Sumário
I. Quando não haja razões para duvidar de que, nas passagens da petição inicial em que se refere também à “sucursal”, a intenção da autora é de demandar esta enquanto “desdobramento” da ré, sociedade comercial, não pode julgar-se verificada a excepção dilatória de falta de personalidade judiciária.
II. Tal como ocorre com as acções colectivas, a acção popular tem uma natureza que não se presta à aplicação estrita do princípio da adesão, pelo que não pode julgar-se verificada a excepção dilatória de incompetência em razão da matéria do tribunal cível com fundamento na violação do artigo 71.º do CPP.
Decisão Texto Integral
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I. RELATÓRIO
Recorrente: Citizens’Voice – Consumer Advocacy Association
Recorrida: Pingo Doce – Distribuição Alimentar, S.A.
1. Em 17.09.2024 proferiu o Juízo Central Cível de Braga a seguinte decisão:
“Despacho Saneador:
Fixa-se o valor da causa em € 60.000,00 – art. 306º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C.
Citizens´Voice – Consumer Advocacy Association intentou a presente ação popular contra o Pingo Doce – Distribuição Alimentar, SA., com sede na rua Ator António Silva, 7, Lumiar, Lisboa, alegando, em suma, que a ré, na sua loja de venda ao público sita na rua de ..., ..., ..., Braga, vendeu, desde 04.07.2023, pelas 08h00, até, pelo menos, 13.07.2023, pelas 21h00, embalagens de pêssego paraguaio a granel, ervas aromáticas 28 gramas da marca Maggi e cerveja sem álcool, pack 6x35,5cl, marca Corona Extra, por preço superior ao que constava nos letreiros elaborados por si.
Mais alegou que tal comportamento da ré consubstancia especulação de preços, publicidade enganosa e uma prática comercial desleal e restritiva da concorrência, as quais se entrecruzam, de modo secante, na defesa do consumidor.
Por último, invocou que o referido comportamento da ré é aquele que esta adota para com todos os consumidores, seus clientes, sendo que aquela tem sido condenada por comportamentos consubstanciados em práticas restritivas da concorrência consubstanciados na divergência entre os preços publicitados e os preços efetivamente cobrados referente a vários produtos por si comercializados.
A autora pediu, assim, além do mais, a condenação da ré no pagamento de uma indemnização aos autores populares pelos danos que lhes foram causados pelas práticas ilícitas, decorrentes do “sobrepreço” dos produtos supra identificados.
Por despacho datado de 04 de outubro de 2023, o Tribunal decidiu que o juízo central cível de Braga era incompetente em razão do território, o que não mereceu a concordância do Exm.º Senhor Juiz Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães, em sede de reclamação deduzida pela autora, ao abrigo do disposto no art. 105º, n.º 4, do C.P.C., que perfilhou entendimento contrário, resolvendo definitivamente essa questão.
O processo prosseguiu a sua tramitação legal, tendo a ré, na sequência da sua citação, deduzido contestação na qual veio arguir a nulidade do processado por falta de citação para essa reclamação.
Ora, como é bom de ver, a ré ainda não tinha sido citada para a presente ação quando o Tribunal apreciou e decidiu a questão da competência territorial, como podia fazê-lo oficiosamente no caso em análise.
Deste modo, julga-se improcedente a arguida nulidade de falta de citação.
Notifique.
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade.
A ré veio invocar a incompetência deste juízo central cível em razão da matéria, alegando que a presente ação deveria ser apreciada e decidida por um juízo criminal, uma vez que a matéria vertida na petição inicial consubstancia a prática de um crime de especulação, uma contraordenação de publicidade enganosa e outras práticas contraordenacionais.
Ora, a competência do tribunal é determinada em função dos termos em que o autor define a ação, devendo atender-se para este efeito à causa de pedir e aos pedidos que são formulados.
Apesar da natureza da matéria explanada na petição inicial, a autora não estava inibida de propor uma ação popular, através da qual pretende que a ré seja condenada e reparar as lesões nos direitos e interesses dos autores populares, nomeadamente dos seus interesses económicos e sociais, enquanto consumidores.
A ação popular segue os termos de uma ação declarativa com processo comum, o que determina a competência deste Tribunal - art. 12º n.º 2 da Lei n.º 83/95 de 31 de agosto, art. 546º n.º1 e 2 do Cód. de Processo Civil e art. 117º nº1 al. a) da Lei n.º 62/2013 de 26 de agosto).
Em face do exposto, o juízo central civil é o materialmente competente para preparar e decidir uma ação popular nos termos instaurados pela autora.
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a exceção de incompetência deste juízo central cível em razão da matéria.
O Tribunal é, assim, competente em razão da matéria e da hierarquia.
A ré veio arguir a incompetência territorial deste Tribunal.
Por despacho datado de 04 de outubro de 2023, o Tribunal decidiu que o juízo central cível de Braga era incompetente em razão do território, o que não mereceu a concordância do Exm.º Senhor Juiz Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães, em sede de reclamação deduzida pela autora, ao abrigo do disposto no art. 105º, n.º 4, do C.P.C., que perfilhou entendimento contrário, resolvendo definitivamente essa questão.
Nestes termos, nada mais há a decidir quanto a esta questão.
O Tribunal é, pois, competente em razão do território.
A ré veio invocar, ao abrigo do disposto no art. 186º, n.º 2, al. a), do C.P.C, a ineptidão da petição inicial por ininteligibilidade da causa pedir e do pedido, porque, atendendo ao que foi alegado pela autora, não é possível determinar quais os sujeitos abrangidos pela ação popular e os factos em que fundamenta os pedidos de “danos de distorção da equidade da concorrência” e “enriquecimento sem causa”.
