral

Recorrente: SIMI – Sociedade Internacional Montagens Industriais, S.A., ré

Recorrido: AA

BB, autores


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I – Relatório

I.1

SIMI – Sociedade Internacional Montagens Industriais, S.A., ré, apresentou recurso de revista do acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido em 7 de Novembro de 2024 que revogou a sentença recorrida e condenou a R. no pagamento aos AA. das quantias em que o seu funcionário CC foi condenado no processo criminal n.º 113/09.3..., da Vara Mista do Tribunal Judicial de ..., deduzidas dos montantes que entretanto tenham sido pagos, a liquidar oportunamente, sendo devidos juros moratórios, à taxa legal, sobre os montantes que se mostrem estar em dívida à data da citação e até integral pagamento.

A recorrente apresentou alegações que terminam com as seguintes conclusões:

A. Os presentes autos surgem na sequência do falecimento de DD, pai e unido de facto dos Autores, enquanto desempenhava as suas funções sob as ordens e instruções da Recorrente, na pessoa do seu funcionário CC.

B. O funcionário CC foi considerado culpado no âmbito do processo-crime n.º 113/09.3..., tendo sido condenado no pagamento de uma indemnização cível aos Autores no montante global de €98.000,00.

C. Pese embora os Autores tenham movido uma execução contra aquele funcionário, a qual ainda se encontra pendente, o mesmo não tem bens suscetíveis de penhora, além de uma pensão com valor reduzido.

D. Assim, entendem os Autores que a Recorrente deverá responder solidariamente com o seu funcionário, nos termos e para os efeitos do artigo 500.º do CC.

E. Pese embora a 1.ª instância tenha entendido – e bem -, que o Sr. DD não pode ser considerado terceiro lesado para efeitos de aplicação do artigo 500.º do CC e, por isso, tenha julgado a ação totalmente improcedente, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, do qual ora se recorre, veio revogar esta decisão, com base numa interpretação errónea daquele artigo.

F. Na verdade, o artigo 500.º do CC está pensado para os danos causados pelos comissários a terceiros lesados, e não para os danos sofridos pelos próprios trabalhadores,

G. Surgindo o comitente, nas palavras de Antunes Varela, como um “garante da indemnização perante o terceiro lesado”.

H. Isto mesmo foi decidido, não só pela 1.ª instância, como pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 2018, num caso muito semelhante ao dos autos.

I. Esta conclusão alcança-se, igualmente, através de um paralelismo entre o artigo 500.º do CC, e o artigo 503.º, n.º 3, do CC, que presume a culpa do comissário em caso de acidente de viação e, segundo a jurisprudência dos tribunais superiores, não é aplicável no âmbito das relações entre comissário e comitente.

J. Assim, estando estabelecida a relação de comissão entre a Recorrente e o falecido, não pode ser imputada àquela qualquer responsabilidade por comissão por via da aplicação do artigo 500.º do CC, razão pela qual deverá o presente recurso ser julgado totalmente improcedente e, em consequência, ser o Acórdão recorrido revogado e substituído por outro que absolva integralmente a Ré dos pedidos.

Nestes termos e nos demais de Direito, deverão V. Exas.:

a) Admitir o presente recurso à luz do art. 671.º, n.º 1, do CPC;

b) Dar provimento integral ao presente recurso, revogando a decisão recorrida e substituindo-a por outra que julgue a presente ação totalmente improcedente.

Os recorridos, apresentaram contra-alegações que terminam com as seguintes conclusões:

I. É totalmente improcedente e desprovido de fundamento legal o recurso interposto pela Recorrente, nos autos supra identificados.

II. O Douto Acórdão não merece censura ou reparo, estando enformado da melhor interpretação e aplicação do Direito aos factos provados.

III. Nos presentes autos, ficou provado que DD faleceu em decorrência de um acidente de trabalho enquanto desempenhava funções na empresa P..., S.A., sob a coordenação de CC, trabalhador da Ré - empresa SIMI S.A.

IV. CC foi condenado em processo penal pela prática de um crime de violação de regras de segurança, bem como ao pagamento de indemnização civil aos Autores no montante total de €98.000,00.

