Sumário
Os Juízos de Comércio são competentes em razão da matéria para conhecer de procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais da assembleia geral de uma cooperativa com a natureza de Caixa de Crédito Agrícola Mútuo.
Decisão Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível
I – RELATÓRIO
AA, contribuinte fiscal n.º .......91, residente em Felgueiras, na qualidade de associada nº .........24 da requerida, instaurou, no Juízo Local Cível de Felgueiras, procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais, contra a CAIXA DE CRÉDITO AGRÍCOLA MÚTUO DE TERRAS DO SOUSA, AVE, BASTO E TÂMEGA, COOPERATIVA DE RESPONSABILIDADE LIMITADA, com o número único de matrícula e pessoa colectiva ... ... .19, com sede em Felgueiras.
Requereu a suspensão da execução da deliberação social da Assembleia Geral da requerida, tomada na reunião da Assembleia Geral de 28/05/2024, de eleição dos candidatos integrantes da única lista subscrita pelos membros do actual Conselho de Administração, para o exercício das funções de membros da Mesa da Assembleia Geral, do Conselho Fiscal e do Conselho de Administração da requerida para o triénio de 2024-2026, por ser tal deliberação contrária à lei, aos Estatutos, ao RE e às normas da PISAA da CCAMTSABT.
O Juízo Local Cível de Felgueiras proferiu a seguinte decisão:
“…julgo este tribunal incompetente em razão da matéria para decidir a presente causa, sendo competente para tal a Secção de Comércio da Instância Central e assim, nos termos do disposto no artigo 99º, nº 1, do Código de Processo Civil, indefiro liminarmente o presente procedimento cautelar.”.
Inconformada, veio a Requerente interpor recurso de apelação, vindo a Relação do Porto, em acórdão, a revogar a decisão recorrida, “julgando competente para a acção o juízo cível onde a acção foi instaurada e determinando o prosseguimento do procedimento cautelar”.
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Por sua vez inconformada, vem a recorrida CAIXA DE CRÉDITO AGRÍCOLA MÚTUO DE TERRAS DO SOUSA, AVE, BASTO E TÂMEGA, COOPERATIVA DE RESPONSABILIDADE LIMITADA interpor recurso de revista, a presentando alegações que remata com as seguintes
CONCLUSÕES
A. O recurso é admissível, na medida em que tem por objeto a decisão sobre a competência material dos juízos de comércio para conhecer e decidir uma providência cautelar de suspensão de deliberações sociais, o qual é sempre admissível, nos termos do disposto no artigo 629.º, n.º 2, al. a) do CPC, aplicável ex vi dos artigos 370.º, n.º 2 e 672.º, n.º 2, al. a) do CPC.
B. De igual modo, a decisão sob recurso contraria acórdãos já proferidos pelos Tribunais da Relação de Évora e da Relação do Porto, transitados em julgado, bem como um Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, também transitado em julgado, pelo que, nos termos do disposto nos artigos 629.º, n.º 2, al. d) do CPC e 671.º, n.º 2, al. b) do CPC, também é admissível.
C. Sendo a atribuição de competência aos juízos de comércio determinada pelo fim da ação, salvo nos casos previstos no artigo 128.º, n.º 1, als. g) e i) da LOSJ, e sendo o fim da ação sub judice a suspensão de deliberações sociais, então são os juízos de comércio competentes para dirimir o presente litígio.
D. Sendo verdade que a Requerida não é uma sociedade comercial, não é menos verdade que está sujeita a um regime jurídico – o RJCAM – que remete, expressamente, em algumas matérias, para o Código das Sociedades Comerciais.
E. A remissão para o Código das Sociedades Comerciais acontece, designadamente, a respeito da regulação dos órgãos sociais, plasmada no artigo 20.º do RJCAM.
F. Por outro lado, o próprio Código Cooperativo remete, no seu artigo 9.º, o preenchimento de lacunas para o disposto no Código das Sociedades Comerciais.
G. Como tem vindo a ser sustentado pela Doutrina nacional, a regulamentação do Código Cooperativo no que se refere aos vícios das deliberações sociais é nsuficiente, restringindo-se ao artigo 39.º do mesmo, motivo pelo qual é necessário complementá-lo com o disposto no Código das Sociedades Comerciais.
H. Assim, as razões que determinam a especialidade dos juízos de comércio – a aplicação e especificidade das regras de governo societário – justificam também que, estando em causa um pedido de suspensão ou de anulação de deliberações sociais, seja essa a jurisdição adequada para conhecer e dirimir os litígios referentes às Cooperativas de Crédito Agrícola Mútuo, como é o caso da Requerida.
I. Não discriminando o artigo 128.º, n.º 1, al. d) da LOSJ a competência dos juízos de comércio para decidir providências cautelares nominadas de suspensão de deliberações sociais, em função da espécie de pessoa coletiva que adota a deliberação, devem os mesmos ser considerados competentes para conhecer e decidir a presente providência cautelar, como tem entendido a jurisprudência recente do Supremo Tribunal de Justiça, do Tribunal da Relação do Porto e do Tribunal da Relação de Évora e, bem assim, a Doutrina Nacional.
