Logótipo STJ
Jurisprudência
Sumário

I- Ainda que não se tenha provado a que entidade competia o fornecimento do gás natural que estava presente numa oficina inactiva instalada no fracção do r/ch de um prédio, gás que foi causa de uma explosão que atingiu o autor que passava na rua em frente, verifica-se que a ré abastecia de gás 6 das 9 fracções desse prédio, incluindo as fracções do 1º andar, mais próximas das do r/c (sendo as outras fornecidas por outras duas sociedades);

II- Como assim, se ela não provou que não teve responsabilidade na explosão, deve concluir-se que se verifica o nexo de causalidade entre o risco criado pela ré e os danos sofridos pelo autor e que ela é responsável, nos termos do art. 509º do CC (solidariamente com as outras fornecedoras de gás aqui não demandadas) por tais danos.

Decisão Texto Integral

Revista nº 6314/16.0T8LSB.L1.S1

Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça:


*


AA intentou a presente acção contra Lisboagás – Comercialização, S.A., ... na ..., BB, CC e DD, na qualidade de herdeiros de EE e de FF e GG, pedindo a condenação dos réus a pagarem -lhe as seguintes quantias: € 381,53, a título de reembolso de despesas; € 100.000,00 a título de compensação por danos morais; €25.500,00 (€1.500,00 euros mensais x 17 meses) a título de retribuição que deixou de auferir por força da sua impossibilidade de prestar trabalho, ou à cautela e subsidiariamente, a que o tribunal fixar após determinação da ITT/ITP; montante a liquidar em execução de sentença relativo ao dano biológico corporal e ao grau de incapacidade para trabalho que se apurarem após peritagem; e juros vincendos sobre o montante em dívida desde a citação até efetivo e integral pagamento dos montantes em dívida.

Alega que foi vítima de um acidente que consistiu numa explosão de gás num edifício, no momento em que o autor circulava a pé na via pública, próximo desse mesmo edifício, do qual resultaram danos patrimoniais e não patrimoniais.

Os réus contestaram.

Realizada audiência final, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“Face ao exposto, declara-se a presente acção parcialmente procedente por provada e, em consequência:

Absolvem-se os réus BB, CC e DD; Condomínio do Prédio Sito No N.° ... da Rua ... e GG dos pedidos contra si deduzidos;

Condena-se a ré Lisboagás Comercialização, S.A. nos seguintes pedidos:

o €381,53 (trezentos e oitenta e um euros e cinquenta e três cêntimos) a título de compensação por despesas suportadas pelo autor com a sua recuperação física;

o €9500 (nove mil e quinhentos euros) relativos a danos patrimoniais decorrentes por interrupção ou diminuição da sua capacidade de trabalho;

o €50.000 (cinquenta mil euros) a título de compensação pelo dano biológico sofrido;

o €50.000 (cinquenta mil euros) a título de compensação pelos danos patrimoniais correspondentes a dores físicas e sofrimento psicológico sofrido pelo autor.

A todos os valores acima referidos acrescem juros moratórios à taxa legal para obrigações civis desde a data de citação e até integral pagamento.

Custas por autor e ré sociedade, na proporção de 1/10 e 9/10, sem prejuízo de apoio judiciário..

A ré Lisboagás interpôs recurso de apelação, pedindo a revogação da sentença e a improcedência da acção.

Recebido o recurso no Tribunal da Relação, o relator proferiu despacho determinando a realização de diligências complementares de prova, a saber:

-a obtenção de certidão de registo predial relativa a todas as frações autónomas do edifício dos autos;

-a prestação de informações pela empresa Lisboagás GDL – Sociedade Distribuidora de Gás Natural de Lisboa, S.A.; e

- a prestação de esclarecimentos pela ré e apelante Lisboagás Comercialização, S.A..

Conhecendo do recurso, a Relação definiu assim as questões a apreciar:

“-A impugnação da decisão sobre matéria de facto – Conclusões 2ª a 13ª;

-Saber se os danos sofridos pelo autor, ora apelado podem ser imputados à ré Lisboagás Comercialização, S.A., ora apelante – Conclusões 14ª a 30ª.”

Após, proferiu a seguinte decisão:

“Pelo exposto, acordam os juízes nesta 7ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em:

a) Alterar a decisão sobre matéria de facto, nos termos expostos na fundamentação do presente acórdão;

b) Julgar a apelação procedente, revogando a sentença apelada, na parte em que condenou a apelante , e absolvendo a apelante de todos os pedidos;

Custas relativas à tramitação da causa em primeira instância e na presente apelação (na modalidade de custas de parte) pelo apelado, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.”

Não se conformou o autor que interpôs revista, formulando as seguintes conclusões:

“I - Visa o autor, ora recorrente, a revisão do douto aresto proferido pelo Tribunal da relação de Lisboa, a 06/02/2022 (ref.ª citius ...79), pelo qual se acordou, em suma, revogar a sentença de primeira instância, na parte em que condenou a ora recorrida Lisboagás – Comercialização, S.A., e absolvê-la de todos os pedidos.

II – No que à alteração da matéria de facto preconizada pela ora recorrida tange e após determinação em sede de segunda instância de produção de prova documental suplementar, acordou o tribunal a quo em suprimir facto dado como provado sob ponto 95., - cuja redacção era: «A sociedade Lisboagás Comercialização, S.A. é fornecedora de gás em mercado regulado e sucessora legal de fornecedora de gás em mercado não livre».

III – Tal juízo desconsiderou não só a prova testemunhal produzida em 1.ª instância pelas testemunhas arroladas pela própria ré e que descreveram tal sucessão, como prova documental carreada para os autos atinente a actos societários, bem como Resolução do Conselho de Ministros nº 98/2008, de 23/06.