V. Em processo de execução de sentença, as diligências de penhora levadas acabo revelaram-se infrutíferas, prevendo-se que o ressarcimento dos Autores demorará cerca de 550 meses.

VI. Nesse sentido, os AA. intentaram a presente ação judicial contra a R., ora recorrente, com fundamento na responsabilidade objetiva, nos termos do disposto no artigo 500.º, n.º 1, do Código Civil.

VII. O artigo 500.º do Código Civil determina que aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar.

VIII. Nos presentes autos, verifica-se a verificação cumulativa dos pressupostos de aplicação do artigo 500.º do Código Civil:

a. A existência de uma relação de comissão entre a Recorrente e o seu trabalhador CC;

b. A prática de um facto ilícito e danoso por parte do comissário no exercício da sua função;

c. A responsabilidade do comissário pela obrigação de indemnizar.

IX. Ficou demonstrado que CC deu causa ao evento danoso e que atuava sob as ordens e direção da Recorrente,

X. Resultou ainda que DD tem a posição de terceiro lesado.

XI. Contudo, a Recorrente, erradamente, sustenta que DD não se trata de um terceiro lesado, porquanto a Ré, embora não fosse sua entidade em pregadora, exercia um poder de direção por se tratar de empresa utilizadora, sustentando assim que por esse motivo não se deve aplicar o art. 500.º do CC..

XII. Ora tal posição não deve ter provimento porquanto se por um lado a empresa utilizadora exerce o poder de direção na sua vertente conformadora da prestação de trabalho por via da delegação de poderes por parte da empresa de trabalho temporário,

XIII. Por outro lado, o seu poder de atuação termina aí, e, não pode, em caso algum, transcender para outras dimensões jurídicas.

XIV. A este respeito veja-se o acórdão proferido no âmbito do processo 289/09.0TTSTB.E1.S1, que versou sobre uma situação semelhante (contudo no âmbito da ação emergente de acidente de trabalho), no qual o STJ apresentou o mesmo raciocínio que agora se defende, isto é que: «entre o trabalhador temporário e a empresa utilizadora não existe qualquer vínculo jurídico (…) »

XV. Assim, não deve caracterizar-se a relação de trabalho temporário como triangular, uma vez que entre a empresa utilizadora e o trabalhador não se estabelece qualquer vínculo contratual.

XVI. Por esse mesmo motivo, a ora Recorrente não foi, nem tinha de ser, interveniente no processo emergente de acidente de trabalho que correu os seus termos no Tribunal de Trabalho de ... entre os AA. e a empresa de trabalho temporário – entidade empregadora.

XVII. Pelo que, se por um lado não deve ser responsabilizada pelo acidente de DD, por não se tratar da sua entidade empregadora,

XVIII. Por outro, também, não deve agora invocar ter tido uma relação de comissão com DD (que não era seu trabalhador) por forma a se ilibar da responsabilidade objetiva que lhe compete assumir.

XIX. Sendo factispecie de aplicação do artigo 500.º do Código Civil, por obediência ao princípio da relatividade dos contratos, que terceiro seja aquele que não possui vínculo jurídico com o garante, o que é o caso dos presentes Autos.

XX. Assim, DD deve ser considerado um terceiro lesado perante a Recorrente, impondo-se a sua responsabilização nos termos do artigo 500.º do Código Civil.

XXI. O Acórdão recorrido deve ser integralmente mantido, porquanto a Recorrente não logrou demonstrar qualquer fundamento jurídico válido que sustente a sua pretensão de afastamento da responsabilidade objetiva.

XXII. Pelo exposto, deverá ser negado provimento ao presente recurso, confirmando-se integralmente o Douto Acórdão recorrido.

NESTES TERMOS, e nos melhores de Direito, com o sempre mui douto suprimento de V. Ex.as, deve ser julgado totalmente improcedente o Recurso, e, em consequência, manter-se integralmente a douta decisão recorrida.

E assim se fará a tão costumada JUSTIÇA


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I.2 – Questão prévia - admissibilidade do recurso

O recurso de revista é admissível ao abrigo do disposto no art.º 671.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.


