Sumário
Sumário1:
I. Inexiste vontade de declaração, ou seja, o sujeito não se apercebe que o seu comportamento – que é voluntário (ou meramente resultado de reflexos, interpretados pelo notário como sinais de vontade, mas cuja razoabilidade é questionada pelo tribunal) – tem o valor de declaração negocial.
II. A falta de vontade da declaração não se confunde com a incapacidade acidental;
III. A interpretação do regime do maior acompanhado e da solução aí imposta no art.º 154.º, n.º7, é passível de ser conjugada com o regime do art.º 246.º do CC; enquanto no art.º 154.º, n.º7 se estará a pensar na perspectiva do maior e dos seus interesses apenas, na perspectiva do art.º 246.º estar-se-á a pensar em moldes mais amplos, que envolvem igualmente outros interessados, perante a prática de um acto que lesa os seus interesses, como sucede na nossa acção, e que a ordem jurídica não pode deixar de considerar.
IV. A procuração que confere poderes para “doar a eles mandatários, todos o imóveis ou direitos imobiliários que possui a esta data, com ou sem reserva de usufruto, sitos nos concelhos de … (…) atribui poderes selectivos aos representantes/donatários ao escolher quais os bens a doar e em que termos de entre o conjunto de bens indicado, o que a lei proíbe.
Decisão Texto Integral
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I. Relatório
1. Glória Vilas Boas – Farmácia, Unipessoal, Limitada intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra AA, BB e CC, peticionando que:
i) Seja declarada a nulidade da Procuração outorgada a 21 de Dezembro de 2015 e, em consequência, a ineficácia relativamente à 1.ª R. e à A. da Escritura de Doação, da Escritura de Rectificação de 9 de Março de 2016, da Escritura de Rectificação de 9 de Dezembro de 2016 e das comunicações enviadas pelos 2.ª e 3.º RR. à A. datadas de 29 de Dezembro de 2016 e das que, no mesmo contexto, se lhe seguiram,
ii) Seja declarada a nulidade da Escritura de Rectificação de 9 de Dezembro de 2016 e, em consequência, a invalidade das comunicações enviadas pelos 2.ª e 3.º RR. à A. datadas de 29 de Dezembro de 2016;
iii) Em consequência da declaração de nulidade o cancelamento do registo da doação da fracção “B” do prédio urbano sito na Rua da ... da freguesia de ... (actual freguesia de ...), concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Comercial de ... sob o nº .18/19810130 e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o nº .46 da freguesia de ..., nos termos do artigo 13.º do Código do Registo Predial
2. A A. alegou a nulidade da procuração em causa nos autos fundada na falta da assinatura por parte da 1.ª R., apelando ao disposto no artigo 70.º, n.º 1 e) do Código do Notariado, a ineficácia da mesma por falta de poderes de representação com base no artigo 268.º do Civil, e por indeterminação dessa procuração com base na violação do disposto no artigo 949.º do Código Civil, e a nulidade da escritura de rectificação por violação do disposto nos artigos 280.º, n.º 1 e 1476.º do Código Civil.
3. Citados os RR., estes contestaram.
4. Realizou-se a audiência prévia. Foi proferido despacho saneador. Foi proferido despacho que fixou o objecto do litígio e os temas da prova. Designou-se data para julgamento, realizando-se a audiência com respeito pelo legal formalismo. Foi proferida sentença.
5. Em virtude do falecimento da R. AA foram habilitados os seus sucessores.
6. Em sede de recurso foi determinado que o articulado superveniente fosse admitido e os temas da prova ampliados, o que foi feito.
7. Realizou-se nova audiência de julgamento, e proferida sentença que culminou com o seguinte segmento decisório:
“Pelos fundamentos expostos, julgo a acção parcialmente procedente e, em consequência, decido declarar a nulidade da procuração outorgada a 21 de Dezembro de 2015.
Mais decido absolver os RR. do demais peticionado.”
8. Houve recurso de apelação pelas partes:
- pela A., recurso independente;
- pelos RR, recurso subordinado.
9. O Tribunal da Relação conheceu dos recursos e decidiu:
“Acordam os Juízes desta ...ª Secção Civil do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar procedente o recurso subordinado dos Réus e, em consequência, revogar a decisão recorrida na parte que julgou nula a procuração outorgada a 21 de dezembro de 2015, e absolver, consequentemente, os Réus de tal pedido; em julgar improcedente o recurso independente da Autora, mantendo-se, pelos fundamentos supra expendidos, e no mais, a decisão recorrida, com exceção das custas fixadas, cujo pagamento, nos termos previstos no art. 527º, nº 1, do CPC ficam totalmente a cargo daquela.”
10. Não se conformando com o acórdão, veio apresentado recurso de revista pela A., no qual formula as seguintes conclusões (transcrição):
1.º Vem o presente Recurso interposto da Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa com a ref. CITIUS n.º ......80, de 19.12.2024, que julgou procedente o Recurso Subordinado interposto pelos Réus e Recorridos e improcedente o da aqui Recorrente, revogando a Sentença proferida pela Primeira Instância na parte que julgou nula a Procuração outorgada a 21.12.2015 e mantendo-a quanto ao mais, ainda que, neste último particular, sem total similitude entre os argumentos fundantes da cada uma das respectivas decisões.
