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Jurisprudência
Sumário

I - Nos termos do disposto no art. 203.º da LEOAL compete ao juiz da comarca, em processo instruído pelo MP, com recurso para a secção criminal do STJ, aplicar as coimas correspondentes a contraordenações cometidas por eleitos locais no exercício das suas funções.

II - A esse processo aplica-se, subsidiariamente, o RGCO, designadamente o disposto no seu art. 50.º.

III - No caso dos autos o direito de defesa estabelecido nessa norma só pode ser devidamente cumprido depois de, terminada a instrução, o MP ter fixado os factos que são imputados ao arguido bem como a sanção em que mesmo incorre.

IV - Para se optar por decisão mediante simples despacho (ou seja, sem realização de audiência) é necessário, face ao disposto no n.º 2 do art. 64.º do RGCO, que a tal não se oponham o arguido e o MP.

V - A não observância do disposto nos arts. 50.º e 64.º, n.º 2, do RGCO constitui a nulidade insanável estabelecida no art. 119.º, al. c), do CPP, a qual invalida o despacho recorrido e todos os que se lhe seguiram.
Decisão Texto Integral

ACÓRDÃO

Acordam, em conferência, na 5ª secção do Supremo Tribunal de Justiça:

A - Relatório

A.1. A decisão recorrida

Através de despacho proferido a ... de ... de 2024 pelo Juízo Local Criminal de Braga - ..., AA foi condenado na coima de €15.000,00 (quinze mil euros) pela prática da contraordenação prevista e punível pelos artigos 10.º, n.ºs 1 e 4 e 12.º da Lei n.º 72-A/2015, de ... (violação da proibição de publicidade institucional em período eleitoral)

A.2. O Recurso

O recorrente não se conformou com essa decisão, pelo que dela recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, tendo o recurso sido, por despacho proferido a ... de ... de 2024, encaminhado – e bem1, - para este Supremo Tribunal de Justiça,

O recorrente termina as suas alegações com as seguintes conclusões (transcrição integral2):

CONCLUSÕES:

II. IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO b) Dos Factos 11, 12, 13, 14, 15 dados como provados

1. O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos:

11. (…)

12 (…)

13.(…)

14. (…)

15.(…)

2. Considerando os elementos probatórios dos presentes autos não poderiam resulta assentes os factos dados como provados anteriormente.3

4. Desde logo, decorre do procedimento dirigido pela Comissão Nacional de Eleições, - proc. n.º CNE/... – anterior ao que deu origem ao presente processo contraordenacional, mencionado no depoimento do denunciante, que “[o] outdoor em causa tem um carácter informativo, incluindo-se assim na exceção prevista pela CNE (…)” (grifos nossos).

5. Esta decisão chegou ao conhecimento do recorrente e, evidentemente, considerando a autoridade da entidade que a proferiu,enquantoentidade responsávelpelogarante de neutralidade e imparcialidade eleitoral, conformou-se com a mesma, acreditando que a nãoremoção daquele outdoor,comasconfiguraçõesque conservouaté à data em que foi retirado, em período eleitoral não consubstanciava qualquer violação da lei, e, em concreto, da proibição de publicidade institucional, prevista nos artigos 10.º, n.ºs 1 e 4 e 12.º, n.ºs 1 e 4 da Lei n.º 72-A/2015, de 23 de julho.

6. É este o sentido que se extrai das declarações prestadas pelo próprio recorrente. Veja-se: “(…) por parecer da CNE referente a esse mesmo outdoor foi referido que o mesmo tem carácter informativo, incluindo-se assim, na exceção prevista pela CNE, razão pela qual nunca afigurou como possível a necessidade da sua retirada”,

7. e da pronúncia do recorrente, após a notificação da segunda decisão da CNE: «A anterior decisão (anexa) a que se referem no ponto 25 diz que a “informação que consta é de carácter informativo, incluindo-se assim na exceção prevista pela CNE (…)”».

8. Por outro lado, decorreu um lapso considerável entre a data em que foi colocado o outdoor (ano de 2018) e publicado o Decreto que designou o dia para as eleições gerais para os órgãos das autarquias locais (.../.../2021), pelo que não é plausível equacionar que o recorrente em ... pudesse prever a data das referidas eleições e a sua candidatura a tal corrida, instalando um outdoor relativo à realização de obras públicas, com a finalidade de publicitar a sua boa obra durante o desempenho de funções enquanto presidente da ....

9. Em face do acervo probatório analisado e plasmado na sentença, nomeadamente testemunhal e documental, a redação que foi dada aos pontos 11, 12, 13, 14, 15 da matéria provada não é correta.

10. Desta forma devem reformular-se os factos 11, 12, 13, 14, 15, dados como provados, no sentido de fixar-se enquanto matéria provada os seguintes pontos:

a) O outdoor commerecimento nos autos não foicolocado com ointuito de promover a atividade da ..., favorecendo a recandidatura do recorrente ao cargo de titular do órgão.

b) O recorrente confiou na decisão da Comissão Nacional de Eleições, proferida no âmbitodoprocessoCNE/2020/68, deduzindoocarácterestritamente informativodo painel, e acreditando no estado de legalidade face à sua colocação, por se enquadrar numa das exceções, legalmente prevista, à proibição de publicidade institucional;

c) O recorrente ao não retirar ou ocultar o outdoor antes de ... de ... de 2021, não sabia que incorria em infração contraordenacional.

SEM PRESCINDIR

III.DO DIREITO

a) Da inexistência dos pressupostos fácticos e jurídicos

11. O painel não continha qualquer sinal ou associação partidária.

12. Também não continha sinais de associação à recandidatura do recorrente

13. A única representação simbológica que continha era a heráldica da freguesia de ..., inserida no canto superior esquerdo.

14. Imediatamente ao lado da heráldica encontrava-se inscrito o slogan “Continuamos a melhorar ...”.

15. Se alguma associação visual se pudesse vislumbrar no painel, entre o slogan e alguma entidade, seria entre a inscrição e o própria ..., e não entre aquela e a ... ou o Presidente da ....