Ora, analisada a contestação apresentada, verifica-se que a ré interpretou convenientemente a petição inicial, alcançando o pretendido pela autora.
Dispõe o art. 186º, n.º 3, do C.P.C que “Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.”.
Face ao exposto, julga-se improcedente a nulidade de ineptidão da petição inicial que foi invocada pela ré.
Não há nulidades que invalidem todo o processo.
A autora propôs a presente ação contra a “sucursal” da ré localizada na loja de venda ao público sita na rua de ..., Braga.
Na sequência da notificação efetuada pelo Tribunal, no sentido de juntar aos autos documento comprovativo do respetivo organograma oficial e público, bem como documento do qual resulte a natureza jurídica dos seus estabelecimentos comerciais/lojas abertos ao público em todo o país e seus poderes de decisão, a ré veio esclarecer a ref. ...32 que:
“Todas as 471 lojas com a insígnia “Pingo Doce” (supermercados e hipermercados) são estabelecimentos comerciais, constantes do cadastro comercial ora gerido pela Direção-Geral das Atividades Económicas, como é o caso do supermercado “Pingo Doce” sito na Rua de ..., Braga (cf. registo que se junta).
Todos os supermercados e hipermercados “Pingo Doce” – explorados por esta sociedade anónima com sede em Lisboa, na qual se encontram todos os seus órgãos e direções – são estabelecimentos comerciais, entendidos como meras universalidades de facto, nos quais não existe qualquer órgão de administração, não são sujeitos de relações tributárias nem têm contabilidade própria.
Às gerências de loja cabe gerir e coordenar a atividade do respetivo supermercado, de acordo com as normas internas e instruções centrais da Administração da sociedade e das Direções, as quais se encontram na sede da sociedade e corporizam a estrutura central da empresa. Assim, por exemplo, quanto à precificação de produtos, a determinação e alteração de preços cabe à estrutura central da empresa, que também comunica eletronicamente os preços e as etiquetas a imprimir para os terminais existentes em cada loja. À gerência de loja e à sua equipa compete executar as operações para precificação, ou seja e para o que releva para o caso, imprimir, afixar ou substituir as etiquetas, de acordo com os procedimentos operacionais pré-estabelecidos pela estrutura central.
(…)
1. Os supermercados e hipermercados “Pingo Doce” não são sucursais.
2. A Ré não tem sucursais, uma vez que não possui localmente órgãos de administração, os quais se encontram centralizados na sua sede, em Lisboa.
3. O alegado facto ilícito (que não se confunde com o alegado dano) teria sido, quando muito, perpetrado pela Ré na sua sede, com o procedimento acima referido.”
Notificada do teor destes esclarecimentos, a autora não deduziu qualquer oposição, nem impugnou os factos neles contidos.
Assim sendo, importa verificar se a ré dispõe de personalidade judiciária.
E neste exercício transcreve-se o que foi decidido no processo que correu termos neste juízo central cível de Braga, J1, sob o n.º 4927/23.3... – decisão datada de 15 de janeiro de 2024-, proposto igualmente pela Citizens` Voice – Consumer Advocacy Association contra o Lidl & Companhia, designadamente uma alegada “surcursal” com estabelecimento sito em Braga:
“O art. 13º nº1 do Cód. de Processo Civil reconhece a personalidade judiciária das sucursais, agência, filiais, delegações ou representações quando a ação proceda de facto por elas praticado.
As sucursais consistem numa forma local de representação de uma sociedade (empresa matriz).
O estabelecimento comercial consiste numa organização complexa de elementos corpóreos e incorpóreos (fatores de produção) destinada ao exercício de uma atividade económica.
E tal como acontece com o estabelecimento comercial, as sucursais dispõem de um conjunto de elementos destinados ao exercício da sua atividade, mas caracterizam-se por terem uma ampla autonomia. As sucursais têm liberdade de gestão e atuação, sendo referidas habitualmente como um centro autónomo de negócios e uma sede secundária da sociedade. Existe ainda outro aspeto em que o estabelecimento comercial se distingue das sucursais. A finalidade do estabelecimento comercial consiste na captação de clientes. É para conseguir mais clientes que é constituído um estabelecimento comercial ou, inclusivamente, um conjunto de estabelecimentos comerciais. Por seu lado, a finalidade das sucursais consiste na representação da sociedade. A sociedade constitui uma ou várias sucursais para estar melhor representada numa determinada área geográfica, atribuindo-lhes a exploração do seu negócio nessa área.
Transpondo estes princípios para o caso dos autos, entendemos que não existe uma sucursal da ré na cidade de Braga.
É do conhecimento público (facto notório) que a ré dispõe de uma rede de estabelecimentos comerciais que cobre a totalidade do território nacional. Esta rede nada tem a ver com a representação da sociedade, mas apenas com a captação de clientes. É por este motivo que a ré dispõe de mais do que um estabelecimento comercial na mesma cidade, como acontece em Braga, o que seria incompreensível se estivesse em causa uma forma local de representação.
Acresce que os estabelecimentos comerciais da ré não têm liberdade de gestão e atuação e não podem ser considerados centros autónomos de negócios. A forma de atuação da ré é definida centralmente. Os estabelecimentos comerciais não têm liberdade para a fixação dos preços, não contratam com fornecedores, não podem contratar trabalhadores e não têm autonomia financeira, estando, pelo contrário, sujeitos a uma obrigação de reporte em relação à ré.