Nestes termos e nos demais de Direito aplicáveis, deverá o presente recurso de revista ser julgado totalmente procedente e, em consequência, ser revogado Acórdão Recorrido e ordenada a remessa do processo para os Juízos de Comércio de Amarante, com todas as legais e devidas consequências.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II – DA ADMISSIBILIDADE DO RECURSO E DA DELIMITAÇÃO DO SEU OBJECTO
Sob apreciação está uma decisão de apreciação da competência material dos tribunais.
Como tal, atento o estatuído no artigo 629.º, n.º 2, al. a), aplicável ex vi dos artigos 671.º, n.º 2, al. a) e 370.º, n.º 2, todos do CPC, é admissível a revista – como bem refere ABRANTES GERALDES1.
A revista, porém, sempre seria admissível nos termos do disposto no artigo 629.º, n.º 2, al. d) do CPC e, bem assim, do artigo 671.º, n.º 2, al. b) do CPC, dado que – como vem invocado e demonstrado pela Recorrente – , conhecendo o acórdão recorrido sobre o âmbito de aplicação do artigo 128.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (“LOSJ”) na referida questão de saber se aos juízos de comércio podem ser submetidos litígios que visem conhecer da possibilidade de suspensão ou anulação de deliberações sociais adoptadas em assembleias gerais de cooperativas de responsabilidade limitada e tendo, sobre essa matéria, tanto o Tribunal da Relação de Évora, como o Tribunal da Relação do Porto, como o Supremo Tribunal de Justiça proferiram decisões em sentido contrário.
Nada obsta, assim, à apreciação do mérito da revista – sendo que a situação tributária se mostra regularizada, o requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Para além de que tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).
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Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), a questão a decidir é a seguinte:
Saber se a competência em razão da matéria para conhecer de um procedimento cautelar de suspensão das deliberações sociais da assembleia geral de uma cooperativa de responsabilidade limitada é dos juízos cíveis ou dos juízos de comércio.
III – FUNDAMENTAÇÃO
Pretende a Requerente que seja ordenada a suspensão da execução da deliberação social adotada na Assembleia Geral da Requerida de 28 de Maio de 2024, que elegeu os candidatos integrantes da lista subscrita pelos membros do actual Conselho de Administração, para o exercício das funções de membros da Mesa da Assembleia Geral, do Conselho Fiscal e do Conselho de Administração da Requerida, para o triénio de 2024-2026, por, no seu entender, tal deliberação ser contrária à lei, aos Estatutos, ao Regulamento Eleitoral, e às normas da Política Interna de Seleção e Avaliação de Adequação (“PISAA”) dos Membros dos Órgãos de Administração e de Fiscalização da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Terras do Sousa, Ave, Basto e Tâmega, CRL.
Vejamos.
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É verdade que até há relativamente pouco tempo a jurisprudência parecia coesa no entendimento de que a norma que estabelecia a competência material dos tribunais/juízos de comércio se referia somente às sociedades comerciais, estando excluído do seu âmbito as acções relativas a cooperativas2.
Essa posição, porém, veio a inverter-se com os recentes Acórdãos da Relação do Porto de 10.07.2024, proc. 9204/24.0T8PRT.P1 e do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Março de 2023 (proc. 1227/22.0T8STS.S1), ambos disponíveis em www.dgsi.pt (seguindo a posição que já havia sido defendida pelo ac. da Rel de Évora de 10.10.2016, proc. 929/15.1t8BNV-A.E1, também disponível em www.dgsi.pt.
O acórdão recorrido fundamentou assim a posição ali sustentada de incompetência do tribunal de comércio para julgar a presente demanda:
«A Lei de Organização do Sistema Judiciário foi aprovada em 2013. Nessa altura já as caixas de crédito agrícola mútuo desempenhavam há muitos anos actividades bancárias e parabancárias nos mesmos termos e moldes que as demais instituições de crédito, ou seja, segundo modelos de negócio que visam gerar lucros e sob a supervisão de uma entidade reguladora.
O Decreto-lei n.º 24/91, de 11 de Janeiro, aprovou o regime jurídico do crédito agrícola mútuo. O artigo 1.º deste regime estabelecia que «as caixas de crédito agrícola mútuo são instituições especiais de crédito, sob a forma cooperativa, cujo objecto é o exercício de funções de crédito agrícola em favor dos seus associados, bem como a prática dos demais actos inerentes à actividade bancária, nos termos do presente diploma». Por sua vez o artigo 2.º estabelecia que «em tudo o que não estiver previsto no presente diploma, as caixas agrícolas regem-se, consoante a matéria, pelas normas que disciplinam as instituições de crédito e pelo Código Cooperativo e demais legislação aplicável às cooperativas em geral».
Assinalando-se no preâmbulo deste diploma que o crédito agrícola mútuo sofrera nos últimos anos «grandes transformações» e um «crescimento assinalável», parece dever entender-se que o legislador conhecia bem a dimensão do crédito agrícola e o funcionamento e as necessidades das caixas de crédito agrícola na sua esfera de actuação no mercado bancário.