16. Não se pode considerar que o outdoor tenha carácter promocional, não preenchendo assim os pressupostos da proibição da publicidade institucional, durante o período eleitoral.

17. Não obstante, ainda que se considerasse o carácter publicitário do painel, a sua colocação justificar-se-ia pelo cumprimento dos deveres legais.

18. O painel também continha informação relativa à empreitada de alargamento de águas pluviais e pavimentação. A saber: a) custo da empreitada, b) prazo de execução, c) dono da obra, d) empreiteiro, e) fiscalização, f) menção da delegação de funções pelo ... na ....

19. Exigiam-se essas menções no local por imposição legal Portaria n.º 959/2009, de 21 de agosto, que aprova formulário de caderno de encargos que, embora sem carácter vinculativo, sirva de base aos procedimentos de formação de contratos de empreitada de obras públicas.

20. A colocação do outdoor justificava-se pelo cumprimento de deveres legais, exclui-se, em consequência do âmbito material da proibição de publicidade institucional, prevista no art. 10.º, n.º 1, da Lei n.º 72-A/2015, de 23 de Julho.

21. Ainda que se tenha por assente bastará a suscetibilidade de influenciar dos meios para o preenchimento do tipo de ilícito contraordenacional, não se concebe um exercício de verificação de tal qualidade, sem que se atenda às circunstâncias em que estão inseridos os próprios meios.

22. Uma vez que a ... – local onde estava inserido o painel – se encontrava no estado descrito, não se reuniam condições que possibilitassem a passagem de veículos e peões, consequentemente – não podendo ser visualizado transeuntes e condutores, dos quais se incluem eleitores – o painel não era suscetível de influenciar o eleitorado.

23. Devem ser consideradas, para a boa decisão da causa, as circunstâncias enunciadas que conduzem a inexistência dos pressupostos de facto e de Direito, com a consequência de arquivamento dos autos.

SEM PRESCINDIR

b) Do erro não censurável sobre a ilicitude

24. O processo promovido pela CNE n.º CNE/2020/68, anterior ao que deu origem aos presente autos, encerrou com decisão por parte da entidade promotora da legalidade nas ações de propaganda política no sentido de que o “outdoor em causa tinha carácter informativo, incluindo-se, assim, na exceção, prevista pela CNE”.

25. A decisão da CNE foi comunicada ao ora Recorrente, que dela tomou conhecimento, conformando a sua consciência de juridicidade sobre o facto e estado de legalidade face à situação.

26. Caso existisse ilicitude no facto, – o que não se concebe, nem se aceita, apenas por mera hipótese de raciocínio se coloca – sempre seria de consideraro Recorrente AA atuou sem consciência da ilicitude, e, de forma motivada

27. atendendo que a Comissão Nacional de Eleições, que, nas palavras autorizadas do Tribunal Constitucional “actua na garantia da igualdade de oportunidades das candidaturas e da neutralidades das entidades públicas perante as ações de propaganda política anteriores ao ato eleitoral, por isso, destinadas a influenciar diretamente o eleitorado quanto ao sentido de voto”3, se pronunciou previamente sobre a mesma factualidade, apenas com um enquadramento temporal diferente, no sentido de a não remoção do outdoor com o slogan “Continuamos a melhorar ...” inscrito, não violaria o artigo 10.º, n.º 4, da Lei n.º 72-A/2015, de 23 de julho.

28. O Recorrente AA atuou com erro sobre a ilicitude.

29. A orientação da sua consciência foi provocada e validada pela atuação da Comissão Nacionalde Eleições,aquando proferimento da primeira decisão peloque,o erro sobre a ilicitude de BB é desculpável.

30. Nesta conformidade, deve ser considerado o erro não censurável sobre a ilicitude, em consequência, os presentes autos serem arquivados por falta de responsabilidade contraordenacional.

SEM PRESCINDIR

c) IN DUBIO PRO REO

31. Por força da presunção de inocência, a entidade com competência punitiva tem o ónus da prova dos factos imputados à arguida; se o não fizer, esta terá de ser ilibada, pois não tem que demonstrar a sua inocência: esta presume-se.

32. Donde, como a prova da infração é a demonstração dos elementos que a constituem – um facto típico, ao mesmo tempo ilícito e culposo –, a acusação está obrigada a provar, já indiciariamente para acusar, já, a final para condenar, tanto os elementos objetivos como os subjetivos da infração.

33. Inexistem factos essenciais à integração do ilícito em causa, não resultado materialidade fáctica quanto à prática de atos suscetíveis de integrar o tipo do ilícito pelo qual a arguida vem acusada; A dúvida subsiste, e assim, in dubio pro reu.”

A.3. Parecer do Ministério Público

O Digníssimo Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça emitiu detalhado e bem fundamentado parecer no qual, designadamente, consigna o seguinte: (transcrição parcial):

“A questão surge nessa altura, entendendo – sempre salvo o devido respeito – que existiu aqui omissão de uma formalidade essencial, gerando nulidade absoluta.

Com efeito, ao caso terá de se aplicar - não obstante a sua «especialidade» em termos de instrução pelo MºPº e decisão pelo juiz da comarca – a tramitação constante no regime geral das contraordenações constante no Decreto-Lei nº 433/82, de 27.10.

Ora, tal implica a efetivação de diversos atos que permitem garantir a defesa dos direitos dos recorrentes, em obediência ao disposto no artº 32º da Constituição que, no seu nº 10 especificamente refere que «Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao recorrente os direitos de audiência e defesa».

Sucede que - sempre salvo o devido respeito por entendimento diverso – não foi concedido ao recorrente, na sua totalidade, tal direito. Isto porque não foi dado cumprimento do disposto no artº 50º daquele diploma, quando o mesmo refere que:

(…)

E, com efeito, o recorrente acabou por ser surpreendido com uma decisão acerca da qual não teve possibilidade de previamente se pronunciar.

Isto porque, se bem que lhe tenham sido tomadas declarações no processo, não foi o mesmo notificado da «acusação» elaborada pelo Ministério Público a final da instrução, nem – muito menos – foi notificado pela entidade com capacidade de decisão – a magistrada judicial da instância local – de qual o sentido provável da decisão, com indicação da coima que iria ser aplicada.