IV – Como um dos fundamentos para exclusão da recorrida do âmbito da responsabilidade aquiliana (art.º 493.º, n.º 2, do CC) fez-se consignar no aresto em crise que «todo o gás natural que se encontra nas condutas a montante dos contadores é da propriedade das sociedades distribuidoras», quando o quadro legal para o sector da energia, desde há muito, existente impede, inequivocamente, a possibilidade de comercialização, pelas sociedades distribuidoras, de gás natural, conforme decorre desde a exposição de motivos e definição de conceitos ínsita no art.º 3.º do Decreto-Lei n.º 30/2006, de 15/12 e sucessivas alterações e actualmente vertida no art.º 2.º do Regulamento n.º 1129/2020, de 30/12 (Regulamento das Relações Comerciais dos Setores Elétrico e do Gás), além do que decorre da própria Resolução do Conselho de Ministros nº 98/2008, de 23/06, normas que o tribunal a quo não descortinou ou aplicou erradamente (cf. art.º 674.º, n.º 1, al, a) e n.º 2, do CPC), razão pela qual nunca poderia ter concluído que o gás existente nas condutas era propriedade das sociedades distribuidoras e não das comercializadoras.

V - Partindo da alteração à matéria de facto operada quanto ao ponto 90. da vertida na douta sentença de primeira instância, o qual passou a apresentar como redacção:

«91. À data referida em 1., das várias frações autónomas que compunham os 1º, 2º, e andares do prédio ali identificado:

a) As correspondentes ao dto, frte, esq., esq, frte e esq. eram abastecidas de gás canalizado (natural) no âmbito de contratos de fornecimento de gás celebrados com a ré;

b) A correspondente ao dto era abastecida de gás canalizado (natural) no âmbito de contratos de fornecimento de gás celebrado com a E..., S.A.; c) As correspondentes ao frte, e ao dto eram abastecidas de gás canalizado (natural) no âmbito de contratos de fornecimento de gás celebrados com a G..., S.A.»

extraiu tão só a conclusão de que «a não era a única fornecedora de gás ao prédio dos autos», razão pela qual «não é possível imputar à a responsabilidade pelo ressarcimento dos danos sofridos pelo autor em resultado da explosão dos autos»

VI – Ainda que tenha o tribunal a quo secundado a douta conclusão expendida pelo tribunal de primeira instância no sentido de que «perante o lesado, serão responsáveis solidários, à luz da confiança constitucional aplicada à interpretação deste art.º 509.º do CC, fornecedor e distribuidor»

VII – Erradamente e em violação do disposto em art.º 509.º, n.º 1, do CC (cf. art.º 674.º, n.º 1, al. a), do CPC) e enquadramento jurídico amplamente aduzido na sentença de primeira instância, não representou, sequer, a possibilidade da existência de responsabilidade solidária das três sociedades comercializadoras que forneciam, à data, o prédio dos autos.

VIII – Não se pode excluir a responsabilidade da recorrida pelo risco pelo mero facto de não ser a única potenciadora de tal risco, concorrendo, solidariamente para o mesmo com as demais fornecedoras de canalizado ao edifício ao tempo, sendo que no caso dos autos, oito das nove fracções fornecidas de gás natural eram-no por sociedades do grupo G..., S.A., conforme se consignou no acórdão recorrido.

IX - E facto assente e nuclear que não sofreu qualquer alteração 18. A explosão ocorreu em consequência de uma fuga de gás natural fornecido ao prédio, com origem não concretamente apurada;

X – E não menos factual, contrariamente ao concluído pelo tribunal a quo, é que o gás que circulava nas condutas que conduziam o gás ao prédio era propriedade das sociedades comercializadoras.

XI – Ao invés de excluir a responsabilidade da recorrida pelo risco pelo facto de esta não ser a única fornecedora de gás ao prédio, há que estender, com base na factualidade superveniente apurada pelo tribunal a quo, essa responsabilidade, solidariamente, às demais sociedades comercializadoras.

XII– Sendo certo que mesmo sendo tais sociedades, solidariamente, responsáveis a par da ré e da distribuidora, não tinha o recorrente que as chamar aos autos, na medida em que cada um dos responsáveis solidários se encontra obrigado a pagar a totalidade da dívida nos termos do disposto em art.º 512.º, n.º 1, 1ª parte, do CC.

TERMOS EM QUE DEVE O ACÓRDÃO RECORRIDO SER REVOGADO E EM CONSEQUÊNCIA CONFIRMADA A CONDENAÇÃO DA RECORRIDA LISBOAGÁS – COMERCIALIZAÇÃO, S.A. NOS EXACTOS TERMOS DO SEGMENTO DECISÓRIO CONTIDO NA DOUTA SENTENÇA DE PRIMEIRA INSTÂNCIA”

Contra-alegou a recorrida pugnando pela improcedência do recurso.

Cumpre decidir.

O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:

“1. No dia 2/7/2013, pelas 9h30m, ocorreu uma explosão no prédio sito no n.° ... da Rua ... ...;

2. O réu GG era, nessa data, ... do condomínio de tal prédio;

3. Tal explosão teve origem na fração de r/c, constituída por loja, que estava ocupada por oficina de estofador explorada pelo falecido EE;

4. Tal loja corresponde à fração A do prédio descrito sob o n.° ...35da Conservatória do Registo Predial de ...;

5. A aquisição da propriedade desta fração esteve registada desde 1979 a favor de FF, tendo sido inscrita a favor de Banco Santander Totta, S.A., por apresentação de 14/5/2015, em virtude aquisição a EE, CC e BB, herdeiros habilitados daquela;

6. EE, CC e BB foram habilitados como herdeiros de FF em procedimento junto da Conservatória de Registo Civil de ... em 24/3/2015;

7. A aquisição da fração em causa (fração A, prédio ...35 da CRP de ...) está registada a favor do R. GG desde 14/9/2018;

8. EE faleceu a .../4/2019;

9. Era EE que tomava conta da oficina e tratava de todos os assuntos relativos à mesma quando esta estava em funcionamento;

10. FF nunca trabalhou na oficina e a esta não se deslocava com regularidade;

11. A ré Lisboagás - Comercialização, S.A. foi constituída em 24/7/2007 e tem o objeto de compra e venda de gás natural, em regime de comercialização de último recurso retalhista, bem como o exercício das atividades e a prestação dos serviços direta ou indiretamente relacionados;

12. A explosão ocorreu devido à presença de gás no interior de tal oficina;

13. A oficina compõe uma fração integrada no condomínio, com entrada autónoma para a rua;

14. À data da explosão, a oficina encontrava-se encerrada ao público, deslocando-se EE à mesma de forma esporádica;

15. Na oficina onde teve início a explosão há uma tubagem de gás natural, não havendo, à data, fornecimento de gás contratado;