Por esse motivo, afigura-se-nos que se, em 1999 (LOFTJ) ou em 2013 (LOSJ), pensando nas vantagens de submeter determinados litígios à jurisdição especializada dos Juízos de Comércio, o legislador tivesse querido incluir no artigo 128.º da LOSJ as acções cujos sujeitos sejam cooperativas ou, ao menos, as cooperativas caixas de crédito agrícola, muito provavelmente tê-lo-ia referido nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 128.º da LOSJ, dando não apenas um sinal claro de que pretendia que essa jurisdição deixasse de se ocupar essencialmente do contencioso das sociedades comerciais.
O argumento de que as caixas de crédito agrícola são instituições de crédito e por isso já estão incluídas na previsão da referida alínea i) prova demais. O legislador equacionou a especialidade da liquidação dessas instituições e entendeu inserir as acções com esse fimna competência material dos juízos de comércio. Porém, não fez o mesmo em relação às acções elencadas nas outras alíneas do mesmo preceito.
Se a circunstância de se dedicarem à prática bancária e financeira em termos similares às das demais instituições financeiras tivesse sido para o legislador critério bastante para atribuir aos juízos de comércio a competência para as acções independentemente da natureza, do estatuto e do regime jurídico da pessoa colectiva que dela é parte, o mais provável é que isso se tivesse reflectido no texto da norma legal, sendo certo que, como se referiu, por essa altura, não havia na jurisprudência ou na doutrina qualquer voz a defender que a competência dos tribunais de comércio abrangia ou devia abranger as cooperativas ou ao menos, de entre estas, aquelas que se dedicassem à prática de actos de comércio típicos.
A actividade a que se dedicam as caixas de crédito agrícola mútuo não foi tida pelo legislador como suficiente para lhes atribuir a natureza de sociedades comerciais; pelo contrário, o legislador entendeu manter-lhes a natureza de cooperativas e conservar a autonomia e especificidade do respectivo regime jurídico. Parece, pois, ousado, pretender retirar apenas daquela circunstância uma interpretação correctiva da norma legal de fixação da competência dos juízos de comércio.
Não queremos com isto dizer que isso não se justificasse ou não pudesse ser útil para o funcionamento das caixas de crédito agrícola. Queremos sim dizer que a intervenção do intérprete do direito na correcção ou transformação das soluções que o legislador verteu para o texto da lei só são constitucionalmente legítimas quando se fundam numa modificação das circunstâncias que existiam à data da norma legal e que o legislador não podia deixar de levar em conta na escolha da solução normativa ou na sanação de um manifesto lapso do legislador (lacuna). Se não existe essa transformação que torna a solução legal desajustada face ao quadro de valores que presidiram à sua produção e à nova realidade com que o intérprete se confronta, cremos que ao intérprete não é legítimo modificar a solução legal pondo-a ao serviço do seu próprio quadro de valores e da sua ponderação dos interesses em conflito.
Por fim, diga-se que nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 128.º do LOSJ só em dois casos as acções são elencadas por referência ao objecto social das sociedades: a alínea g) refere-se às sociedades cujo objecto social é a gestão de participações sociais, a alínea i) às sociedades que se dedicam à actividade financeira, bancária ou de concessão de crédito. Nas demais situações, o critério determinante da atribuição da competência em razão da matéria é somente o fim da acção, não a actividade a que se dedica a sociedade demandada.».
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Sem embargo de reconhecermos a bem apresentada fundamentação do acórdão recorrido, do mesmo nos permitimos discordar, tendo em conta que a jurisprudência não deve ser estática mas dinâmica e ajustada à evolução do pensamento legislativo e não olvidando o acelerado desenvolvimento socioeconómico havido nos últimos anos.
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Como já em tempos idos ensinava MANUEL DE ANDRADE3, Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um deve olhar-se aos termos em que foi proposta a ação - seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou ato donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes). A competência do tribunal - ensina REDENTI - afere-se pelo quid disputatum; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor. E o que está certo para os elementos objectos da ação está certo ainda para a pessoa dos litigantes4.
Ou seja, a determinação da competência do tribunal em razão da matéria é decidia face à petição e tomando em conta, por um lado, a pretensão formulada ou a medida jurisdicional requerida e, por outro, a relação jurídica ou situação factual descrita nessa peça processual.
Como remata MARIANA FRANÇA GOUVEIA5, existe um tendencial consenso entre doutrina e jurisprudência nacionais relativamente à forma de aferição da causa de pedir para efeitos de competência, reconduzindo-se tal consenso “à consideração da causa de pedir como os fundamentos do pedido que o autor alega, implicando uma noção dependente da lógica jurídica da ação como é deduzida na petição inicial “.
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Como dito, pretende a Requerente a suspensão da execução da deliberação social da Assembleia Geral da Requerida CAIXA DE CRÉDITO AGRÍCOLA MÚTUO DE TERRAS DO SOUSA, AVE, BASTO E TÂMEGA, COOPERATIVA DE RESPONSABILIDADE LIMITADA.
