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Jurisprudência
Sumário

I - Na venda em execução, o efeito translativo do direito de propriedade só ocorre com a emissão pelo agente de execução do documento de transmissão do imóvel ou com a celebração de escritura pública ou do documento particular autenticado, que a titule, consoante se trate de venda mediante propostas em carta fechada ou venda por negociação particular.

II - Enquanto tais documentos não forem emitidos, pode ser exercido o direito de remissão e retornado o bem “vendido” ao património familiar do executado, independentemente de ter ocorrido pagamento do bem por terceiro em venda executiva.

III - Há fundamento para ser ordenada/mantida a apreensão do bem, que fora, em autos de execução, vendido a terceiro, tendo este pago o preço devido, logo entregue aos credores da execução, ocorrências que antecederam a declaração de insolvência, se não foi celebrada a escritura de venda ou, entregue ao comprador documento particular autenticado, consumando a mesma (art. 875.º CC).

IV - Tendo o comprador direito à restituição do que pagou e ressarcimento de eventuais prejuízos.

Decisão Texto Integral

Acordam, na 6ª secção, no Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. Nos presentes autos de insolvência do Juízo de Comércio do ..., respeitantes à insolvente AA, o administrador da insolvência arrolou como bem integrante da massa insolvente, o direito à meação da insolvente sobre o prédio misto situado no “...”, composto por edifício de cave, rés-do-chão, sótão e logradouro, destinados a habitação e terras hortícolas com árvores de frutos e oliveiras, denominado ..., inscrito na matriz sob os Arts.º ...54.º-U e ...58.º R, da União de Freguesias do ....

2. Antes de declarada a insolvência, AA viu instaurada contra si e outros, a Execução nº 414/20.0... do Juízo Local Cível do ....

3. No âmbito desses autos de Execução:

1- Foi penhorado o prédio acima identificado.

2 - Foi o mesmo posto à venda por negociação particular, tendo BB, em março de 2023, efetuado uma proposta de aquisição, pelo valor de € 130.000,00.

3 - Por despacho judicial de 03-06-2023, foi a venda autorizada, pelo valor proposto.

4- Por despacho de 16-06-2023 da Sra. Agente de Execução, foi tal prédio adjudicado ao Proponente BB, pelo sobredito valor, e este foi notificado para proceder ao pagamento da totalidade do preço.

5- Dentro do prazo o proponente efetuou o pagamento da totalidade do preço.

4. Instaurados os presentes autos de insolvência, foi por sentença datada de 21-09-2023, decretada a insolvência de AA.

5. Tendo aquela execução sido sustada relativamente a esta executada.

6. A diligências do Sr. Administrador da Insolvência, ocorreu o arrolamento e apreensão para a Massa Insolvente, do direito à meação da insolvente sobre o prédio supra referido.

7. Na sequência dessa apreensão, o proponente comprador BB veio requer que “seja ordenado o levantamento e cancelamento do direito à meação que a Insolvente deteve (já não detém) sobre o prédio em causa” e, se assim se entender por bem, “ser efetuado o arrolamento sobre a meação do direito ao preço e respetiva apreensão”.

Pretendendo que o arrolamento e a apreensão de tal direito, são atos nulos, porquanto o prédio, na sua totalidade, havia já sido adquirido pelo Requerente e a ele adjudicado. Assim, a sua aquisição da propriedade sobre o imóvel consumara-se com o despacho de adjudicação e pagamento integral do preço. Sendo a escritura pública de compra e venda, ainda não outorgada, um mero ato notarial destinado a conferir formalidade legal ao negócio.

Desse modo, apenas o direito à meação sobre o produto da venda poderá ser arrolado e apreendido nos autos de Insolvência.

8. A Mmª Juíza pediu esclarecimentos aos autos de execução, que prestou as seguintes informações:

“[r]elativamente ao prédio Misto situado em ..., composto por edifício de cave, rés-do-chão, sótão e logradouro, destinados a habitação (Parte Urbana) e, Terras hortícolas com árvores de fruto e oliveiras (Parte Rústica), denominado ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob a ficha N.º ...23 da Freguesia de ... e inscrito nas respetivas matrizes com os artigos ...54.º-U e ...58-R, ambos da União das Freguesias de ...;

- por decisão da Sr.ª AE, de 16.06.2023, foi o imóvel adjudicado ao proponente BB;

- em 13.07.2023, a Sr.ª AE procedeu ao pagamento das quantias de € 50.000,00, € 50.000,00 e € 13.052,78 ao credor “Caixa Económica Montepio Geral”;

- em 19.07.2023, a Sr.ª AE procedeu ao pagamento das quantias de € 554,55 e € 620,37 ao credor “Fazenda Nacional / Serviço de Finanças do ...”;

- em 18.07.2023, a Sr.ª AE procedeu ao pagamento da quantia de € 8.889,40,00 ao exequente, referente ao produto da venda realizada nos autos, para amortização parcial da dívida exequenda;

- mais procedeu a Sr.ª AE ao pagamento das custas da execução e do apenso de Reclamação de Créditos, pagamentos com que se esgotou a distribuição do valor correspondente ao preço da venda.

Mais se informa que, na sequência da adjudicação acima referida, falta apenas formalizar a transmissão, mediante a realização da competente escritura pública.” (realce nosso)

9. Na sequência, foi nos autos de insolvência, proferida a seguinte decisão (14-02-2024):

“Tomei conhecimento de todos os requerimentos/informações que antecedem.

