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Jurisprudência
Sumário

I - No domínio dos acidentes de viação, a reparação natural deve ser a regra, o que significa que a R seguradora, para quem está transferida a responsabilidade civil relativamente aos danos decorrentes do acidente em causa, deverá prover à reparação do veículo sinistrado, a não ser que seja excessivamente onerosa para si enquanto devedora.

II - Não existindo uma manifesta desproporção entre o interesse do A na recuperação do veículo “quo ante” e o custo da reparação, há que quantificar o valor correspondente ao dano do A decorrente da privação do seu veículo, desde o acidente até à reparação do mesmo veículo.

Decisão Texto Integral

ACORDAM NESTE SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (2ª SECÇÃO)

I - AA / A instaurou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra “Liberty Seguros, Compañia de Seguros y Reaseguros SA, Sucursal de Portugal” / R, pedindo a condenação desta:

“a pagar-lhe a quantia global de €34.346,80, acrescida de juros, a calcular à taxa legal, desde a citação até efetivo pagamento;

(...) e ainda a ressarcir-lhe, no futuro, os danos que se venha a apurar serem consequentes da factualidade alegado no art. 22º da p. i.”

Alegando, para o efeito, “ter ocorrido um acidente de viação no dia 29/03/2022, no qual foi interveniente o veículo automóvel de matrícula “XL” de sua pertença e conduzido por seu filho e o veículo de matrícula DR, cujo proprietário havia transferido para a aqui R. a responsabilidade civil emergente da sua circulação, acidente esse cuja responsabilidade é imputável ao condutor do DR e do qual advieram para o A os danos que também descreveu e quantificou nos termos constantes do pedido final formulado.”

II - A R contestou., “aceitando a responsabilidade na produção do acidente do condutor do veículo por si seguro, mas impugnou o valor dos danos peticionados e considerando que o valor da reparação é superior ao valor comercial da viatura há lugar à perda total do XL, pelo que o autor tem direito, apenas, a receber a diferença entre o valor comercial do XL à data do acidente e o valor dos salvados – no total de € 12.431,00.”

III - Realizada audiência final foi após proferida sentença e decidido: “julgar parcialmente procedente a presente ação e, em consequência, condenar a ré no pagamento ao autor de € 13.501,00.”

IV - Dessa sentença / decisão apelou o A, tendo a Relação proferido acórdão com a seguinte decisão: “Em face do exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso interposto pelo A., consequentemente se mantendo a decisão recorrida, sem prejuízo da retificação do erro de cálculo relativo ao valor indemnizatório resultante da diferença entre o valor do XL à data do acidente e o valor dos salvados, que é de € 12.431,00.”

V – Inconformado com a decisão da Relação vem o A interpor o recurso de revista excecional, pugnando pela revogação do acórdão recorrido e pela sua substituição por acórdão que conclua pela condenação da R no pagamento ao A do valor da reparação do veículo e, consequentemente, de indemnização pela privação de uso, esta última a liquidar em execução de sentença.

Formulando as seguintes conclusões:

“1ª O presente recurso de revista excecional incide sobre a matéria de direito e incide, no essencial, sobre a questão da excessiva onerosidade relativamente à reparação da viatura do A. – matrícula XL.

2ª Sobre a questão supra, o Tribunal começa por abordar a problemática da reconstituição natural e, de seguida, enunciou os critérios fixados no art.º 41º do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21/08, fazendo constar o seguinte:

1ª.1 - Segundo o artigo 562.º do Código Civil, quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.

1ª.2 - Estes critérios de apuramento da obrigação de indemnizar – os fixados no art.º 41º do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21/08 – não vinculam a fase judicial (em que imperam os artigos 562.º a 566.º do Código Civil), embora possam servir como um critério. Sic.

3ª De seguida, com vista ao fundamentar o sentido da sentença, o Tribunal da citou o Ac. STJ nº 741/03.0TBMMN.E1.S1, de 31/05/2016, em que é relator o Venerando Juiz Conselheiro Hélder Roque e, bem assim, o conceito de onerosidade constante da obra/livro de Maria da Graça Trigo - Excessiva onerosidade da reconstituição natural (no domínio dos acidentes de viação), in Responsabilidade Civil – Temas Especiais, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, pág. 47.

4ª Por sua vez, o douto Acórdão em crise confirma, com fundamento idêntico, a sentença, da 1ª instância.

