Sumário
No contrato de compra e venda de uma fração urbana as declarações de vontade das partes incidem sobre a fração tal como existe e a sua existência é representada legalmente por normas de interesse e ordem pública relativas a inscrição na matriz, a descrição no registo predial, a identificação do prédio em atos notariais e aos procedimentos e caraterísticas de construção.
Decisão Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
1. RELATÓRIO.
POSTURA ITINERANTE, LDA propôs contra PARUPS, S.A., esta ação declarativa de condenação sob a forma comum, pedindo que em relação ao contrato de compra e venda celebrado com a R, de fração autónoma com a área de 266,55 m2 que veio a
revelar-se ter apenas 200,20 m2, esta seja condenada, além do mais, a ver reduzido o preço do negócio celebrado com a A, de € 100.000,00 para € 75.107,86, restituindo-lhe o valor de € 24.892,14 e a pagar-lhe o valor de € 1.817,13 correspondente ao IMT (6,5%) e Imposto de Selo (0,8%) pago em excesso ou os valores correspondentes à área que vier a revelar-se em falta.
Citada, contestou a R dizendo, em síntese, que a A sucedeu na posição contratual de anteriores promitentes compradores que declararam ter perfeito conhecimento do estado físico e das áreas do imóvel, não respondendo a R por eventuais desconformidades, pedindo a absolvição do pedido.
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Realizada audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença, julgando a ação improcedente, absolvendo a R do pedido.
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Inconformada com essa decisão, a A dela interpôs recurso, recebido como apelação, impugnando a decisão em matéria de facto e pedindo a procedência da ação.
A R não apresentou contra-alegações.
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O Tribunal da Relação julgou a apelação parcialmente procedente, revogando a sentença, condenando a R/apelada a pagar à A/apelante a quantia de € 27.330,70, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação, no mais a julgando improcedente, absolvendo a apelada.
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Inconformada com o acórdão a R/apelada dele interpôs recurso de revista, formulando as seguintes conclusões:
1) No presente caso estamos perante um contrato de compra e venda de uma fração autónoma no qual o dito imóvel é vendido pela Recorrente à Recorrida pelo preço de 100.000,00€.
2) O contrato de compra e venda encontra-se previsto no artigo 874.º do CC e constitui-se como um contrato translativo e oneroso.
3) No caso em apreço, falamos de um contrato de compra e venda de um bem imóvel, logo, o mesmo só se revela válido por ter sido celebrado por escritura pública, o que ocorreu in casu, tal como resulta do facto provado 3), pelo que se encontra verificado o requisito da forma.
4) O douto Acórdão a quo entendeu, além do mais, que, in casu, estamos perante uma venda ad corpus, prevista nos termos do artigo 888.º do CC, aspeto com o qual a Recorrente concorda, uma vez que não resulta do elenco dos factos provados que o preço tenha sido fixado em razão da unidade.
5) Assim, na venda ad corpus, contrariamente à venda ad mensuram, o preço da coisa certa e determinada é definido em função da totalidade da coisa e não da sua dimensão, mesmo que no contrato seja feita referência para tal.
6) Não obstante o disposto no n.º 2 do artigo 888.ºdo CC estipular que, no caso de haver uma discrepância entre a quantidade efetiva e a declarada excedendo em mais de um vigésimo desta, o preço será reduzido ou aumentado proporcionalmente, não podemos concordar pela linearidade desta consequência face ao caso em apreço.
7) Efetivamente, a área que consta das certidões matriciais e da descrição predial é de 266,55 m².
8) Contudo, não pode de forma alguma a informação constante das certidões de registo predial e de inscrição matricial funcionar como uma presunção da sua área efetiva, para efeitos de aplicação do disposto no artigo 888.º, n.º 2 do CC, sendo necessário, para efeitos de aplicação do mencionado artigo a referência da área na escritura, o que, in casu, não ocorreu!
9) Ora, as partes, para além de não terem feito referência na escritura pública à área do imóvel, não fizeram constar da escritura qualquer declaração num sentido que nos permita concluir que a área foi determinante ou essencial ou, até, sequer relevante para a formação da vontade de contratar de alguma das partes, neste caso, e em especial, da Recorrida.