Resulta evidente dos mesmos que, ainda que sem formalização definitiva do título de transmissão do imóvel penhorado nos autos de execução aí melhor identificados, a verdade é que o adquirente do mesmo procedeu ao pagamento da totalidade do valor da venda, foram liquidadas todas as importâncias [designadamente tributárias] conexas com a aludida transmissão e foi já entregue ao respetivo credor o valor apurado nessa sequência, o que sempre impediria a apreensão do referido produto para a massa insolvente.

Ora, sem prejuízo do inicialmente determinado no referido processo – quanto à suspensão da instância executiva e, consequentemente, da formalização da transmissão –, a verdade é que, perante o posteriormente esclarecido pela Sra. Agente de Execução e, agora, pela Mmª Juiz do processo, resulta evidente que o aludido bem [correspondente à verba n.º 2 elencada pelo Sr. Administrador de Insolvência no auto de apreensão de bens desta insolvência] não pode ser objeto de nova transmissão e, nessa medida, determino o levantamento da sua apreensão.”

10. De tal decisão veio a Massa Insolvente de AA, representada pelo seu Administrador, interpor recurso de apelação, pretendendo que o despacho recorrido viola o preceituado na alínea a) do n.º 1 do art.º 149.º e do n.º 1 do art.º 46º, ambos do CIRE, uma vez que, à data da declaração da insolvência, o referido imóvel pertencia à esfera jurídica-patrimonial da insolvente.

Sustentando que, na venda executiva através da modalidade de negociação particular, o efeito translativo do direito de propriedade apenas opera no momento da outorga da escritura pública de compra e venda ou do documento particular autenticado, nos termos do art.º 875.º do Código Civil, dado tratar-se de uma formalidade ad substantiam e não ad probationem;

Ainda que se tratasse de uma venda executiva através da modalidade de propostas em carta fechada, o efeito translativo do direito de propriedade também não se teria operado, pois, não chegara a ser emitido o respetivo título de transmissão, nos termos do n.º 1 do art.º 827.º CPC.

11. BB, comprador do bem, contra-alegou, reiterando os termos do seu anterior requerimento, referido no ponto 7 deste relatório.

12. Também LC ASSET 2, S.A.R.L., Credora Reclamante, paga nos autos de execução com o produto da venda, apresentou contra-alegações, defendendo que a apreensão do imóvel no âmbito do processo de insolvência não se revela benéfico para quaisquer partes, designadamente no que concerne à insolvente e respetivos credores. Além de se correr o risco de ter de se indemnizar o terceiro adquirente, por eventuais danos causados – recorde-se que o mesmo tem o preço pago desde junho de 2023- existirá ainda a necessidade de reformular a lista de credores reconhecidos, na medida em que os valores recebidos pela aqui Recorrida terão de ser devolvidos e, por consequência, reclamados como crédito garantido no âmbito da presente insolvência.

Sendo a solução preconizada pelo tribunal a quo a que melhor serve os interesses de todas as partes, evitando-se mais delongas e acréscimo de custos.

Pugnando pela improcedência do recurso.

Conhecendo da apelação, o Tribunal da Relação de Coimbra julgou o recurso improcedente, confirmando a decisão proferida no Juízo de Comércio do ....

Tendo desenvolvido as seguintes linhas de fundamentação:

i. A venda em execução reveste a natureza de um negócio jurídico que se realiza com a aceitação de determinada proposta, ficando o efeito translativo da propriedade da coisa ou da titularidade do direito sujeito à verificação da condição suspensiva da realização dos depósitos a que se refere o artigo 815.º do Código do Processo Civil, ou atestada a dispensa dos mesmos, comprovado o cumprimento ou a isenção das obrigações fiscais inerentes à transmissão, assim como garantido o pagamento das custas prováveis do processo.

ii. Verificada a condição, transfere-se ipso jure a propriedade da coisa ou a titularidade do direito, retroagindo esse efeito à data da aceitação da proposta - cf. art.º 276º do Código Civil-, que se atestará pelo respetivo título de transmissão.

De novo inconformada veio a Massa Insolvente de AA, recorrer de Revista, na modalidade de Revista excecional, assim concluindo as suas alegações de recurso:

1 - O presente recurso de revista excecional é interposto ao abrigo do art.º 672.º n.º 2, al. c) do CPC, em virtude da contradição jurisprudencial entre o acórdão recorrido do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra e os acórdãos fundamento 1 e 2, sobre o momento da transmissão do direito de propriedade na venda judicial executiva e sobre as regras probatórias aplicáveis;

2 - O acórdão recorrido perfilhou o entendimento de que o efeito translativo do direito de propriedade ocorre com a aceitação da proposta de venda pelo AE, ficando a transmissão sujeita a condição suspensiva do pagamento do preço e das obrigações fiscais, mas com efeitos retroativos à data da aceitação;

3 - Em contrapartida, os acórdãos fundamento estabelecem que o direito de propriedade apenas se transmite com a emissão do título de transmissão ou a celebração da escritura pública, após o cumprimento integral das formalidades previstas no art.º 827.º n.º 1 do CPC;

4 - Além da contradição jurisprudencial, o acórdão recorrido incorreu numa violação das regras probatórias, ao considerar provado o cumprimento das obrigações fiscais (IMT e IS), sem que exista qualquer prova documental nos autos que suporte tal conclusão.