16. O respetivo contador havia sido retirado por serviços da empresa fornecedora de gás e gestora da rede, em data não concretamente apurada, anterior em anos à explosão;

17. Aquando da retirada do contador foi feita uma selagem do tubo de entrada de gás na fração, comprimindo, por achatamento, as respetivas pontas;

18. A explosão ocorreu em consequência de uma fuga de gás natural fornecido ao prédio, com origem não concretamente apurada;

19. A torneira de abertura e corte de gás à fração onde ocorreu a explosão (loja), situada no hall de entrada do prédio, encontrava-se aberta;

20. O acesso a tal torneira está protegido por uma campânula de metal, também conhecida por “olho de boi”;

21. A ignição da explosão deu-se quando EE acedeu ao interior da fração acionou o dispositivo de ligação do quadro elétrico;

22. Nesse momento, produziu-se um arco voltaico que provocou a ignição da mistura explosiva de gás que se encontrava no interior da oficina;

23. À data da explosão, HH vivia na fração correspondente ao r/c esquerdo, antiga casa de porteira, que fora arrendada pelo condomínio.

24. Alguns dias antes da explosão, HH detetou sinais de uma infiltração de água por cima da porta da casa de banho desta fração, da qual deu conhecimento ao réu GG, administrador do condomínio;

25. O réu GG, na qualidade de administrador, solicitou a realização de intervenção na parede da fração com vista a identificar e reparar a infiltração de água;

26. Para o efeito, contratou com pessoa não concretamente apurada a picagem da parede da fração em causa (antiga casa da porteira);

27. Na sequência de tal intervenção de picagem foi furado um cano de abastecimento de gás existente no interior de tal fração;

28. A fração em causa, casa de porteira, mantendo canalização de gás, desde data não apurada situada entre final da década de oitenta e a década de noventa do século XX, que não era abastecida de gás canalizado;

29. A fração era, desde a altura antes referida, abastecida por gás de botija comprado por quem lá residia;

30. A infiltração de água detetada e a picagem na parede fração referida (casa de porteira) ocorreu numa parede não confinante entre esta fração e a fração A (onde se deu a explosão);

31. HH informou o réu GG que havia sido furado um cano de gás em tal intervenção;

32. O réu administrador do condomínio, na sequência de tal comunicação, não solicitou intervenção de técnicos da empresa de gás;

33. O antes referido sucedeu em virtude de o réu GG ter conhecimento de inexistir fornecimento de gás canalizado a tal fração há muitos anos e não ter atribuído importância a tal ocorrência;

34. Aquando do cancelamento do serviço de fornecimento de gás à fração A (oficina/loja) e à casa de porteira, deslocaram-se técnicos a tais locais, que procederam ao corte de fornecimento;

35. No momento da explosão, o autor AA circulava a pé pela Rua ...;

36. Quando a explosão se deu o autor falava ao telemóvel e caminhava em frente do n.° ... da Rua ..., no passeio oposto ao identificado prédio;

37. A força da explosão projetou o autor contra a parede;

38. E projetou diversos materiais, designadamente pedaços de betão das paredes, vidros, pedaços de metal e madeira do edificado onde ocorreu;

39. alguns desses materiais foram embater no corpo do autor, na face, no antebraço esquerdo, na mão esquerda, no abdómen e na perna esquerda;

40. Na sequência da explosão, o autor ficou atordoado e prostrado, conseguindo arrastar-se para a esquina da rua para fugir ao fogo que se iniciou e procurando proteger-se de outras explosões que pudessem ocorrer;

41. Após o que, perdendo as forças, ficou caído no chão, impossibilitado de se deslocar pelos seus próprios meios;

42. Gritou por socorro e dois moradores da área foram ter com ele, falaram-lhe e seguraram-lhe a cabeça;

43. Ficou imobilizado no chão tempo não concretamente apurado, aproximado de trinta minutos, até que chegasse a ambulância de assistência médica, que estava retida por viaturas dos bombeiros que combatiam o fogo que se iniciara no local;

44. O autor sentiu nesse período grande desorientação, receio pela sua vida;

45. Sentiu também fortes dores físicas;

46. Foi depois o autor conduzido ao Hospital ... em ... apresentando queimadura/esfacelo com lesão grave dos dedos da mão, escoriações várias do membro inferior esquerdo e queimadura de cílios, com ligeira hiperemia conjuntival;

47. Foi submetido a cirurgia plástica sob anestesia geral, tendo-lhe sido feita a limpeza de feridas da face, feita a remoção de vários estilhaços de vidro e sutura;

48. Sofreu também o autor seccionamento do músculo extensor comum dos dedos, bem como a secção do músculo tricípite braquial, tendo sido efetuadas intervenções definidas como miotenorrafia para solução do 1° problema e miofarria para resolução do segundo;

49. O autor foi ainda submetido a uma tenorrafia de banda lateral do extensor do 4.° dedo da mão esquerdo, a sutura de ferida do dorso do 5° dedo da mão esquerda, penso e imobilização com tala gessada;

50. Permaneceu internado no Hospital de ... entre o dia 2/7/2013 e o dia 8/7/2013;

51. Após o internamento hospitalar, o autor manteve seguimento de consulta externa na cirurgia plástica;

52. Cumpriu programa de fisioterapia em Medicina Física e de Reabilitação, o que o obrigou a diversas deslocações ao hospital entre setembro de 2013 e agosto de 2014;

53. Em 13/8/2013, o autor apresentava ainda na face cicatrizes hiperpigmentadas, aderentes, indolores à palpação, e no antebraço e mão esquerdos, cicatrizes aderentes, dolorosas, com alterações sensitivas ao contacto associado a edema da mão, diminuição das amplitudes articulares e força muscular a nível do cotovelo, punho, mão;

54. Em 15/11/2014, o autor concluiu o processo de reabilitação no Hospital de ..., apresentando défice de mobilidade e força muscular dos dedos D3D4D5;

55. O autor foi acompanhado nos serviços de Psicologia Clínica da Saúde do Hospital ... entre janeiro de 2014 e data não concretamente apurada do ano de 2015;

56. Em consequência do acidente sofreu trauma psicológico, com sequelas a nível psicológico e manifestações de ansiedade;

57. Em consequência das lesões sofridas o autor ficou com cicatriz na face posterior do terço proximal do braço de 5cm de comprimento e 1 cm de espessura;