5ª Ora, quanto ao acima referido acórdão (conclusão 3ª), citado na sentença que veio a ser confirmada pelo acórdão em crise – este aprecia e sentencia sobre a questão da onerosidade de reparação em situação fáctica muito diversa da que se discute nos autos. Todavia, naquilo que releva para a questão sub judice, ao invés de servir de exemplo para fundamentar a decisão proferida, pelo contrário, teria justificado que, por manifesta ausência de prova de excessiva onerosidade por parte da Ré, a tivesse condenado, nomeadamente, a suportar o custo da reparação.

6ª Há que convir, assim, que a jurisprudência e a doutrina citadas e, bem assim, boa parte da argumentação aduzida (págs. 10, 11 e 12) justificavam e justificam exatamente o contrário do que foi decidido quanto à questão da excessiva onerosidade – prova que competia à Ré e que ela, apoditicamente, não fez.

7ª Se repararmos no teor do doc. 01, junto aos autos com a contestação da Ré, neste, no que respeita às características do XL, consta que ele é uma viatura marca mercedes, modelo A 180 D AMG Line Aut, de 2019, que à data da peritagem tinha percorrido apenas 51.681 quilómetros; e, bem assim e a acrescer, do doc. 5, igualmente junto aos autos com a contestação da Ré, consta também a indicação dos seguintes três veículos, alegadamente com valores semelhantes ao XL, todos do mesmo ano – 2019 - cfr. docs. 01 e 05.

8ª Sucede que, num deles não se percebe parte da informação publicitada, nem é visível a viatura. Nenhum deles tem a mesma quantidade de quilómetros que o XL e – questão fundamental - nenhum deles é submodelo AMG.

9ª Ora, quanto a esta matéria, é facto notório que o Tribunal teve em consideração viatura diferente daquela que efetivamente está em causa nos autos conforme docs. cfr. docs. 01 e 05 juntos pela própria Ré e, por outro lado, como alegado, elementar pesquisa de anúncios na plataforma Standvirtual permite constatar que todos os veículos Mercedes, modelo A 180 D, versão AMG Line Aut, com quantidade de quilómetros semelhante e do mesmo ano, custam, como alegado no art. 18º da p.i. e ainda à presente data, quantia normalmente superior não a €27.450, mas sim a mais de €30.000,00!

10ª No Acórdão em crise, bem como no Acórdão fundamento, estamos perante uma situação em que, por força de um acidente de viação, os AA. viram os seus veículos danificados tendo, em ambas as situações, as seguradoras assumido a responsabilidade pelo sinistro, sendo que, em ambas as situações, defendiam que a reparação era excessivamente onerosa.

11ª Na situação do Acórdão-fundamento está assente que o veículo era um Renault Clio de 06/2008, que tinha um valor comercial antes do acidente de 6.950€, que a reparação foi orçada em 14.122,21€ e que ao salvado foi atribuído o valor de 2.120,00€.

12ª A Ré defendia que a reparação era excessivamente onerosa e disponibilizou-se para proceder ao pagamento de 4.830€ - quantitativo a que acresceria o valor do salvado acima indicado. Também ficou provado que a aí A. fazia uma utilização normal do seu veículo nomeadamente para deslocações para os seus locais de trabalho - cfr. facto 1.14. O veículo era utilizado, pela A., nas suas deslocações diárias para os locais de trabalho (Hospital de ..., centro de saúde ... e de ...) e ficou ainda impossibilitada de dar um simples passeio ao fim de semana - cfr. facto 1.15.

13ª Se ao valor da reparação adicionarmos o valor do salvado, constatamos que a reparação, em termos de custo, representa 303% do valor comercial da viatura. Mesmo assim, o Tribunal condenou na reparação, entendendo que não existia excessiva onerosidade.

14ª Por sua vez, no Acórdão em crise, está assente que o XL era um Mercedes que, antes do acidente, tinha um valor comercial de 27.450€. O custo da reparação foi orçado em 27.996,80€ e, ao salvado, foi atribuído o valor de 15.019,00€.

15ª A Ré defendia que a reparação era excessivamente onerosa e disponibilizou-se para proceder ao pagamento de 12.431€ - quantitativo ao qual acresceria o valor do salvado acima indicado.