5 - Nos termos do art.º 342.º do Código Civil, compete à parte interessada a prova dos factos constitutivos do seu direito, sendo que o cumprimento das obrigações fiscais exige, necessariamente, a apresentação de notas de liquidação e comprovativos de pagamento (em caso de não isenção);

6 - A valoração positiva (probatória) de um facto inexistente constitui uma violação do princípio da livre apreciação da prova (art.º 607.º n.º 5 do CPC), aplicável por força do art.º 674.º n.º 3 do CPC, que permite ao Supremo Tribunal de Justiça sindicar a valoração probatória quando esta viola normas legais ou carece de suporte fáctico;

7 - A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça é clara ao afirmar que não pode haver presunção quanto ao cumprimento das obrigações fiscais na venda judicial executiva, exigindo prova formal e inequívoca desse cumprimento. O acórdão recorrido, ao não exigir tal prova, violou, manifestamente, o regime probatório aplicável;

8 - O entendimento perfilhado pelo acórdão recorrido, ao antecipar o momento da transmissão para a aceitação da venda, e ao presumir factos não provados, compromete gravemente a segurança jurídica dos atos processuais e a integralidade (como execução universal) do processo de insolvência;

9 - A solução jurídica dos acórdãos fundamento respeita não só a letra da lei, mas também a sua finalidade teleológica, garantindo que a venda judicial executiva apenas se perfaz com o cumprimento integral das condições legais e formais, assegurando a proteção dos credores e a certeza dos atos processuais;

10 - Verifica-se, assim, uma contradição objetiva entre o acórdão recorrido e os acórdãos fundamento, quer no que respeita ao momento da transmissão do direito de propriedade, quer na valoração da prova relativa ao cumprimento das obrigações fiscais, questões que revestem particular relevância jurídica e prática;

11 - A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça é imperativa para esclarecer e cristalizar tal desentendimento, corrigir a violação das regras probatórias e assegurar a correta aplicação das normas legais.

A final, requer que o recurso de revista excecional seja admitido e julgado procedente, revogando-se o acórdão recorrido, substituindo-se por outro que ordene a manutenção da apreensão do direito à meação sobre o imóvel, a favor da massa insolvente de AA.

Não foram apresentadas contra-alegações.

II- Da admissibilidade da Revista excecional

Verificados os requisitos gerais da admissibilidade do recurso, foram os autos à Formação nos termos do n.º 3 do artigo 671.º do CPC que, indagando dos requisitos de admissibilidade da revista excecional previstos no artigo 672.º n.º 1 alª c) do CPC, proferiu acórdão reconhecendo que a revista excecional deve ser admitida com fundamento em contradição de julgados, realçando ainda a relevância, quer jurídica, quer social, da questão em análise.

III- Do objeto do Recurso

Na consideração de que o âmbito do conhecimento por parte do tribunal se delimita pelo teor das conclusões das alegações, na ausência de questões de conhecimento oficioso – artºs 608.º, n.º 2, 635.º, nº 4 e 639.º, do CPC, importa decidir:

1- Qual o exato momento em que se concretiza, no âmbito da venda de imóvel em processo de execução, a transmissão do direito de propriedade a favor do adquirente.

O que, no caso concreto se traduz igualmente em apurar, se há fundamento jurídico para ser ordenada/mantida a apreensão do direito à meação da insolvente sobre um imóvel, que fora, em autos de execução, vendido a terceiro, tendo este pago o preço devido, o qual foi de seguida entregue aos credores da execução, ocorrências que antecederam a declaração de insolvência. Não tendo sido entregue ao comprador o respetivo título de transmissão.

Esclarecimento intercalar:

Na definição do objeto do recurso, não incluímos a seguinte questão igualmente suscitada nas alegações de revista, nomeadamente nas suas conclusões:

- Se foram violadas regras probatórias, por o tribunal recorrido ter considerado provado o cumprimento das obrigações fiscais (IMT e IS) por parte do terceiro adquirente do imóvel, sem que exista qualquer prova documental nos autos que suporte tal conclusão, prova que competiria à parte interessada efetuar, por respeitar a facto constitutivo do seu direito.

Pelas seguintes razões:

De acordo com o enquadramento previsto no art. 671º nº 1 do CPC, o ponto de referência para a admissibilidade do recurso de revista é o teor do acórdão da Relação e não o da decisão de 1ª instância sobre a qual aquele incidiu.

A Recorrente invocou a violação pelo Tribunal da Relação das regras probatórias, ao ter considerado provado o cumprimento das obrigações fiscais (IMT e IS) pelo terceiro adquirente do imóvel, sem que exista qualquer prova documental nos autos que suporte tal conclusão.

Extrai-se, efetivamente, do acórdão recorrido a afirmação de que o adquirente do imóvel procedeu ao pagamento da totalidade do valor da venda, que foram liquidadas todas as importâncias -designadamente tributárias - conexas com a aludida transmissão e foi já entregue ao respetivo credor o valor apurado nessa sequência.

Mas tal afirmação de cumprimento das obrigações tributárias a par do pagamento do preço pelo terceiro adquirente, não surge de julgamento probatório efetuado pela Relação, mas sim, do efetuado pela 1ª instância, de acordo com a sua iniciativa oficiosa e, em razão dos esclarecimentos e informações provenientes dos autos de execução onde tal iniciativa foi dirigida.

Assim, prestados aqueles esclarecimentos, por escrito, a 1ª instância na decisão de 14-02-2024, pronunciou-se como segue:

“Tomei conhecimento de todos os requerimentos/informações que antecedem.

