Sumário
Os tribunais portugueses são competentes, em razão da nacionalidade e da matéria, para conhecerem de acção colectiva instaurada por uma associação de consumidores contra várias sociedades do grupo Mercedes, pela utilização de dispositivos manipuladores do sistema de controlo de emissões de gases poluentes em veículos automóveis com motores diesel fabricados por aquele grupo.
Decisão Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
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A Associação de Consumidores Ius Omnibus, instaurou, no Tribunal de Comarca de Lisboa, acção popular contra Mercedes-Benz Portugal, S.A. e Mercedes-Benz AG e Daimler AG, estas sediadas na Alemanha, pedindo a condenação das rés a indemnizarem todos os consumidores titulares de veículos ligeiros Mercedes Benz, equipados com motores diesel, homologados de acordo com as normas Euri 5 e Euro 6, pelos danos resultantes da utilização, nessas viaturas, de dispositivos manipuladores ilegais da emissão de óxido de azoto.
As rés defenderam-se por excepção de incompetência em razão da nacionalidade e da matéria.
No saneador, o tribunal julgou improcedentes as excepções.
Inconformadas, as rés interpuseram competente recurso. A primeira ré, pugnando pela incompetência do Tribunal em razão da matéria e as restantes defendendo ser o Tribunal incompetente em razão da nacionalidade e da matéria.
O Tribunal da Relação de Lisboa confirmou a decisão recorrida.
De novo inconformadas, as rés interpuseram, em separado, competente revista.
Concluiu Mercedes Portugal:
«A. O Despacho Saneador proferido pelo Tribunal de Primeira Instância, bemcomo o Acórdão recorrido, proferido pelo Tribunal a quo, erraram
ao julgar improcedente, entre outras, a exceção deduzida pela Recorrente de incompetência absoluta em razão da matéria, porquanto não atenderam ao objeto da ação e ao regime jurídico aplicável, em particular ao direito europeu.
B. A causa de pedir da pretensão da Recorrida baseia-se na alegada instalação, utilização e manutenção de dispositivos manipuladores ilegais em veículos da marca Mercedes-Benz, à revelia das disposições relevantes do Regulamento Emissões, pedindo o reconhecimento desse alegado facto pelo Tribunal e pela Recorrente (e demais Rés).
C. A conformidade com o Regulamento Emissões, incluindo saber se determinados veículos contêm dispositivos manipuladores ilegais, é um requisito técnico relativo à homologação ou às ordens de recall de veículos, o qual é da competência exclusiva da KBA e dos tribunais administrativos alemães.
D. Embora a KBA não seja demandada, a natureza do litígio é de direito administrativo. Os tribunais judiciais portugueses não podem decidir sobre a conformidade com o quadro normativo harmonizado ao
nível da União Europeia, impondo-se que atribuam um efeito prático/útil às decisões da KBA.
E. Ou seja, quando o tribunal judicial português é chamado a pronunciar-se sobre a conformidade ou não conformidade das homologações com as leis administrativas aplicáveis, deve julgar-se incompetente e absolver as Rés da instância.
F. A União Europeia quis eliminar as diferenças entre os sistemas de homologação nacionais, criando um sistema de homologação totalmente harmonizado a nível europeu. A Directiva n.º 2007/46/CE veio estabelecer uma “harmonização total” dos requisitos substantivos e processuais para a homologação dos veículos a motor.
G. Por força do princípio do primado do Direito da União Europeia, os atos das instituições têm por efeito tornar inaplicáveis, desde o momento da sua entrada em vigor, quaisquer normas de direito interno que lhes sejam contrárias - o chamado “Efeito de Substituição”.
H. Através do mecanismo de reconhecimento mútuo, concedida a homologação (europeia) esta passa a ser reconhecida em todos os outros Estados-Membros, com as únicas restrições admissíveis determinadas de forma exaustiva nas cláusulas de salvaguarda da Directiva n.º 2007/46/CE (actualmente, determinadas pelo Regulamento (UE) n.º 2018/858).
I. A Directiva n.º 2007/46/CE exigia que os requisitos técnicos constantes dos actos regulamentares do anexo IV, incluindo o regulamento relativo às emissões, fossem cumpridos. A conformidade era demonstrada pela homologação e pelo certificado de conformidade do fabricante para cada veículo, e as autoridades nacionais tinham a obrigação de matricular os veículos com este certificado.
J. O Regulamento (UE) n.º 2018/858 sucedeu à referida Directiva, mantendo o sistema de “harmonização total”, reforçando os requisitos e procedimentos, complementados por um mecanismo de fiscalização do mercado realizado por autoridades nacionais (as “autoridade de fiscalização”), as quais têm a obrigação de realizar controlos periódicos de veículos.
K. As cláusulas de salvaguarda foram alargadas, mantendo o efeito vinculativo das homologações em todos os Estados-Membros. Uma entidade homologadora pode recusar reconhecer uma homologação não conforme com o Regulamento.