16ª Também ficou provado que o aqui A. fazia uma utilização normal do seu veículo e que (cfr. facto 12), em consequência do sinistro, deixou de poder utilizar o veículo XL desde a data do acidente (29/03/2022), nomeadamente, para efetuar viagens de lazer e as viagens necessárias à gestão do seu dia-a-dia familiar e que tal impossibilidade lhe causou desgosto e transtorno - cfr. facto assente 17.

17ª Na situação destes autos, se ao valor da reparação adicionarmos o valor do salvado constatamos que a reparação representa 157% do valor comercial da viatura. Mesmo assim e apesar da jurisprudência citada na sentença, o Tribunal, com o devido respeito, paradoxalmente, entendeu que estávamos perante uma reparação excessivamente onerosa e ordenou pagar apenas 12.431€.

18ª Assim, perante a mesma questão de direito, temos acórdão com posições divergentes – sendo que, no caso do acórdão-fundamento, a reparação era de cerca de 303% do valor comercial do veículo e na situação do acórdão em crise (veículo XL) era de apenas 157%. Há, por isso, decisões em oposição quanto à mesma questão de direito, sem existir fundamento fáctico para tal.

19ª A reparação do XL, orçada, com IVA, no valor de €27.996,80 – isto é, a exceder, assim, o valor venal atribuído pelo Tribunal em apenas mais €546,80. Todavia, se lhe retirarmos o IVA já “estamos a falar” de reparação significativamente inferior ao valor venal atribuído em (€27.996,80:1.23= €22.761,62; €27.450,00 - €22.761,62) €4.688,38!

20ª Porquê invocar a não aplicação do artº 41º e 31º do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21/08 ao abrigo da óbvia ideia de que não é aplicável e chamar à colação as suas normas para fazer valer um conceito de perda total e, desta forma, concluir pela excessiva onerosidade?! Porque é que o douto acórdão nada diz sobre a incongruência da fundamentação aduzida para justificar a consideração pela excessiva onerosidade quanto ao XL?! É, ou não é verdade, que os acórdãos citados na douta sentença de 1ª instância apenas se adequavam à consideração pela reparação não onerosa?!

21ª Com o devido respeito, a decisão constante do Acórdão em crise não contribui para a defesa da nobre ideia de que os tribunais não podem nem devem contribuir, de nenhuma forma, para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial e, por outro lado, também nos parece não seguir no bom caminho quanto à efetiva concretização do princípio da igualdade, consagrado no nº 3 do art. 8.º do C.C. e no nº 1 do artº 13º da Constituição”

22ª Assim, entendemos que no caso em crise, considerando a posição da nossa jurisprudência (art. 8º do CC) não estamos perante situação que consubstancie excessiva onerosidade, devendo, por isso, decidir-se pela reconstituição natural (que é a regra!) – condenando-se a Ré a reparar o veículo do Autor.

23ª E, assim sendo, e uma vez que o XL ainda não foi reparado (com todas as consequências nefastas para o A.) também deverá a Ré ser condenada a pagar a privação de uso peticionada na pi (4.350€) e, bem assim, a que foi relegada para liquidação de sentença uma vez que o XL ainda se encontra por reparar.

24ª Tendo em consideração o supra alegado somos da opinião que o Tribunal violou, entre outros, o disposto nos artigos 8º, nº 3, e 562.º a 566.º do C.C.

VI - A recorrida apresentou contra-alegações pugnando pela inadmissibilidade do recurso e, se for conhecido pela sua improcedência.

VII - Da admissibilidade do recurso: Remetidos os autos à Formação, o recurso de revista excecional interposto pelo A foi admitido, com fundamento no artº 672º do CPC nº 1 c) do CPC (contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento).


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APRECIANDO E DECIDINDO

Thema decidendum

Em função das conclusões do recurso, é esta a questão a dirimir:

- Saber se, no caso dos autos, a reparação do veículo sinistrado deve considerar-se excessivamente onerosa e, na negativa, se assiste ao A o direito de ver ressarcido o dano da privação do seu uso nos termos peticionados.


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A) FACTOS PROVADOS

1. No dia .../03/2022, pelas 15 horas e 45 minutos, na rua da ..., na freguesia de ..., concelho de ..., circulavam os veículos: a. Com a matrícula ..-XL-.. (XL), marca Mercedes, propriedade do A. e conduzido por seu filho – BB; b. Com a matrícula ..-DR-.. (DR), marca Smart, conduzido por CC.