Resulta evidente dos mesmos que, ainda que sem formalização definitiva do título de transmissão do imóvel penhorado nos autos de execução aí melhor identificados, a verdade é que o adquirente do mesmo procedeu ao pagamento da totalidade do valor da venda, foram liquidadas todas as importâncias [designadamente tributárias] conexas com a aludida transmissão e foi já entregue ao respetivo credor o valor apurado nessa sequência, o que sempre impediria a apreensão do referido produto para a massa insolvente.”

Não tendo surgido impugnação válida desse facto, no momento próprio, que seria o recurso de apelação, com eventual impugnação da informação prestada pelos autos executivos, ou errada interpretação da mesma pelo julgador da 1ª instância e, não tendo sido formulado pedido expresso de alteração desse facto, tendo-se a apelante limitado a alegar no ponto 8 das suas conclusões de apelação “aquando do momento da declaração da insolvência, o proponente do imóvel no processo executivo não tinha, sequer, liquidado as obrigações fiscais, a saber, o IMT e o IS”, não pode esse eventual erro probatório ser objeto do presente recurso de revista - o que apenas seria admissível no âmbito do art. 674º nº 3 do CPC- porquanto, não foi levado à apreciação da Relação.

Desse modo tal questão, não constituindo objeto admissível do presente recurso, não será conhecida.

IV – Fundamentação de facto

A factualidade a considerar extrai-se do relatório supra, importando destacar:

i) A declaração de insolvência foi decretada por sentença datada de 21-09-2023.

ii) Na execução comum nº 414/20.0..., as diligências de venda do imóvel por negociação particular, adjudicação ao proponente, pagamento por este das quantias conexas e, distribuição do produto da venda aos credores e pagamento de custas, esgotando o respetivo saldo, ocorreram em data anterior a 21-09-2023.

iii) A execução foi, entretanto, suspensa nos termos do art. 88º nº 1 do CIRE.

iv) Não foi outorgada escritura pública de compra e venda ou elaborado documento particular autenticado respeitante à venda do imóvel.

V – Fundamentação de Direito

Importa apreciar se há ou não fundamento para o levantamento da apreensão de um direito sobre a meação de imóvel, efetuada em autos de insolvência, imóvel esse que em execução comum havia sido transmitido a um terceiro adquirente, tendo este pago todas as quantias devidas pela aquisição, mas sem escritura pública de compra e venda ou documento particular autenticado, tendo o produto da venda sido usado para pagamento aos credores e custas da execução, o que tudo ocorreu em data anterior à declaração de insolvência.

O acórdão recorrido perfilhou o entendimento de que na venda executiva, nomeadamente por negociação particular, à semelhança da venda comum, o efeito translativo do direito de propriedade ocorre com a aceitação da proposta de venda pelo agente de execução, ficando a transmissão sujeita a condição suspensiva do pagamento do preço e das obrigações fiscais, mas com efeitos retroativos à data da aceitação. Verificada a condição, transfere-se para o proponente comprador a propriedade da coisa ou a titularidade do direito, retroagindo esse efeito à data da aceitação da proposta - cf. art. 276º do Código Civil-, que se atestará pelo respetivo “título de transmissão”.

O que impediria a apreensão do imóvel (ou direito de meação sobre o mesmo) para a massa insolvente, não estando este já na disponibilidade da insolvente, estando sim, em substituição, o produto da venda, caso não tenha sido, entretanto, entregue como pagamento aos credores.

Estando tal indisponibilidade e substituição acauteladas no art. 149º nº 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante “CIRE”).

E assim, no caso concreto, nada haveria apreender, porquanto à data da declaração de insolvência nem o bem, nem o produto da venda integravam o património da devedora/insolvente.

Para a Recorrente, outra deve ser a solução, pois que, o direito de propriedade apenas se transmite com a emissão do título de transmissão ou a celebração da escritura pública, após o cumprimento integral das formalidades previstas no art. 827º nº 1 do CPC, pelo que, não tendo tal formalidade ocorrido, o imóvel (ou direito de meação sobre o mesmo) integra ainda a esfera jurídica-patrimonial da insolvente, devendo ser apreendido no âmbito do art. 149º nº 1 do CIRE.

A divergência de posições, sendo determinante na diferenciação de resultados práticos, como mais adiante desenvolveremos, tem subjacente uma igualmente divergência de entendimentos quanto ao momento em que se considera produzido o efeito translativo da propriedade na venda executiva.

A venda executiva de imóvel pode revestir várias modalidades, nomeadamente: a venda direta, a venda em leilão eletrónico, a venda em estabelecimento de leilão, a venda por negociação particular e a venda mediante propostas em carta fechada.

Por facilidade de exposição, teremos em linha de conta sobretudo estas duas últimas.

Na venda executiva, quando estiver integralmente pago o preço (arts. 824º, nº 2, 825º, 827º, nº 1, 833º, nº 4 – exceto se houver dispensa do depósito do preço (art. 815º CPC) – e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão – exceto se houver isenção das obrigações fiscais –, o agente de execução adjudica os bens – caso haja lugar à adjudicação dos bens (art. 827º, nº 1 CPC e 26º da Portaria n.º 282/2013 de 29 de Agosto, que regulamenta vários aspetos das ações executivas cíveis).

Posteriormente, os bens são entregues pelo detentor-depositário (art. 756º CPC) ao adquirente e o agente de execução passa o título de transmissão (art. 827º, n.º 1 CPC), no caso de venda mediante propostas em carta fechada, ou celebra a escritura de venda, no caso de venda por negociação particular (art. 875 CC).