Ou seja – ao contrário do exigido no mencionado artº 50º - não foi dado a conhecer ao recorrente o sentido provável da decisão final.

Não se confundindo esta notificação com a circunstância de, anteriormente, ter tido o recorrente oportunidade de se pronunciar acerca dos factos, tal como entendido no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 06.11.2018, no processo 22/18.5T8ERZ.E1:

(…)

Daqui que, como já entendido no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 04.02.2016, no processo 42/15.1TNLSB.L1-9, a nulidade aqui em causa não é relativa, mas sim absoluta, insanável.

(…)

Regressando ao caso dos presentes autos, a entender-se de forma diversa, teríamos ainda consequências mais gravosas: é que, não se tendo sequer comunicado ao recorrente o sentido da decisão, acabando este por ser confrontado com a decisão condenatória, tal implica a impossibilidade de contrariar a matéria de facto que esteve na base da condenação, pois que o recurso que a lei especialmente manda interpor diretamente para este Supremo Tribunal de Justiça se mostra, por força da norma contida no artº 434º, limitado a matéria de direito.

Ou seja, a parte do recurso interposto pelo recorrente em que o mesmo contesta a matéria de facto dada por assente teria, necessariamente, que ser rejeitada.

Tal implicaria, como se disse atrás, violação evidente das regras que contemplam o direito de defesa: comparado com os demais casos em que está em análise a prática de contraordenações, o recorrente pode, na sequência da notificação nos termos do artº 50º, requerer a realização de prova quanto a factos com os quais não se conforma, no que aqui ficou impedido.

E ligada com esta ainda outra questão se levanta: no caso, a circunstância de o recurso ser interposto para este STJ, por força da norma especial, não pode igualmente impedir o recorrente de contestar previamente a decisão que lhe aplicou a coima, sob pena de, mais uma vez, ser violado o direito de defesa, por negação de uma instância de recurso:

(…)

Termos em que, embora por motivos diversos dos invocados pelo recorrente, o Ministério Público neste STJ entende que a decisão recorrida deverá ser revogada, por nula nos moldes atrás referidos, nulidade absoluta que importará o regresso do processo à instância local, a fim de ser cumprido o disposto no artº 50º do Regime Jurídico do Ilícito de Mera Ordenação Social (Dec-Lei nº 433/82, de 27.10), seguindo-se depois os demais termos legais.”

A.4. Contraditório

Devidamente notificado, nos termos do disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, o recorrente não apresentou resposta.

* * *

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

B - Fundamentação

B.1. Âmbito do recurso

O âmbito do recurso delimita-se, como já atrás se referiu, pelas conclusões do recorrente (artigos 402º, 403º e 412º do Código de Processo Penal) sem prejuízo, se necessário à sua boa decisão, da competência do Supremo Tribunal de Justiça para, oficiosamente, conhecer dos vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410º, nº 2, do mesmo diploma legal, (acórdão de fixação de jurisprudência nº 7/95 in D.R. I Série de 28 de dezembro de 1995), de nulidades não sanadas (nº 3 do aludido artigo 410º) e de nulidades da sentença ( artigo 379º, nº do Código de Processo Penal).

Assim e em suma, os pontos de discordância do recorrente relativamente ao despacho recorrido e que, agora, coloca à consideração deste Alto Tribunal são os seguintes:

Que, considerando os elementos probatórios dos presentes autos não poderiam ter sido dados como provados os factos constantes dos pontos 11,13,14 e 15;

Que os factos dados como assentes não são subsumíveis à contraordenação prevista e punível pelos artigos 10.º, n.ºs 1 e 4 e 12.º, n.ºs 1 e 4 da Lei n.º 72-A/2015, de 23 de julho;

Que existiu erro não censurável sobre a ilicitude;

Que foi violado o princípio in dubio pro reo.

B.2. Matéria de facto dada como provada

Para proceder a essa apreciação importa, antes de mais, consignar a matéria de facto dada como provada e não provada pela decisão recorrida.

Assim, foi dada como provada e não provada a seguinte matéria de facto:

A) Factos provados

1. No dia ... de ... de 2021 foi publicado na 1.ª Série do Diário da República o Decreto n.º 18-A/2021, de 7 de Julho, que designou o dia 26 de Setembro de 2021 para as eleições gerais para os órgãos das autarquias locais.

2. Na data da publicação do referido Decreto, era titular do órgão da autarquia local / ... o eleito local AA, que se encontrava em pleno exercício das suas funções.

3. Apresentava-se igualmente como candidato às eleições gerais para os órgãos das autarquias locais, para Presidente de ....

4. No período compreendido entre ... de ... de 2021 (data da publicação do Decreto que designou a data para as eleições gerais para os órgãos das autarquias locais) e, pelo menos até ao dia ... de ... de 2021, encontrava-se colocado na ..., designadamente na ..., junto à Igreja e ao Cemitério de ..., um outdoor, anunciando a obra da “...”, com informação sobre a empreitada em questão e contendo a frase “Continuamos a melhorar ...”.

5. O outdoor acima mencionado tinha natureza promocional institucional a órgão da Administração Pública, a ....

6. O mesmo não se destinava tão só a comunicar ou informar o público em geral sobre bens ou serviços disponibilizados pela freguesia, mas a impactar os munícipes, e o público em geral, com o trabalho iniciado e levado a cabo pela órgão da Administração Pública, a ..., liderada por AA, também candidato às eleições gerais para os órgãos das autarquias locais a terem lugar nesse mesmo ano.

7. Ademais, a sua comunicação por esta via não era imprescindível à fruição pelos cidadãos dos serviços e infra-estruturas anunciados, nem tão pouco era essencial à concretização das atribuições da Junta de Freguesia.

8. Igualmente, não se tratava única e exclusivamente de avisos e/ou anúncios sobre, nomeadamente, condicionamentos de trânsito e similares ou com indicações sobre alterações das condições de funcionamento de serviços (mudanças de horário ou de instalações), não se verificando qualquer causa grave e/ou de urgente necessidade pública.