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I.3 – O objecto do recurso

Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar a seguinte questão:

1. Aplicação do disposto no art.º 500.º do Código Civil


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I.4 - Os factos

O acórdão recorrido considerou relevantes para a decisão do recurso os seguintes factos:

1. Em consequência do acidente também em causa nestes autos, foi instaurado processo crime com o nº 113/09.3... que correu termos no Tribunal Judicial de Setúbal – Vara de Competência Mista, no qual CC foi condenado pela prática de um crime de violação de regras de segurança, previsto e punido pelos artigos 152°-8°, números 2 e 4, al. b), 15°, al. a) e 18°, todos do Código Penal, com referência aos artigos 3°, al. b), 15° e 69°, números 4, 5 e 6, da Portaria número 53171, de 03 de Fevereiro, alterado pela Portaria número 702/80, de 22 de Setembro e artigo 273°, número 2, do Código do Trabalho, na pena de 4 (quatro) anos de prisão suspensa na sua execução por igual período e sujeita a regime de prova a elaborar pelo IRS.

2. Naquele processo, BB deduziu pedido de indemnização civil contra AXA Portugal, Companhia de Seguros, SA, P..., S.A., A..., S.A., SIMI- Sociedade Internacional de Montagens Industriais, SA, EE e CC, pedindo a condenação solidária destes no pagamento de uma indemnização por danos morais sofridos pelo menor no valor de €50.00,00, pela perda do direito da vida no valor de €60.000,00, pelo dano da dor sofrida pela vítima antes da sua morte de €30.000,00 e danos patrimoniais no valor de €50.000,00, acrescidos de juros de mora desde a citação até integral pagamento.

3. Também a A. AA deduziu pedido de indemnização cível contra AXA Portugal, Companhia de Seguros, SA, P..., S.A., A..., S.A., SIMI-Sociedade Internacional de Montagens Industriais, SA, EE e CC, pedindo a condenação solidária destes no pagamento de uma indemnização por danos morais sofridos no valor de €35.00,00, pela perda do direito da vida e pelo dano da dor sofrida pela vítima antes da sua morte e danos patrimoniais no valor de € 6.750,00.

4. Por despachos datados de 24.04.2014 e de 06.05.2014 foi julgada procedente a excepção de incompetência absoluta suscitada, tendo as demandadas AXA Portugal Companhia de Seguros, SA, P..., S.A., A..., S.A. e SIMI-Sociedade Internacional de Montagens Industriais, SA, sido absolvidas da instância.

5. Realizado julgamento, por acórdão proferido em 9 de Julho de 2014, foi decidido o seguinte:

a. Absolver o arguido EE, da imputada prática de um crime de violação de regras de segurança, previsto e punido pelos artigos 152º Bº, números 2 e 4, al. b), 15°, al. a) e 18°, todos do Código Penal;

b. Condenar o arguido CC, pela prática de um de um crime de violação de regras de segurança, previsto e punido pelos artigos 152°-8°, números 2 e 4, al. b), 15°, al. a) e 18°, todos do Código Penal, com referência aos artigos 3°, al. b), 15° e 69°, números 4, 5 e 6, todos da Portaria número 53171, de 03 de Fevereiro, alterado pela Portaria número 702/80, de 22 de Setembro e artigo 273°, número 2, do Código do Trabalho, na pena de 4 (quatro) anos de prisão suspensa na sua execução por igual período e sujeita a regime de prova a elaborar pelo IRS (cfr. artigo 53º, do Código Penal), (…);

c. Julgar parcialmente procedente por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante BB e em consequência:

• condenar o demandado CC, a pagar ao demandante o total de €63.000,00 (sessenta e três mil euros); sendo €35.000,00 pela perda do direito à vida; €3.000,00 pelos danos não patrimoniais sofridos pela vítima antes de falecer; e €25,000,00 pelos danos não patrimoniais sofridos pelo próprio,

• absolver o demandado EE do pedido;

d) Julgar parcialmente procedente por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante AA e em consequência:

. condenar o demandado CC, a pagar à demandante o montante de €35,000,00 pela perda do direito à vida;

. absolver os demandados EE e A..., S.A. do pedido.