“São da competência residual dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”, sendo que “as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência de tribunais e secções dotadas de competência especializada” (arts. 64º e 65º do CPC).
Assim, reza o artº 281º da LOSJ (Lei de Organização do Sistema Judiciário) que:
1 - Compete aos juízos de comércio preparar e julgar:
a. Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;
b. As ações de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;
c. As ações relativas ao exercício de direitos sociais;
d. As ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais;
e. As ações de liquidação judicial de sociedades;
f. As ações de dissolução de sociedade anónima europeia;
g. As ações de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais;
h. As ações a que se refere o Código do Registo Comercial;
i. As ações de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras.
2 - Compete ainda aos juízos de comércio julgar as impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais.
3 - A competência a que se refere o n.º 1 abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.
Como vimos, a demanda é endereçada contra uma Cooperativa (agrícola). E entendeu-se que a competência para o julgamento da demanda não pertencia aos tribunais de comércio, mas, sim, ao “juízo cível onde a acção foi instaurada”.
Estribou-se a decisão recorrida, no essencial, em que:
- As caixas de crédito agrícola não têm a natureza de sociedades comerciais;
- Só em dois casos o artº 128º, nº1, da LOSJ adoptou o objecto social das sociedades como critério determinante da atribuição da competência em razão da matéria: nas alíneas g) e i) (…ações de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais; e As ações de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras). Nos demais casos, esse critério determinante da competência é “o fim social, não a actividade a que se dedica a sociedade demandada”. Pelo que, travando-se a discussão ínsita na demanda “dentro dos princípios cooperativos e do regime jurídico das cooperativas, nada tendo a ver com a actividade desenvolvida pela ré”, entende o acórdão recorrido não vislumbrar “que a especificidade de a ré desenvolver essa actividade seja bastante para considerar incluídas na alínea d) do n.º 1 do artigo 128.º da LOSJ as acções de suspensão e de anulação de deliberações de qualquer pessoa colectiva que, independentemente da sua natureza e do seu regime jurídico, pratique actos de comércio e/ou actos de crédito bancário”..
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Afigura-se-nos ser a posição firmada no supra referido (ainda recente) Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 01.03.2023, que, com sólida fundamentação, veio fazer uma inversão da tendência dominante no que tange à solução da questão sub judice.
Após reconhecimento de que se está perante uma questão que não tem tido uma solução unívoca – a competência, ou não, do tribunal do comércio para preparar e julgar ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais das sociedades cooperativa – , escreve-se nesse aresto:
«A fundamentação assenta, sobretudo, no atendimento da competência material dos Tribunais de Comércio, criados pela Lei Orgânica de Funcionamento dos Tribunais Judiciais, Lei 3/99, de 13 de Janeiro, respeitando aos conflitos que envolviam sociedades, como resultava das alíneas a) a i) do anterior art.º 89.º, com reporte aos trabalhos preparatórios da proposta de Lei 182/VII, DR de 12 de Junho de 1998, IIª série, n.º 59, págs. 1279, enquanto embrião da Lei 3/99, mencionando “(…) A criação, por iniciativa do XIII Governo, dos tribunais de recuperação da empresa e de falência, por ora territorialmente competentes nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, tem-se revelado positiva, na prática. É altura de lhes ampliar prudentemente a competência em razão da matéria, não para se reatar o antigo modelo dos clássicos tribunais de comércio, mas fazendo-os atuar em questões para que se requer especial preparação técnica e sensibilidade. Assim, os tribunais de recuperação da empresa e de falência, que passam a designar-se por tribunais de comércio, serão competentes para as ações relativas ao contencioso das sociedades comerciais, (…)”, e desse modo os tribunais de comércio estavam vocacionados para as questões, sobretudo o contencioso das sociedades, e não para conhecer todos e quaisquer conflitos envolvendo entidades que pudessem ser consideradas entes coletivos com atuação empresarial, mas sim para os decorrentes de pessoas coletivas com fins lucrativos, isto é, sociedades comerciais que tivessem por objeto a prática de atos de comércio e adotando um dos tipos previstos no n.º 2, do art.º 1.º, do Código das Sociedades Comerciais ou por sociedades a elas equiparadas nos termos do n.º 4 do mesmo artigo 1º desse diploma legal.
A interpretação restritiva do art.º 128, da LOSJ, na aproximação do constante no aludido art.º 89, da Lei 3/99, assentava assim na ausência de escopo lucrativo por inerente ao conceito de cooperativo, consubstanciando-se como o elemento estruturante dos princípios cooperativos, pelo que desse modo, por não visarem o lucro, o qual sendo indissociável do contrato de sociedade, afastada ficava a de atribuição às secções/juízos de Comércio a competência para apreciação das matérias previstas no então artigo 89.º e ora ao artigo 128.º aludidos, restrita às sociedades comerciais.