Finalmente, não pode afirmar-se que os estabelecimentos comerciais da ré dispõem de uma administração própria, mas apenas, como acontece habitualmente em situações idênticas, de uma direção de loja. Esta direção é responsável por garantir o funcionamento diário do estabelecimento comercial e não por tomar decisões relativamente à sua gestão.
Estando em causa um estabelecimento comercial verifica-se a falta de personalidade judiciária, porquanto, ao contrário do que acontece com as sucursais nas circunstâncias previstas no art. 13º nº1 do Cód. de Processo Civil, os estabelecimentos comerciais não têm personalidade judiciária e não podem demandar ou ser demandados.
A falta de personalidade judiciária das sucursais pode ser sanada mediante a intervenção da administração principal e a ratificação ou a repetição do processo (art. 14º do Cód. de Processo Civil).
Entendemos que este regime não deve ser aplicado nos presentes autos. Com efeito, não se verifica a mera falta de personalidade judiciária pela inexistência de uma sucursal da ré. O que ocorre é uma situação distinta e bem mais gravosa em que a autora estruturou toda a ação (incluindo para o efeito da competência do tribunal) com base no entendimento de que existia uma sucursal da ré e que era esta sucursal que pretendia demandar, afirmando expressamente que não estava a demandar a sociedade. A substituição da sucursal pela administração principal da sociedade significava não apenas uma alteração formal da demandada, mas uma substituição da ação por outra que a autora afirmou com toda a clareza que não correspondia ao que pretendia.”.
Esta decisão, objeto de recurso, foi inteiramente confirmada pelo douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido no dia 20.06.2024, do qual se retira que:
“É do conhecimento público (facto notório) que a ré dispõe de uma rede de estabelecimentos comerciais que cobre a totalidade do território nacional. Esta rede nada tem a ver com a representação da sociedade, mas apenas com a captação de clientes. É por este motivo que a ré dispõe de mais do que um estabelecimento comercial na mesma cidade, como acontece em Braga, o que seria incompreensível se estivesse em causa uma forma local de representação. Acresce que os estabelecimentos comerciais da ré não têm liberdade de gestão e atuação e não podem ser considerados centros autónomos de negócios. A forma de atuação da ré é definida centralmente. Os estabelecimentos comerciais não têm liberdade para a fixação dos preços, não contratam com fornecedores, não podem contratar trabalhadores e não têm autonomia financeira, estando, pelo contrário, sujeitos a uma obrigação de reporte em relação à ré. E que “estando em causa um estabelecimento comercial verifica-se a falta de personalidade judiciária, porquanto, ao contrário do que acontece com as sucursais nas circunstâncias previstas no art. 13º n.º 1 do Cód. de Processo Civil, os estabelecimentos comerciais não têm personalidade judiciária e não podem demandar ou ser demandados”.
(…)
No caso dos autos, pensamos ser pacífico que a “sucursal da ré sita em Braga” não constitui nem uma verdadeira sucursal, nem uma agência, filial, delegação ou representação.
O art. 13º,1 do Código das Sociedades Comerciais dispõe que sem dependência de autorização contratual, mas também sem prejuízo de diferentes disposições do contrato, a sociedade pode criar sucursais, agências, delegações ou outras formas locais de representação, no território nacional ou no estrangeiro.
Do art. 136º CPC para o art. 13º CSC nota-se o desaparecimento da referência a filial, conceito hoje normalmente entendido como referindo-se a entidades com personalidade jurídica, ao contrário as “representações” do art. 13º CSC são desprovidas de personalidade jurídica.
Ora, aceitando o alegado nos pontos 3 a 14 da resposta da ré à questão da falta de personalidade judiciária, como nos parece de aceitar, e que a própria autora também se apressou a aceitar, assimilando ou procurando logo assimilar para a sua pretensão que as decisões são todas tomadas a nível central e não a nível local, temos assim como adquirido que a alegada sucursal da ré, sita na Rua Américo Rodrigues Barbosa, 29, 4710-008, distrito de Braga, não é nenhuma sucursal, não passando de um estabelecimento comercial da sociedade comercial LIDL & Companhia, S.A.
Ora, o estabelecimento comercial é pacificamente reconhecido como sendo uma universalidade de facto e de direito. Esta realidade a que se chama estabelecimento comercial é constituída por vários elementos variáveis e como afirma o Prof. Ferrer Correia “não compreende só as mercadorias, matérias primas, máquinas, os instrumentos produtivos, mas também bens imateriais (créditos, marcas, patentes de invenção, o nome comercial, o direito de uso e fruição de um imóvel por virtude da celebração de um contrato de locação, e certas situações ou relações de facto com relevo económico (o crédito de que goza o estabelecimento, a clientela que possui) – enfim, o aviamento da empresa” (“Lições de Direito Comercial”, vol I, pág. 229). E é unanimemente também considerado que o estabelecimento comercial não goza de personalidade jurídica, e, logo judiciária. Como tal, é insuscetível de ser demandado (acórdãos da Relação de Lisboa de 17/12/2008 e de 2/7/2009). (…)
Concluímos, pois, que a autora intentou a ação contra entidade que não goza de personalidade judiciária”.
O Tribunal partilha o entendimento constante nas decisões acima citadas, inteiramente aplicável ao caso sub iudice, atendendo à situação idêntica entre o estabelecimento comercial do Lidl & Companhia em causa no referido processo e o estabelecimento comercial do Pingo Doce, SA demandado na presente ação.
A falta de personalidade judiciária das sucursais pode ser sanada mediante a intervenção da administração principal e a ratificação ou a repetição do processo - art. 14º do Código de Processo Civil.
Este regime não deve ser, porém, aplicado nos presentes autos.