L. Nesse caso, a competência para resolver a situação é exclusiva das autoridades administrativas dos Estados-Membros e da Comissão Europeia, não sendo admissível medidas unilaterais dos tribunais nacionais.
M.O Regulamento Emissões estabeleceu requisitos técnicos comuns para a homologação de veículos, determinando que as normas Euro 5 e Euro 6 seriam obrigatoriamente aplicadas aos veículos de Categoria M, a partir de 01.09.2009 e 01.09.2015, respectivamente, e que todos os fabricantes deveriam obter uma homologação relativa a emissões para poderem colocar veículos no mercado.
N. O Regulamento Emissões introduziu ainda a definição legal de “dispositivo manipulador” e proibiu a sua utilização nos sistemas de controlo das emissões, excepto nas situações excepcionalmente previstas. Assim, uma homologação implica uma presunção de conformidade do veículo com o Regulamento Emissões, i.e., de que o veículo não contém qualquer dispositivo manipulador ilegal.
O. O sistema de homologação europeu harmonizado só pode alcançar o efeito pretendido através de um mecanismo de reconhecimento mútuo, o que exige que cada Estado-Membro reconheça o efeito vinculativo dos actos de homologação emitidos noutros Estados-Membros.
P. O mecanismo de reconhecimento mútuo exige que o efeito regulador de um ato administrativo de um Estado-Membro seja alargado aos demais, na medida em que estes são obrigados a reconhecer o efeito vinculativo desse ato na sua ordem jurídica, denominado pela doutrina europeia como “ato administrativo transaccional”, dado que produz efeitos jurídicos extraterritoriais.
Q. Tal implica que as autoridades nacionais e os tribunais judiciais estejam, em princípio, impedidos de controlar essas decisões administrativas. Tal decorre ainda do princípio da cooperação leal, impondo aos tribunais que quando aplicam o direito da União Europeia estão obrigados a contribuir para os objectivos prosseguidos pelo legislador da União Europeia.
R. Tanto o objecto do litígio como dois dos temas da prova elencados pelo Tribunal de Primeira Instância no Despacho Saneador demonstram que este identificou a instalação e manutenção de alegados dispositivos manipuladores como o objecto do presente processo.
S. A KBA é a entidade homologadora in casu, cabendo-lhe avaliar e determinar se estão ou não instalados dispositivos manipuladores nos Veículos Afectados devidamente homologados, nos termos do Regulamento Emissões e, em caso afirmativo, se são ou não abrangidos pelas excepções aí previstas, caso em que tais dispositivos seriam legalmente admissíveis.
T. Tanto a concessão da homologação como as ordens de recall emitidas pela KBA constituem actos administrativos de direito alemão, que produzem efeitos “transnacionais” e vinculam os demais Estados-Membros por forçado mecanismo de reconhecimento mútuo, a não ser que tais actos venham a ser postos em causa através mecanismos legalmente admissíveis.
U. As ordens de recall da KBA foram impugnadas pelas Recorrentes em processos pendentes no Tribunal Administrativo Alemão. Se o Tribunal de Primeira Instância puder reavaliá-las, viola-se o Regulamento Emissões e a jurisdição exclusiva dos tribunais alemães, o que viola a harmonização do sistema, a segurança jurídica, o princípio da cooperação leal e a proibição de duplo controlo.
V. Nos vários acórdãos proferidos pelo TJUE na sequência de reenvio, o efeito vinculativo das decisões da KBA em processos civis não foi objecto de análise e resposta, respeitando essencialmente à interpretação das excepções que admitem os dispositivos manipuladores constantes do Regulamento Emissões.
W.A competência material não é, assim, apenas uma forma de distribuição interna dos tribunais portugueses, dado que é necessário atender ao direito comunitário e internacional aplicável.
X. Uma decisão de mérito implica que o Tribunal de Primeira Instância determine se a Recorrente instalou e manteve dispositivos manipuladores ilegais nos veículos, se as homologações violam o Regulamento Emissões e se as decisões de recall da KBA são fundamentadas, violando o mecanismo de reconhecimento mútuo e a competência exclusiva dos tribunais administrativos alemães.
Y. Contrariamente ao entendimento do Tribunal a quo, o facto de a alegada viciação dos veículos produzidos e comercializados pela Recorrida (e demais Rés), e que foram adquiridos por consumidores representados pela Recorrida ser uma questão de direito privado, não é suficiente para atribuir competência aos tribunais portugueses.
Z. O Acórdão recorrido violou os artigos 3.º, n.º 10, 5.º, n.º 2, do Regulamento Emissões, §35 e §43 para. 2 do Código de Processo Administrativo Alemão, a Directiva n.º 2007/46/CE, o Regulamento (UE) n.º 2018/858 e o artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa, pelo que deve ser revogado nessa parte e a Recorrente absolvida da instância».