(…)
Acontece que quando nos centramos nas cooperativas do sector de crédito, não podemos obliterar que lhe estão atribuídas múltiplas atividades, envolvendo terceiros, e dos quais não está ausente o intuito lucrativo, messa medida se podendo compreender a obediência, em múltiplos aspetos ao regime geral das instituições de crédito, num controle do desempenho da atuação levada a cabo pela cooperativa, maxime no âmbito da salvaguarda dos interesses não só dos cooperantes, mas dos terceiros, que procuram os seus serviços.
Aliás, da delineação de tal regime, compreende-se a denominada crescente “bancarização” das caixas de crédito agrícola, sendo certo que com o âmbito de intervenção comercial descrito, funcionam na prática como um “banco universal”, inseridas no âmbito das Instituições de crédito, atente-se que no art.º 3, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, DL 298/92, de 31.12, e posteriores alterações, as caixas de crédito agrícola mútuo são consideradas instituições de crédito, sem prejuízo das já aludidas especialidades».
E remata:
«Configura-se, assim, que o sentido achado na interpretação da lei, com a atribuição aos tribunais de comércio da competência para o conhecimento de casos como os dos autos, pelo menos tendo em conta as especificidades de entidades como a R., não ultrapassa o fim para que foi criada a norma balizando tal competência, antes à mesma se adequando, na articulação dos elementos para tanto enunciados.»6.
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Antes de mais, regista-se que uma contradição parece existir na argumentação ínsita no acórdão recorrido: sustentando o douto aresto que na situação sub judice “o critério determinante da atribuição da competência em razão da matéria é somente o fim da acção, não a actividade a que se dedica a sociedade demandada”, então teríamos de concluir pela competência do tribunal de comércio, pois, sendo o fim da presente acção a suspensão de deliberações sociais adotadas em Assembleia Geral da Requerida, tal matéria está expressamente contemplada nas competências dos juízos de comércio, como se vê da al. d) do artigo 128.º da LOSJ.
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Avancemos.
Dispõe o artº 380º do CPC:
“1 - Se alguma associação ou sociedade, seja qual for a sua espécie, tomar deliberações contrárias à lei, aos estatutos ou ao contrato, qualquer sócio pode requerer, no prazo de 10 dias, que a execução dessas deliberações seja suspensa, justificando a qualidade de sócio e mostrando que essa execução pode causar dano apreciável.»7.
Daqui resulta que a providência cautelar adoptada pela Requerente é a adequada aos fins visados – portanto, em conformidade/sintonia com o “critério determinante da atribuição da competência em razão da matéria” sustentado na decisão recorrida: “o fim da acção”.
E estando em causa a apreciação de putativos vícios da deliberação social em causa, em causa está, também, a aplicação das regras contidas no Código das Sociedades Comerciais. Até porque não é no Código Cooperativo que estão particularmente disciplinados os vícios das deliberações sociais, antes o é no Código das Sociedades Comerciais.
Isso mesmo é afirmado, v.g., por DEOLINDA MEIRA e MARIA ELISABETE RAMOS, em comentário ao artº 39º do Código Cooperativo8: “é insuficiente a regulação do Código Cooperativo sobre as invalidades das deliberações dos membros da cooperativa. Esta insuficiência é colmatada pela remissão do art. 9º CCoop para o direito das sociedades anónimas, que funciona como direito subsidiário”. Acrescentando que “o regime das invalidades das deliberações da cooperativa é maioritariamente o regime jurídico-societário”9.
Assim também se extrai do Regime Jurídico do Crédito Agrícola Mútuo e das Cooperativas de Crédito Agrícola Mútuo” (RJCAM), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/91, de 11 de Janeiro, para onde remete o artº 45º dos Estatutos da Requerida, regime esse que, por sua vez, remete, em algumas matérias, para o Código das Sociedades Comerciais, como é caso do artº 20º desse RJCAM que, sob a epígrafe “Órgãos sociais”, remete, expressamente, para as regras previstas para as sociedades anónimas no Código das Sociedades Comerciais.
Além disso, dispõe o artº 2º do RJCAM:
“Artigo 2.º
Direito subsidiário
Em tudo o que não estiver previsto no presente diploma, as caixas agrícolas regem-se, consoante a matéria, pelas normas que disciplinam as instituições de crédito e pelo Código Cooperativo e demais legislação aplicável às cooperativas em geral”.
Por sua vez, o próprio Código Cooperativo remete expressamente, no seu artº 9º, para o disposto no Código das Sociedades Comerciais:
“Artigo 9º
Direito subsidiário
Para colmatar as lacunas do presente Código, que não o possam ser pelo recurso à legislação complementar aplicável aos diversos ramos do sector cooperativo, pode recorrer-se, na medida em que se não desrespeitem os princípios cooperativos, ao Código das Sociedades Comerciais, nomeadamente aos preceitos aplicáveis às sociedades anónimas”.