Por fim, com o título, o agente de execução comunica a venda à conservatória do registo predial competente, para que esta inscreva a aquisição a favor do adquirente e cancele as inscrições relativamente aos direitos que caduquem com a venda executiva nos termos do art. 824º, n.º 2 CC (arts. 827º, n.º 2 e 811º, n.º 2, ambos do CPC).

Considerando as formalidades exigidas pelo art. 827 nº1 do CPC para a venda mediante propostas em carta fechada, ou pelo art. 875º do CC para a venda por negociação particular, importa determinar em que momento ocorre o efeito translativo da propriedade na venda executiva.

O que constitui objeto de controvérsia, quer na doutrina quer na jurisprudência.

Na interpretação do art. 827.º nº 1 do CPC, Lebre de Freitas, A Ação Executiva, 7ª ed., p. 383 sustenta que a venda se aperfeiçoa com o depósito do preço, correspondendo a data em que os bens foram adjudicados, à data do depósito do preço.

Também Remédio Marques, Curso de Processo Executivo Comum à face do Código Revisto, p. 404, defende que com a adjudicação termina o processo da venda, sendo o depósito um elemento constitutivo da venda.

Em sentido divergente, Rui Pinto, A Ação Executiva, p. 913, afirma que o momento translativo corresponde ao da entrega dos bens ou da assinatura do título que documenta a venda, no caso de venda por negociação particular e, ao da emissão do título de transmissão, no caso de venda por propostas em carta fechada e em leilão eletrónico.

Também Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 10ª edição, 2007, página 391, entende que a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito só ocorre com a emissão do título de transmissão por parte do agente de execução, no que toca à venda por propostas em carta fechada, e com a outorga do instrumento da venda, no que respeita à venda por negociação particular.

Também na jurisprudência mostram-se definidas estas duas posições.

Uma posição defende que a venda executiva reveste a natureza de um negócio jurídico que se realiza com a aceitação de determinada proposta, ficando o efeito translativo da propriedade da coisa ou da titularidade do direito sujeito à verificação da condição suspensiva da realização dos depósitos, a que se refere o art. 815º CPC.

Neste sentido, além do acórdão recorrido, decidiram, entre outros, disponíveis em www.dgsi.pt, o Tribunal da Relação do Porto, no acórdão de 18/10/2011, P. 4010/07.9YYPRT.P1:

“ A emissão de título de transmissão é uma mera formalidade que culmina o processo de transmissão da propriedade, mas não é com essa emissão que se conclui a venda.”

Ou, o Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão de 27/03/2014, P. 17748/12.0T2SNT-B.L1-8:

Na venda executiva a transmissão da propriedade ocorre aquando da adjudicação; sendo esta anterior à declaração de insolvência, não pode ser apreendido a fração vendida para a massa insolvente.”

Uma outra posição jurisprudencial entende que a transmissão da propriedade ocorre apenas aquando da adjudicação com a emissão do título de transmissão (acórdão do STJ de 19/06/2018, P. 5664/14.5T8ENT-A.E1.S1, indicado como acórdão fundamento na presente revista excecional e, em cujo sumário se colhe:

“I - Na venda em execução, o efeito translativo do direito de propriedade só ocorre com a emissão pelo agente de execução do documento de transmissão do imóvel (art. 827.º, n.º 1, do CPC).

Em sentido idêntico o acórdão de 11/03/2021 do Tribunal da Relação de Évora, P. 514/04.3TBORQ-C.E1, que decidiu:

“I - A venda em processo de execução produz os mesmos efeitos da venda realizada através de um negócio jurídico, ou seja, tem como efeitos essenciais as obrigações de entregar a coisa e de pagar o preço, e a transmissão da propriedade da coisa - artigo 879º als. a) a c) do Código Civil.

II - Mas, ao contrário do que sucede na venda negocial, em que a transferência da propriedade se dá por mero efeito do contrato, diferentemente sucede na venda executiva, porquanto nela os bens só são adjudicados ao proponente após se mostrar integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, e apenas depois é que é emitido, pelo agente de execução, o título de transmissão, ou seja, a transferência de propriedade apenas ocorre com a emissão do título de transmissão.”

Na opção por um ou outro entendimento mostra-se prioritário, atender ao que dispõe o artigo 827º, do CPC, destinado à venda mediante propostas em carta fechada, por exigir maior definição formal.

Assim dispõe tal norma que:

1- Mostrando-se integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, os bens são adjudicados e entregues ao proponente ou preferente, emitindo o agente de execução o título de transmissão a seu favor, no qual se identificam os bens, se certifica o pagamento do preço ou a dispensa do depósito do mesmo e se declara o cumprimento ou a isenção das obrigações fiscais, bem como a data em que os bens foram adjudicados.

2- Seguidamente, o agente de execução comunica a venda ao serviço de registo competente, juntando o respetivo título, e este procede ao registo do facto e, oficiosamente, ao cancelamento das inscrições relativas aos direitos que tenham caducado, nos termos do n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil.

Esclarece o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 19-06-2018, respeitante ao P. 5664/14.5T8ENT-A.E1.S1 (presente acórdão fundamento), que:

“Antes da reforma da ação executiva de 2003 (DL 38/2003, de 8 de Março, e DL 199/2003, de 10 de Setembro) considerava-se que o ato concretizador da venda era o despacho judicial de adjudicação, o qual só deveria ser proferido depois de se mostrar integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, conforme determinava o artigo 900º.