Concluíram as restantes rés:
«A. As Recorrentes não se conformam com a improcedência da excepção de incompetência internacional arguida na Contestação, porque consideram que os tribunais Portugueses e, especificamente, o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, são internacionalmente (e territorialmente) incompetentes para julgar os presentes autos à luz do Regulamento (UE) n.º 1215/2012.
B. O Tribunal de 1ª Instância e o Tribunal a quo consideraram a sede da Recorrida, em Lisboa, como factor de conexão relevante para efeitos do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 – porém, sem razão, uma vez que a sede não tem qualquer relação com o locus delicti.
C. A Recorrida não teve nem tem qualquer relação com as Recorrentes e com a Ré MB PORTUGAL, nem nunca sofreu quaisquer danos, alegando apenas representar os interesses dos consumidores adquirentes de veículos da marca “Mercedes-Benz” que podem residir em muitos lugares diferentes, em Portugal ou até noutros países, mas não necessariamente em Lisboa.
D. O artigo 7.º, n.º 2, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 confere não apenas jurisdição internacional a um (específico) tribunal nacional, mas também determina “direta e imediatamente tanto a competência internacional como a competência territorial ao tribunal do lugar onde ocorreu o dano” – cfr. Acórdão RH/Volvo (C-30/20).
E. Para que os tribunais portugueses e o Tribunal onde foi proposta a ação pudessem ser competentes à luz do artigo 7.º, n.º 2, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, seria necessário concluir que Lisboa constitui efetivamente, (i) o lugar do (alegado) evento causal; ou (ii) o lugar da (alegada) materialização do (alegado) dano.
F. Quando aferido sob o prisma do “lugar do evento causal”, para efeitos de aplicação do critério especial previsto no artigo 7.º, n.º 2, do Regulamento (UE) 1215/2012, dever-se-á considerar como o “lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso” o lugar onde se teria verificado o suposto “facto danoso”.
G. Ou seja e no presente caso, o lugar onde se procedeu à concepção e produção dos veículos e à suposta concepção, fabrico, instalação, calibração, etc., dos ditos dispositivos manipuladores ilegais – que não seria em Portugal, visto que nenhuma das Rés tem ou teve qualquer fábrica de veículos em Portugal, sendo antes estes importados na modalidade de “chave-na-mão”.
H. O local de materialização do dano tem que corresponder ao local em que o dano inicial foi causado, o que não pode ser interpretado de modo extensivo, tendo que corresponder a um fator de conexão que atribui competência por razões de boa administração da justiça, obtenção de prova e organização útil do processo, conforme amplamente resulta da jurisprudência europeia.
I. O critério relativo ao “lugar da materialização dos danos” é, porém, inadequado para acções colectivas do tipo opt-out, como a acção em apreço, uma vez que a apreciação deste tipo de acções é independente e abstracta de quaisquer danos individuais, o que faz com que a questão dos danos neste tipo de acções se traduza num elevado nível de abstracção.
J. O TJUE tem considerado que a verificação da aplicação do artigo 7.º, n.º 2, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, no que respeita à identificação do lugar da materialização do dano, deve ser feita “para cada pretensa vítima individualmente considerada” – Acórdão CDC Hydrogen Peroxide SA (C-352/13).
K. Assim, num caso como o presente, seria substancialmente
impossível para o Tribunal determinar qual o local de materialização do dano para todos os consumidores individualmente considerados e representados pela Recorrida - e, em particular, aferir se os mesmos se localizariam no âmbito da sua competência internacional e territorial, i.e. na Comarca de Lisboa.
L. As acções colectivas como a presente acção popular diferem de acções em que os pedidos individuais são agrupados ou consorciados (tal como no caso VKI). Em tais casos, uma análise individualizada do locus damni, nos termos do artigo 7.º, n.º 2, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, pode e deve ter lugar, sendo impossível numa acção do tipo opt-out.
M. As excepções ao critério geral do domicílio da sede [artigo 5.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012] não se verificam e não se pode considerar que o acórdão VKI esclareceu a questão da aplicabilidade da determinação do local de materialização do dano nas ações opt-out. O caso Volkswagen é diferente, tendo o Supremo Tribunal interpretado incorrectamente o mesmo e o Acórdão Henkel.
N. A jurisprudência do TJUE é, pela sua própria natureza, específica e influenciada pelos factos particulares do caso que julga. É manifesto que os principais factos e circunstâncias jurídicas do presente caso são substancialmente diferentes dos que foram apreciados e decididos pelo TJUE no referido caso VKI, o que, por si, sempre militaria contra a sua aplicação tout court.