Note-se que a autora estruturou toda a ação - nomeadamente para o efeito da competência territorial do Tribunal, o que foi atendido pelo Exm.º Senhor Juiz Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães na decisão proferida em sede de reclamação deduzida ao abrigo do disposto no art. 105º, n.º 4, do C.P.C- com base no entendimento de que existia uma sucursal da ré e que era esta sucursal que pretendia demandar, afirmando expressamente que não estava a demandar a sociedade. A substituição da sucursal pela administração principal da sociedade significava não apenas uma alteração formal da demandada, mas uma substituição da ação por outra que a autora afirmou com toda a clareza que não correspondia ao que pretendia.
Nestes termos, resta concluir que a falta de personalidade judiciária consiste numa exceção dilatória que é de conhecimento oficioso e implica a absolvição da instância - arts. 576º n.º1 e 2, 577º al. c) e 578º do Cód. de Processo Civil.
Pelo exposto, o Tribunal julga verificada a exceção dilatória de falta de personalidade judiciária da ré e, em consequência, absolve-a da instância.
Custas a cargo da autora, fixando-se o seu montante em metade das custas que normalmente seriam devidas - art. 20º n.º 3 da Lei n.º 83/95 de 31 de agosto.
Registe e notifique.
Em face do supra decidido, o Tribunal considera prejudicadas todas as demais questões suscitadas nos presentes autos – art. 608º, n.º 2, do C.P.C.”.
2. Inconformada com esta decisão, vem a autora Citizens’Voice – Consumer Advocacy Association interpor recurso de revista per saltum para este Supremo Tribunal de Justiça, “ao abrigo nos artigos 627, 629 (1), 631, 637, 639, 672, 675, 678 (1) aplicável ex vi artigo 644 (1, a) e 678 (3), todos do CPC”.
Pugna pela revogação daquela decisão e pelo proferimento de outra que mande a acção baixar à 1.ª instância para aí prosseguir os seus termos, concluindo as suas alegações com as seguintes conclusões:
“1. Os autores populares, ora recorrentes, notificados do douto despacho proferido nos presentes autos e não se conformando com o mesmo, vêm interpor RECURSO DE REVISTA PER SALTUM, sobre a matéria de direito, nos termos e ao abrigo nos artigos 627, 629 (1), 631, 637, 639, 672, 675, 678 (1) aplicável ex vi artigo 644 (1, a) e 678 (3), todos do CPC, diretamente para este COLENDO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
2. O tribunal a quo, ponderada toda a matéria de facto e de direito, decidiu proferir a decisão de julgar verificada a exceção dilatória de falta de personalidade judiciária da ré e, em consequência, absolver a mesma da instância, por entender que o estabelecimento comercial da ré, não é uma sucursal.
3. Ressalvado o devido respeito, que é o maior, o tribunal recorrido decidiu sem o acerto e ponderação que se lhe exigia o caso sub judice.
4. Assim, a única questão que importa que este Colendo Supremo Tribunal de Justiça se ocupe de responder é a de saber contra quem se dirige a ação e, então, verificar se tal sociedade, contra quem a ação foi dirigida, tem ou não personalidade jurídica, isto sem prejuízo da apreciação dos valores inerentes ao princípio da economia processual e aproveitamento dos atos praticados.
5. A ação foi proposta, tal como consta no formulário e na petição inicial, contra a sociedade PINGO DOCE – DISTRIBUIÇÃO ALIMENTAR, S.A., pessoa coletiva 500829993 e matriculada com o mesmo número na conservatória do registo comercial de Lisboa tem sede Rua Actor António Silva, n.º 7, em Lisboa.
6. Sociedade que existe e tem personalidade jurídica e judiciária.
7. Foi essa sociedade que contestou, adotando um comportamento processual de ré, perfeitamente identificada, defendo inclusivamente isso logo nos artigos 48 e 50 da sua douta contestação.
8. Tudo isto, sem prejuízo dos autores terem sustentado na petição inicial, que a ação era movida contra os factos praticados na sucursal da supra referida sociedade, com estabelecimento em Rua de ..., distrito de Braga, por ter sido nesse estabelecimento que os comportamentos ilícitos foram observados e por acreditaram os autores tratar-se de uma sucursal e não apenas de um mero estabelecimento comercial.
9. Assim, constatando o preenchimento, no formulário Citius, do nome da sociedade Pingo Doce… e na morada a sua sede, isto tudo no campo destinado à identificação dos réus, é a prevalência do formulário, assinalada no artigo 7 (2) da portaria 280/2013, que conta.
10. Em qualquer caso, salvo douta e melhor opinião, o tribunal a quo deveria ter adotado uma solução que favorecesse a economia processual e o aproveitamento dos atos praticados – o que é incompatível com a sentença proferida e com a postura e posição processual adotada pela ré, que reconhece o engano dos autores na qualificação do aludido estabelecimento como sucursal e, sempre se defendeu, assumindo que era a sociedade que consta no formulário Citius a ré, ou seja, ela própria e não uma qualquer outra pessoal (sucursal) inexistente.
11. Destarte, pugna-se pela procedência do recurso”.
3. Notificado destas alegações, vem o Ministério Público alegar que não se confirma a falta do pressuposto processual ou, então, que ela teria ficado sanada, concluindo o seguinte:
“1.º O douto despacho saneador/sentença, ora em crise, concluiu pela falta de personalidade judiciária da Ré (no pressuposto que a demandada foi a “sucursal” da ré localizada na loja de venda ao público sita na rua de ..., Braga do PINGO DOCE – DISTRIBUIÇÃO ALIMENTAR, SA.,).