2. A referida via, considerando o sentido de marcha freguesia de ... – cidade de ..., é constituída por uma semirreta com mais de 100 metros de comprimento.

3. Breves instantes antes da colisão, BB veículo XL circulava pela sua hemi-faixa, com o sentido de marcha freguesia de ... – cidade de ..., e o veículo DR em sentido inverso.

4. Após concluir a curva, o veículo XL confrontou-se com o veículo DR a circular em contramão, ocupando a hemi-faixa onde circulava o veículo XL.

5. O condutor do DR circulava desatento.

6. O condutor do DR ainda travou instintivamente e guinou ligeiramente à esquerda.

7. Todavia, nem assim conseguiu evitar a colisão.

8. Após o embate, o veículo XL imobilizou-se na faixa esquerda e o DR na faixa direita.

9. No momento do embate, encontrava-se transferida para a ré a responsabilidade por acidentes de viação causados pelo DR através do contrato de seguro titulado pela apólice nº ........35.

10. Em consequência do embate, o veículo XL sofreu danos na sua parte frontal, especialmente, na parte frontal lateral direita e, em particular, nas seguintes peças: capot, para-choques, grelhas frontais, amortecedores, faróis, airbags, para-brisas, suporte do motor e componentes elétricos, mecânicos, chapa e pintura.

11. A reparação dos estragos descritos em 10 apresenta o custo de € 27.996,80.

12. Em consequência do sinistro, o autor deixou de poder utilizar o veículo XL desde a data do acidente (29/03/2022), nomeadamente, para efetuar viagens de lazer e as viagens necessárias à gestão do seu dia-a-dia familiar.

13. O aluguer de uma viatura com características semelhantes às do veículo XL custa, pelo menos, €50,00 por dia.

14. Na data do acidente, o veículo XL valia € 27.450,00.

15. O valor dos salvados do veículo XL ascende a € 15.019,00.

16. A ré propôs ao autor o pagamento de indemnização € 12.431,00, por missiva datada de 20.4.2022.

17. A impossibilidade de utilizar o veículo XL causou ao autor desgosto e transtorno.

Resultaram não provados os seguintes factos:

- Na data do acidente, o veículo XL valia € 30.000,00.

- A reparação do veículo XL não é tecnicamente aconselhável, dada a extensão dos danos.

- Em consequência do acidente, o veículo XL desvalorizou-se em €2.000,00.

A reparação dos estragos descritos em 10 apresenta o custo de €36.066,66.

- O veículo XL fora adquirido pelo autor, em abril de 2019, por €39.000,00, em perfeito estado de conservação, com extras.

- A ré pagou € 260,00 a título de indemnização pela privação do uso.

- A ré pagou ao autor € 479,10 a título de despesas de tratamento.

- Apesar da reparação que venha a ser feita ao veículo XL, na zona do embate, sempre se perceberá que o mesmo sofreu acidente e que, por isso, ficou mais sujeito a enferrujar e menos consistente.

- O simples facto de se saber que o veículo XL sofreu um sinistro é bastante para que o mercado o valore em quantia inferior àquela que ele teria se não tivesse intervindo em sinistro.”.

B) DO DIREITO

Importa, desde já, esclarecer não estar em causa a responsabilidade civil emergente de acidente de viação, sendo incontroverso a verificação dos pressupostos da ilicitude, culpa e nexo causal entre o facto ilícito do condutor do veículo segurado pela R e os danos demonstrados nos autos.

Está unicamente em discussão a indemnização a atribuir ao A, na qualidade de lesado, em particular, aferir da viabilidade da reconstituição natural da situação do lesado, por via da condenação da R no pagamento do custo de reparação do veículo sinistrado, ou através do pagamento de indemnização em dinheiro.

Ainda antes de iniciar a análise da matéria em discussão nos autos, cumpre deixar expresso que este STJ já propugnou o entendimento, que se acompanha, de que “A proposta razoável de indemnização que a empresa seguradora está obrigada a apresentar ao lesado (uma vez assumida a responsabilidade pelas consequências do acidente) não tem que ser por este aceita, e, se a rejeitar, já não poderão ser convocadas as normas do SORCA, em particular as do seu artigo 41.º que regulam a situação de perda total do veículo interveniente no acidente. Frustrando-se o acordo com o lesado, apresentado em proposta pela seguradora, aplicam-se em toda a sua plenitude as regras gerais sobre o cálculo da indemnização contidas no Código Civil, mormente as dos artigos 562.º e seguintes.” – acórdão de 28-05-20241, proc. n.º 3587/19.0T8OAZ.P1.S1, em www.dgsi.pt. Neste sentido, pronunciou-se igualmente o acórdão do STJ, de 12-05-2016 (proc. n.º 224/12.8TVPRT.P1.S1) não publicado nas bases de dados.