Assim, razão tem a Recorrente quando refere que “na realidade, as razões que determinam a especialidade dos juízos de comércio – a aplicação e especificidade das regras de governo societário plasmadas, designadamente, no Código das Sociedades Comerciais – justificam também que tal seja a jurisdição adequada para conhecer e dirimir os litígios referentes às cooperativas de Crédito Agrícola Mútuo”. Pelo que “estando em causa o julgamento de uma providência cautelar de suspensão de deliberações sociais, o que, nos termos do artigo 128.º, n.º 1, al. d) da LOSJ, é da competência material dos juízos de comércio, e sendo convocada a aplicação de normas do Código das Sociedades Comerciais, é por demais notório que a competência para conhecer da presente causa é dos Juízos de Comércio.”.
Não vemos como assim não deva ser.
Com efeito, como se vê com clareza da sua leitura, o artigo 128.º da LOSJ não discrimina a competência do tribunal de comércio em função da espécie de pessoa colectiva que adopta a deliberação, apenas especificando o escopo de pedidos cuja apreciação deverá ser submetida aos juízos de comércio. E de entre tais pedidos estão aqueles visando o exercício de direitos sociais e os com vista à suspensão e anulação de deliberações sociais.
E para aferirmos se estamos ou não perante uma deliberação social, não releva, obviamente, a natureza da pessoa colectiva, antes, e apenas, releva que se esteja exprimida através de votos, em termos tais que sejam imputáveis à pessoa colectiva em si10.
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Relativamente à natureza jurídica das cooperativas, na doutrina portuguesa podem identificar-se três diferentes orientações: uma primeira corrente, defende o enquadramento das cooperativas nas associações em sentido restrito; para outros, a cooperativa deve ser qualificada como uma sociedade; de acordo com uma terceira corrente, a cooperativa constitui um tertium genus, ao lado das sociedades civis e comerciais.
Refere A. MENEZES CORDEIRO11 que nos países do Sul, “mau grado a sua posição especial e os princípios próprios a que obedecem, são consideradas sociedades, obtendo tratamento junto dos comercialistas12”. E, referindo-se expressamente ao caso português, diz que “Não hã razões conceptuais para não considerar as cooperativas como sociedades. O seu regime, em múltiplas regras especiais é, de todo o modo, de clara inspiração comercial, aplicando-se subsidiariamente – artº 9º do CCoop – o Direito das Sociedades anónimas”.
E remata este Autor: “Retirar as cooperativas do direito das sociedades é recusar o seu estudo nas universidades. Ficarão fora dos roteiros curriculares, dos manuais e das preocupações diárias das faculdades.”. E acrescenta que a ideia de retirar as cooperativas, pelo menos formalmente, do universo das sociedades comerciais “teve, como consequência prática, o facto de os tribunais de comércio se considerarem incompetentes para apreciar as causas a elas relativas e, designadamente, quanto às acções de suspensão das deliberações sociais, bem como às correspondentes providências cautelares”. Pelo que, com toda a pertinência, remata “De facto, tais acções de anulação são muito semelhantes às das (restantes) sociedades comerciais. Retirá-las do Tribunal do Comércio é negar-lhes as vantagens que esse foro especializado, em princípio, acarretará para a boa e pronta decisão das coisas comerciais. Esvai-se, além disso, a energia e a riqueza das partes em disputas de cariz meramente processual”13.
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Já a questão do lucro tem sido outro dos argumentos para afastar as cooperativas da alçada dos Tribunais de Comércio.
Efectivamente, tem-se vincado, na noção de cooperativa, a ausência de fim lucrativo (atento o disposto no artº 2º do Código Cooperativo), concluindo-se que, porque não visam o lucro, não podem considerar-se sociedades (pois decorre do artº 980º do Código Civil que o fim lucrativo caracteriza e é indissociável do contrato de sociedade).
Desde já se regista que, como observa MENEZES CORDEIRO14, “os próprios cooperantes poderão ter fins “lucrativos”: de outro modo, as cooperativas não teriam qualquer interesse para satisfação das suas “necessidades e aspirações económicas, sociais ou culturais”.
Esse fim lucrativo tem sido alvo de importantes reflexões doutrinais, defendendo vários autores a relativização do conceito de lucro como elemento do contrato de sociedade e a ampliação do conceito lucro de forma a abranger, por exemplo, a poupança de despesas.
E, de facto, embora nos pareça difícil aceitar a relativização do fim lucrativo (no sentido de que este não é um elemento essencial do contrato de sociedade, mas apenas um elemento natural, como defendem alguns), temos como acertado o recurso a uma ampliação do conceito de lucro.
Na verdade, “o lucro social, tal como está concebido na noção geral de sociedade, é um lucro em sentido amplo que abrange quer o acréscimo patrimonial, quer a poupança de despesas, podendo ser gerado na própria sociedade ou nos patrimónios dos sócios.
Logo, seguindo o caminho da relativização do conceito de lucro ou ampliação do mesmo, a problemática da ausência do fim lucrativo na cooperativa fica resolvida.
Fim lucrativo e escopo naturalístico não são conceitos inconciliáveis, dado que a satisfação dos interesses dos cooperadores se concretiza na obtenção de determinadas vantagens económicas, fruto do desenvolvimento pela cooperativa de uma actividade económica, sob a forma empresarial.