2.º Porém, perfazendo uma simples análise da petição inicial, verifica-se a ação foi proposta, tal como consta do respetivo formulário e da identificação das partes da própria peça processual, contra a sociedade PINGO DOCE – DISTRIBUIÇÃO ALIMENTAR, S.A., pessoa coletiva 500829993 e matriculada com o mesmo número na conservatória do registo comercial de Lisboa tem sede Rua Actor António Silva, n.º 7, em Lisboa.
3.º Ainda que se entendesse que a ação foi intentada contra a “sucursal”, nada impedia a substituição processual da sucursal ou agência demandada pela sociedade ou pessoa colectiva, a quem respeita a relação jurídica.
4.º A referida substituição pode - e deve - ter lugar por iniciativa do Juiz, fazendo uso dos poderes-deveres de gestão processual/adequação formal (artigos 6.º e 590.º, n.º 2, alínea a), do Código Processo Civil).
5.º O dever de gestão processual exposto no artigo 6º do Código de Processo Civil deverá ser satisfeito no contexto do rito processual legal preexistente, nocaso, o disposto noartigo 14.º e 590.º, n.º 1 e 2, alínea a), ambos do Código Processo Civil.
6.º Assim, ao proferir o douto despacho saneador /sentença em crise sem previamente ter providenciado pelo suprimento da falta de personalidade judiciária da Ré, o Tribunal “a quo” formou precipitadamente a sua convicção, omitindo “iter” processual legalmente exigível”.
4. A ré Pingo Doce – Distribuição Alimentar, S.A., vem responder às alegações, argumentando a favor da manutenção da decisão de falta de personalidade judiciária.
5. A ré Pingo Doce – Distribuição Alimentar, S.A., vem ainda interpor recurso per saltum subordinado, “nos termos do artigo 633.º, n.ºs 1 e 2 do CPC”.
Pugna pela revogação do despacho recorrido e pela sua substituição por Acórdão que, julgando procedente a excepção de incompetência material, declare o Juízo Central Cível de Braga e incompetente e absolva a ré da instância.
Conclui as suas alegações nos seguintes termos:
“1º. A fundamentação da sentença padece de error in procedendo, pois não se alcança qual o silogismo prosseguido para a afirmação “[a]pesar da natureza da matéria explanada na petição inicial, a autora não estava inibida de propor uma ação popular, através da qual pretende que a ré seja condenada e reparar as lesões nos direitos e interesses dos autores populares, nomeadamente dos seus interesses económicos e sociais, enquanto consumidores”.
2º. A douta sentença recorrida padece ainda de evidente erro de julgamento quando se afirma que “[a] ação popular segue os termos de uma ação declarativa com processo comum, o que determina a competência deste Tribunal - art. 12º n.º 2 da Lei n.º 83/95 de 31 de agosto, art. 546º n.º1 e 2 do Cód. de Processo Civil e art. 117º nº1 al. a) da Lei n.º 62/2013 de 26 de agosto)”, pois parece, deste modo, estar a determinar a competência material em função da espécie e forma de processo, o que, evidentemente, carece de fundamento normativo.
3º. A Autora pede pela presente ação popular que se declare que a Ré cometeu um crime de especulação e as contraordenações de publicidade enganosa e práticas comerciais desleais e restritivas da concorrência, sustentando os pedidos indemnizatórios na violação das disposições legais que preveem aqueles tipos legais de ilícito.
4º. O crime de especulação, previsto e punido pelo artigo 35.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, é um crime público, para cuja apreciação são competentes os juízos criminais.
5º. É, também, um crime de denúncia obrigatória (cf. artigo 286.º, n.º 1, al. b) do CPP), tendo, aliás, nestes autos, sido entregue certidão ao Ministério Público para instauração de procedimento criminal.
6º. Quanto aos ilícitos contraordenacionais, aplicar-se-á a regra da competência das autoridades competentes para o processo criminal (cf. artigo 38.º, n.ºs 1 e 3 do Regime Geral das Contraordenações e Coimas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro).
7º. Assim, é manifesto que o Juízo Central Cível de Braga é materialmente incompetente para conhecer do pedido formulado nos pontos A a H do petitório.
8º. Acresce que, vigorando no nosso ordenamento o princípio da adesão obrigatória (artigo 71.º do CPP), os pedidos de indemnização formulados pela Autora nesta ação (pontos I a Y), assentes da alegada prática de um crime de especulação e das contraordenações que identifica, teriam de ser necessariamente processados juntamente com a ação penal.
9º. Por conseguinte, o juízo central cível é incompetente em razão da matéria para julgar esta acção popular em que se imputa à ré a prática de um crime de especulação e vários ilícitos contraordenacionais e se pede a sua condenação em indemnização pela prática desses ilícitos.
10º. Por conseguinte, afigura-se que ao julgar improcedente a exceção de incompetência material, o Tribunal recorrido terá violado os artigos os artigos 118.º a contrario 130.º da LOSJ e os artigos 16.º e 71.º do CPP”.
6. A autora Citizens’Voice – Consumer Advocacy Association vem, por sus vez, apresentar contra-alegações, sustentando a falta de fundamento e a improcedência deste recurso subordinado.
7. Os dois recursos foram mandados subir por despacho proferido no Juízo Central Cível de Braga.
*
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir, in casu, são as de saber se:
Do recurso independente da autora
1.ª) se a demandada carece de personalidade judiciária; e
Do recurso subordinado da ré
2.ª) se o tribunal cível (in casu: o Juízo Central Cível de Braga) carece de competência material para a presente acção.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Os factos relevantes para a decisão dos presentes autos são os constantes do precedente Relatório.