10) Da leitura do artigo 888.º, n.º 2 do CC resulta, claramente que, para que haja direito ao aumento ou à redução do preço é necessário que se tenha indicado ou declarado, o número, peso ou medida da coisa vendida
11) Assim sendo, deveria a área da fração constar, imperativamente, da escritura pública, uma vez que a documentação, onde consta, efetivamente, a área, não se mostra suficiente, por tudo o que já foi enunciado, para os efeitos pretendidos pelo douto Acórdão!
12) Deve concluir-se, deste modo, que nada tendo as partes expressa ou tacitamente declarado na escritura pública de compra e venda relativamente à concreta área da fração autónoma, perde a Recorrida o seu eventual direito de redução proporcional do preço, a que alude o n.º 2 do artigo 888.º do CC.
Termos em que se conclui pela procedência do presente recurso, e por via dele, pela revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que absolva a Ré do pedido, assim fazendo V. Exas ...... Justiça!
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A A/recorrida contra-alegou, pugnando pela confirmação do acórdão recorrido.
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2. FUNDAMENTAÇÃO.
A) OS FACTOS.
O acórdão recorrido julgou:
A.1. Provados os seguintes factos:
1) A autora é uma sociedade comercial constituída sob a forma de sociedade por quotas que se dedica à compra e venda de bens imóveis e à revenda dos adquiridos para esse fim, arrendamento e exploração de bens imobiliários.
2) A ré é uma sociedade anónima cujo objeto social é a prestação de serviços de consultoria, aquisição para a sociedade de títulos, de créditos ou imóveis e correlativa gestão de bens pertencentes à sociedade, aquisição de imóveis para revenda no âmbito destas atividades e revenda dos adquiridos para tal fim.
3) Por escritura pública outorgada em 31 de janeiro de 2020 no cartório notarial da Exma. Sra. Notária AA, sito na Rua Dr. ..., ... ..., a ré declarou vender e a autora declarou comprar, pelo preço de €100.000,00, o imóvel aí assim descrito:
“Fração autónoma designada pela letra “V” – primeiro andar – escritório, designado pela letra A, com o valor patrimonial de € 162.312,60, registada a favor da vendedora pela apresentação três mil e sessenta e três, de um de fevereiro de dois mil e onze.
A qual faz parte do prédio urbano, sito no Lugar de ..., rua de acesso à ... ou rua ... e rua ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo ..40, descrito na respetiva conservatória do registo predial sob o número quatrocentos e sessenta e sete/..., em regime de propriedade horizontal registado pela apresentação vinte e dois, de vinte de junho de mil novecentos e noventa e seis”, conforme consta do teor do documento junto aos autos a fls. 8 – verso a 17, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
4) O preço do imóvel foi pago aquando da outorga da escritura pública de compra e venda (31/01/2020) através de dois cheques bancários, com os nºs ........36 e ........33, ambos sacados sobre o Banco Comercial Português, S.A.
5) Ainda no mesmo ato, foi constituída uma hipoteca sobre o imóvel acima identificado para garantia do pagamento de todas as obrigações pecuniárias emergentes do empréstimo com o nº .......61 concedido pelo Banco Comercial Português, S.A. à autora.
6) A autora teve conhecimento que a aludida fração se encontrava à venda por consulta de publicidade alusiva ao mesmo e da qual constava a informação de que se tratava de fração afeta a escritórios, com a área total de 266,55 m2.
7) O processo negocial de compra e venda da fração acima identificada em 3), foi intermediado pela sociedade U..., Lda, com quem a ré havia celebrado acordo escrito de mediação imobiliária para o efeito.
8) Foi a dita sociedade U..., Lda que, através do seu legal representante, deu a conhecer a mencionada fração à autora e lhe prestou as informações sobre a mesma, designadamente, que se tratava de uma fração autónoma inserida no primeiro andar de um prédio em regime de propriedade horizontal, afeta a escritórios, com a área total de 266,55 m2.
9) Na sequência dos contactos encetados foram exibidas fotografias do interior e exterior da fração.