6. Da decisão interlocutória proferida em 24.04.2014 e 06.05.2014, recorreu o demandante BB, pugnando pela sua revogação no que toca à absolvição da instância das demandadas Simi - Sociedade Internacional de Montagens Industriais, S.A, e A..., S.A.

7. Em relação a tal recurso foi proferida decisão sumária, que decidiu não tomar conhecimento do mesmo, por inobservância absoluta e completa do ónus de especificação obrigatória nas conclusões do recurso interposto do acórdão final, sobre se mantinha interesse no referido recurso retido.

8. Foi indeferida a reclamação dessa decisão.

9. No que concerne à decisão final, foi negado provimento aos recursos, mantendo-se a decisão recorrida.

10. O acórdão transitou em julgado em 30.09.2016.

11. Os AA. intentaram acção executiva contra CC para cobrança coerciva dos montantes acima, que corre termos sob o número 113/09.3... no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo Central Criminal de ... - Juiz ....

12. Das diligências de penhora ali encetadas, resultou que o mesmo não tem quaisquer bens susceptíveis de penhora, para além de uma pensão, que já está a ser penhorada.

13. A A. AA viveu cerca de 10 (dez) anos com DD, em condições análogas à dos cônjuges, partilhando com este a mesma habitação e leito, como se de marido e mulher se tratasse.

14. A relação de ambos durou até ao dia .../.../2009, data em que aquele faleceu.

15. Da relação, nasceu em .../.../2008, BB.

16. A R. é uma empresa de metalomecânica que exerce a sua actividade no sector das montagens industriais, organizada para a prestação de serviços diversos, desde a engenharia, fornecimento, montagem e comissionamento de todo o tipo de tubagem industrial, equipamentos mecânicos, tanques de armazenagem, estruturas metálicas especiais, fornos de vidro e manutenção de unidades fabris.

17. O funcionário CC trabalhava sob as orientações, instruções e direcção da R., em virtude do contrato de trabalho celebrado entre ambos.

18. DD, trabalhador da “P..., S.A.”, exercia as funções correspondentes à categoria profissional de ... construtor de estruturas metálicas de 3ª.

19. Desenvolvendo tais funções nas instalações da P..., em ..., local onde a ora R. se encontrava a prestar serviços, relacionados com a montagem de tubagens e equipamentos.

20. No dia .../.../2009, DD, em obediência às ordens e instruções de CC, executava as suas funções de ... de estruturas metálicas na montagem de colectores, numa bancada móvel, sita a nível térreo, no interior das instalações acima referidas.

21. DD, encontrava-se devidamente equipado, tendo colocado na cabeça o respectivo capacete.

22. Nas referidas instalações encontravam-se a decorrer trabalhos de colocação de uma conduta num rack na parte superior da nave da fábrica.

23. No perímetro envolvente e nas proximidades onde estava colocada a bancada onde DD trabalhava, existia ainda uma estrutura de betão, onde estava colocada uma bomba, que possuía um parafuso saliente e que se encontrava sem qualquer protecção.

24. O referido local situava-se por debaixo da zona onde estava a ser colocada a referida conduta, sendo que essa zona se entende como a área envolvente do local onde se encontrava a máquina giratória, atento o raio de acção desta e a dimensão da tubagem metálica.

25. Eliminado.

26. A área onde estavam a ser efectuados os trabalhos de colocação de tubagens não tinha sido delimitada com qualquer perímetro de segurança.

27. Nem havia sido interditada, de forma a impedir o acesso a tal área de qualquer trabalhador.

28. Antes era utilizada como local e apoio para o trabalho em curso.

29. Existiam ao longo da nave da fábrica outras bancadas como aquela em que DD trabalhava, de apoio à execução de trabalhos em curso.

30. Cerca das 10:45 horas, desse dia de .../.../2009, quando se procedia à colocação de um tubo na referida conduta, com recurso a uma "manitu giratória", o tubo que estava a ser colocado embateu num outro tubo já colocado nos suportes, provocando a queda deste último, que não se encontrava fixo.

31. Durante a sua queda, o referido tubo metálico, com um peso aproximado de uma tonelada, veio a atingir DD, embatendo com grande violência, na região frontal e parietal esquerda do crânio deste.