O. E, por aplicação directa do artigo 288.º do TFUE e do princípio do primado do direito da União Europeia, bem como do disposto nos artigos 7.º, n.º 6, e8.º, n.ºs 1 a 4, da CRP, a Lei de Acção Popular portuguesa não poderia contrariar ou ser aplicada contrariando o Regulamento (UE) n.º 1215/2012, em particular o artigo 7.º, n.º 2, se aplicável.
P. Por estes motivos, todas as referidas diferenças militam em desfavor de uma aplicação precipitada e acrítica do entendimento do TJUE no referido caso VKI e do acórdão deste Supremo Tribunal no caso Volkswagen aos presentes autos.
Q. O artigo 8.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, tal como o artigo 7.º, atribui competência internacional e territorial, pelo que o Tribunal onde foi proposta a acção apenas poderia ser competente através do artigo 8.º, n.º 1, se fosse um tribunal “do lugar onde qualquer um deles [Recorrentes] tenha o seu domicílio”, não tendo nenhuma das Recorrentes domicílio em Lisboa.
R. Não se coloca a questão da inconciliabilidade das decisões, dado que a situação de facto e de direito das Recorrentes é diferente devido às diferentes actividades que cada uma delas exerceu, em diferentes localizações geográficas – o que afasta a existência de qualquer nexo estreito entre pedidos que se pudesse extrair do artigo 8.º, n.º 1, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012.
S. O Tribunal onde foi proposta a acção não pode criar novos fundamentos para a atribuição da jurisdição internacional. O Regulamento (UE) n.º1215/2012nãoopermite,particularmente em acções coletivas, conforme confirmado pelo TJUE no caso Schrems I (C‑498/16) e pelo Advogado-Geral Campos Sánchez-Bordona na sua Opinião no caso VEB/BP.
T. A Recorrida não é uma “empresa que se considera lesada” e que tenha adquirido bens afectados, para justificar a atribuição de competência aos tribunais da área jurisdicional onde tais bens teriam sido adquiridos; e não adquiriu bens afectados em vários lugares, para que se pudesse concluir pela jurisdição da sede da Recorrente, à revelia do Regulamento (UE) n.º 1215/2012.
U. No Acórdão recorrido, o Tribunal a quo errou ainda ao julgar improcedente a exceção de incompetência em razão da matéria arguida pelas Recorrentes, porquanto não atendeu ao objeto da ação e ao regime jurídico aplicável, em particular ao direito europeu.
V. A causa de pedir da pretensão da Recorrida baseia-se na alegada instalação, utilização e manutenção de dispositivos manipuladores ilegais em veículos da marca Mercedes-Benz, à revelia do Regulamento Emissões, pedindo o reconhecimento desse alegado facto pelo Tribunal e pelas Recorrentes (e pela Ré MB PORTUGAL).
W.A conformidade com o Regulamento Emissões, incluindo saber se determinados veículos contêm dispositivos manipuladores ilegais, é um requisito técnico relativo à homologação ou às recalls de veículos, o qual é da competência exclusiva da KBA e dos tribunais administrativos alemães.
X. O sistema de homologação europeu harmonizado só atinge o efeito pretendido através do mecanismo de reconhecimento mútuo em que a homologação concedida num Estado-Membro tenha um efeito vinculativo nos demais (com as restrições da Diretiva n.º 2007/46/CE nas cláusulas de salvaguarda, actualmente, Regulamento (UE) n.º 2018/858).
Y. As ordens de recall da KBA foram impugnadas pelas Recorrentes em processos pendentes no Tribunal Administrativo Alemão. Se o Tribunal de Primeira Instância puder reavaliá-las, viola-se o Regulamento Emissões e a jurisdição exclusiva dos tribunais alemães, o que viola a harmonização do sistema, a segurança jurídica, o princípio da cooperação leal e a proibição de duplo controlo.
Z. O Acórdão recorrido violou os artigos 3.º, n.º 10, 5.º, n.º 2, do Regulamento Emissões, §35 e §43 para. 2 do Código de Processo Administrativo Alemão, a Directiva n.º 2007/46/CE, o Regulamento (UE) n.º 2018/858 e o artigo 8.º da CRP, pelo que deve ser revogado nessa parte e as Recorrentes absolvidas da instância».
A recorrida apresentou contra-alegações em que pugna pela confirmação do acórdão.
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Constituem questões decidendas saber se:
1. O Juízo Central Cível de Lisboa é competente, em razão da nacionalidade, para conhecer da acção.
2. Se o mesmo Tribunal é competente, em razão da matéria.
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Tem sido entendido, de forma pacífica, que a competência absoluta de um tribunal se afere pela forma como o autor configura a ação, definida pelo pedido e causa de pedir (cfr., v.g., Acórdãos do Tribunal de Conflitos de 10.02.1998, Proc. 000319, de 18.06.2002, Proc. 02/02, de 23.09.2004 – Proc. 05/04 e de 29.11.2006, Proc. 016/03.