9. AA sabia que no ano de 2021 havia eleições para os órgãos das autarquias locais, e sabia que a partir da publicação do Decreto supra mencionado em 1., era proibida toda e qualquer publicidade institucional por parte da Autarquia Local, na qualidade de órgão da Administração Pública, de actos, programas, obras ou serviços, e, ainda assim, solicitou, aprovou e validou que tal outdoor estivesse visível nesse período temporal, não diligenciando, antes da intervenção da Comissão Nacional de Eleições, pela sua retirada ou ocultação, o que quis e conseguiu.

10. Sabia ainda AA que logo que publicado o decreto que fixa a data da eleição, incumbe ao titular do órgão do Estado ou da Administração Pública por sua iniciativa, determinar a remoção de materiais que promovam actos, programas, obras ou serviços e/ou suspender a produção e divulgação de formas de publicidade institucional até ao dia da eleição.

11. AA sabia igualmente que o conteúdo do outdoor acima descrito, passavam uma imagem positiva sobre a Junta de Freguesia e era apto a promover o trabalho desenvolvido pela mesma, sendo sua intenção a publicidade à actividade daquele órgão e favorecer dessa forma a sua recandidatura em detrimento das demais, o que quis e conseguiu.

12. AA sabia e conhecia o teor desse outdoor, bem sabendo que o mesmo não se destinava apenas a comunicações para o público em geral ou para informar de bens ou serviços disponibilizados pela junta de freguesia, mas sim, que tinha carácter promocional e que o mesmo consubstanciava publicidade institucional proibida, o que quis e conseguiu.

13. Sabia também que não existia qualquer causa grave que justificasse tal publicidade, porquanto não se tratava de necessidade pública urgente de publicitação de conteúdos com carácter meramente informativo, sendo que conhecia claramente a mera natureza promocional não abrangida por qualquer excepção legal.

14. Agiu assim AA de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que ao não retirar ou ocultar tal outdoor antes do dia 08 de Julho de 2021, incorria em infracção contra-ordenacional.

15. Mais sabia que enquanto Presidente de ... em exercício de funções, e enquanto candidato às eleições gerais para os órgãos das autarquias locais a terem lugar no ano de 2021, que a sua conduta constituía ilícito de mera ordenação social e que, como tal, era legalmente sancionada.

16. Em data não concretamente apurada, mas posterior a ... de ... de 2021, o outdoor foi retirado do local mencionado em 4.

*

B) Factos não provados

Inexistem com relevo para a decisão a proferir.

B.3. Tramitação do procedimento

Tendo designadamente em conta a questão prévia colocada pelo Digníssimo Procurador-Geral-Adjunto no parecer atrás referido, importa, também, e antes de passarmos à análise jurídica, consignar a tramitação dada ao procedimento que culminou com a decisão recorrida.

Assim:

1. - No âmbito e durante o processo eleitoral relativo à eleição para os órgãos das autarquias locais4 foi apresentada uma participação na Comissão Nacional de Eleições (doravante “CNE”) contra a ... – concelho de ... denunciando-se, em síntese, a existência de um outdoor, alegadamente desde 2019, a anunciar a obra da “Rua ...-Empreitada de alargamento- Águas pluviais e pavimentação”, com informação sobre a empreitada de obra pública e contendo a frase “Continuamos é melhorar ...”, por isso se considerando que o conteúdo do mesma configurava publicidade institucional proibida, sendo os factos subsumíveis à contraordenação prevista no nº 4 do artigo 10º da Lei 72-A/2015, de 23 de julho;

2. - Realizadas as diligências tidas por necessárias, a CNE enviou a informação 1-CNE/2021/203, elaborada pelo seu Gabinete Jurídico, ao Ministério Público, com vista à instauração de processo contraordenacional, na qual se concluía ter sido cometida a contraordenação prevista acima indicada;

3. - Instaurado processo no Ministério Público foi pelo mesmo determinada, a ... de ... de 2024, que se notificasse o denunciado BB, nos seguintes termos:

“Atendendo ao disposto no artigo 50.º do DL n.º 433/82 de 27 de Outubro, notifique o arguido BB, na qualidade de Presidente da ... para, no prazo de 30 dias, querendo, vir aos autos pronunciar-se sobre a contra-ordenação que lhe é imputada, p. e p. pelo artigo 10.º, n.º 4 da Lei n.º 72-A/2015 de 23 de Julho, conforme relatório de fls. 50 a 52, cuja cópia deverá remeter para melhor esclarecimento “;

4. - Esse “relatório de fls. 50 a 52“mais não é do que a informação elaborada pelo Gabinete Jurídico da CNE, à qual já atrás nos reportámos e da qual constava, designadamente, o seguinte:

• Que, “no âmbito do processo eleitoral em curso, que culminará com a realização de eleições para os órgãos das Autarquias Locais em 26 de setembro próximo, foi apresentada uma participação contra a ...) denunciando, em síntese, a existência de um outdoor, alegadamente desde 2019, a anunciar a obra da "Rua ...-Empreitada de alargamento-Águas pluviais e pavimentação", com informação sobre a empreitada de obra pública contendo a frase: "Continuamos a melhorar..."” ;

• Que “o conteúdo do mesmo (outdoor) configura publicidade institucional proibida, prevista no nº 4 do artigo 10º da Lei nº 72-A/2015, de 23 de julho”;

Que “notificado para se pronunciar, o Presidente da ...) não apresentou até à presente data qualquer resposta.”5

• Que “a violação desta proibição é punida com coima de €15 000 a€ 75 000 (cf. artigo 10º da Lei nº 72-A/2015, de 23 de julho).”

E que devia ser instaurado processo contraordenacional;

5. – Na sequência da notificação feita pelo Ministério Público o recorrente apresentou, a ... de ... de 2023, a sua resposta, a qual a seguir se transcreve integralmente:

1. O Requerente não pode conformar-se com o douto relatório n.º I­ CNE/2020/68, emitido pela Comissão Nacional de Eleições.

2. O Requerente está indiciado nos autos pela prática de uma contraordenação de publicidade institucional por parte de órgãos do Estado e da Administração Pública de atos, programas, obras ou serviços, p.e.p pelo art. 10.º, nº 4 da Lei nº 72-A/2015, de 23 de Julho.