58. Ficou com cicatriz cirúrgica no bordo lateral do terço distal do braço, medindo 5cm de comprimento e 3 mm de espessura;

59. E ficou com cicatriz no bordo medial do terço médio do antebraço com 2,5 cm de comprimento e a espessura de 3 mm;

60. Ficou ainda com cicatrizes cirúrgicas nos 4.° e 5.° dedos da mão direita, com o comprimento de 1,5cm e 3cm, respetivamente;

61. Ficou ainda com uma cicatriz no terço distal da coxa, com 3cm de comprimento;

62. As cicatrizes antes referidas correspondem a um dano estético de grau 4, numa escala de 1 a 7;

63. O autor recuperou mobilidade total dos membros, incluindo braços e dedos, mantendo dor no antebraço direito em caso de flexão completa dos dedos e tendo perdido força muscular nos movimentos de pinça utilitária e pinça em gancho (movimentos com utilização do polegar);

64. O autor esteve absolutamente impedido de trabalhar, com incapacidade absoluta para tanto. em resultado das lesões, entre 2/7/2013 e 8/7/2013;

65. Em virtude das lesões e da perturbação psíquica que sofreu, o autor manteve-se incapaz de desenvolver qualquer trabalho até final de agosto de 2013;

66. Nesta altura, de forma gradual, retomou a sua atividade de designer gráfico;

67. O trabalho de desenho gráfico exige uso intensivo dos membros superiores e das mãos;

68. O autor, sendo destro, usava e usa habitualmente a mão afetada pelo evento para trabalhar (mão esquerda), em particular nas tarefas de desenho em computador com uso do teclado;

69. O autor recuperou a sua capacidade de exercício de todas as tarefas inerentes à sua atividade profissional, tendo perdido rapidez e eficiência em tarefas que impliquem usem continuado da mão esquerda e perdido também resistência ao cansaço;

70. As dores físicas e os sofrimentos psíquicos sofridos pelo autor entre a data das lesões e a do termo da recuperação (15/11/2014) corresponde a um quantum doloris avaliado em grau 4 (escala de 1 a 7);

71. A lesões determinaram uma afetação permanente na integridade física e psíquica do autor de 7 pontos;

72. Em consequência de tais lesões, o autor despendeu com taxas hospitalares, tratamentos médicos e consultas necessárias para a sua recuperação quantia não concretamente apurada e não inferior a €174,75;

73. Em deslocações para tratamentos médicos quantia não inferior a € 91,60;

74. Em medicamentos e produtos farmacêuticos quantia não inferior a €115,18;

75. O autor é técnico licenciado de desenho gráfico;

76. Em 2/7/2013 o autor prestava serviços de desenho gráfico no atelier de II, sito na Calçada ..., ...;

77. Nessa altura o autor e II estavam a iniciar uma parceria na área do design gráfico;

78. No mês de junho de 2013 o autor prestara serviços para tal atelier sendo remunerado com o valor global líquido de €1636 (mil seiscentos e trinta e seis) -doc. n.° 15, junto à petição inicial;

79. Até tal data o autor realizara diversos trabalhos, na área de design;

80. Em 31/7/2013 o autor comunicou à administração fiscal o encerramento da sua atividade para efeitos tributários;

81. No ano de 2012 o autor declarou fiscalmente de rendimentos de trabalho, ou de serviços prestados, o total de €14.016,53;

82. Encontra-se atualmente desempregado, com um rendimento mensal médio de subsídio aproximado de 900 euros;

83. Este rendimento é aproximado do que auferia após ter cessado a sua relação com uma agência de comunicação e publicidade, último trabalho que desenvolveu;

84. Na sequência das lesões sofridas, o autor perdeu confiança e autoestima pessoal por período não concretamente apurado, tendo ultrapassado gradualmente tais sequelas;

85. Teve dificuldade em dormir e descansar durante período não concretamente apurado;

86. As dificuldades de autoestima e de sono foram sendo gradualmente ultrapassado pelo autor, que faz atualmente uma vida normal;

87. Na sequência da explosão, foram chamados e deslocaram-se ao local técnicos de gás, identificados como pertencendo à “Lisboagás”;

88. Não existia fornecimento de gás natural à fração de r/c onde se deu a explosão (loja);

89. Como não existia fornecimento de gás natural à fração habitacional de r/c, arrendada pelo condomínio (casa de porteiro);

90. À data referida em 1., das várias frações autónomas que compunham os 1º, 2º, e 3º andares do prédio ali identificado:

a) As correspondentes ao 1º dto, 1º frte, 1º esq., 2º esq, 3º frte e 3º esq. eram abastecidas de gás canalizado (natural) no âmbito de contratos de fornecimento de gás celebrados com a ré;

b) A correspondente ao 2º dto eram abastecidas de gás canalizado (natural) no âmbito de contratos de fornecimento de gás celebrado com a E..., S.A.;

c) As correspondentes ao 2º frte, e ao 3º dto eram abastecidas de gás canalizado (natural) no âmbito de contratos de fornecimento de gás celebrados com a G..., S.A.

91. À data referida em 1., a única entidade referida nas faturas de consumo de gás relativas a contratos de fornecimento celebrados com a ré Lisboagás Comercialização, S.A. era a mesma ré.

92. Nas faturas constava um número de telefone para contactos em caso de emergência ou falha de fornecimento, estabelecendo tal número contacto com serviços da sociedade Lisboagás GDL - Sociedade Distribuidora de Gás Natural de Lisboa, S.A.;

93. Quem estabelecesse contacto telefónico com tal número, em razão do referido nos dois pontos anteriores, fazia-o na convicção de estar a contactar a sociedade Lisboagás Comercialização, S.A.;

94. No ano 2013 e até data não concretamente apurada não anterior ao ano 2020, as sociedades Lisboagás Comercialização, S.A. e Lisboagás GDL - Sociedade Distribuidora de Gás Natural de Lisboa, S.A. eram integrantes do mesmo grupo económico G..., S.A. e integralmente detidas, direta ou indiretamente, pela sociedade ...;

95. – facto eliminado pela Relação ( que tinha a seguinte redacção: “ A sociedade Lisboagás Comercialização, S.A. é fornecedora de gás em mercado regulado e sucessora legal de fornecedora de gás em mercado não livre” )

O Tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos:

“a) Que tenha sido feita soldagem da ponta dos tubos de gás situados na fração A, aquando do seu fecho e selagem;

b ) Que o cheiro a gás, nos dias que antecederam a explosão, era percetível a qualquer pessoa que passasse no hall de entrada do edifício;

c ) Que os técnicos que procederam ao corte de fornecimento e retirada de contador à fração A, no momento em que foram feitos, pertencessem a Lisboagás Comercialização, S.A.;

d ) Que tais técnicos que se deslocaram ao prédio e procederam ao corte do fornecimento permitiram que continuasse a circular gás nos tubos sitos no interior da oficina;

e) Que os técnicos que se deslocaram ao prédio após a explosão para realizarem o corte pertencessem a Lisboagás Comercialização, S.A.;

f ) Que o autor tenha estado completamente impossibilitado de trabalhar até ao dia 15-11-2014;

g ) Que até tal data se tenha visto privado de qualquer rendimento;

h ) Que as lesões que o autor sofreu dificultam o desempenho de tarefas de índole pessoal, como relativas a realização de higiene pessoal ou pequenas tarefas de cozinha;

i ) Que o autor continue a ter ataques de ansiedade sempre que ao seu redor ocorre um qualquer ruído mais forte;

j ) Que tenha sido o furo realizado na tubagem da fração de porteira que permitiu a saída gás que restava na tubagem, nomeadamente na oficina onde se deu a explosão;

k ) Que o corte preventivo do gás para a fração do r/c já se encontrava efetuada em 2/7/2013.”

Da violação pelo acórdão recorrido do regime processual que disciplina os poderes de reapreciação da prova pela Relação.

Começa o recorrente por se insurgir contra a supressão por parte do tribunal recorrido do facto considerado provado pelo tribunal de primeira instância no ponto 95- “A sociedade Lisboagás Comercialização, S.A. é fornecedora de gás em mercado regulado e sucessora legal de fornecedora de gás em mercado não livre” - referindo que o tribunal “desconsiderou não só a prova testemunhal produzida em 1.ª instância pelas testemunhas arroladas pela própria ré e que descreveram tal sucessão, como prova documental carreada para os autos atinente a actos societários, bem como Resolução do Conselho de Ministros nº 98/2008, de 23/06.”

Com efeito, o Tribunal da Relação determinou a eliminação do primeiro segmento do ponto 95 por o ter considerado redundante “face ao que consta do ponto 11 dos factos provados, onde se consignou que a ré “foi constituída em 24/7/2007 e tem o objeto de compra e venda de gás natural, em regime de comercialização de último recurso retalhista, bem como o exercício de atividades e a prestação dos serviços direta ou indiretamente relacionados”.

Esta decisão não é questionada pelo recorrente, que contesta, ao invés, a eliminação do segundo segmento do ponto em crise, que se reporta à indicada sucessão legal. Todavia, esta eliminação foi determinada não pelo facto de o Tribunal “a quo” ter valorado de modo diverso os meios de prova produzidos a esse respeito – como o autor parece pressupor- mas por a Relação ter considerado que tal segmento continha uma afirmação conclusiva, que configura matéria de direito, ao realçar que “a afirmação de que determinada entidade é sucessora legal de outra só pode ser considerada uma conclusão a retirar dos efeitos de certo diploma legal.”

Esta posição – que, em substância, nem é colocado em crise pelo recorrente – não nos suscita reparo: a circunstância de a ré ser sucessora legal de fornecedora de gás em mercado não livre, para além de se integrar no “thema decidendum” da causa, não convoca a análise de dados concretos da vida real, dependendo, ao invés, da interpretação e da aplicação de normas jurídicas. Detecta-se, assim, uma conclusividade na redacção do segmento factual que justifica a sua supressão do elenco da matéria de facto adquirida, deste modo improcedendo a pretensão do recorrente.

Da verificação do pressuposto da responsabilidade objetiva, prevista no art. 509.º, n.º 1, do CC, relativo ao nexo de causalidade entre facto-risco e dano, quanto à ré Lisboagás – Comercialização S.A.:

Está em causa verificar se a recorrida Lisboagás – Comercialização, S.A. pode ser civilmente responsabilizada pelos danos, patrimoniais e não patrimoniais, causados ao autor, o qual, quando circulava, a pé, na rua, foi atingido por uma explosão que teve como material de deflagração gás natural existente no interior da fracção A do prédio sito no n.° ... da Rua ..., ..., tendo tal deflagração ocorrido quando EE, que tinha uma oficina aí instalada, ligou o quadro eléctrico.

As instâncias consideraram, de modo convergente, ser de afastar o título de imputação subjectiva previsto no nº 2 do art. 493º do CC, que consagra uma responsabilidade fundada na culpa, embora presumida, tendo a Relação feito notar que “muito embora a distribuição de gás natural possa ser considerada uma actividade perigosa, o mesmo não se poderá afirmar relativamente à actividade da comercialização, visto que as empresas comercializadoras não têm qualquer obrigação legal de velar pela integridade das condutas de gás natural em nenhum dos seus segmentos, nem sequer são proprietárias dos contadores.”

Assim, ambas as instâncias convocaram o título de imputação de responsabilidade previsto no art. 509º do CC, que dispõe que “1. Aquele que tiver a direcção efectiva de instalação destinada à condução ou entrega da energia eléctrica ou do gás, e utilizar essa instalação no seu interesse, responde tanto pelo prejuízo que derive da condução ou entrega da electricidade ou do gás, como pelos danos resultantes da própria instalação, excepto se ao tempo do acidente esta estiver de acordo com as regras técnicas em vigor e em perfeito estado de conservação. 2. Não obrigam a reparação os danos devidos a causa de força maior; considera-se de força maior toda a causa exterior independente do funcionamento e utilização da coisa. 3. Os danos causados por utensílios de uso de energia não são reparáveis nos termos desta disposição.”