No desenvolvimento desta actividade, a cooperativa recorre ao mercado, estabelecendo uma série de relações contratuais com terceiros, que variam segundo o tipo de cooperativa. Por isso, em cada exercício económico, uma parte dos resultados da actividade cooperativa é fruto da actividade de produção e intermediação no mercado que a cooperativa realiza em benefício dos seus membros.
Perante o exposto, podemos afirmar que existe uma identidade causal entre a sociedade e a cooperativa: a obtenção de vantagens patrimoniais ou económicas para os seus membros (qualquer que seja a sua modalidade – poupança de despesas ou incrementos patrimoniais positivos).”15.
Como escreve MANUEL PANIAGUA ZURERA16, na cooperativa concorrem dois objectivos – um lucrativo e outro social –, o que explica a sua especificidade enquanto tipo societário.
De facto, o legislador criou para as cooperativas um regime de inspiração comercial, determinando que se lhes aplique subsidiariamente as regras das sociedades comerciais (atº 9º do Cód. Cooperativo). Natureza societária da cooperativa que o legislador comunitário veio confirmar, no Estatuto da Sociedade Cooperativa (ESC), fixando-lhe aquela qualificação jurídica.
Assim, portanto, não se concorda em retirar as cooperativas do universo das sociedades, sem mais, antes vendo nelas o já referido tertium genus, ao lado das sociedades civis e comerciais, e, também e por essa via, aceitar a competência dos Tribunais de Comércio para apreciar as causas a elas relativas, como, no caso sub judice, o procedimento cautelar de suspensão das deliberações sociais.
Há, de facto, que afastar da discussão certos preconceitos ideológicos e ter presente a realidade actual em que as cooperativas se apresentam como organizações empresariais, inseridas no mercado, exercendo uma actividade económica.
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Também defendendo a competência dos Tribunais de Comércio para preparar e julgar as acções de suspensão e de anulação de deliberações dos órgãos das cooperativas, pode ver-se, ainda, JOSÉ MANUEL COUTINHO DE ABREU17:
“As cooperativas, não sendo embora sociedades, são afins destas.
Também por isso lhes é aplicável subsidiariamente o CSC (art. 9º do Coop.).
Por exemplo, em matéria de invalidades das deliberações da assembleia geral (o art. 39ª do Coop. não é bastante). Ora, tendo isto em vista, bem como o previsto no art. 89° da LOFTJ de 1999 (L 3/99, de 13 de janeiro), no art. 121° da LOFT] de 2008 (L 52/2008, de 28 de agosto) e no art. 128º da LOSJ (L 62/2013, de 26 de agosto) – todos os artigos referem ações judiciais respeitantes não somente a sociedades – , não custa admitir que competia aos "tribunais de comércio" (lei de 1999) ou aos "juízos de comércio" (lei de 2008) preparar e julgar as ações de suspensão e de anulação de deliberações dos órgãos das cooperativas (cfr. a al. d) do n° 1 dos citados arts. 89° e 121º) – competindo isso agora às "secções de comércio" (cfr. a al. d) do n° 1 do art. 128º da LOSJ).”18.
Veja-se, ainda, ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FUILIPE PIRES DE SOUSA, em anotação ao artº 380º do CPC19:
“Competência: cabe exclusivamente aos tribunais nacionais a apreciação da validade das deliberações sociais de pessoas coletivas ou sociedades sedeadas em território nacional (art. 63°, al. b)); a competência territorial resulta da aplicação do art. 78°, n° 1, al. c); a competência material para a suspensão de deliberações sociais cabe ao juízo de comércio (art. 128°, n° 1, al. d), da LOSJ) (…)”.
Ora, como é bom de ver, não fazem estes Autores referência à natureza da pessoa colectiva em causa na deliberação sob impugnação como critério para a competência do tribunal de comércio.
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Não vemos, de facto, como responder negativamente à interrogação deixada pela Recorrente nas suas alegações de recurso: “Fará sentido remeter para uma jurisdição distinta um processo que convoca a aplicação das regras do Código das Sociedades Comerciais, apenas porque a pessoa coletiva não é uma sociedade, quando, como bem se refere no acórdão recorrido e na doutrina citada, o que releva é a matéria e o fim do litígio?”.
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Com toda a pertinência, escreveu-se no (muito recente) acórdão da Relação do Porto de 10.07.2024 (proc. 9204/24.0T8PRT.P1 – disponível em www.dgsi.pt) – também a sustentar a competência dos Juízos de Comércio:
«.. no atual regime da competência material dos Juízos de Comércio, algum do contencioso relativo às cooperativas integra-se de forma plena e inequívoca na sua competência material, não havendo qualquer elemento literal ou teleológico que em matéria de direitos sociais cinja a litigiosidade deles emergentes à que se funda na titularidade de participações sociais em sociedades comerciais (veja-se a alínea c) do nº 1 do artigo 128º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei nº 62/2013 de 26 de agosto que se refere tão-só às ações relativas ao exercício de direitos sociais[8]), tal como também a alínea d) do nº 1 do artigo 128º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei nº 62/2013 de 26 de agosto se refere às ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais, sem exigir que esteja em causa controvérsia atinente às sociedades comerciais.