Ainda que tais normas possam e devam ser convocadas como elemento interpretativo, em especial no tocante ao cálculo do valor da indemnização não se sobrepõem, neste âmbito e em caso de litígio, ao que resulta da conjugação das normas constantes dos arts. 562º e 566º do CC.

Dispõe o art. 562º do CC que “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.”.

Por seu turno, estabelece o art. 566º, nº 1, do CC que “a indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.”

Resulta das normas supra enunciadas que o nosso legislador optou por atribuir primazia à restauração natural face à restauração por equivalente. Esta última apenas será de equacionar se a reconstituição natural não for possível ou não se mostrar suficiente para reparar integralmente os danos ou ainda se se mostrar excessivamente onerosa para o devedor.

A reconstituição natural “utiliza como referência o dano real, ou seja, física da lesão verificada. É a inutilização do automóvel em virtude do acidente. É a privação do relógio furtado. A indemnização em dinheiro tem como referência o dano de cálculo, isto é, o reflexo da lesão no património do ofendido.” – Henrique Antunes, in Comentário ao Código Civil, Das Obrigações em Geral, UCP, 2019, pp. 566 e ss.

No domínio dos acidentes de viação, a reparação natural reconduz-se, em regra, à condenação da seguradora na reparação do veículo, sendo que a condenação no pagamento ao lesado da quantia necessária para que este suporte os custos da reparação se considera ainda uma forma de reconstituição natural - vide, Maria da Graça Trigo, “Excessiva onerosidade da reconstituição natural (no domínio dos acidentes de viação)”, in Responsabilidade Civil – Temas Especiais, UCP, pp. 41 e ss. e Júlio Gomes, “Custo das reparações, valor venal ou valor de substituição?”, anotação ao Ac. do STJ de 27/02/2003, Cadernos de Direito Privado, n.º 3 Julho/Setembro 2003, p. 58).

Acontece, por vezes, que a restauração natural (reparação do veículo) não se considera viável, o que sucederá sempre que aquela seja impossível ou seja excessivamente onerosa para o devedor.

A questão que se coloca é a de saber em que situações a condenação da seguradora no pagamento do custo da reparação deve considerar-se excessivamente onerosa.

O valor venal do veículo – valor de mercado do veículo antes do acidente – foi, ao longo de vários anos, utilizado como critério pelas seguradoras para invocar a excessiva onerosidade da reparação. Considerava-se, então, que sempre que o valor da reparação excedesse o valor venal do veículo, verificar-se-ia uma situação de excessiva onerosidade justificativa da atribuição ao lesado de indemnização em valor correspondente ao referido valor venal (deduzido o valor do salvado).

Porém, logo se percebeu que a consideração, em exclusivo, do critério do valor venal poderia levar a soluções iníquas.

Como esclarece Júlio Gomes, “este entendimento não protege efectivamente os bens do lesado, mas tão-só o preço que com a sua venda ele poderia obter, tutelando o lesado apenas na sua função social de potencial alienante” – Ob. Cit., p. 58. Como também explica Maria da Graça Trigo “o afastamento do critério do valor venal foi sendo concretizado pela nossa jurisprudência que veio defender que, para efeito de se apurar se uma reparação do veículo exigida pelo lesado é ou não excessiva, se deve ponderar, por um lado, o interesse do lesado na dita reparação e, por outro lado, o custo que a mesma acarreta para o responsável (ver, designadamente, os Acórdãos do STJ de 15/05/2000, de 29/04/2003, de 10/02/2004, de 05/07/2007, de 04/12/2007, de 05/06/2008 e de 21/04/2010, assim como os Acórdãos da Relação do Porto de 14/06/2010 e de 29/05/2012). Também para efeitos de fixação da indemnização por equivalente se criticou a aceção tradicional de valor venal, pois, atender estritamente ao valor de mercado do bem (no sentido do seu valor de venda) seria converter a responsabilidade civil numa forma de expropriação privada, pelo preço de mercado” – Ob. Cit. p. 48.