3. O relatório recorrido, carece de fundamentação que sustente a subsunção dos conteúdos objeto da denúncia no conceito de "publicidade institucional proibida", na aceção conferida pelo art. 10º da Lei nº 72-A/2015, de 23 de Julho.

4. Ora, é verdade que a ... colocou o mencionado outdoor em 2018, ou seja, muito antes da data da publicação do decreto que marca o dia das eleições.

5. Ao contrário do que consta do ponto 3 do Relatório, o Recorrente enviou resposta, tal como consta do Documento 1.

6. Não obstante,

7. A norma do nº 4 do artigo 10.º, da Lei nº 72-A/2015, de 23 de julho, proíbe a publicidade de institucional por parte dos órgãos do Estado e da Administração Pública de atos, programas, obras ou serviços, salvo em caso de grave e urgente necessidade pública.

8. Afigura-se, porém, que esta proibição não impede que sejam divulgadas, de forma objetiva, informações que respeitem ao estrito cumprimento de um dever legal de divulgação.

9. Efetivamente, o outdoor em causa, contém informação de afixação com caráter obrigatório relativamente à obra da "... - Empreitada de alargamento - Águas pluviais e pavimentação", nomeadamente informações sobre a empreitada, tais como, custo da obra, prazo de execução e dono de obra.

10. Na verdade, como é referido no ponto 8 do Anexo à Informação nº I­ CNE/..., "O outdoor em causa tem um caráter informativo, incluindo-se, assim, na exceção prevista pela CNE".

11. O outdoor em causa não contém, se quer, qualquer alusão ou especificação de referência(s) partidária(s).

12. Destarte, o outdoor colocado pela ... não pode ser considerado como publicidade institucional, propaganda eleitoral ou publicidade, revestindo o seu conteúdo apenas Informação de caráter obrigatório.

13. pelo que devem os autos ser arquivados.

14. Acresce que, a ... no local em mérito pretende levar a cabo a realização de obra e alargamento, pavimentação de um caminho em terra batida e encaminhamento de águas pluviais.

15. Além do mais, a obra encontrava-se desde o ano 2019 parada, por falta do parecer da ... e das Infraestruturas de Portugal.

16. Sendo certo que a rua encontrava-se e encontra intransitável, estando cortado o trânsito,

17. E a sua localização é numa zona não habitacional.

18. De todo o modo.

19. Como resulta do ponto 27, b) da proposta de deliberação, com data de .../.../2021, foi proposta a retirada do outdoor

20. medida essa que foi imediatamente diligenciada pelo Requerente, e no mesmo dia em que foi notificado pela CNE.

21. Sendo que, apenas não foi retirada antes, por total esquecimento, uma vez que a obra, repete-se, encontrava-se parada,

22. e situada em local sem circulação de pessoas e veículos.

23. Assim, não tendo sequer o Requerente como possível a realização da contraordenação em causa.

24. Mesmo considerando-se que a conduta do Requerente possa não constituir fundamento de exclusão de responsabilidade, certo é que diminui substancialmente a ilicitude.

25. No âmbito.do direito contraordenacional a culpa corresponde a um juízo de censura de violação de um dever legal, exigindo-se assim, para que exista culpabilidade.do agente na prática do ato, a necessidade de esta lhe ser imputada a título de dolo ou, nos casos especialmente previstos.na lei, com negligência, nos termos do art. 8º0, nº 1 do DL n.º 433/82, de ....

26. No âmbito do art. 10º, nº4 da Lei nº 72-A/2015, de 23 de julho, a contraordenação de publicidade institucional por parte de órgãos do Estado e da Administração Pública de atos, programas, obras ou serviços, não é punida a título de negligência.

27. Ora, pela atuação supra descrita, sempre será de admitir, a existência de uma exclusão da culpa, a título de dolo, na conduta que é imputada ao ora Requerente, nos termos do art 15 alínea b) do Código Penal, uma vez que o mesmo nunca sequer equacionou a realização do facto.

28. Pelo que, não sendo a presente contraordenação punível a título de negligência devem os autos ser arquivados.

29. Mais ainda, consubstanciando a conduta do Requerente, não será de mais afiançar, que este agiu sem consciência da ilicitude.

30. De facto, pelos factos supra descritos o Requerente agiu sem culpa quer porque nunca equacionou que o outdoor em questão era violador dos deveres de neutralidade e imparcialidade a que está vinculado, considerando apenas tratar-se de um outdoor de caráter meramente informativo, quer porque o Requerente não tinha consciência da existência do outdoor,

31. o que configura uma situação de erro sobre a ilicitude, prevista no artigo 9º nº 1 do DL 433/82, dê 27 de outubro, e que também por esta via levará ao arquivamento dos autos,

32. ou em caso de censura à aplicação de uma sanção especialmente atenuada e no montante mínimo, nos termos do nº 2 desse mesmo artigo.

33. No entanto, mais se impõe, caso se entenda aplicar ao Requerente uma sanção, atendendo à reduzida gravidade da infração e da ausência de culpa da agente, deverá a mesma ser substituída por uma admoestação, conforme prevê o art. 51º do DL 433/82,

34. sendo esta suficiente para acautelar a inibição da realização de futuras contraordenações;

6. – No que concerne ao documento apresentado, trata-se de uma impressão da seguinte troca de mensagens eletrónicas, entre a CNE e o Recorrente:

• A primeira, datada de ... de ... de 2021, foi enviada pela CNE para o denunciado e, através da mesma, dá-se conta da deliberação – tomada com base e nos termos da informação acima referida – da promoção da instauração de procedimento contraordenacional, por violação do nº 4 do art. 10 da Lei 72-A/2015, de 23 de julho, sendo ainda aquele notificado para, no prazo de 48 h., “promover a remoção ou total ocultação do outdoor objeto do presente processo, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência previsto e punido pelo artigo 348º do código Penal” e advertido para que se “abstenha de, no futuro e até ao fim do período eleitoral, realizar publicidade institucional, independentemente dos meios ou suportes em que a faça, relativamente a quaisquer atos, programas ou serviços (…)”;