32. Que ficou de imediato prostrado no solo, na zona onde veio a cair o referido tubo, que atingiu a pena esquerda.

33. Em resultado daquele acidente, DD sofreu lesões traumáticas crânio-encefálicas, com afundamento da calote craniana, hemorragia epicraniana frontal e parietal esquerda, fracturas múltiplas do andar anterior da base do crânio, lacerações traumáticas dos lobos frontais, parietais e temporais e ainda fractura exposta dos ossos da perna direita e ferida contusa na região frontal, acabando por falecer no local em virtude daquelas lesões.

34. Eliminado.

35. A vítima mortal tinha 43 anos de idade.

36. O A. BB, a essa data tinha cinco meses de idade.

37. Sofreu com o desaparecimento do seu pai, deixando de sorrir.

38. A A. AA ficou bastante abalada com a perda do seu companheiro, tendo inclusive perdido peso e sono, refugiando-se e isolando-se.

39. A A. sentiu/sente uma responsabilidade acrescida de criar o filho de ambos, carecendo de muita ajuda dos seus familiares.

40. Os AA. ainda hoje sofrem com o desaparecimento de DD e não conseguem aceitar o seu falecimento.

41. O trabalhador CC era, à data dos factos aqui vertidos, funcionário da aqui R., exercendo as funções de Chefe de Equipa.

42. Competia-lhe a distribuição e coordenação do trabalho de várias equipas, entre as quais, a de DD, sendo o seu superior hierárquico.

43. Adicionalmente, competia ao funcionário da ora R., verificar o cumprimento das regras de segurança relativamente aos seus subordinados, cabendo-lhe ainda proceder à comunicação do chefe de segurança do início dos trabalhos para que este se deslocasse ao local para avaliação dos riscos envolvidos.

44. Sucede que, naquele dia, o funcionário da ora R. deu instruções para procederem à montagem de tubos, sem que tenha alertado atempadamente o responsável de segurança para o início dos trabalhos a realizar e que envolviam riscos, designadamente o de queda de tubos para solo, como efectivamente se veio a concretizar.

45. Em consequência, com a conduta acima descrita o funcionário da ora R. não procedeu com o cuidado devido ao desrespeitar as normas técnicas pela ora R., bem como todas as medidas de segurança que se destinavam a evitar colocar os trabalhadores e terceiros em perigo, cf. disposto no art.º 3º al. b), 15º e 69º n.º 4, 5 e 6 da Portaria n.º 53/71, de 03 de Fevereiro, alterado pela Portaria n.º 702/80, de 22 de Setembro e art.º 273º n.º 2 do Código do Trabalho.

46. Ora, pese embora o funcionário da ora R. soubesse que antes do início dos trabalhos de montagem dos tubos tinha que chamar o responsável de segurança o qual tinha a capacidade para implementar as medidas de segurança necessárias, a verdade é que não o fez, e assim agindo, bem sabia que tal conduta era proibida e punida por lei penal.

47. A morte de DD poderia ter sido evitada se o perímetro de trabalho estivesse isolado.

48. DD exercia as suas funções de ... sob as ordens e instruções da Ré e do funcionário CC.


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Factos não provados:

A) A DD não foi dada previamente qualquer orientação para sair do local, enquanto decorriam os trabalhos referidos em 21.

B) DD teve consciência que iria morrer e deixar de ver o seu filho e companheira.

C) DD era uma pessoa robusta, saudável, alegre e com projectos para si próprio, para o seu filho e companheira.


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II – Fundamentação

1. Aplicação do disposto no art.º 500.º do

Código Civil

Os AA propuseram a presente acção pretendendo obter da ré o pagamento da indemnização fixada em processo crime a cargo do trabalhador desta, CC, considerado criminalmente responsável pelo acidente, que vitimou o companheiro e pai dos autores, invocando existir uma relação de comissão entre o CC e a ré, que a torna solidariamente responsável por tal pagamento, nos termos e para os efeitos do artigo 500.º do Código Civil .

A acção foi julgada improcedente na 1.ª instância e totalmente procedente na 2.ª instância.

No momento do acidente e, aquando do seu falecimento, o Sr. DD desempenhava as funções sob as ordens e instruções da Recorrente.