Com a profunda reforma da ação executiva, a preparação e efetivação da venda executiva passou a caber ao agente de execução, o que levou à supressão do despacho judicial de adjudicação que constava da norma do n.º 2 do artigo 900º.

Com a profunda reforma da ação executiva, a preparação e efetivação da venda executiva passou a caber ao agente de execução, o que levou à supressão do despacho judicial de adjudicação que constava da norma do n.º 2 do artigo 900º.

Por isso se concorda com a conclusão a que chegou o acórdão recorrido ao considerar que o legislador pretendeu incorporar no ato de emissão do título de transmissão do bem a própria adjudicação do bem ao proponente, ou seja, a transmissão do bem ao proponente para efeitos do disposto no art.º 824º do Código Civil.

Um claro sinal disso dimana do confronto da anterior alínea a) do n.º 1 do artigo 913º, com a atual alínea a) do n.º 1 do artigo 843º, a propósito do exercício do direito de remição no caso de venda por propostas em carta fechada.

Na anterior redação dispunha-se que o direito de remição podia ser exercido até ser proferido despacho de adjudicação dos bens ao proponente, dizendo-se agora que esse direito pode ser exercido até à emissão do título de transmissão dos bens para o proponente.

Cremos, pois, tal como se decidiu no douto acórdão recorrido, que o efeito real de transmissão do direito propriedade para o proponente se materializa na emissão, pelo agente de execução, do título de transmissão do bem, nos termos da segunda parte do n.º 1 do art.º 827º do NCPC.

Isto não constitui violação do princípio da consensualidade, consagrado no artigo 408º, n.º 1, do CC, pois o que tal princípio apenas impõe é que o efeito real seja uma mera consequência do contrato, não que o referido efeito seja sempre uma consequência imediata e instantânea. Portanto, o efeito real verifica-se em virtude do mero contrato, mas nem sempre no momento do contrato, podendo ser diferido no tempo, por estar dependente de um ato complementar posterior.”

Ana Margarida Ferreira Carvalho, Efeitos Substantivos da Venda Executiva de Imóvel Arrendado no Ordenamento Jurídico Português Atual, in https://estudogeral.uc.pt/ acompanha esta posição, acentuando as semelhanças e as diferenças entre venda voluntária e venda executiva:

“A venda executiva tem os efeitos típicos de natureza obrigacional, da venda voluntária.

Se na venda voluntária o legislador estabelece, essencialmente, dois efeitos obrigacionais do contrato: a obrigação de entregar a coisa e a obrigação de pagar o preço (art. 879º, alíneas b) e c) CC), tais efeitos verificam-se igualmente na venda executiva, aplicando-se à mesma, subsidiariamente, o regime da venda voluntária (arts. 874º e segs. CC).

A venda executiva constitui um contrato sui generis de compra e venda.

É um contrato de compra e venda porque nela existem duas manifestações de vontade de sentido oposto mas convergente – a do Estado, no exercício de um poder, e a do adquirente, no exercício de um direito subjetivo –, ajustando-se na pretensão de produzir um resultado jurídico unitário – a transmissão da titularidade de um direito em contrapartida à transmissão do preço –, embora com um significado diferente para cada parte.

Mas acaba por receber características que o apartam do contrato de compra e venda voluntária – daí que se qualifique a venda executiva como uma compra e venda sui generis. De facto, quem aliena é o Estado, e fá-lo no exercício de um poder de jurisdição executiva (poder de autoridade originário), pelo qual vende o bem do devedor em nome próprio e não em representação ou substituição do mesmo, sobrepondo-se à vontade deste.

Depois quem adquire fá-lo de livre vontade, no exercício de um direito subjetivo. A venda executiva é independente da vontade do executado, mas não é independente da vontade do adquirente. Quem adquire fá-lo porque quer. Logo, para o comprador, não existe nenhuma diferença entre a venda voluntária e a venda executiva .

Neste sentido, na venda voluntária de imóvel, a transmissão do direito de propriedade, assim como os efeitos obrigacionais, operam por mero acordo das partes (arts. 408º, n.º 1, 874º, 879º e 1317º, alínea a) CC) – a venda é real. Isto é, basta o título para que se produzam os efeitos – reais e obrigacionais – da venda voluntária. E tais efeitos ocorrem imediata e instantaneamente com a celebração do contrato. Ao invés, na venda executiva de imóvel, apesar de todos os efeitos se constituírem ou transmitirem por mero efeito do título, isto é, do acordo entre o Estado (no exercício de um poder de jurisdição executiva) e o adquirente, só os efeitos obrigacionais se produzem simultaneamente com o contrato. A transmissão do direito de propriedade, assim como a produção dos efeitos específicos da venda executiva, só ocorrem com a emissão, pelo agente de execução, do documento de transmissão do imóvel.

Defendemos, saliente-se, que tais efeitos – os reais: transmissão do direito de propriedade e os específicos da venda executiva – só ocorrem com a emissão do documento da transmissão do imóvel pois, seria inconcebível sufragar que tais efeitos se produzem com a adjudicação dos bens ou com o depósito do preço, quando é admissível ao titular do direito de remição vir à venda executiva preferir após a emissão de tal adjudicação , ou de tal depósito. Em suma, a venda executiva não constitui uma exceção ao princípio da consensualidade – ao sistema do título consagrado no nosso ordenamento jurídico. O que existe na venda executiva é um desfasamento entre o momento da celebração do contrato e o momento da produção de determinados efeitos. Mas tais efeitos não deixam de ser consequência do contrato, pois apesar de estarem dependentes da condição suspensiva de o adquirente pagar integralmente o preço e satisfazer as obrigações fiscais inerentes à transmissão – exceto se existir dispensa e/ou isenção respetivamente –, a verdade é que o contrato os integra no seu esquema negocial.” (sublinhado nosso)

É nosso entendimento ser esta a posição que melhor traduz as especificidades do regime legal.