Trata-se, como é sabido, de norma que consagra uma responsabilidade pelo risco ou objectiva, em que se prescinde totalmente da culpa (provada ou presumida) (cfr., a este respeito, o acórdão do STJ de 27.2.2024, proc. 7997/20.2T8SNT.L1.S2, em www.dgsi.pt)

As instâncias entenderam que a ré, na qualidade de comercializadora ou fornecedora de gás natural, poderia ser responsabilizada objectivamente, ao abrigo da citada norma, ainda que não lhe competisse a gestão da rede (e, por isso, a “direção efetiva da instalação”). O Tribunal de 1ª instância fundou tal entendimento na interpretação racional e actualista do art. 509.º do CC e no facto de a ré, ao apresentar-se publicamente como entidade de gestão da rede, se assumir na posição de verdadeira corresponsável pela rede, assim elaborando uma construção assente no entendimento de que a representação aparente é vinculativa para o representado perante terceiros de boa-fé, tendo por referência o princípio da confiança. Deixou escrito o Tribunal de Primeira Instância, numa argumentação que não nos suscita objecções, que “a conclusão que se retira de uma interpretação histórica, ainda comportada na literal, é que a lei pretendeu, indistintamente, abranger os riscos decorrentes de problemas da própria rede (mau estado, fugas imprevistas, danos originados por intervenção humana indeterminada) como os riscos decorrentes da própria matéria ou energia”, acrescentando: “Além deste elemento interpretativo, por referência ao princípio da confiança e que se traduz na conclusão de a segregação de negócios de distribuição e comercialização existir para proteção do mercado e dos consumidores, não para exonerar de responsabilidade o fornecedor, pelo menos na relação com os lesados diretos e sem prejuízo de regresso para com a entidade gestora, há um outro elemento relevante a considerar - na altura do facto, ambas as sociedades pertenciam ao mesmo grupo económico – grupo G..., S.A.. Além deste elemento organizacional, na sua relação com consumidores, e com terceiros, a sociedade distribuidora não era publicamente reconhecida e reconhecível.”

Ora, o ponto que motivou o dissentimento entre as instâncias prendeu-se com a verificação do pressuposto da responsabilidade civil atinente ao nexo de causalidade: enquanto a 1ª instância considerou que, ainda que a ré Lisboagás “não tivesse gás contratado com a fração onde se deu a explosão, estabelecido que todo o gás fornecido ao prédio o foi por si, está estabelecido o vínculo objectivo suficiente para estabelecer uma relação causalmente adequada entre o risco protegido pela norma e a posição jurídica da ré”, o acórdão recorrido, na sequência da alteração efectuada à matéria de facto provada (cfr. ponto 90 dos factos provados) -em que ficou demonstrado que, para além da ré, também a G..., S.A. e a E..., S.A. forneciam gás a fracções autónomas do mesmo prédio- veio a concluir, ao invés, que não era possível “estabelecer um nexo de causalidade e adequação entre qualquer comportamento da ré e a explosão dos autos” nem “imputar à ré qualquer responsabilidade pela manutenção das condutas de gás do prédio dos autos.”

Deste modo, a questão que se oferece para apreciação consiste em aquilatar se, perante a factualidade provada, se deverá considerar preenchido o pressuposto da responsabilidade civil atinente ao nexo de causalidade entre o fornecimento de gás natural pela ré Lisboagás (actividade que implica o risco) e a explosão ocorrida, da qual resultaram danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo autor.

Vejamos.

A ré Lisboagás assume a qualidade de comercializadora de gás natural, tendo fornecido gás a parte das fracções do prédio através de contratos celebrados com consumidores (cfr. arts. 37º, nº 3, 39º, nº 3, e 39º-A, nº 1 do Decreto-Lei nº 30/2006, de 15 de Fevereiro, que estabeleceu a organização e o funcionamento do Sistema Nacional de Gás e o respetivo regime jurídico, procedendo à transposição da Directiva 2019/692, na redacção vigente à data da ocorrência dos factos, conferida pelo Decreto-Lei n.º 230/2012, de 26 de outubro).

Estatui o art. 563º do CC que “a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.”

De acordo com o que constitui o entendimento doutrinário e jurisprudencial tradicional, a citada norma consagra a chamada doutrina da adequação – concretamente, na sua formulação negativa - segundo a qual o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercedam no caso concreto (na doutrina, ver Antunes Varela, vol. I, 10.ª edição, págs. 898-901; Ana Prata, Código Civil Anotado, vol. I, Almedina, 2022, pág. 759; Henrique Sousa Antunes, Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações, Universidade Católica Portuguesa, pág.. 555; na jurisprudência, entre outros, os acórdãos do STJ de 1.7.2003, proc, nº 03A1902, de 27.1.2004 e de 18.12.2013 (proc. n.º 1749/06.0TBSTS.P1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Por outro lado, como tem afirmado, de modo constante, a jurisprudência do STJ, o juízo de causalidade numa perspectiva meramente naturalística de apuramento da relação causa-efeito, insere-se no plano puramente factual insindicável pelo Supremo, podendo, no entanto, comprovado esse nexo naturalístico, o STJ verificar a existência de nexo de causalidade, no âmbito da actividade interpretativa e aplicativa da norma prevista no art. 563º do CC (cfr., entre outros, os acórdãos do STJ de 2.11.2010, proc. 2290/04 – 0TBBCL.G1. S1 ou o de 24.11. 2016, proc. nº 96/14.8TBSPS.C1.S1 ou o 1.7.2003, processo n.º 03A1902)

São os seguintes os factos provados que relevam para a análise:

“1. No dia 2/7/2013, pelas 9h30m, ocorreu uma explosão no prédio sito no n.° ... da Rua ...,...;

3. Tal explosão teve origem na fração de r/c, constituída por loja, que estava ocupada por oficina de estofador explorada pelo falecido EE;

12. A explosão ocorreu devido à presença de gás no interior de tal oficina;

15. Na oficina onde teve início a explosão há uma tubagem de gás natural, não havendo, à data, fornecimento de gás contratado;

18. A explosão ocorreu em consequência de uma fuga de gás natural fornecido ao prédio, com origem não concretamente apurada;

21. A ignição da explosão deu-se quando EE acedeu ao interior da fração acionou o dispositivo de ligação do quadro elétrico;

22. Nesse momento, produziu-se um arco voltaico que provocou a ignição da mistura explosiva de gás que se encontrava no interior da oficina;

89. Como não existia fornecimento de gás natural à fração habitacional de r/c, arrendada pelo condomínio (casa de porteiro);

90. À data referida em 1., das várias frações autónomas que compunham os 1º, 2º, e 3º andares do prédio ali identificado:

a) As correspondentes ao 1º dto, 1º frte, 1º esq., 2º esq, 3º frte e 3º esq. eram abastecidas de gás canalizado (natural) no âmbito de contratos de fornecimento de gás celebrados com a ré;

b) A correspondente ao 2º dto eram abastecidas de gás canalizado (natural) no âmbito de contratos de fornecimento de gás celebrado com a E..., S.A.;

c) As correspondentes ao 2º frte, e ao 3º dto eram abastecidas de gás canalizado (natural) no âmbito de contratos de fornecimento de gás celebrados com a G..., S.A.”