A jurisprudência tem vindo a recorrer ao valor de substituição do veículo como critério para aferição quer do interesse do lesado na reparação, quer para o efeito de fixação do valor da indemnização por equivalente.

O valor de substituição pode não coincidir com o valor venal do veículo (sendo, em regra, superior), pois que o primeiro tem em consideração a situação específica do veículo sinistrado e a posição que o mesmo ocupa no património do lesado.

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça / STJ, em particular, tem vindo, em sintonia, a propugnar o entendimento de que “a excessiva onerosidade da reconstituição natural tem de ser aferida, não, apenas, em função da diferença entre o preço da reparação e o valor venal do veículo, mas, também, no confronto entre aquele preço e o valor patrimonial do veículo, como o valor de uso que dele retira o seu proprietário, sendo que a um insignificante valor comercial daquele pode corresponder a satisfação, em elevado grau, das necessidades do seu proprietário.” – acórdão do STJ de 31-05-2016 (proc. n.º 741/03.0TBMMN.E1.S1), disponível em www.dgsi.pt.

Em suma: deve garantir-se ao lesado a reconstituição da situação que existiria não fosse o acidente, o que operará, em regra, por via da reparação do seu veículo ou, caso a reparação se afigure excessivamente onerosa, por via da atribuição de indemnização a fixar no montante equivalente ao valor da substituição do veículo.

A reparação do veículo será excessivamente onerosa se se concluir que o valor da reparação é excessivo face ao valor de substituição do veículo sinistrado e que o valor de substituição é mais do que suficiente para repor a situação que existia antes do acidente, o que ocorrerá sempre que, com aquele valor, seja possível adquirir veículo com utilidade e características idênticas.

Como é evidente, é ao devedor (obrigado à restauração natural) que compete demonstrar, através de elementos objetivos, que existe uma manifesta desproporção entre o interesse do lesado (à reconstituição da sua situação patrimonial) e o custo da reparação. Não basta uma simples onerosidade (uma maior ou menor poupança da seguradora), sendo essencial demonstrar que a reparação do veículo impõe ao devedor um encargo desmedido e desajustado, face aos limites impostos pela boa-fé. Tal sucederá, por exemplo, sempre que se conclua que o lesado lograria adquirir no mercado um veículo idêntico ao sinistrado com recurso a uma indemnização calculada com recurso ao critério do valor de substituição e que o valor da reparação é manifestamente desproporcional face a esse valor de substituição.

Numa formulação alternativa: se o lesado consegue adquirir no mercado um veículo idêntico ao sinistrado por valor igual ao valor de substituição do veículo, então pode considerar-se excessivamente oneroso impor ao devedor o pagamento do montante da reparação (que seja desproporcionalmente superior ao valor do veículo).

Ora, no caso vertente, resultou apenas demonstrado o valor de mercado do veículo automóvel sinistrado e o valor do salvado, o que não equivale, em nossa perspetiva, à demonstração cabal de que o montante equivalente ao valor de mercado é suficiente para o autor adquirir um veículo idêntico.

A demonstração de que o veículo descrito nos autos seria vendido (em data anterior ao acidente) pelo valor de € 27 450,00, apenas demonstra isso mesmo: que o lesado poderia ter vendido o veículo por tal valor. Isso não equivale a demonstrar que aquele valor permitiria ao lesado adquirir um veículo idêntico ou similar ao acidentado e que, de igual modo, satisfaria as necessidades do lesado.

Como nos dá nota o acórdão do STJ, de 31-05-2016, já citado, “a existência da excessividade da restauração natural resulta da verificação cumulativa de dois requisitos, sendo o primeiro o do benefício para o credor, consequente à reconstituição, e o segundo o de que esta se revele iníqua e abusiva, por contrária aos princípios da boa-fé, pelo que a reconstituição natural será, excessivamente, onerosa para o devedor e, portanto, de excluir, por inadequada, apenas, quando se apresente como um sacrifício, manifestamente, desproporcionado para o lesante, quando confrontado com o interesse do lesado na integridade do seu património.”

A demonstração do valor de mercado do veículo é, assim, insuficiente para permitir a afirmação da excessiva onerosidade, o que significa que deve ter aplicação a regra geral da reconstituição natural com a condenação da seguradora no pagamento da quantia devida pela reparação.