O texto doutrinário acabado de referir confere especial relevância ao regime do exercício do direito de remissão, em particular ao que dispõe o art. 843º nº 1 do CPC.

Que rege:

1 - O direito de remição pode ser exercido:

a) No caso de venda por propostas em carta fechada, até à emissão do título da transmissão dos bens para o proponente ou no prazo e nos termos do n.º 3 do artigo 825.º;

b) Nas outras modalidades de venda, até ao momento da entrega dos bens ou da assinatura do título que a documenta.

O que justifica a seguinte concretização.

Se no caso de venda por propostas em carta fechada, a remissão pode ter lugar até à emissão do título de transmissão dos bens a favor do proponente e, se nas outras modalidades de venda executiva, o exercício do direito de remissão pode ocorrer até ao momento da entrega dos bens ou do título que a documenta, tal significa que, até que ocorram tais atos, os efeitos reais da compra e venda não se verificam, estando dependentes da concretização de tais atos para que se verifiquem, e não, do pagamento do preço.

O pagamento que ocorra antes do exercício da remissão, não é, por si só, apto a paralisar tal exercício.

Em reforço desta tese, podemos ainda invocar a norma do art. 828.º do CPC.

O adquirente pode, com base no título de transmissão a que se refere o artigo anterior, requerer contra o detentor, na própria execução, a entrega dos bens, nos termos prescritos no artigo 861.º, devidamente adaptados.

Este artigo permite ao adquirente de bens em execução, com base no título de transmissão referido no art. 827º, requerer o prosseguimento dessa execução, formulando nos próprios autos pedido de entrega contra o detentor. Não lhe basta assim, ter cumprido o pagamento do preço, necessário é que disponha do título de transmissão para exigir do detentor o bem que comprou em venda executiva.

Sendo esta a solução que se nos afigura melhor corresponder ao regime substantivo e processual atinente à venda executiva, não deixamos de reconhecer as dificuldades de conjugação desta posição com o regime do art. 149º nº 2 do Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa (doravante CIRE).

Dispõe o art. 149º do CIRE que:

1 - Proferida a sentença declaratória da insolvência, procede-se à imediata apreensão dos elementos da contabilidade e de todos os bens integrantes da massa insolvente, ainda que estes tenham sido:

a) Arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, seja em que processo for, com ressalva apenas dos que hajam sido apreendidos por virtude de infração, quer de carácter criminal, quer de mera ordenação social;

b) Objeto de cessão aos credores, nos termos dos artigos 831.º e seguintes do Código Civil.

2 - Se os bens já tiverem sido vendidos, a apreensão tem por objeto o produto da venda, caso este ainda não tenha sido pago aos credores ou entre eles repartido. (sublinhado nosso).

Colhe-se do nº 2 que o produto da venda de bens penhorados efetuada em execução do insolvente, realizada antes da declaração da insolvência, e ainda não entregue aos credores, constitui parte integrante do «património do devedor à data da declaração de insolvência», devendo, por isso, ser apreendido nos termos do art. 36º nº 1 alª g) do CIRE e integrar a respetiva massa insolvente, em substituição do bem vendido, nos termos compreendidos no art. 46º nº 1.

O disposto nesta norma parece sugerir que, por força do concreto ato de pagamento se opera de imediato o efeito translativo da propriedade do bem, passando o produto da venda a integrar o património do devedor e a ser apreendido nessa qualidade, em substituição do bem vendido que, não sendo um caso de res nullius, se transferiu para o património do terceiro adquirente.

Ou seja, se o produto da venda pertence ao executado/agora insolvente, o bem que lhe corresponde pertencerá ao adquirente.

Essa a posição defendida no acórdão recorrido.

Importa, contudo, ter presente que a interpretação normativa não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (art. 9º do CC).

O que obriga a conjugar o regime afeto a este tema, no seu todo.

Assim, sendo indubitável que, para efeitos de aplicação do art. 149º nº 2, do CIRE, o produto da venda obtida em sede de processo executivo, quer tenha sido realizado antes, quer depois da declaração da insolvência, e que ainda não tenha sido entregue aos credores ou reclamantes de créditos na execução, corresponde a um bem do executado/insolvente, e por isso, é suscetível de apreensão para a massa insolvente, tal apreensão só será válida se ocorrer depois de emitido o título de transmissão, nos casos de venda por propostas em carta fechada e em leilão eletrónico ou, depois de celebrada a escritura ou assinado o título que documenta a venda, nas demais modalidades da venda, porque só a partir de tais atos se aperfeiçoa a venda executiva.

Enquanto tais documentos não forem emitidos, pode ser exercido o direito de remissão e retornado o bem “vendido” ao património familiar, independentemente do pagamento por terceiro proponente, como desenvolvemos supra.

Logo, a apreensão que se antecipar a tais atos corre o risco de ser invalidada, por o produto da venda não constituir ainda património do executado/insolvente.

Qual a repercussão desta posição no destino dos autos ?