10) O legal representante da autora efetuou visitas à mencionada fração, acompanhado pelo legal representante da dita sociedade U..., Lda
11) Foram ainda facultados ao legal representante da autora o título constitutivo da propriedade horizontal datado de 10 de abril de 1996, onde se encontram relacionadas e descritas as trinta e nove frações que compõem o edifício denominado “Edifício I...... .. ........”, entre elas a fração acima identificada em 3), assim descrita: “Fração V: Escritório designado pela letra A, composto por sala ampla e quarto de banho, com área de duzentos e sessenta e seis metros quadrados e cinquenta e cinco decímetros, com o valor relativo de cinquenta e um milavos do valor total do prédio e o valor venal de dois milhões quinhentos e cinquenta mil escudos”.
12) Assim como foram disponibilizados à autora a caderneta predial urbana, da qual resultava que a fração V tinha uma área de 266,55 m2, bem como a respetiva descrição da Conservatória do Registo Predial de ..., igualmente imputando a área de 266,55 m2 à mesma fração.
13) Na posse dessas informações a autora acedeu à aquisição da mencionada fração pelo preço de €100.000,00.
14) Para efeitos de outorga da escritura pública, a autora efetuou o pagamento do respetivo imposto de selo, com base no indicado valor de €100.000,00.
15) Desde a data da outorga da escritura de compra e venda acima mencionada em 3), a autora passou a suportar o pagamento de todos os encargos inerentes ao imóvel adquirido, nomeadamente o IMI e o condomínio.
16) Em data não concretamente apurada, mas seguramente não posterior ao início do mês de outubro de 2020, a autora tomou conhecimento que a fração acima identificada em 3), não possuía a área de 266,55 m2.
17) A fração acima identificada em 3), tem a área bruta privativa de 193,70 m2.
18) A autora adquiriu o imóvel acima identificado na convicção que o mesmo tinha a área de 266,55 m2.
19) A 07 de outubro de 2020, a autora remeteu à ré carta registada com aviso de receção onde a informa que detetou que a área da fração adquirida não possui a área de 255,50 m2 constante dos respetivos documentos e solicita a redução do preço, o reembolso dos impostos pagos em excesso e o valor que será necessário despender para retificação da área junto das entidades competentes.
20) Em resposta, a ré enviou à autora carta registada com aviso de receção datada de 21 de outubro de 2020, na qual referiu não se considerar responsável pelas despesas reclamadas pela autora.
21) Numa derradeira tentativa de resolver a situação por via extrajudicial e pretendendo esclarecer a resposta da ré, a autora, através do seu mandatário, remeteu nova carta registada com aviso de receção para a sede da ré em 08 de janeiro de 2021, mantendo a ré a sua posição.
22) Para proceder à alteração da área do imóvel junto da Câmara Municipal de ..., do Serviço de Finanças e da Conservatória do Registo Predial, à alteração da propriedade horizontal e respetiva escritura pública, terá a autora que incorrer em despesas com esses procedimentos, cujo valor, em concreto, não se apurou.
23) A 28 de setembro de 2019, foi celebrado um acordo escrito denominado “Contrato-Promessa de Compra e Venda”, no âmbito do qual a ora ré declarou prometer vender e BB e CC declararam prometer comprar a fração autónoma acima identificada em 3), no seu atual estado físico, administrativo e na situação jurídica em que se encontra à data da celebração do acordo, pelo preço de €100.000,00, mais declarando os promitentes compradores, que têm conhecimento de todas as áreas do imóvel, não respondendo a promitente vendedora por qualquer desconformidade entre a realidade física do mesmos e o que constar no registo predial.
24) A 19 de dezembro de 2019, os mencionados promitentes compradores BB e CC comunicaram à ré, através de email, que pretendiam ceder a sua posição contratual à ora autora.
25) Através de email datado de 20 de dezembro de 2019, respondeu a ré que concordava com a celebração do acordo definitivo de compra e venda com a ora autora.