Neste enquadramento normativo, atendendo ao evidente alargamento expresso da competência material dos Juízos de Comércio, ao contencioso em que estão envolvidas cooperativas, queda sem suporte a afirmação apriorística de que o contencioso destas entidades é estranho a tais Juízos e, ao invés, há que questionar a racionalidade de a conflitualidade relativa a tais entidades se dividir entre a jurisdição cível e os Juízos de Comércio, tendo em linha de mira que o intérprete deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9º, nº 3, do Código Civil).
A interpretação seguida na decisão recorrida, além de ter guarida literal na alínea c) do nº 1 do artigo 128º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, é a que melhor se ajusta aos elementos normativos que se retiram das citadas alíneas a) e i) do nº 1 do citado artigo, decorrendo dela um regime de competência material congruente dos Juízos de Comércio no que respeita ao contencioso em que estejam envolvidas cooperativas.”20.
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Assim, e sem mais delongas, se considera que os Juízos de Comércio de Amarante são competentes, em razão da matéria, para decidir a presente causa.
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IV. DECISÃO
Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso e, consequentemente, conceder a revista, revogando-se o Acórdão Recorrido e ordenando-se a remessa dos autos aos Juízos de Comércio de Amarante, por competentes para a acção.
Custas da revista a cargo da Recorrida.
Lisboa, 12.12.2024
Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator)
Catarina Serra (Juíza Conselheira 1ª adjunta)
Orlando dos santos Nascimento (Juiz Conselheiro 2º Adjunto)
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1. Recursos em Processo Civil, Almedina, 7.ª Edição Atualizada, 2022, P. 51.
Escreve, ali, este Autor:
“Quanto ao recurso de revista, o art. 671., n.° 2, al. a), resolveu em definitivo as dúvidas que antes se suscitavam. Tal recurso é admitido, ainda que, porventura, o acórdão da Relação sobre a competência internacional ou em razão da matéria ou da hierarquia não corresponda a qualquer das situações previstas no n. 1 do art. 671.° ou mesmo que se verifique uma situação de dupla conformidade decisória. Assim, é imediatamente recorrível, embora não ponha termo total ou parcial ao processo, nem absolva da instância qualquer dos réus, o acórdão da Relação que, incidindo ou não sobre decisão de 1.ª instância, se pronuncie sobre algum daqueles vetores da competência absoluta, tendo em conta o disposto no art. 671°, n.° 2, al. a), com remissão para art. 629.°, n.° 2, al. a).”.
2. Nesse sentido, cfr. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22.06.2005, proc. n.º 1771/05, de 11.02.2003, proc. n.º 4002/02, de 4.07.2002, proc. n.º 1349/02, e de 5.02.2002, proc. n.º 01A4091 e dos acórdãos da Relação do Porto de 18-02-2002, de 24.05.2001, proc. n.º 0130691, de 12.11.2008, proc. n.º 0824142 e de 12.07.2021, proc. n.º 697/20.5T8MAI.P1 –
Todos disponíveis in www.dgsi.pt.
3. Noções Elementares de Processo Civil, 1993, pg. 91.
4. Assim, a título exemplificativo, os Acórdãos do Tribunal de Conflitos de 7.7.88, ADSTA; Ac. da RL de 1.7.93, CJ 1993 - III, pg. 144; Ac. da RC de 7.7.93, CJ 1993 - IV, pg. 33; STJ de 12.1.94, CJ 1994 - I, pg. 38.
5. A Causa de Pedir na Acção Declarativa, Almedina, 2004, pg. 174.
8. Código Cooperativo Anotado, Almedina, Outubro de 2023, p. 227.
10. Cfr. CARLOS OLAVO, Impugnação das Deliberações Sociais, Colectânea de Jurisprudência, Ano XIII, tomo III, p. 21.
11. Manual de Direito das Sociedades Cooperativas, pp 351.
12. AULETTA SALANITRO, elementi di diritto commerciale (2001) , 194 ss, FERRARA/CORSI, Gli imprenditore e le società, 12ª ed., 851, com indicações e ALDO CECCHERINI/STEFANO CHIRÒ, Società cooperative e mutue assicaruratrici (arttt. 2511-2448 c.c.) (2003), 1 ss.
14. Manual de Direito das Sociedades Cooperativas, pp 348.
15. DEOLINDA MARIA MOREIRA APARÍCIO MEIRA, A Natureza Jurídica da Cooperativa. Comentário ao Acórdão do STJ de 5,2,2002, in Revista de Ciências Empresariais e Jurídicas, nº 7, 2006, ISCAP – IPP, Porto, pp 147 ss.
16. Mutualidad y lucro en la sociedad cooperativa, p 505.
17. Curso de Direito Comercial, vol. II, 7ª edição, Reimpressão, 2023, pp 48-49.
19. In Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, setembro de 2020, p. 472, anotação n.º 11.