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1. Da incompetência em razão da nacionalidade
A autora é uma «organização sem fins lucrativos que tem como fim a defesa dos consumidores da União Europeia, visando em especial o aumento do bem-estar dos consumidores e, em geral, a promoção do estado de direito, do ambiente e da economia da União Europeia».
Trata-se de uma associação, há pouco reconhecida entidade qualificada, designada pelo Estado Português, para efeitos de instauração de acções colectivas em Portugal ou noutros Estados-Membros (Jornal Oficial da União Europeia, C/2024/1125, de 2.2.2024).
Com manifesta legitimidade (artigos 2.º e 3.º da lei n.º 83/95, de 31 de Agosto), a Ius Omnibus instaurou esta acção pedindo a condenação das rés a indemnizarem todos os consumidores titulares de veículos ligeiros Mercedes Benz, equipados com motores diesel, homologados de acordo com as normas Euri 5 e Euro 6, pelos danos resultantes da utilização, nessas viaturas, de dispositivos manipuladores ilegais da emissão de óxido de azoto.
As segundas e terceiras rés defenderam-se por excepção de incompetência em razão da nacionalidade e da matéria.
A primeira ré também contestou, invocando aquelas excepções.
As instâncias julgaram improcedentes essas excepções, designadamente a de incompetência em razão da nacionalidade.
As recorrentes apresentam novo desacordo.
Entendem, em resumo, que os dois primeiros graus de jurisdição consideraram a sede da recorrida, em Lisboa, como factor de conexão relevante para efeitos do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, o que não é correcto.
Na verdade, a sede não tem qualquer relação com o locus delicti, sendo que a recorrida não teve, nem tem, qualquer relação com as Recorrentes e com a Ré MB PORTUGAL, nem nunca sofreu quaisquer danos, alegando apenas representar os interesses dos consumidores adquirentes de veículos da marca “Mercedes-Benz” que podem residir em muitos lugares diferentes, em Portugal ou até noutros países, mas não necessariamente em Lisboa.
Para que os tribunais portugueses e o Tribunal onde foi proposta a acção pudessem ser competentes, à luz do artigo 7.º, n.º 2, do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, seria necessário concluir que Lisboa constitui efectivamente (i) o lugar do (alegado) evento causal; ou (ii) o lugar da (alegada) materialização do (alegado) dano, o que não acontece.
No entender das recorrentes, as excepções ao critério geral do domicílio da sede [artigo 5.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012] não se verificam, sendo antes de aplicar o critério geral.
Vejamos se têm razão.
Dispõe o art. 59º CPC: “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º.
Não se discute a aplicação ao presente caso do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro, mas sim se diante do ajuizado litígio colectivo transfronteiriço se deve aplicar o critério de competência do artigo 7.º, 2, deste Regulamento, como foi decidido pelas instâncias, ou, ao invés, o do artigo 4.º, como sustentam as recorrentes.
A nossa opinião é a de que se deve aplicar o artigo 7.º, 2, não sendo procedentes os argumentos das recorrentes.
Antes de darmos os motivos desta opção, importa lembrar alguns critérios orientadores, em matéria de competência, que se retiram do Regulamento.
De acordo com o considerando 15, as regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e fundar-se no princípio de que, em geral, a competência tem por base o domicílio do requerido.
Todavia, desde logo acrescenta, o considerando 16, que o foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça.
Na concretização deste propósito, o artigo 7.º, 2 em matéria extracontratual prevê que as pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas «perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso».
Esta norma permite determinar a competência judiciária internacional, mas também a competência interna em razão do território.
O conceito de acções relativas a matéria extracontratual tem sido objecto de interpretação autónoma por parte do TJUE.
Levando em devida consideração este trabalho interpretativo e conformador, Carlos Andrade Costa afirma que «a regra de competência em análise se aplica a qualquer acção judicial passível de desencadear a responsabilidade aquiliana do demandado fundada em facto lícito, ilícito ou no risco, assim como às acções em que o autor pretende fazer valer uma obrigação de restituir fundada no instituto do enriquecimento sem causa» (Competência Judiciária e Tutela Colectiva dos Consumidores na União Europeia, Almedina, Coimbra, 2025:116; sobre esta norma abranger o enriquecimento sem causa, Ac. RL de 23.6.2022, Proc. 8906/20).
Feitas estas considerações, vejamos, mais em concreto, a argumentação das recorrentes.
Uma questão idêntica já foi apreciada pelo TJUE. Como frisámos no despacho liminar, em 9.7.2020, o TJUE proferiu um acórdão (caso C-343/19) sobre um pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Tribunal Regional de Klagenfurt, num processo colectivo instaurado pela Verein für Konsomenteninformation (VKI) contra Volkswagem AG.