26) Através de documento particular autenticado datado de 30 de setembro de 2022, a autora declarou vender a DD e EE, que declararam comprar, pelo preço de €115.000,00, o imóvel aí assim descrito:
“Fração autónoma designada pela letra “V”: correspondente ao primeiro andar – Escritório, designado pela letra A, área de 266,55 m2, registado a favor da sociedade vendedora, pela inscrição lavrada com base na apresentação ..41 de 2020/01/31, parte integrante do prédio urbano composto por edifício de cave, rés-do-chão e 4 andares estando estes agrupados em 2 blocos, bloco «D» e bloco «E», com quatro andares, cada um dos blocos, denominado Edifício I...... .. ........, sito na Rua de Acesso à ... ou Rua ... e Rua ..., Lugar de ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº 467/... - «V», e inscrito na matriz predial urbana da união de freguesias de ..., sob o artigo ..40º, cm o valor patrimonial tributário de €162.312,60”.
27) O requerimento do pedido de avaliação, alteração de áreas, de 229,50 m2 para 266,55 m2 apresentado pela ré à Autoridade Tributária e Aduaneira, em 25/10/2016, teve como fundamento a alteração de áreas, nos termos do artigo 130º, nº 3, alínea n) do CIMI
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A. 2. Não provados os seguintes factos:
a) Para efeitos de outorga da escritura pública a autora efetuou o pagamento do respetivo IMT, com base no indicado valor de €100.000,00.
b) Aquando das negociações tendentes à venda da fração acima identificada em 3), a ré já sabia da discrepância entre a área declarada na documentação entregue à autora e a área real dessa mesma fração, tendo omitido tal informação à autora.
c) A ré sabia que foi determinante para a formação da decisão de contratar da autora pelo preço de €100.000,00, o imóvel ter a área de 266,55 m2.
d) Caso a autora soubesse, à data da outorga da escritura de compra e venda acima mencionada em 3), que a fração objeto da mesma tinha a área bruta privativa de 193,70 m2, não teria aceitado celebrar o negócio pelo valor de €100.000,00, mas sim por um preço inferior.
e) A autora acordou em suceder na posição dos promitentes-compradores no acordo escrito acima mencionado em 23) dos factos provados.
B) O DIREITO APLICÁVEL.
O conhecimento deste Supremo Tribunal, quanto à matéria dos autos e quanto ao objeto da revista, é delimitado pelas conclusões das alegações da Recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 635.º, n.º 2, 639.º 1 e 2, do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso), observando, em especial, o estabelecido nos art.ºs 682.º a 684.º, do C. P. Civil.
Atentas as conclusões da revista, acima descritas, a questão submetida ao conhecimento deste Supremo Tribunal pela Recorrente consiste, tão só, em saber se para efeitos de aplicação do n.º 2, do art.º 888.º, do C. Civil, deveria a área da fração constar, imperativamente, da escritura pública.
Conhecendo.
Como é pacífico na doutrina1 e na própria instância da revista, a compra e venda de fração autónoma constitui venda de coisa determinada, sendo-lhe aplicável o regime de “Venda de coisas sujeitas a contagem, pesagem ou medição” estabelecido pela Secção III, do Capítulo I, do Código Civil, relativo ao contrato de compra e venda.
Pretende a Recorrente que a aplicação do disposto no n.º 2, do art.º 888.º, do C. Civil ao contrato sub judice operada pelo acórdão recorrido pressupõe que a área da fração conste na escritura de compra e venda.
O facto, área da fração, poderá relevar para efeitos de aplicação de outros institutos como sejam o erro que atinja os motivos determinantes da vontade a que se reporta o art.º 251.º, do C. Civil, o regime da venda de coisa defeituosa a que se reporta o art.º 913.º do C. Civil, e esse facto em conjugação com o preço por metro quadrado poderá relevar para efeitos do disposto no n.º 1, do art.º 888.º do C. Civil e não deixará de relevar para efeitos da norma de equilíbrio de prestações/equidade do negócio, constante do n.º 2, do art.º 888.º, do C. Civil.
Com efeito, não obstante o preço de um imóvel ser comumente estabelecido por referência à unidade metro quadrado, quer ao nível da construção quer ao nível médio de preços do mercado ou em área determinada do mercado, o mais comum na compra e venda de imóveis urbanos será o estabelecimento de um preço global.
Em relação a tais realidades, estabelece o n.º 1, do art.º 888.º, do C. Civil que se “… o preço não for estabelecido à razão de tanto por unidade…”, in casu, preço por metro quadrado, é devido o preço declarado ainda que venha a verificar-se existir discrepância entre o que foi declarado e a realidade.