• A segunda, datada de ... de ... de 2021, foi enviada pelo denunciado para a CNE e através da mesma aquele exerce o seu direito de defesa, informando, também, que o outdoor foi retirado logo que recebida a mensagem da CNE;

• A terceira, datada de ... de ... de 2021, foi enviada pela CNE para o denunciado, dando-se conta na mesma de ter sido recebida a defesa apresentada;

7. – A ... de ... de 2021 o recorrente e a testemunha por ele indicada (CC) foram ouvidos (autos com as refªs citius ... e ..., respetivamente), tendo-se o primeiro referido exclusivamente a alguns dos factos/ argumentos já apresentados na sua defesa e o segundo mencionado que o outdoor foi colocado em 2018, que a obra parou pouco tempo depois, que a rua ficou intransitável e que foi ele quem retirou o outdoor, a mando do Presidente da Junta;

8. - A ... de ... de 2024 foi apresentada proposta ao Juiz de Direito, na qual o Ministério Público imputa a AA, na qualidade de Presidente da ..., a manutenção do outdoor atrás referido, no tempo e local também já indicados – factos que subsume à contraordenaçãoprevista e sancionada pelo disposto nos artigos 10.º, n.º 1 e 4 e 12.º, n.º 1 e 2, da Lei n.º 72-A/2015, de 23 de Julho com coima de 15.000,00 € (quinze mil euros) a 75.000,00 € (setenta e cinco mil euros) – e propõe que ao arguido seja aplicada a coima de 15.000€ (quinze mil euros);

9. Esse requerimento não foi notificado ao recorrente;

10. Finalmente, recebido esse requerimento, foi proferido o despacho recorrido (a ... de ... de 2024), no qual se consignou designadamente, a tramitação do procedimento na CNE e no Ministério Público e, bem assim, os argumentos invocados pelo recorrente na defesa apresentada.

* * *

B.4. O Direito

B.4.1. Introdução

Antes de prosseguirmos importa consignar breves notas de enquadramento do caso em análise.

Assim, nos termos do disposto nos artigos 10º e 12º da Lei n.º 72-A/2015 de 23 de julho6:

Artigo 10.º

Publicidade comercial

1 - A partir da publicação do decreto que marque a data da eleição ou do referendo é proibida a propaganda política feita direta ou indiretamente através dos meios de publicidade comercial.

2 - Excluem-se da proibição prevista no número anterior os anúncios publicitários, como tal identificados, em publicações periódicas desde que se limitem a utilizar a denominação, símbolo e sigla do partido, coligação ou grupo de cidadãos e as informações referentes à realização de um determinado evento.

3 - Excluem-se igualmente da proibição prevista no n.º 1, nos mesmos termos do número anterior, anúncios publicitários nas estações de radiodifusão e bem assim nas redes sociais e demais meios de expressão através da Internet.

4 - No período referido no n.º 1 é proibida a publicidade institucional por parte dos órgãos do Estado e da Administração Pública de atos, programas, obras ou serviços, salvo em caso de grave e urgente necessidade pública.

Artigo 12.º

Publicidade comercial ilícita

1 - Quem promover ou encomendar, bem como a empresa que fizer propaganda comercial em violação do disposto no artigo 10.º é punido com coima de (euro) 15 000 a (euro) 75 000.

2 - A coima prevista no número anterior é agravada em um terço nos seus limites mínimo e máximo em caso de reincidência.

Por outro lado, nos termos do disposto no artº 203º da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais7 (doravante “LOAL”):

Artigo 203.º

Órgãos competentes

“1 - Compete à Comissão Nacional de Eleições, com recurso para a secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, aplicar as coimas correspondentes a contraordenações praticadas por partidos políticos, coligações ou grupos de cidadãos, por empresas de comunicação social, de publicidade, de sondagens ou proprietárias de salas de espectáculos.

2 - Compete, nos demais casos, ao presidente da câmara municipal da área onde a contra-ordenação tiver sido praticada aplicar a respectiva coima, com recurso para o tribunal competente.

3 - Compete ao juiz da comarca, em processo instruído pelo Ministério Público, com recurso para a secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, aplicar as coimas correspondentes a contra-ordenações cometidas por eleitos locais no exercício das suas funções.»

Assim, no caso dos autos, dado que o visado era o Presidente da ... da ..., a instrução do processo cabia ao Ministério Público, competindo ao Juiz de Direito de primeira instância aplicar a coima acima referida, dessa decisão havendo recurso direto para a secção criminal deste Supremo Tribunal de Justiça.

Por outro lado, o nº 10º do artigo 32º da Constituição da ... estabelece o seguinte:

«Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao recorrente os direitos de audiência e defesa».

Dando corpo a essa norma constitucional, o artigo 50º do Regime Geral das Contraordenações (doravante “RGCO”)8, tem a seguinte redação:

Artigo 50.º

Direito de audição e defesa do recorrente

Não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao recorrente a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre.

Finalmente e com vista ao que adiante se consignará, transcrever-se-á ainda o disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 64º do RGCO:

Artigo 64.º

(Decisão por despacho judicial)

1 - O juiz decidirá do caso mediante audiência de julgamento ou através de simples despacho.

2 - O juiz decide por despacho quando não considere necessária a audiência de julgamento e o arguido ou o Ministério Público não se oponham.

Face a todo o acima exposto importa, antes de mais, consignar, que, considerando que o regime setorial especial de ilícito de mera ordenação social consagrado nos artigos 203º e ss. da LEOAL se limita a definir os respetivos tipos contraordenacionais - ainda que, atualmente, em conjugação com a Lei n.º 72-A/2015, de 23 de julho - e as entidades competentes para a instrução e decisão sobre aplicação das coimas correspondentes, o RGCO é aqui aplicável em tudo o mais respeitante ao procedimento, em termos adjetivos e substantivos, incluindo, nos casos omissos, a aplicação subsidiária do direito penal e processual penal, para onde remetem os seus artigos 32º e 41º, respetivamente.