O DIREITO
Nota prévia
Estão em causa dois recursos – um recurso independente da autora e um recurso subordinado da ré. Foram ambos interpostos per saltum, conforme previsto no artigo 678.º do CPC.
O artigo 678.º, n.º 1, do CPC tem o seguinte teor:
“As partes podem requerer, nas conclusões da alegação, que o recurso interposto das decisões referidas no n.º 1 do artigo 644.º suba diretamente ao Supremo Tribunal de Justiça, desde que, cumulativamente:
a) O valor da causa seja superior à alçada da Relação;
b) O valor da sucumbência seja superior a metade da alçada da Relação;
c) As partes, nas suas alegações, suscitem apenas questões de direito;
d) As partes não impugnem, no recurso da decisão prevista no n.º 1 do artigo 644.º, quaisquer decisões interlocutórias”.
Os requisitos indicados nesta norma são cumulativos, o que significa que têm de estar reunidos para que seja admitido o recurso per saltum.
Sendo possível dá-los por verificados em ambos os casos, decide-se, nos termos do artigo 678.º, n.º 5, do CPC, julgar admissível o presente recurso per saltum.
A terminar, diga-se apenas que, relativamente ao recurso subordinado da ré (cfr. artigo 633.º do CPC), cabe notar que, logicamente, a questão nele suscitada só pode ser apreciada se for julgada procedente a questão suscitada no recurso independente da autora.
1. Da entidade demandada e da sua personalidade judiciária
Olhando para o caso em mãos, e como decorre da decisão anteriormente transcrita, o Tribunal recorrido entendeu que a autora intentou a acção contra a “sucursal” do Pingo Doce, o que significa contra o estabelecimento comercial do Pingo Doce, S.A., e que, não gozando este de personalidade judiciária, nem podendo esta falta ser sanada, não restava senão dar por verificada uma excepção dilatória e absolver a ré da instância.
A autora contrapõe que, tal como consta do formulário Citius e da petição inicial, a acção foi proposta contra a sociedade Pingo Doce – Distribuição Alimentar, S.A., que não carece de personalidade judiciária. Ainda que assim não fosse, o tribunal a quo deveria, em sua opinião, ter adoptado uma solução em conformidade com o princípio da economia processual e a necessidade de aproveitamento dos actos praticados. Em todas estas suas alegações, a autora é secundada pelo Ministério Público.
Cabe esclarecer a situação, impondo-se apurar contra quem propôs a autora, afinal, a presente acção e se esta entidade é titular de personalidade judiciária.
A personalidade judiciária vem definida no artigo 11.º, n.º 1, do CPC como a susceptibilidade de ser parte.
Como dizem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, numa visão teleológica da relação jurisdicional, ela é o primeiro dos pressupostos processuais e consiste, mais precisamente, na possibilidade de requerer ou de contra si ser requerida, em próprio nome, qualquer das providências de tutela jurisdicional reconhecidas na lei; as partes ficam, em regra, identificadas no começo da acção, através da petição inicial, mas outras pessoas ou entidades podem assumir essa qualidade no decurso da acção, em lugar daquelas ou ao lado delas1.
O princípio fixado na lei é o da coincidência entre a personalidade jurídica e a personalidade judiciária (cfr. artigo 11.º, n.º 2, do CPC), do qual decorre a regra de que tem personalidade judiciária quem tem personalidade jurídica.
Analisando a petição inicial, verifica-se que, logo a abrir, é dito:
“CITIZENS' VOICE - CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION et al. vêm, ao abrigo do artigo 31, do Código de Processo Civil (“CPC”), e artigos 2 (1), 3 e 12, da lei 83/95, e artigo 3 e 19, da lei 23/2018, intentar ACÇÃO DECLARATIVA POPULAR DE CONDENAÇÃO, SOB A FORMA ÚNICA DE PROCESSO, nos termos do disposto do artigo 548, aplicável ex vi, artigo 546 (2), ambos do CPC, contra PINGO DOCE – DITRIBUIÇÃO ALIMENTAR, S.A., (doravante apenas “ré”)”.
Depois, na parte reservada à identificação da ré, é referido:
“PINGO DOCE – DISTRIBUIÇÃO ALIMENTAR, SA., (doravante apenas “ré”), pessoa coletiva 500829993 e matriculada com o mesmo número na conservatória do registo comercial de Lisboa, tem sede na Rua Actor António Silva, 7, 1649-033, Lumiar, distrito de Lisboa” (cfr. § 1, artigo 19.º da p.i).
Acresce que as referências contidas em numerosos pontos do articulado demonstram, sem margem para dúvidas, que a autora identifica como ré a Pingo Doce – Distribuição Alimentar, S.A. São elas, designadamente, as seguintes:
- “A ré dedica-se, nomeadamente, à distribuição alimentar, por intermédio de venda ao público no mercado nacional de distribuição retalhista de base alimentar” (cfr. § 1, artigo 23.º da p.i.).
- “A ré é um dos maiores operador na distribuição alimentar a retalho, detendo, nesse posicionamento de mercado, uma posição de domínio” (cfr. § 1, artigo 26.º da p.i.).
- “(…) a ré dedica-se comercialmente à venda ao público, no mercado nacional de distribuição retalhista, de produtos alimentares, nomeadamente na sua sucursal, com estabelecimento na Rua de ..., Braga, Portugal” (cfr. § 2, artigo 27.º da p.i.).
- “São factos a identidade das partes conforme § 1 supra e que aqui se dão como reproduzidos, nomeadamente, mas não exclusivamente, que ré se dedica à distribuição alimentar, por intermédio de venda ao público no mercado nacional de distribuição retalhista de base alimentar, facto que é público e notório, não carecendo de prova e nem de alegação, uma vez que são do conhecimento geral” (cfr. § 3, artigo 36.º da p.i.).