Por subsunção da factualidade apurada a esta norma, tendo em consideração que as partes contratantes quiseram comprar e vender uma fração com a área matricial e registral de 266,55 m², como decorre dos factos sob os números 3), 6), 8), 11) e 12), quando na realidade a mesma tinha a área de 193,70 m2, como decorre dos factos sob os números 16) e 17), como as partes não contrataram a preço por metro quadrado, a discrepância entre a realidade e a sua transposição/figuração para os elementos de identificação da fração não tem qualquer repercussão sobre o preço acordado, que se mantém inalterado pelo que “…o comprador deve o preço declarado…”
Não obstante essa estatuição, de ser devido o preço declarado, o n.º 2, do art.º 888.º, do C. Civil, atenuando as consequências da aplicação do critério adotado pelo n.º 12, estabelece que esse preço “… sofrerá redução ou aumento proporcional”, “Se…a quantidade efetiva diferir da declarada em mais de um vigésimo desta…”.
Como refere o acórdão deste Supremo Tribunal de 07 Junho 2022, proferido no processo n.º 1116/18.2T8PRT.P1.S2, em que estava em causa a desconformidade de prédio urbano com logradouro, com esta norma do n.º 2, do art.º 888.º, do C. Civil “Tem-se em vista restaurar o equilíbrio das prestações contratuais. O remédio que a lei estabelece para essa discrepância entre a quantidade real e a quantidade declarada consiste, pois, na correção do preço estabelecido.”.
Ora, a aplicação desta norma estrutura-se em duas premissas, sendo a primeira constituída pelo binómio quantidade declarada/a quantidade efetiva e a segunda pelo diferencial entre ambas, mais de um vigésimo, cuja ocorrência conduz à conclusão de redução ou aumento proporcional do preço.
Nestas circunstâncias objetivas, em que as duas premissas estão demonstradas nos autos, a aplicação pelo acórdão recorrido da norma do n.º 2, do art.º 888.º, do C. Civil é um imperativo que não comporta margem de divergência, dentro dos princípios interpretativos estabelecidos pelo art.º 9.º, do C. Civil.
Não obstante, prefigurando-se a possibilidade de o Recorrente formular esta questão, da aplicação do disposto no n.º 2, do art.º 888.º, do C. Civil, pressupondo que a área de 266,55 m2 da fração tem de constar da escritura pública, o certo é que essa área consta efetivamente da escritura.
Esta vertente da questão tem merecido a atenção deste Supremo Tribunal nas mais diversas realidades fácticas.
O acórdão de 07 Abril 2011, proferido no P.º n.º 453/07.6TBAMR.G1.S1, em que estava em causa um prédio rústico, depois de delimitar a questão com a citação do acórdão de 26 de abril de 2007, proferido no P.º n.º 698/2007, dizendo “Tem-se entendido, aliás em conformidade com o disposto no artigo 888.º do Código Civil, que a redução no caso de venda de coisas determinadas - tal o caso da venda de imóvel rústico em que a área real não corresponde à área declarada - face ao número, peso ou medida das coisas vendidas pressupõe que no contrato se indique o número, peso ou medida das coisas vendidas e essa indicação não corresponda à realidade, referência esta que postula que haja sido introduzida no acto uma qualquer indicação …”,
Considerou que “No caso vertente, porém, não se suscita qualquer dúvida de que os autores queriam adquirir o imóvel com a área de 36.000m2 ( factos supra 5 e 7), tendo sido exarada na escritura de compra e venda que a área do imóvel era de 36.000m2”.
Também o acórdão de 14 de julho de 2016, proferido no P.º n.º 1047/12.0TVPRT.P1.S1, em que estava em causa logradouro de prédio urbano, citando os acórdãos de 07 de abril de 2011, proferido no P.º n.º 453/07.6TBAMR.G1.S1 e de 16 de setembro de 2008 e de 18 de fevereiro de 2003, proferido na revista nº 02A225, depois de considerar que também na venda ad corpus “…coloca-se apenas um problema de existência de erro sobre a quantidade que as partes tiveram em vista quando contrataram, um erro de cálculo comprovado pela verificação de que o número, peso ou medida da coisa vendida e a indicação não correspondem à realidade…”, embora integrando o caso concreto na previsão dos art.ºs 911º e 884º nºs 1 e 2, confirmou a redução do preço por desconformidade da área que tinha sido decretada por acórdão da Relação.