Depois, importa igualmente compreender a razão de ser da diferença entre o disposto no nº 3 e o estabelecido nos nºs 1 e 2 , ambos do aludido artigo 203º da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais e, em sequência, daí retirar as devidas consequências

Essa diferença encontra suporte, como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça proferido no Proc. 1315//23.5T9BRG.S1. e relatado pelo Juiz Conselheiro João Rato – que iremos acompanhar nesta introdução - , “no reconhecimento da importância fulcral do poder local na concretização e sedimentação da organização e funcionamento do Estado de Direito Democrático em que assenta a ..., nos termos do artigo 2º da CRP, aí ganhando especial relevo o posicionamento e atuação dos titulares dos respetivos órgãos, eleitos por sufrágio direto e universal, à escala territorial correspondente.”

Assim e como é referido nesse acórdão, face também ao respeito devido pelos princípios constitucionais e legais que orientam e a que se subordina toda a atividade judicial, a ilação a retirar é a da “judicialização ab initio e ope legis” do procedimento contraordenacional nas situações previstas no n.º 3 do artigo 203º da LEOAL, ou seja, quando alguma das contraordenações nele previstas seja imputável a um eleito local em exercício de funções, fica completamente arredada a intervenção de qualquer autoridade administrativa, salvo quanto ao dever geral de todas as autoridades de denúncia ao Ministério Público de factos suscetíveis de constituir infração contraordenacional daquela natureza, como decorre do princípio da legalidade a que a atividade da administração em geral também está subordinada, nos termos do artigo 266º da CRP e, com as necessárias adaptações, da conjugação dos artigos 48º do RGCO e 242º e ss do CPP, na medida em que o ilícito de mera ordenação social participa do direito sancionatório público de exercício oficioso, sem necessidade, portanto, mas não excludente do impulso dos particulares.”

(…)

“E desta “judicialização ab initio e ope legis” do procedimento contraordenacional em apreço resultam necessariamente consequências, substantivas e formais, que o diferenciam profundamente do procedimento instituído para as situações previstas nos números 1 e 2 do artigo 203º da LEOAL, nomeadamente quanto ao posicionamento e poderes de intervenção do Ministério Público e ao desenvolvimento das fases do julgamento e do recurso (…)”

(…) a ausência de qualquer fase e decisão administrativa prévias (…) torna patente a necessidade de completar o procedimento setorial e especial instituído pela LEOAL com o procedimento comum e a adaptação deste àquela realidade, condensada no que acima designámos por “judicialização ab initio e ope legis”, por recurso aos lugares paralelos do CPP, do qual se aproxima, particularmente no que ao papel do Ministério Público concerne, mas também quanto ao reforço das garantias de defesa dos arguidos e à natureza e poderes de intervenção do STJ em sede de recurso que da decisão judicial a proferir venha a ser interposto.”

Assim e continuando a seguir o aludido acórdão, quando o Ministério Público “deu por ultimada a produção de prova, por ter considerado os factos apurados, que enumerou, integrantes de uma infração contraordenacional, formulou uma proposta de aplicação de coima, factual e juridicamente fundada, em tudo semelhante ao despacho de acusação previsto no artigo 283º do CPP, que submeteu ao escrutínio judicial, nos termos e para os efeitos dos artigos 62º, parte final, e ss. do RGCO.”

Concluindo e ainda citando o mencionado acórdão, tendo recebido uma proposta nos termos atrás referidos, “impunha-se ao juiz que conduzisse o processo em conformidade com os ditames dos artigos 63º e ss, à semelhança do que sucederia no processo penal, nos termos dos artigos 311º e ss. do CPP, estando-lhe vedado decidir o caso, condenando o arguido, por simples despacho, sem a sua prévia audição sobre o teor da proposta de aplicação de coima/”acusação” formulada pelo Ministério Público e sem lhe dar oportunidade de se pronunciar sobre a oposição ou não à decisão por simples despacho, ou seja, sem realização de audiência (…)”

B.4.2. A questão prévia

O Digníssimo Procurador-Geral-Adjunto veio suscitar a existência de nulidade absoluta e insanável do processo por, em apertada síntese e remetendo para o que atrás ficou consignado, ter sido violado o disposto no artigo 50º do RGCO que, como se referiu, é aplicável subsidiariamente a todos os processos relativos ao cometimento de ilícitos contraordenacionais.

Com efeito, refere esse Digníssimo Magistrado que se verifica a total inexistência de notificação nos termos do artº 50º”, e subsequente violação dos “direitos de defesa do recorrente, por falta de audição do mesmo” e por este ter sido impedido de “requerer a realização de prova quanto a factos com os quais não se conforma”, concluindo-se que “o recorrente acabou por ser surpreendido com uma decisão acerca da qual não teve possibilidade de previamente se pronunciar”.

E, assim, entende que foi cometida a nulidade insanável a que alude a al. c) do artigo 119º do Código de Processo Penal9, aplicável ex vi artigo 41º, nº 1 do RGCO.

Concordamos.

Na verdade, embora na notificação ordenada pelo Ministério Publico a ... de ... de 2024 este se reporte ao artigo 50º do RGCO, tal notificação não consubstancia o cumprimento do estabelecido nessa norma.

Com efeito, esse despacho mais não é do que o início da instrução a que o Ministério, in casu, está obrigado, face ao disposto no artigo 203º, nº 3 da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais

Ora, servindo a instrução para recolha prova, só depois desta terminada é que o Ministério Público está em condições de tomar posição, devolvendo os autos à entidade administrativa ou remetendo-os para julgamento.

Assim, só depois desta tomada de posição, é que é possível dar conhecimento ao arguido dessa posição e propiciar-lhe, sendo caso disso, oportunidade para se defender.

Aliás, no requerimento do Ministério Público de ... de ... de 2024 são incluídos mais factos dos que são narrados na informação da Comissão Nacional de Eleições, cuja remessa ao arguido foi determinada a ... de ... de 2024.

Com efeito, nos pontos 9 a 14 desse requerimento são incluídos factos que não constavam na informação da CNE, designadamente os que permitem caracterizar a conduta do arguido como dolosa.