Não oferece dúvida de que entre a ré e o seu trabalhador CC existe uma relação de comissão nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 500.º do Código Civil. Como trabalhador da ré, no momento do acidente desenvolvia uma actividade por conta e sob direcção da ré recorrente. Existe entre estas duas entidades – entidade patronal e trabalhador– não só uma subordinação, no sentido de poder de controlo exercido ou exercitável através de ordens ou instruções da primeira sob o segundo, a que acresce uma subordinação jurídica constituída pelo vínculo laboral que os une, esta, contudo, não imprescindível para que seja afirmada uma relação de comissão. Há entre o evento danoso e as funções atribuídas pela ré ao seu trabalhador um nexo de adequação, mesmo na circunstância concreta de o trabalhador não ter cumprido as instruções que recebera, que permite concluir que o evento danoso foi praticado no exercício das suas funções laborais desempenhadas no interesse da ré.

Seguindo a matéria provada verificamos que a R. é uma empresa de metalomecânica que exerce a sua actividade no sector das montagens industriais, organizada para a prestação de serviços diversos, desde a engenharia, fornecimento, montagem e comissionamento de todo o tipo de tubagem industrial, equipamentos mecânicos, tanques de armazenagem, estruturas metálicas especiais, fornos de vidro e manutenção de unidades fabris, estando, na data do sinistro, a prestar serviços, relacionados com a montagem de tubagens e equipamentos nas instalações da P..., em ....

Para a execução de tais trabalhos a ré socorreu-se dos seus próprios trabalhadores e de outros, temporários, que recrutara, pelo menos no que à vítima mortal diz respeito, junto da empresa P..., S.A., entidade patronal da vítima mortal.

Nestas condições, DD recebia a sua remuneração da empresa P..., S.A., que sobre ele também exercia o poder disciplinar tendo determinado a entidade a quem seria prestada, no espaço temporal em que ocorreu o sinistro. Porém, quanto à conformação da prestação do trabalho, e, durante o hiato de tempo em que vigorasse a cedência deste trabalhador à ré, esta exercia sobre ele os poderes de autoridade e direcção, determinando o conteúdo da prestação de trabalho, horário e local da sua realização, os moldes em que deveria ser executada, sobre ela (ré) recaindo, também, o cumprimento das obrigações de garantia de segurança no trabalho.

Nesta medida, poderia haver uma relação de comissão entre a ré e o Sr. DD, no sentido de que os danos que pudessem ser causados a terceiros pelo Sr. DD, enquanto exercia o trabalho que lhe havia sido determinado pela Ré, o fazia sob a direcção e no interesse dela. Poderia, em termos hipotéticos, num acidente hipotético que, nem aconteceu, nem é objecto da causa.

Em ambos os casos, no real e no acidente hipotético acidente que o Sr. DD pudesse ter causado, a Ré responderia, independentemente de ter actuado com culpa, pelos danos causados pelo comissário, desde que idêntica obrigação coubesse a este.

A questão em discussão nestes autos suscitada pela ré, que entende que.«(…) o artigo 500.º do CC dirige-se à tutela dos danos causados pelos comissários a terceiros lesados, e não para os danos sofridos pelos próprios trabalhadores do comitente, surgindo o comitente, nas palavras de ANTUNES VARELA, como um “garante da indemnização perante o terceiro lesado”. (…) uma vez verificada uma relação de comissão entre a Recorrente e o falecido, este não pode ser considerado um terceiro lesado para efeitos de aplicação daquele artigo, não respondendo a Recorrente pelos danos por este sofridos» implica uma interpretação daquele preceito legal seguindo as regras do art.º 9.º do Código Civil, a saber, não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, não podendo, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

Daí que possa afirmar-se que o art.º 500.º Código Civil não contém a expressão «lesado», muito menos a expressão «terceiro lesado».

É entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência, e a recorrente não revela afastar-se deste entendimento, que estamos em face de uma situação de responsabilidade objectiva do comitente.