O acórdão de 06 de abril de 2021, proferido no P.º n.º 1116/18.2T8PRT.P1.S1, aliás citado nos autos, incidindo sobre desconformidade relativa a prédio urbano com logradouro, refere de forma incisiva que:
“Contudo, no Acórdão recorrido concluiu-se que os Autores não tinham direito à redução do preço, pois na escritura pública de compra e venda outorgada não constava a área do terreno, como, no entendimento do Tribunal da Relação deveria constar.
…. Nessa escritura pública não se mostra feita a expressa menção da área do logradouro (parte do imóvel que se discute nos autos que não tem a área que consta dos documentos – certidão predial e matricial).
Contudo, na escritura pública de compra e venda refere-se que “pelo preço de cento e dez mil euros, já recebido, vende, em nome da sua representada, livre de ónus ou encargos, o seguinte bem imóvel: (…) descrito na Conservatória do Registo Predial desse concelho sob o número mil setecentos e cinquenta e três – ..., atualmente inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo … – ... …”
Assim, as partes outorgantes, não tendo feito a descrição do imóvel (apenas referindo que era um “prédio urbano, composto de casa de rés-do-chão e andar compreendendo dependência e logradouro”), remeteram a sua descrição para a descrição do imóvel na Conservatória do Registo Predial”.
Essa fundamentação é sintetizando no ponto III do sumário nos seguintes, aliás preclaros, termos:
“III. Na venda ad corpus, nos termos do n.º2 do artigo 888.º do Código Civil, se a quantidade efetiva diferir da declarada em mais de um vigésimo desta, o preço sofrerá redução ou aumento proporcional (n.º2 do artigo 888.º do Código Civil), mesmo que na escritura de compra e venda do imóvel não haja uma referência específica à área do imóvel, havendo referências apenas à certidão do registo predial e à certidão matricial, onde está indicado um valor, que não é o correspondente com a realidade, apurado apenas posteriormente pelos compradores.”.
Também o acórdão de 28 de maio de 2024, proferido no P.º n.º 11/21.2T8FAR.E1.S1, em que estava em causa a desconformidade de prédio misto refere que “…mesmo admitindo, como se entendeu no Acórdão fundamento, que não é necessário que na escritura de compra e venda do imóvel se faça referência (se indique, como diz o art. 888.º/1 do C. Civil) à área do imóvel, bastando as remissões para as certidões do registo predial e da matriz, onde estará indicada a área do imóvel, para, se for o caso, fazer intervir o art. 888.º/2 do C. Civil, o certo é que a coisa vendida não se reduz a m2 e a diferença entre a quantidade efetivamente vendida e a quantidade declarada não se vê apenas a partir da diferença entre as “unidades” de m2 constantes das certidões e as “unidades” de m2 efetivamente existentes no prédio (sejam os 5.290 m2 referidos pela A. ou os 5.207 m2 apurados no levantamento topográfico),
Concluindo que
“…Se se vende/compra um prédio composto por uma parte urbana e uma parte rústica, não se poderá chegar à redução do preço apenas a partir da existência duma diferença na área: o “vigésimo” de diferença (requisito de funcionamento do art. 888.º/2 do C. Civil) diz respeito à quantidade global/total e, por conseguinte, tal diferença tem de emergir da totalidade do bem que foi adquirido e não apenas de parte do bem adquirido.”.
No caso sub judice, em que está em causa a desconformidade da área de fração urbana, não podemos deixar de considerar, primeiramente, que as partes não fizeram um acordo sobre “coisa à vista”, nos exatos termos em que, palpavelmente, podia ser observada, e em segundo lugar, que também não venderam e compraram uma coisa inominada que, como tal, pudesse ser objeto de relações jurídicas, como dispõe o n.º 1, do art.º 204.º, do C. Civil, mas sim um prédio imóvel urbano (fração de), conceito jurídico, com uma vertente de realidade física e outra normativa, isto é, uma coisa legalmente tipificada e como tal constituída pela realidade física visível e palpável e pela integração dessa realidade no quadro legal que a define e caracteriza.