O tribunal austríaco formulou a seguinte questão prejudicial: «Deve o artigo 7.º, ponto 2, do Regulamento […] ser interpretado no sentido de que, em circunstâncias como as do processo principal, se deve considerar como «lugar onde ocorreu o facto danoso» o lugar num Estado-Membro no qual se verificou o dano, quando esse dano consiste exclusivamente numa perda patrimonial que é consequência directa da prática de um acto ilícito ocorrido noutro Estado-Membro?».
O TJUE, na resposta que deu à questão, destaca que, ainda que o vício exista desde a instalação do software no fabrico do produto, o dano consistente na perda do valor dos veículos, ao não se ter em conta esse vício, aquando da fixação do seu preço de compra, materializou-se no momento de aquisição desses veículos.
De maneira que estamos diante de um «dano inicial», sendo competente para a acção, o tribunal do Estado membro onde os lesados adquiriram os veículos, o que resulta compatível com o objectivo de previsibilidade das normas de competência, na medida em que um fabricante de automóveis estabelecido num Estado membro que faz manipulações ilícitas em veículos comercializados noutros Estados membros pode esperar razoavelmente ser demandado nos órgãos jurisdicionais desses Estados.
Mais concretamente, o TJUE respondeu que o artigo 7.º, ponto 2, do Regulamento n.º 1215/2012, deve ser interpretado no sentido de que, quando os veículos tenham sido ilegalmente equipados num Estado membro pelo seu construtor, com um programa informático que manipula os dados relativos às emissões dos gases de escape, antes de serem adquiridos a um terceiro noutro Estado membro, o lugar de materialização do dano situa-se neste último Estado membro.
O STJ no acórdão de 14.10.2021, Proc. 26412/16, num caso semelhante (Deco v. Volkswagen) seguiu a tese do TJUE, como decorre do seguinte elucidativo sumário, que se reproduz na parte útil:
I. De acordo com a jurisprudência firmada pelo TJUE, o conceito de «lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso», contido no artigo 7.º, n.º 2 do Regulamento n.º 1215/2012, refere-se simultaneamente ao lugar da materialização do dano e ao lugar do evento causal que está na origem desse dano, de modo que o requerido pode ser demandado, à escolha do demandado, perante o tribunal de um ou outro destes lugares.
2. E, segundo essa mesma jurisprudência, aquela expressão «lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso», não pode ser objecto de interpretação extensiva, a ponto de englobar qualquer lugar onde possam ser sentidas as consequências danosas de um facto que já causou um prejuízo efectivamente ocorrido noutro lugar, reportando-se, antes, ao lugar onde o lesado directo alega ter sofrido um dano inicial e ao lugar onde os efeitos deste dano se manifestam concretamente, havendo necessidade, em alguns casos, de recorrer a «circunstâncias concretas» do processo para, numa apreciação global, complementar o critério da competência estabelecido no artigo 7.º, n.º 2 do Regulamento 1215/2012, por forma a assegurar o cumprimento dos objectivos de protecção jurisdicional de ambas as partes e os respeitantes à gestão do processo que estão subjacentes a esta regra.
3. No caso de uma comercialização de veículos equipados pelo seu construtor com um programa informático que manipula os dados relativos às emissões de gases de escape, considerou o TJUE que o dano sofrido pelo adquirente final materializa-se no momento da compra desse veículo a um terceiro por um preço superior ao seu valor real e que, nestas circunstâncias concretas, o artigo 7.º, n.º 2, do Regulamento 1215/2012, deve ser interpretado no sentido de que o tribunal do «lugar onde ocorreu o facto danoso» é o tribunal do lugar da aquisição do veículo em causa pelo adquirente final.
4. Daí ter afirmado, no acórdão de 9 de Julho de 2020, que «o artigo 7.º, ponto 2 do Regulamento n.º 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que, quando os veículos tenham sido ilegalmente equipados num Estado-Membro pelo seu construtor com um programa informático que manipula os dados relativos às emissões dos gases de escape antes de serem adquiridos a um terceiro noutro Estado-Membro, o lugar da materialização do dano se situa neste último Estado-Membro.
5. Invocando a Deco, no caso dos autos, a responsabilidade civil extracontratual das rés, como fundamento dos pedidos de indemnização por ela formulados em defesa dos consumidores portugueses que, em Portugal, adquiriram às rés veículos automóveis fabricados na Alemanha pela ré Volkswagen AG e nas quais esta introduziu uma aplicação informática que manipula os dados relativos às emissões dos gases de escape, evidente se torna, à luz do artigo 7.º, n.º 2, do Regulamento 1215/20 e da jurisprudência do TJUE sobre esta disposição serem os tribunais Portugueses competentes para conhecerem do presente litígio.
Não cremos existirem razões para, no caso sujeito, decidirmos de modo diferente, o que, a acontecer, se traduziria em manifesta desigualdade e introduziria factor perturbador a nível concorrencial entre empresas.