O texto do art.º 500.º do Código Civil Artigo 500.º:

«Aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar.» tem uma expressão textual muito próxima da usada nas estatuições relativas aos tipos legais de crime, por exemplo, «Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos», art.º 131.º do Código Penal e usa uma identificação dos intervenientes na relação jurídica que regula de forma idêntica à usada em outros preceitos nomeadamente ao nível da responsabilidade civil como sejam, art.º 483.º « Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».

No art.º 500.º usa-se a expressão – Aquele que – para identificar o sujeito sobre quem recai a obrigação de indemnizar sendo que, consoantes as situações, vão os artigos da Secção V - Responsabilidade civil do Capítulo II - Fontes das obrigações do Título I - Das obrigações em geral do Livro II - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES do Código Civil, adicionando qualidades ou atributos que permitem individualizar este responsável pela obrigação de indemnização de forma eficiente e inequívoca relativamente a cada uma das situações reguladas, como é patente numa visão de conjunto de todas elas.

Assim o art.º 484.º do Código Civil identifica o responsável pela obrigação de indemnizar

• art.º 484 «Quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome,»

• art.º 491.º «As pessoas que, por lei ou negócio jurídico, forem obrigadas a vigiar outras»

• artº 492.º«O proprietário ou possuidor de edifício ou outra obra que ruir»,

art.º 493.º «Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais»,

• art.º 502.º «Quem no seu próprio interesse utilizar quaisquer animais»,

• art.º 503, n.º 1.º «Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário»,

• art.º 503.º, n.º 3 «Aquele que conduzir o veículo por conta de outrem»,

• art.º 509.º, «Aquele que tiver a direcção efectiva de instalação destinada à condução ou entrega da energia eléctrica ou do gás, e utilizar essa instalação no seu interesse».

O artigo 500.º do Código Civil não afirma, de forma expressa, quem beneficia desta indemnização, delimitando apenas a obrigação de indemnização - danos que o comissário causar -.

Estando o art.º 500.º ínsito na Subsecção II - Responsabilidade pelo risco e, antecedido pelo art.º 499.º são-lhe extensivas, na parte aplicável e na falta de preceitos legais em contrário, as disposições que regulam a responsabilidade por factos ilícitos, desde logo o princípio geral do art.º 483.º, n.º 1 que identifica como beneficiário desta obrigação de indemnização o lesado, com o limite dos danos resultantes da violação. Idêntica estatuição omissiva, ou, pelo menos carente de remissão, encontramos no art.º 484.º - Ofensa do crédito ou do bom nome -, art.º 486.º, - Omissões -, 492.º - Danos causados por edifícios ou outras obras -, art.º 493.º - Danos causados por coisas, animais ou actividades -, art.º 502.º - Danos causados por animais -, art.º 509.º - Danos causados por instalações de energia eléctrica ou gás -,

Mas ao nível das disposições referentes à responsabilidade civil nem sempre o legislador entendeu ser esta regra suficiente para identificar quem tem direito a ser indemnizado. Indica no art.º 491.º - terceiros -, no art.º 493.º-A - o seu proprietário ou os indivíduos ou entidades que tenham procedido ao seu socorro –, art.º 495.º - Indemnização a terceiros em caso de morte ou lesão corporal -,

O art.º 504.º do Código Civil faz uma minuciosa enumeração dos beneficiários da obrigação de indemnização restrita danos causados por veículos, indicando que aproveita a terceiros, bem como às pessoas transportadas.

Voltando ao art.º 500.º, na economia do seu texto sempre se recolheria que o beneficiário ou credor na obrigação de indemnização seria o lesado. Passaremos a socorrer-nos das teorizações muito interessantes e exactas do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 23 de Novembro de 2004 no processo 04A3746, sobre quem tem a qualidade de lesado:

«(…) porque o direito não tutela bens, mas interesses (hominis causa omne ius constitutum est, segundo Modestino) e o interesse, grosso modo, é a reacção ou posição da pessoa perante o bem, o dano não é a subtracção pura e simplesmente, mas a subtracção, enquanto priva o homem de uma utilidade, como escreveu von Tuhr (p. 16 e 17).

O dano como lesão dum interesse, o dano não é a ofensa mas a consequência nociva da ofensa.