Acresce não se vislumbrar uma desproporção grave entre o sacrifício imposto ao devedor e o benefício do credor, na medida em que o pagamento do valor de reparação € 27 996,80 importará a manutenção, na esfera do credor, de um veículo com um valor de mercado de € 27 450,00. A quase inexistente discrepância entre os valores em comparação não permite equacionar a excessiva onerosidade, enquanto obstáculo à reparação natural, sendo certo que, como vimos, a mera onerosidade que não seja excessiva não releva para afastar a regra da reconstituição natural.

E recaia sobre a R seguradora a demonstração de factos capazes de nos fazer concluir pela excessiva onerosidade o que, manifestamente, não aconteceu– art. 342º nº 2, do CC.

Em sede de recurso, veio o recorrente pugnar pela condenação da ré no pagamento de indemnização pela privação do uso, em caso de condenação da seguradora no pagamento do custo da reparação do veículo.

Quanto à indemnização referente ao dano de privação do veículo sinistrado escreveu-se no acórdão recorrido:

“Ora, o autor logrou provar, como lhe competia, que utilizava o veículo acidentado no seio da sua família para as respetivas necessidades de deslocação. O valor diário de aluguer de um veículo com características semelhantes avançado pelo autor resultou provado (€ 50,00). A ré não conseguiu provar já ter pago ao autor qualquer valor a título de privação do uso. O período de privação do uso a indemnizar será aquele que se inicia na data do acidente e termina com a comunicação ao autor pela ré da proposta de indemnização, tendo em conta a situação de perda total (que se veio a confirmar na presente ação), com a duração de vinte e três dias, momento a partir do qual o autor já poderia ter dado destino ao veículo. Assim, a indemnização deverá ascender à quantia de € 1.150,00. Sobre o montante condenatório decidido não foi interposto recurso. O mesmo é dizer que transitou em julgado o valor indemnizatório fixado em € 50,00/dia, bem como os pressupostos do reconhecimento ao direito indemnizatório pela privação do uso. Em causa está apenas o período que deve ser para tanto considerado. O tribunal a quo, tendo reconhecido à R. seguradora razão na posição pela mesma assumida em 20/04/2022, entendeu ser devido este valor indemnizatório apenas entre o período em que decorreu o acidente e a comunicação da proposta de indemnização que o A. não aceitou. A revogação do assim decidido pressupunha a revogação do decidido quanto ao pedido de reconstituição natural. Não tendo procedido esta pretensão e assente a correção da comunicação da seguradora ao aqui R. em 20/04/2022, tem também este pedido indemnizatório do recorrente de improceder.”

Ora, devendo a R ser condenada no pagamento da reparação do veículo do A, o valor da privação do veículo já assente (€50,00 diários) deverá ser computado, desde a data do acidente (29/03/2022) até ao efetivo pagamento da reparação a liquidar nos termos do artº 609º nº 2 do CPC -, e não a terminar com “a comunicação ao autor pela ré da proposta de indemnização, tendo em conta a situação de perda total”.

Concluindo e sumariando:

- No domínio dos acidentes de viação, a reparação natural deve ser a regra, o que significa que a R seguradora, para quem está transferida a responsabilidade civil relativamente aos danos decorrentes do acidente em causa, deverá prover à reparação do veículo sinistrado, a não ser que seja excessivamente onerosa para si enquanto devedora.

- Não existindo uma manifesta desproporção entre o interesse do A na recuperação do veículo “quo ante” e o custo da reparação, há que quantificar o valor correspondente ao dano do A decorrente da privação do seu veículo, desde o acidente até à reparação do mesmo veículo.

DECISÃO

- Assim e pelos fundamentos expostos, concede-se a revista e consequentemente, condena-se a R a pagar ao A:

a) – O custo da reparação do veículo sinistrado no montante de € 27.996,80 (vinte e sete mil, novecentos e noventa e seis mil euros, mais oitenta cêntimos):

b) – Bem como, a título de indemnização pela privação do veículo, no pagamento da quantia diária de €50,00 (cinquenta euros), desde a data do acidente (29/03/2022) até ao efetivo pagamento da reparação da mesma viatura.

- Custas pela recorrida/R.

Lisboa, 27-2-2025

Afonso Henrique (relator)

Isabel Salgado

Ana Paula Lobo

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1. Acessível em

  https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/3ff43f6fa1ed0c4d80258b2b0057467c?OpenDocument;