A fração objeto do contrato não é, tout court (sem advérbios, como “apenas” ou “essencialmente”), a realidade física, observável e mensurável, mas essa mesma realidade em conjunto com os elementos que a definem por força de normas de interesse e ordem pública, entre eles os elementos de identificação como sejam a inscrição na matriz - com a imperatividade imposta pelo Código do IMI aprovado pelo Dec. Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro, entre outros, pelos art.ºs 2.º, n.ºs 1 e 4 (conceito de prédio), 10.º, n.º 1, als. a) e b) (data da conclusão dos prédios), 12.º (conceito de matrizes prediais), 13.º, n.º 1 e 3, al. a) (Inscrição de prédios na matriz), 37.º, n.º 2, (primeira avaliação), 39.º (valor base dos prédios que atende ao valor médio de construção, por metro quadrado), 80.º, n.ºs 1 e 2 (a cada prédio corresponde um único artigo na matriz), 91.º, n.º 1 (conteúdo da matriz), 92.º, n.º 3, (inscrição de fração na matriz), 93.º (cada prédio tem uma caderneta predial),
a descrição no registo predial - com a imperatividade imposta pelas normas do Código do Registo Predial aprovado pelo Dec. Lei n.º 224/84, de 06 de Julho, entre outros, os art.ºs 31.º (prova da situação matricial), 76.º e 79.º (cada prédio tem uma descrição distinta), 82.º, n.º 1, als. d) e f) (a descrição refere a área e a situação matricial), 83.º, n.º 1, als. a) e b) (descrição de fração), 90.º-A, n.º 1, al. a) e n.º 2 (a descrição comporta a autorização de utilização), 112.º, n.º 1, al. a) (conteúdo das certidões),
a identificação do prédio em atos notariais - imposta pelo Código do Notariado, aprovado pelo Dec. lei n.º 207/95, de 14 de Agosto, entre outros, pelo art.ºs 46.º, n.º 1, als. f) e g) (menção de documentos), 54.º, n.ºs 1 e 5 (menção relativa ao registo predial), 57.º, n.ºs 1 e 2 (menção relativa à matriz), 58.º (harmonização com a matriz e o registo nomeadamente quanto à área), 59.º (constituição de propriedade horizontal),
as normas relativas aos procedimentos e caraterísticas de construção definidas, entre outros diplomas, pelo Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU), aprovado pelo Dec. Lei n.º 38382/51, de 07 de Agosto e pelo Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), aprovado pelo Dec. Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, elementos de identificação que, no seu conjunto, definem e identificam a “coisa”, fração, que é objeto do contrato e que retiram aos intervenientes contratantes qualquer margem negocial em tais matérias.
Nesta exata medida, no contrato de compra e venda que tem por objeto aquela fração, as declarações de vontade das partes contratantes reportam-se e só podem reportar-se à fração tal como existe e a sua existência é representada legalmente, com a área de 266,55 m2, independentemente da ilegalidade constituída pela discrepância entre realidade física e a sua representação.
Essa ilegalidade não deixará de ter repercussão a dois níveis distintos, embora conexos, a saber, o primeiro relativamente à conformidade com as normas imperativas de definição e identificação do que se deve considerar como prédio urbano, entre elas, as antes descritas, de que nos dá conta o facto provado sob o n.º 22) da matéria de facto provada do acórdão, e o segundo relativamente ao preço acordado pelas partes contratantes, que é o que ora nos ocupa.
A este segundo nível, pois, não poderá o preço deixar de sofrer a redução proporcional à discrepância entre a área do prédio e a área da realidade física que o integra, por essa discrepância reunir os pressupostos da previsão do n.º 2, do art.º 888.º, do C. Civil e a A/recorrida se ter proposto, com esta ação, exercer o direito correspondente.
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Pelo exposto, não pode esta questão única da revista deixar de improceder, determinado que a revista seja negada.
3. DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista.
Custas pela Recorrente, que lhes deu causa, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2, do art.º 527.º, do C. P. Civil.
Orlando Santos Nascimento (relator)
Carlos Portela
Isabel Salgado
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1. Cfr, v. g. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, vol. II, 4.ª ed, págs. 178-180.