- “A ré comercializa produtos alimentares e não alimentares na sua loja de venda ao público, localizada na Rua de ..., Braga, Portugal” (cfr. § 3, artigo 37.º da p.i.).
- “Como já supra referido no § 1:
1. a ré detém uma posição dominante nos mercados relevantes;
2. A ré é um dos maiores operador na distribuição alimentar a retalho, detendo, nesse posicionamento de mercado, uma posição de domínio” (cfr. § 4, artigo 55.º da p.i.).
- “a) Qualificação da ré
A ré é uma pessoa coletiva que exerce, com carácter profissional, em Portugal, um Estado membro na União Europeia, uma atividade económica que visa a obtenção de benefícios, por intermédio da venda ao público de produtos alimentares, estando por isso sujeita, em especial, ao disposto nos artigo 35 (1, c), do decreto lei 28/84, artigo 6, 10, 11 (1), 12, do decreto lei 330/90, artigo 311 (1, a, e), do decreto lei 110/2018, artigos 4, 5 (1), 6 (b), 7 (1, b, d), 9 (1, a), do decreto lei 57/2008, artigos 3 (a) (d) (e) (f), 4, 7 (4) e 8 (1, a, c, d) (2), da lei 24/96, artigo 11, da lei 19/2012, artigos 6, 7 (1) (2) e 8, da diretiva 2005/29/CE, artigo 3, da diretiva 2006/114/CE, artigos 2 (a) (b), 4 (1), da diretiva 98/6/CE, diretiva 2014/104/UE e artigo 102, do TFUE, este último por via de ser um dos maiores operadores na distribuição alimentar a retalho, detendo, nesse posicionamento de mercado, uma posição de domínio” (cfr. § 4, artigo 56.º da p.i.).
Por fim, a autora sugere que a citação dos autores populares seja feita nos seguintes termos:
“A CITIZENS’ VOICE – CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION intentou a ação popular, processo [identificar o processo], a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Central Cível de Braga – Juiz [identificar o Juiz], contra PINGO DOCE – DISTRIBUIÇÃO ALIMENTAR, S.A. (…). A causa assenta na imputação à sociedade PINGO DOCE – DISTRIBUIÇÃO ALIMENTAR, S.A., da venda ao público, na loja supra referida, de embalagens (…). O pedido na ação é para que o tribunal declare que o PINGO DOCE, S.A. teve um comportamento (…)” (cfr. § 8 da p.i.).
A “Pingo Doce – Distribuição Alimentar, S.A.” é, como a sua firma indica, uma sociedade anónima, dotada de personalidade jurídica desde a data do registo definitivo do acto pelo qual se constituiu (cfr. artigo 5.º do CSC) e, consequentemente, dotada também de personalidade judiciária.
É verdade que, mais adiante articulado, a autora se refere a uma “sucursal”, com estabelecimento na cidade de Braga mas isso, se bem se entende, porque os actos de que a autora se “queixa” foram praticados no estabelecimento de Braga – porque, como alega a autora, a certa altura da p.i., “os factos que estribam a presente ação foram praticados pelo estabelecimento comercial do Pingo Doce”. Por esta razão, a “sucursal” da ré estabelecida na cidade de Braga estaria, na visão da autora, simultaneamente “envolvida”. É à luz disto que se compreendem afirmações da autora não absolutamente alinhadas com as anteriores, como a de que “a ré é a mesma entidade, que tem sede em Lisboa, tal como identificado no artigo 19, da petição inicial, e sucursal com estabelecimento na morada identificada no artigo 20, da petição inicial, sendo sobre esta última, sucursal que a ação é movida”.
Em suma, não há razões para duvidar de que, nas passagens em que se refere também à sucursal, a intenção da autora é de demandar esta enquanto “desdobramento” da sociedade ré, ou seja, da sociedade Pingo Doce – Distribuição Alimentar, S.A. Não havendo razões para duvidar disto, deve dar-se razão à autora na questão suscitada no presente recurso.
Diga-se ainda que, mesmo que entendesse que a autora havia demandado a exclusivamente a “sucursal” e não – nem sequer adicionalmente – a Pingo Doce – Distribuição Alimentar, S.A., o juiz deveria, em observância do princípio da economia processual, da necessidade de evitar a realização de actos inúteis (cfr. artigo 130.º do CPC) e, acima de tudo, do seu dever de gestão processual [cfr., em especial, os artigos 6.º, n.º 2, e 590.º, n.º 2, al. a), do CPC], considerar a hipótese de suprimento da falta da legitimidade processual nos termos legais aplicáveis2.
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Procedendo a questão do recurso independente, há que apreciar a questão suscitada no recurso subordinado.
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2. Da competência material do tribunal cível
O Tribunal a quo apreciou directamente esta questão, podendo ler-se na decisão recorrida:
“A ré veio invocar a incompetência deste juízo central cível em razão da matéria, alegando que a presente ação deveria ser apreciada e decidida por um juízo criminal, uma vez que a matéria vertida na petição inicial consubstancia a prática de um crime de especulação, uma contraordenação de publicidade enganosa e outras práticas contraordenacionais.
Ora, a competência do tribunal é determinada em função dos termos em que o autor define a ação, devendo atender-se para este efeito à causa de pedir e aos pedidos que são formulados.
Apesar da natureza da matéria explanada na petição inicial, a autora não estava inibida de propor uma ação popular, através da qual pretende que a ré seja condenada e reparar as lesões nos direitos e interesses dos autores populares, nomeadamente dos seus interesses económicos e sociais, enquanto consumidores.