No caso sub judice, não obstante ter sido feita prova da causa concreta da explosão - presença de gás no interior da oficina existente na fração de rés-do-chão existente no prédio em causa - não ficou provado que esse gás proviesse do abastecimento feito em decorrência de contrato de fornecimento de gás celebrado com a ré. Ficou, sim, provado que, na oficina onde teve início a explosão, havia uma tubagem de gás natural, não existindo, à data, fornecimento de gás contratado, sendo que resultou adquirido que as fracções do prédio eram abastecidas por gás natural proveniente do fornecimento, não apenas da ré, mas igualmente de outras duas sociedades (E..., S.A. e G..., S.A.). Estamos, assim, perante uma causa identificada – a fuga de gás -, desconhecendo-se, embora, a autoria do fornecimento de tal gás, o que nos conduz, desde logo, ao tema da causalidade alternativa incerta.

Segundo Paulo Mota Pinto estes são casos em que, de modo típico, existe incerteza sobre qual foi, das diversas causas, aquela que produziu o resultado (Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, volumes I e II, Coimbra Editora, 2008, pág. 654, nota 1858); para Carneiro da Frada o problema da causalidade alternativa suscita-se quando é “possível asseverar que o causador do dano é um de entre certo número (limitado) de sujeitos, mas não se consegue identificar com precisão a sua identidade.” (Direito civil. Responsabilidade civil. O método do caso, Almedina, 2006, pág. 107); também Mafalda Miranda Barbosa dá conta da posição de Calvão da Silva, o qual “aderindo a uma formulação negativa da causalidade adequada, sustentou que cada lesante deve ser responsabilizado, bastando para isso que se prove que ambos os autores foram prováveis responsáveis. Para isso, invoca a inversão do ónus da prova quando se adira àquela formulação negativa, bastando ao lesado provar a condicionalidade. Mais concretamente, bastará ao lesado provar que uma qualquer causa, ou melhor um dos comportamentos de um dos produtores, é conditio sine qua non. Cada uma dessas condições é presumida como causa adequada do dano (“le dommage est la conséquence normale, typique, probable du DES défectueux” – op. cit., loc. cit.), pelo que “o autor da lesão deve ilidir essa presunção, demonstrando circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou irregulares” que tenham influenciado a situação. Determinada a capacidade abstrata, entende-se que o lesado pode utilizá-la para estabelecer a sua presunção, a probabilidade séria que aquele ou aqueles produtores sejam os responsáveis.” (Causalidade alternativa incerta: modelos de resolução da problemática e o projeto francês (2017) de reforma da responsabilidade civil”, Revista de Direito Civil, ano III, n.º 4, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Almedina, 2018, p. 808; na explanação da sua teoria das esferas de risco, refere esta autora “ “Quando A e B disparam sobre C, podem não ter causado a morte de C em conjunto, mas, na dúvida, ambos edificaram uma esfera de responsabilidade, por ela sendo chamados à liça. É ela e não a factualidade neutral que é ajuizada pelo direito. Não é, portanto, uma tomada de posição acerca da questão da relevância positiva da causalidade virtual que entra em cena (…) No fundo, ao partirmos de uma dada compreensão da causalidade como imputação, a ser afirmada, em homenagem à pessoalidade livre e responsável e tendo por base uma conceção de ação ético-axiologicamente densificada, a partir da edificação de uma esfera de risco e do cotejo com outras esferas de risco, estamos em condições de afirmar a solidariedade com base na constatação de mais do que uma esfera de responsabilidade, independentemente da prova da condicionalidade (…)” ( ob. cit, pág.. 833); também Patrícia Costa afirma que “respondendo positivamente à questão de saber se é possível afirmar um nexo de imputação objectiva nos casos de causalidade alternativa incerta, cremos que se poderá, senão mesmo se impondo, retirar a consequência de que o juízo de condicionalidade necessária não é, afinal, o limiar mínimo necessário ao juízo de imputação objectiva, antes se devendo orientar este para uma concepção normativa ligada à edificação de esferas de risco específico no âmbito das quais se realiza o resultado proibido.” ( Causalidade Alternativa E A Jurisprudência Dos Tribunais Superiores – Ou “Três Caçadores Entram Num Bar...”», Novos Olhares sobre a Responsabilidade Civil, Ebook do CEJ, Outubro de 2018, pág. 117).

Na jurisprudência, o STJ manifestou abertura à responsabilização solidária no âmbito da responsabilidade alternativa incerta, num caso, objecto de análise pelo acórdão de 19.5.2015, proc. n.º 154/10.8TBCDR.S1 em que se discutia a responsabilidade subjectiva dos participantes numa rixa, da qual resultaram danos, não sendo possível imputá-los à conduta de cada um dos agentes.

Ainda que sem prescindir do modelo tradicional que faz apelo a uma ideia de “conditio sine qua non”, o STJ identificou a causalidade alternativa, a par da causalidade concorrente, como excepção àquele modelo, realçando que existem “situações em que se pode suprimir mentalmente um factor, sem que por isso um certo efeito deixe de ocorrer, parecendo todavia arbitrário, de um ponto de vista jurídico, negar-lhe relevância causal.” Na análise casuística que empreendeu, o STJ, no acórdão em causa, observou que “basta reconhecer que foi a actuação do grupo a condição sine qua non do dano sofrido pelo lesado, o que permitirá responsabilizar solidariamente os membros desse grupo, permitindo-lhes embora, a cada um deles, provar que não causaram esse dano. Essa responsabilização solidária, emerge, no fim de contas do artigo 497.º do nosso Código Civil que afirma, precisamente, a responsabilidade solidária das várias pessoas responsáveis pelos danos (sem olvidar o artigo 490.º do mesmo Código que consagra que “se forem vários os autores, instigadores ou auxiliares do acto ilícito, todos eles respondem pelos danos que hajam causado”).”