Lesado é quem sofre o dano; vítima é todo aquele que sofreu a acção danosa, o que não significa nem implica que necessariamente tenha sofrido dano. Pode haver vítima sem ser lesada bem como pode haver lesado que não seja vítima. Pode ainda haver titular do direito a indemnização que não seja vítima nem lesado (v.g., CC- 495 e art. 6 do dec-lei 218/99, de 15.06).

A correspondência a estabelecer é entre lesado e dano (deste, verificados os demais pressupostos, é que deriva o direito a indemnização) e não entre lesado e pessoa com direito a perceber uma indemnização - para a noção de lesado irreleva se a indemnização pode beneficiar, na sua atribuição, mais que uma pessoa (o importante é a atribuição, não a repartição da indemnização decorrente do direito atribuído) e essa categoria não inclui terceiro em que na génese do direito a indemnização não se encontra o dano.(…)

Vítima não é mais, pois, que uma referência tomada para a noção de lesado, este como quem directa, mas física e/ou psiquicamente, sofreu o dano (directamente causado pelo facto e não o dano que, embora próprio, surge na repercussão daquele em terceiro - caso do art. 496-2 CC; este será titular do direito a indemnização mas não é lesado).».

Na presente situação quem sofreu o dano morte que a indemnização visa reparar foi o Sr. DD tendo o trabalhador da ré, CC, sido condenado em processo crime ao pagamento de indemnização decorrente da prática dos crimes relacionados com incumprimento de regras de segurança no trabalho de que são beneficiários os autores.

Nada no texto do art.º 500.º, ou na legislação respeitante à responsabilidade civil, laboral ou, mesmo especificamente, do trabalho temporário restringe a qualidade de lesado, imprescindível para funcionamento do art.º 500.º do Código Civil àqueles que, não sendo os comissários causadores do sinistro, pudessem, em teoria, ser tidos como comissários do mesmo comitente, num outro hipotético sinistro. Tão pouco há qualquer indício legal de que o legislador pretenda que o lesado seja necessariamente um terceiro relativamente ao comitente no sentido de não ter relativamente a este qualquer vínculo jurídico ou de subordinação ainda que não implicada ou implicável na produção do sinistro.

No texto do art.º 500.º do Código Civil em que se estabelece a responsabilidade civil objectiva do comitente, em estrito benefício do lesado, não se identifica quem é o lesado, por referência a quaisquer características ou qualidades deste, nomeadamente de insusceptibilidade de poder estar numa hipotética relação de comissário com aquele mesmo comitente, mas sem relação com o sinistro em causa nos autos. Responsabiliza-se o comitente pelos danos que o comissário causar, sem especificar qualquer atributo ou qualidade da pessoa que sofre esses danos, o que permite concluir ser intenção do legislador que beneficiem do referido regime todos os lesados independentemente das suas condições pessoais ou relações profissionais, pois na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, não tendo o tribunal qualquer competência para introduzir nos regimes legais restrições não plasmadas pelo legislador de forma directa ou decorrente dos princípios que informam o nosso ordenamento jurídico.

Como adequadamente ponderado no acórdão recorrido «(…) está apurado que o acidente que vitimou DD, como se conclui no processo criminal, decorreu do facto ilícito e culposo do funcionário da R., que ali foi condenado, e não de qualquer actuação do falecido, o que constitui facto incontrovertido nos autos.

(…) a norma do artigo 500º do Código Civil apenas fixa a responsabilidade do comitente pelos actos do comissário perante qualquer outra pessoa lesada, (…)

considerando-se estarem reunidos os pressupostos de aplicação do artigo 500º do Código Civil, a R. responde pelo pagamento das indemnizações aos AA. fixadas na decisão criminal, a título de dano morte e pelos danos não patrimoniais sofridos pela vítima e, bem assim, pelos danos não patrimoniais dos aqui AA., fixados na decisão do processo criminal n.º 113/09.3..., da Vara Mista do Tribunal Judicial de ...»

Improcede, pois, a revista, impondo a confirmação do acórdão recorrido.


***


III – Deliberação

Pelo exposto acorda-se em negar a revista.

Custas pelo recorrente.


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Lisboa, 28 de Maio de 2025

Ana Paula Lobo (relatora)

Isabel Salgado

Carlos Portela