As recorrentes consideram que o critério relativo ao «lugar da materialização dos danos» é inadequado para acções colectivas do tipo opt-out, como a ação em apreço, uma vez que a apreciação deste tipo de acções é independente de quaisquer danos individuais, o que faz com que a questão dos danos neste tipo de acções se traduza num elevado nível de abstracção – pelo que os concretos danos que quaisquer sujeitos possam ter individualmente (e alegadamente) sofrido no território jurisdicional do tribunal não constituem um tema relevante.
Acresce que as acções colectivas, como a presente acção popular, diferem das acções em que os pedidos individuais são agrupados ou consorciados, e em que é possível debater acerca da identidade das partes originalmente detentoras dos direitos invocados e o local em que estas terão sofrido os danos que alegam.
Vejamos se esta argumentação é procedente
Para se compreender melhor o background jurídico do acórdão do TJUE de 9.7.2020, acima referido, importa sublinhar, como referem Paolo Pardolesi e
Anna Bitetto, que, na realidade jurídica austríaca, o tema da tutela colectiva desenvolveu-se num quadro peculiar, o chamado Modell der Sammelklage
cujo funcionamento pode traduzir-se nos seguintes tópicos: «os lesados na sua respectiva posição subjectiva cedem o crédito litigioso a um sujeito –uma associação representativa de interesses sectoriais, mas também uma pessoa
física –que persegue os objectivos «de propor e de impulsionar o processo, obrigando-se a depositar o montante proveniente do julgamento favorável, deduzido das despesas e da quota litis que oscilam entre os 30 e 40% desse montante» (Tutela collettiva e azione di classe, una analisi comparativa,
Caccucci Editore, Bari, 2020:92).
Este modelo impede que um particular interessado ou uma pessoa
colectiva instaure uma acção destinada a fazer valer direitos dos consumidores
sem a identificação individualizada dos lesados.
Por isso, na Áustria, a acção colectiva foi instaurada pela associação
de consumidores, com a identificação dos 576 consumidores, cujos direitos
tinham sido cedidos a essa associação, para efeitos de instauração de
acção popular.
O nosso modelo é muito diverso e as coisas não funcionam do mesmo modo.
Como é sabido, o nosso tipo de tutela colectiva está enformado pelo modelo
opt-out, o que nos países da União Europeia só se encontra replicado na legislação dos Países Baixos.
Quer isto dizer que não é necessária a manifestação expressa da vontade de vinculação por parte dos consumidores individuais representados, os quais se consideram, por força da lei, abrangidos pela acção colectiva (artigos 14.º e 15.º LAP).
Neste modelo, o universo dos sujeitos lesados não está plenamente identificado, mas daí não resulta que não seja identificável, por via da descrição do grupo de consumidores com direito a beneficiar da acção.
Invocar este modelo, para efeitos de afastamento do critério de conexão previsto no artigo 7.º, 2 do Regulamento n.º 1215/2012, não procede, porquanto se confundem planos diferentes, o da competência e o do próprio sistema de opt-out adoptado pelo legislador português na elaboração da LAP.
O sistema austríaco não serve, portanto, de argumento porque não pode ser transposto para a realidade portuguesa.
Não se vê como a natureza opt-in ou opt-out da acção colectiva pode influenciar o pressuposto competência internacional e tão pouco se aceita que o facto de serem representados todos os adquirentes de determinada gama de Mercedes num determinado território nacional, em vez de 576, seja para o efeito determinante.
Acresce que, além daquele acórdão VKI, outros acórdãos do Tribunal vieram esclarecer (acte eclairé) a melhor interpretação do artigo 7.º, 2 do Regulamento.
Assim, no acórdão de 22 de Fevereiro de 2024, causa C-81/23, MA, o autor e mulher, residentes na Áustria, compraram uma autocaravana a um concessionário, estabelecido na Alemanha. A entrega do veículo aos adquirentes teve lugar no país da residência destes. Os fabricantes do veículo e do motor eram sociedades italianas, que foram demandadas por responsabilidade extracontratual, com o fundamento de terem equipado a autocaravana com um dispositivo que reduzia a eficácia do sistema de controlo da emissão de gases, na acepção do artigo 5.º, 2 do Regulamento n.º 715/2007.
Foi neste quadro que o órgão jurisdicional austríaco se interrogou, em substância, sobre se o lugar da aquisição de um veículo afectado por um vício e, logo, o «lugar onde ocorreu o facto danoso», na acepção do artigo 7.o, ponto 2, do Regulamento n.o 1215/2012, conforme interpretado no Acórdão VKI, correspondem ao lugar da celebração do contrato de compra e venda do veículo, ao lugar onde este foi entregue ao adquirente final, ou antes ao lugar onde o mesmo foi normalmente utilizado.