E essa circunstância é da maior importância já que, in casu, a contraordenação só é punível a título de dolo10 .

Ora, não tendo sido notificado do requerimento de ... de ... de 2024, não se pode considerar cumprido o disposto no artigo 50º do RGCO, até porque, como acima assinalámos, depois dessa proposta, seguiu-se, imediatamente, o despacho condenatório e ora recorrido.

Assim e com refere o Digníssimo Procurador-Geral-Adjunto, verifica-se a existência de uma nulidade insanável a qual determina a invalidade de todos os atos praticados após o requerimento do Ministério Público de ... de ... de 2024.

Com efeito e embora tratando de questão controversa11, assim o consideraram os Juízes Conselheiros Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa quando escreveram o seguinte: “Não concessão ao arguido da possibilidade de ser ouvido sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre parece dever considerar-se uma nulidade insanável, enquadrável na alínea c) do nº1 do artº. 119. Com efeito, embora nesta norma se preveja como nulidade insanável a ausência do arguido ou seu defensor quando a lei exigir a respectiva comparência, o objectivo evidente desta obrigatoriedade de comparência é a concessão ao arguido da possibilidade de exercer os seus direitos de defesa que a lei e a CRP impõem que lhe seja concedida e, por isso, esta norma deve ser interpretada extensivamente como visando todas as situações em que não foi concedida ao arguido, antes de lhe ser aplicada uma sanção, possibilidade de exercer direitos de defesa que obrigatoriamente lhe deve ser proporcionada”12

Também neste sentido se pronunciaram os acórdãos de ...0...13 e de ...1...14, ambos do Tribunal da Relação de Lisboa, transcrevendo-se deste último o seguinte ponto do respetivo sumário:

“III. O não cumprimento do artigo 50º do RGCO por parte da autoridade administrativa constitui uma nulidade insanável.”

Aliás, nesse acórdão chama-se a atenção para o facto de o próprio legislador ter estabelecido, em matéria tributária, que a “falta de notificação do despacho para audição e apresentação de defesa” constitui nulidade insuprível15.

Face a todo o exposto, entende-se por verificada a nulidade invocada pelo Digníssimo Procurador-Geral-Adjunto, o que tem por consequência a invalidade da sentença recorrida (cf. artigo 122º, nº 1 do Código de Processo Penal).

B.4.3. A violação do artigo 64º, nº 2 do RGCO

Acresce que, sem embargo do que atrás consignámos, a nulidade referenciada sempre se teria de considerar verificada, devido a outra circunstância.

É que, como atrás referido, depois de ter recebido a proposta do Ministério Público e face ao disposto no nº 1 do artigo 64º do RGCO, o Juiz de Direito da primeira instância tinha de optar entre a decisão do caso “mediante audiência ou através de simples despacho”.

No caso em apreço não foi realizada qualquer audiência, tendo o referido magistrado decidido o caso mediante simples despacho.

Ora, conforme dispõe o nº 2 do referido artigo, a decisão sem realização de audiência só pode ocorrer se a tal não se opuserem o Ministério Público e o arguido.

Assim, como no caso em apreço nenhum desses sujeitos processuais foi consultado sobre a opção feita pelo Juiz de Direito da primeira instância, foi esta norma violada, o que consubstancia a nulidade a que se reporta o artigo 119º al. c) do Código de Processo Penal aplicável ex vi artigo 41º nº 1 do RGCO

Portanto, também devido a esta circunstância, o despacho recorrido é nulo.

Finalmente, consigna-se que a ocorrência da nulidade referenciada prejudica o conhecimento das questões colocadas pelo recorrente.

C – Decisão

Por todo o exposto, declara-se nula o despacho recorrido e determina-se a remessa dos autos à primeira instância, para devido cumprimento do disposto no artigo 50º do RGCO, seguindo-se os demais trâmites legais.

Sem custas.

Supremo Tribunal de Justiça, d.s. certificada

(Processado e revisto pelo relator - artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)

Os Juízes Conselheiros,

Celso Manata (Relator)

João Rato (1º Adjunto

Jorge Gonçalves (2º Adjunto)

_____________

1. Cf. artigo 203.º, n.º 3 da Lei Orgânica 1/2001, de 14 de Agosto.↩︎

2. Apenas não se reproduzem os factos dados como provados no ponto 1.↩︎

3. O recurso não tem conclusão nº 3.↩︎

4. Que teve lugar a 26 de setembro de 2021↩︎

5. O que não corresponde à verdade pois, como adiante melhor se reportará, BB respondeu à CNE a ... de ... de 2010↩︎

6. Estabelece o regime jurídico da cobertura jornalística em período eleitoral relativo às eleições para o Presidente da República, para a Assembleia da República, para o Parlamento Europeu, para os órgãos das autarquias locais e para os referendos nacionais e regula a propaganda eleitoral através de meios de publicidade comercial.↩︎

7. Lei Orgânica nº 1/2001, de 14 de agosto.↩︎

8. Contido no Dec. Lei nº 433/82, de 27 de outubro, alterado pelos Decretos-Lei nºs 356/89 e 244/95 – respetivamente de 17 de outubro e de 14 de setembro – e pela Lei 109/2001 de 24 d Dezembro.↩︎

9. Essa alínea estabelece o seguinte: “c) Ausência do recorrente ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a sua comparência↩︎

10. Cf. art. 8º, nº 1 do RGCO e Lei n.º 72-A/2015 de 23 de julho↩︎

11. Em sentido contrário ao por nós defendido se pronuncia Paulo Pinto de Albuquerque no “Comentário do Regime Geral das Contraordenações à luz da Constituição da República, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia”, 2ª Edição, UCP Editora, 2022↩︎

12. In “Contra-Ordenações, Anotações ao regime Geral”, 6ª edição, 2011, págs. 380 e 381.↩︎

13. In Coletânea de Jurisprudência, XXIX, 1, pág. 129.↩︎

14. Proc 42/15.1TNLSB.L1-9 – in www.dgsi.pt↩︎

15. Cf. artigo 63º, nº 1 al. c) do Regime Geral das Infrações Tributárias↩︎