Cremos que tal posição deve ser acolhida para a solução do presente caso, em que se discute a responsabilidade objectiva da ré Lisboagás.

Posição que está em sintonia com a posição de Calvão da Silva expressa na sua obra “Responsabilidade civil do produtor”, Almedina, 1990, a pág. 582: : (…) “delimitado dentro de um critério de razoabilidade segundo as regras da experiência o círculo dos possíveis responsáveis — aqueles que criaram o risco abstracto susceptível de se ter materializado no caso concreto —, a presunção de que eles são os sujeitos responsáveis compreende-se, em ordem a evitar que os danos sejam suportados pela vítima inocente que os sofreu, até porque estamos no domínio da responsabilidade pelo risco e porque cada um dos potenciais responsáveis — todos eles titulares do processo produtivo fonte decisiva do risco abstracto —está em melhores condições para poder ilidir aquela probabilidade, designadamente provando que não produziu ou não distribuiu o produto danoso no tempo e no lugar relevantes in casu.”

Na mesma linha Carneiro da Frada alude à possibilidade de, em sede de causalidade alternativa, em nome da função preventiva da responsabilidade civil coligada ao pensamento da imputação do dano àquele que aumentou o perigo da sua ocorrência, inverter o ónus da prova da causalidade. (ob. cit, pág. 104).

No caso em apreço, importa salientar que, ainda que não se tenha provado a que entidade competia o fornecimento do gás natural que, presente na oficina, foi causa da explosão, se demonstrou que a presença desse gás ocorreu em consequência de uma fuga de gás natural fornecido ao prédio, com origem não concretamente apurada. E ficou demonstrado, por outro lado, que a ré, em conjunto com outras duas sociedades, era uma das fornecedoras do mesmo gás.

Assim, neste contexto, para a imputação, não se mostra determinante, do ponto de vista jurídico, que tivesse sido a ré a conduzir o material gasoso explosivo que deflagrou no interior da fracção A ou mesmo que aquela fosse a sucessora da empresa exploradora da atividade de abastecimento de gás canalizado do período em que vigorou um sistema de mercado monopolista. Isto porque, ao fornecer gás natural ao prédio, a ré edificou uma esfera de risco que, tendo-se materializado no dano ocorrido, pode considerar-se até superior às esferas de risco criadas pelas duas outras fornecedoras E..., S.A. e G..., S.A., pois a recorrida fornecia gás a seis frações do prédio – enquanto aquelas forneciam gás a uma e a duas fracções, respetivamente – num universo que constituía a totalidade das fracções do 1.º andar, que se localizavam mais próximas da fracção situada no rés-do-chão do imóvel, onde se verificou a presença de gás. É essa esfera de risco que, encontrando correspondência no dano ocorrido, justifica a responsabilização civil da ré, num quadro em que se verifica uma razoável probabilidade de a ré ser a responsável pelo fornecimento de gás presente na fracção, devendo apelar-se, ainda, à necessidade de proteção do lesado que sofreu importantes danos de natureza pessoal, sem perder de vista que o escopo principal da responsabilidade civil continua a ser o da reparação do lesado.

Por conseguinte, ainda que não se prescinda da ideia da condicionalidade “sine qua non”, importa, na linha do caminho já iniciado pelo acórdão do STJ de 19.5.2015, valorar casos como este de causalidade alternativa incerta, acolhendo, neste âmbito, uma interpretação do ónus da prova da causalidade (art. 563º do CC) funcionalmente orientada à teleologia específica da responsabilidade civil pelo risco, em que se admite o afrouxamento de tal ónus a cargo do lesado, de modo a não comprometer a obtenção de uma decisão materialmente justa.

A aplicação de tal entendimento à situação presente implica, assim, reconhecer que, para que a ré Lisboagás, criadora da fonte de perigo, se eximisse de responsabilidade, teria de demonstrar que o prejuízo causado não radicou nela ou que, no caso concreto, o dano se teria produzido de qualquer forma. Tal não sucedeu, sendo que a recorrida também não logrou provar a causa real do dano, não tendo demonstrando que a mesma não se integrava na esfera de riscos que criou.

Assim, e independentemente da prova da condicionalidade, provados que estão, por um lado, a ocorrência do evento lesivo e, por outro, o envolvimento da fonte de risco da ré na sucessão de acontecimentos que conduziram ao surgimento do dano, mostram-se reunidos, na nossa perspectiva, os pressupostos para afirmar a obrigação da ré Lisboagás de indemnizar o autor pelos danos sofridos, ao abrigo do art. 509, nº 1 do CC, responsabilizando-a, a título solidário, com as demais fornecedoras de gás, de acordo com o nº 1 do 507º do CC (já que os termos da responsabilidade em análise são paralelos, como sublinha Antunes Varela, aos que se se aplicam à obrigação de indemnizar em matéria de acidentes de viação (Das Obrigações em Geral, volume I, 10.ª edição, pág. 712) .

Conclui-se, assim, pela procedência do recurso e pela consequente repristinação do decidido pela 1ª instância.

Sumário:

1- Ainda que não se tenha provado a que entidade competia o fornecimento do gás natural que estava presente numa oficina inactiva instalada no fracção do r/ch de um prédio, gás que foi causa de uma explosão que atingiu o autor que passava na rua em frente, verifica-se que a ré abastecia de gás 6 das 9 fracções desse prédio, incluindo as fracções do 1º andar, mais próximas das do r/c (sendo as outras fornecidas por outras duas sociedades);

2- Como assim, se ela não provou que não teve responsabilidade na explosão, deve concluir-se que se verifica o nexo de causalidade entre o risco criado pela ré e os danos sofridos pelo autor e que ela é responsável, nos termos do art. 509º do CC (solidariamente com as outras fornecedoras de gás aqui não demandadas) por tais danos.

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em conceder a revista, revogar o acórdão recorrido e repristinar a condenação da ré Lisboagás – Comercialização, S.A. decidida na sentença.

Custas pela recorrida.


*


Lisboa, 28 de Janeiro de 2025

António Magalhães (Relator)

Manuel Aguiar Pereira

Jorge Leal