A ação popular segue os termos de uma ação declarativa com processo comum, o que determina a competência deste Tribunal - art. 12º n.º 2 da Lei n.º 83/95 de 31 de agosto, art. 546º n.º1 e 2 do Cód. de Processo Civil e art. 117º nº1 al. a) da Lei n.º 62/2013 de 26 de agosto).
Em face do exposto, o juízo central civil é o materialmente competente para preparar e decidir uma ação popular nos termos instaurados pela autora”.
A ré volta a pôr em causa a competência material, alegando, no seu recurso subordinado, que o presente caso é um dos que estão sujeitos a adesão obrigatória ao processo penal, pelo que se impunha que os pedidos formulados pela autora, de condenação da ré em indemnização pela prática de um crime de especulação e de vários ilícitos contraordenacionais, fossem processados na acção penal. Por conseguinte, o juízo central cível seria incompetente em razão da matéria para julgar esta acção popular.
A autora discorda desta posição. Sustentando ela que, in casu, estão reunidas várias excepções ao princípio da adesão, mais precisamente as previstas nas als. a), d) e i) do n.º 1 do artigo 72.º do CPP. Salienta ela, em primeiro lugar, que passaram mais de oito meses, sem que tenha sido deduzida acusação contra a ré, em segundo lugar, que os factos geradores da responsabilidade civil e da responsabilidade criminal não são necessariamente coincidentes e, finalmente, que os autores populares, não estando ainda completamente identificados, não podem considerar-se informados da possibilidade de deduzirem pedido civil no processo penal.
A verdade é que do disposto no artigo 52.º, n.º 3, da CRP3 e nos artigos 1.º e 12.º, n.º 2, da Lei n.º 83/95, de 31.08 (direito de acção procedimental e de acção popular) resulta que o exercício da acção popular para alguma das finalidades que lhe estão assinaladas, entre as quais a de obter uma indemnização para o lesado ou os lesados, é sempre exercido autonomamente, ainda que, como se diz no artigo 25.º da referida lei, a violação dos interesses previstos no artigo 1.º revista natureza penal.
Nesta medida, é possível dizer que a hipótese a que se dirige o artigo 71.º do CPP (princípio de adesão) é a de um pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime, enquanto o que está em causa na acção popular (e ainda que o único pedido nela deduzido seja a indemnização baseada na violação dos interesses previstos no n.º 1 da Lei n.º 83/95 que revista natureza penal) é o exercício de um direito de natureza distinta – o direito de acção popular. Este é exercido sempre nos termos daquela lei, correspondendo-lhe uma tramitação própria e, em certa medida, autónoma.
Confirma esta leitura o recente regime das acções colectivas para protecção dos interesses dos consumidores – o DL n.º 114-A/2023, de 5.12 –, onde se regulam as numerosas especificidades que as caracterizam4.
Ora, estas acções colectivas são, incontestavelmente, próximas da acção popular, podendo dizer-se que a disciplina delas consubstancia, de certa forma, uma “actualização” da disciplina desta última.
Para isto apontam as palavras de Teixeira de Sousa quando diz:
“A primeira observação que importa fazer respeita ao âmbito sectorial da transposição. Vigorando na ordem jurídica portuguesa uma lei sobre a acção popular – que é a L 83/95, de 31/8
– e destinando-se esta – até por imperativo constitucional (art. 52.º, n.º 3, al. a), CRP) – à defesa, entre outros, dos interesses dos consumidores, poder-se-ia esperar que o legislador nacional
tivesse aproveitado a oportunidade para reformular globalmente a L 83/95. A favor desta reformulação global poder-se-ia invocar não só a própria necessidade de actualizar a L 83/95, como também a vantagem de evitar dois regimes para a acção popular: um regime para a defesa dos interesses dos consumidores e outro regime para a defesa de outros interesses difusos”5.
O que se pretende dizer, enfim, é que a acção popular tem uma natureza que não se presta a ou que se mostra mesmo incompatível com a adesão do pedido de indemnização civil ao processo-crime, pelo que a hipótese da incompetência do tribunal cível com fundamento na sua violação é uma hipótese que deve ser rejeitada.
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III. DECISÃO
Pelo exposto, decide-se:
a) conceder provimento ao recurso independente da autora, revogando-se a decisão de absolvição da instância da ré por falta de personalidade judiciária;
b) negar provimento ao recurso subordinado da ré, confirmando-se a decisão quanto à competência material do tribunal;
c) determinar a baixa ao tribunal recorrido para o prosseguimento dos autos.
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Custas a final.
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Lisboa, 13 de Março de 2025
Catarina Serra (relatora)
Maria da Graça Trigo
Ana Paula Lobo
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1. Cfr. Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra. Coimbra Editora, 1985 (2.ª edição), pp. 107-108.
2. Para um caso (não igual mas próximo) que reclamou a mesma “flexibilidade”, o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 5.12.2019, relatado pela presente relatora.
3. Dispõe-se nesta norma:
“É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para:
a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural;
b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais”.
4. Cfr., sobre este regime e as suas especificidades, Maria José Capelo, “Ações coletivas para defesa dos interesses dos consumidores — Primeiras impressões sobre a transposição portuguesa da Diretiva (EU) 2020/1828”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, 2024, n.º 4045, pp. 250 e s.
5. Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, “A transposição da Diret. 2020/1828 pelo DL 114-A/2023, de 5/12: dúvidas e perplexidades” (https://blogippc.blogspot.com/2023/12/a-transposicao-da-diret-20201828-pelo.html).