O Tribunal concluiu que, «quando a assinatura do contrato de compra e venda, por um lado, e a entrega do veículo e a sua utilização, por outro, ocorreram em Estados‑Membros distintos, o lugar da aquisição desse veículo e, portanto, o lugar da materialização do dano, na acepção do artigo 7.o, ponto 2, do Regulamento n.o 1215/2012, conforme interpretado no acórdão VKI, é aquele onde o vício que afecta o referido veículo, a saber, a incorporação do dispositivo ilegal, que constitui o facto gerador do dano, se manifesta e produz os seus efeitos danosos em relação ao comprador final, a saber, o local onde o veículo lhe foi entregue».
Tem interesse ainda referir o acórdão de 15 de Julho de 2021, Causa C-30/20 RH, o qual se debruçou sobre uma questão de competência internacional e territorial, á luz também do artigo 7.º, 2 do Regulamento numa hipótese de aquisições efectuadas em vários lugares. Esse aresto decidiu que «o artigo 7.º, 2, do Regulamento 1215/2012 deve ser interpretado no sentido de que, no mercado afectado por acordos colusórios sobre a fixação e o aumento dos preços de bens, é internacional e territorialmente competente para conhecer, a título do lugar da materialização do dano, de uma acção de indemnização do dano causado por esses acordos contrários ao artigo 101.º do TFUE, o tribunal em cuja área de jurisdição a empresa que se considera lesada adquiriu os bens afectados pelos referidos acordos ou, em caso de aquisições efectuadas por essa empresa em vários lugares, o tribunal em cuja área de jurisdição se encontra a sua sede social» (o itálico é nosso). De maneira que não será ousado retirar desta sentença a ratio de atribuição de competência ao tribunal da sede da autora, nas hipóteses de aquisições efectuadas em vários lugares no mesmo Estado membro, desde que efectuadas no mercado afectado pela prática fundamento da acção de responsabilidade. | ||
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«Da análise do pedido e da causa de pedir acima expostos resulta claramente que a Autora acciona as Rés com vista a conseguir a reparação do vício que alega existir nos veículos produzidos e comercializados pelas Rés no território nacional e o pagamento da indemnização compensatória pela perda de valor dos veículos em que foram instalados os dispositivos manipuladores, aos lesados.
Ora, na lógica da configuração oferecida pela Autora à sua pretensão, o que está em causa não é a homologação dos veículos, não tendo o tribunal que ajuizar se os mesmos foram correcta ou erradamente homologados, não tendo a decisão a tomar qualquer repercussão sobre a homologação dos veículos. O que se pede ao tribunal é diferente, é saber se apesar da homologação, a conduta adoptada pelas Rés viciou os veículos, permitindo-lhes circular em condições diferentes daquelas que foram objecto da homologação, causando com isso danos ao ambiente, à saúde pública e aos interesses dos consumidores.
Trata-se, pois, de julgar uma pretensão fundada na violação por parte das Rés das condições em que os veículos foram homologados, sem que, atendendo ao modo como a Autora a estrutura, se configure qualquer comportamento, activo ou omissivo, adoptado pela entidade homologadora Alemã que tenha concorrido para essa violação.
Além disso. a decisão de homologação não está em apreciação nesta acção, não sendo a mesma impugnada ou pedida a sua revogação, nem sendo a decisão que vier a ser tomada na presente acção susceptível de a pôr em causa.
Ora, nestes termos, a competência material para o conhecimento de tal pretensão cabe aos tribunais judiciais, nomeadamente, aos tribunais cíveis».
É, no essencial, correcta esta argumentação que as considerações feitas pelas recorrentes não são capazes de invalidar.
As decisões das autoridades públicas do Estado Alemão não implicam qualquer desvio ou modificação das regras de competência material dos tribunais nacionais, embora possam ter relevância jurídica, designadamente probatória, no seguimento do processo, se obtiverem eficácia no ordenamento jurídico nacional português. O inverso é igualmente verdadeiro: como diz a recorrida, «nunca sairá [deste processo] uma sentença a revogar, modificar ou afectar de qualquer outro modo as homologações concedidas. Nem a sentença poderá produzir caso julgado contra a KBA, que não é parte nos autos».
Em conclusão: como refere a autora «não sendo formulado qualquer pedido contra uma entidade administrativa, e não sendo pedida a emissão, modificação, ou extinção de um ato administrativo, estando apenas em questão a responsabilidade civil de empresas privadas perante os consumidores, por danos por estes sofridos decorrentes de violação de Lei, são competentes os Tribunais Judiciais e não os Tribunais Administrativos».
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Vencidas, as recorrentes suportarão a totalidade das custas (artigo 527.º, 1 e 2 CPC).
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Pelo exposto, acordamos em julgar improcedentes os recursos e, consequentemente, em confirmar o acórdão recorrido.
Custas pelas recorrentes.
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29.4.2025
Luís Correia de Mendonça (relator)
Cristina Coelho
Teresa Albuquerque