No caso concreto, antes de declarada a insolvência da executada AA, ocorreu a venda por negociação particular do imóvel penhorado nos autos de execução e o produto da venda foi depositado pelo proponente BB, sem que tenha sido celebrada a respetiva escritura pública de compra e venda ou documento particular autenticado, nos termos do art.º 875.º do Código Civil.

Logo, a aquisição da propriedade sobre o imóvel, por parte deste, ainda não se consumou. A propriedade do imóvel (meação) não saiu do património da executada/insolvente e demais executados.

Sendo indiferente que, antes de declarada a insolvência o produto da venda tenha sido destinado ao pagamento do credor hipotecário, não figurando já depositado nos autos de execução.

A correção da afetação antecipada do produto da venda por parte do Sr. Agente de Execução deverá, em sede própria, ser sujeita ao necessário enquadramento jurídico-processual.

Manifestou-se o acórdão, em sintonia com a sentença, pela solução que, na sua opinião, melhor corresponde às legítimas expetativas de um terceiro adquirente de boa fé, sem que se vislumbre prejuízo para os credores da insolvente.

Assim se ponderou:

“Nas palavras dos Apelados, a apreensão do imóvel no âmbito do processo de insolvência não se revela benéfico para quaisquer partes, designadamente no que concerne à insolvente, respetivos credores; não se antevê qualquer benefício daqui decorrente; apenas um acréscimo de despesas para a massa insolvente; designadamente, porque se correr o risco de ter de se indemnizar o Terceiro Adquirente, por eventuais danos causados – recorde-se que o mesmo tem o preço pago desde junho de 2023; ademais, existirá ainda a necessidade de reformular a lista de credores reconhecidos, na medida em que os valores recebidos pela aqui Recorrida terão de ser devolvidos e, por consequência, reclamados como crédito garantido no âmbito da presente insolvência; a solução preconizada pelo douto tribunal a quo é a que melhor serve os interesses de todas as partes, evitando-se mais delongas e acréscimo de custos; para além de que, pese embora não tenha título para registo, o Apelante adquiriu de boa fé, no âmbito de um processo judicial, tendo cumprido todas as obrigações que lhe eram exigidas e exigíveis; a anulação de tal negócio, para lá de carecer de fundamento legal, não favorece nem a Massa Insolvente, nem os credores, e menos ainda o aqui Apelante que é estranho a todo este procedimento; a tutela da legítima expectativa do adquirente, sem prejuízo para terceiros (que até já receberam os seus créditos através do pagamento do preço por si efetuado) e as razões de equidade, justiça material e certeza e segurança jurídicas, devem sobrepor-se a qualquer eventual razão de natureza meramente formal; a solução preconizada pelo tribunal a quo” é a única possível, razoável, justa e equitativa e que melhor serve os interesses de todas as partes, pelo que deverá manter-se.”

Ainda que se reconheça nesta ponderação, a preocupação de justiça do caso, o que está em causa neste recurso é determinar, com certeza e segurança jurídicas, qual o exato momento em que se concretiza, no âmbito da venda de imóvel em processo de execução, a transmissão do direito de propriedade a favor do adquirente.

E em função da resposta dada se, no caso concreto, há fundamento para ser ordenada/mantida a apreensão do direito à meação da insolvente sobre o imóvel, que fora, em autos de execução, vendido a terceiro, tendo este pago o preço devido, logo entregue aos credores da execução, ocorrências que antecederam a declaração de insolvência. Sem que tivesse sido celebrada escritura de venda, ou entregue ao comprador documento particular autenticado, consumando a mesma (art. 875.º CC).

A resposta dada de forma certa e segura, a nosso ver, só pode ser esta: na venda em execução, o efeito translativo do direito de propriedade só ocorre com a emissão pelo agente de execução do documento de transmissão do imóvel ou com a celebração de escritura pública ou do documento particular autenticado, que a titule.

O que implicará, necessariamente, a reposição do bem (meação sobre o imóvel) no património a que pertence à data da insolvência (massa insolvente) e, a restituição do produto da venda ao proponente, cujos direitos ressarcitórios, em sede própria, lhe deverão ser assegurados.

Assim, procedendo o recurso.

Em suma:

1- Na venda em execução, o efeito translativo do direito de propriedade só ocorre com a emissão pelo agente de execução do documento de transmissão do imóvel ou com a celebração de escritura pública ou do documento particular autenticado, que a titule, consoante se trate de venda mediante propostas em carta fechada ou venda por negociação particular.

2- Enquanto tais documentos não forem emitidos, pode ser exercido o direito de remissão e retornado o bem “vendido” ao património familiar do executado, independentemente de ter ocorrido pagamento do bem por terceiro em venda executiva.

3- Há fundamento para ser ordenada/mantida a apreensão do bem, que fora, em autos de execução, vendido a terceiro, tendo este pago o preço devido, logo entregue aos credores da execução, ocorrências que antecederam a declaração de insolvência, se não foi celebrada a escritura de venda ou, entregue ao comprador documento particular autenticado, consumando a mesma (art. 875.º CC).

4- Tendo o comprador direito à restituição do que pagou e ressarcimento de eventuais prejuízos.

VI- Deliberação

Pelo exposto, delibera-se, na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em conceder a Revista, revogando a decisão recorrida que se substitui por outra que ordene a manutenção da apreensão do direito de meação da insolvente sobre o imóvel, a favor da massa insolvente de AA.

Custas pela massa insolvente, face ao proveito.

Lisboa, 29 de abril de 2025

Anabela Luna de Carvalho (Relatora)

Rosário Gonçalves (1ª Adjunta)

Graça Amaral (2ª Adjunta)