2.º Não pode a aqui Recorrente conformar-se com a decisão em crise, pois, com o devido respeito, que muito é, não fez a mesma correcta aplicação do Direito, nem, o que é mais, realizou a Justiça no caso concreto.
DA NULIDADE DA PROCURAÇÃO E DAS (NECESSÁRIAS) CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS PARA OS DEMAIS INSTRUMENTOS CONTRATUAIS E COMUNICAÇÕES ENDEREÇADAS PELOS RÉUS (PRETÉRITOS 2.ª E 3.º RÉUS) À AUTORA
3.º Contrariamente ao que agora fez o Acórdão a quo, andou bem o Tribunal de Primeira Instância a concluir pela nulidade, e consequente ineficácia, da Procuração de 21.12.2015 quanto à sua representada, quer com fundamento na falta de assinatura (cfr., entre o mais, artigos 46.º, n.º 1, alínea m), 51.º, n.º 1 e 70.º, n.º 1, alínea e) do Código do Notariado), quer por via do regime da incapacidade acidental (cfr. artigos 154.º, n.º 3 e 257.º do Cód. Civil)
4.º Não pode concordar-se com o entendimento propugnado pelo Venerando Tribunal a quo no sentido que a Procuração não enferma de nulidade, por não preencher a situação sub judice o âmbito da previsão do artigo 70.º, n.º 1, al. e) do Código do Notariado (consubstanciando tão-somente uma irregularidade formal), porquanto o mesmo realiza uma leitura puramente formal, falhando a letra e o espírito no artigo 70.º do Código do Notariado e do artigo 280.º do Cód. Civil, e todo o circunstancialismo apurado in casu.
5.º Da falta da menção que o declarante não sabe ou não pode assinar, outra coisa não pode resultar senão que o mesmo sabe e pode assinar (i.e., não existe qualquer limitação física a essa assinatura), pelo que a simples falta dessa menção deve determinar a conclusão de que o instrumento não se encontra efectivamente assinado, nos termos do disposto no artigo 70.º, n.º 1, al. e) do Código do Notariado.
6.º Além disso, subjacente à citada al. e) estão, além dos casos em que o outorgante não sabe assinar, as situações em que a incapacidade de assinar provém de mera limitação ou impedimento físico (por doença ou por ser portadora de deficiência física que o impeça) de assinar (cfr. artigo 51.º do Código do Notariado), e não de estar totalmente incapaz, mormente do ponto de vista cognitivo, de conhecer ou de se autodeterminar em conformidade com qualquer acto, como ocorre in casu.
7.º A indicação dos outorgantes que não assinem e a declaração, que cada um deles faça, de que não assina por não saber ou por não poder fazê-lo (cfr. Artigo 46.º, n.º 1, al. m) do Código do Notariado), tem por pressuposto que o outorgante está na posse de todas as faculdades cognitivas suficientes para conhecer e para se autodeterminar no acto em causa, o que não sucedeu.
8.º Mesmo que não se devesse concluir que o instrumento não se encontra, sem mais, efectivamente assinado pela Dra. AA, a incapacidade desta para compreender e se autodeterminar sempre imporia a nulidade do acto, consideradas todas as normas e exigências gerais e específicas do acto notarial, (designadamente a necessidade do notário verificar a capacidade dos outorgantes, que é capital pressuposto da sua válida celebração), bem como o facto de o artigo70.º do Código do Notariado não impor uma tipicidade taxativa das causas de nulidade do acto notarial.
9.º Demonstrado o total estado de incapacidade físico-motora e cognitiva da Dra. AA aquando da pretensa outorga da Procuração a 21.12.2015, não poderá, ser reconhecido como válido e/ou eficaz esse instrumento, (com todas as legais consequências para os negócios jurídicos celebrados pelos 2ª e 3º Réus e comunicações à Autora que se lhe seguiram, no quadro do Contrato de Arrendamento).
10.º Mas ainda que assim não se entendesse, e não fosse a nulidade daquele instrumento contratual conhecida e declarada, sem mais, nos termos que antecedem – no que naturalmente não se concede e a mero benefício se equaciona – nunca poderia deixar de ser reconhecida a invalidade da Procuração, por via de incapacidade acidental, nos termos e para os efeitos do preceituado no artigo 257.º do Cód. Civil, ex vi do disposto no artigo 154.º, n.º 3 do mesmo diploma.
11.º Mal decidiu também o Acórdão a quo ao conhecer da nulidade da Procuração com fundamento na violação do disposto nos artigos 949.º, n.º 1 e 2182.º, n.º 2 do Cód. Civil, decidindo que a sobredita nulidade não ocorre por entender que a Procuração não confere aos Réus os poderes para determinar o objecto da doação.
12.º No caso vertente, inexiste qualquer determinação ou especificação, positiva ou negativamente, figurando na Procuração apenas uma menção genérica a todos os imóveis ou direitos imobiliários a esta data, sitos em vários concelhos de Portugal, ou seja, e em total rigor, é atribuída aos Réus, representados, a possibilidade de escolher o pretendido objecto da doação dentre todo o património imobiliário da pretérita 1.ª Ré.
13.º Entender o contrário, i.e., que uma menção genérica ao património do doador seria suficiente para satisfazer as exigências da citada norma, como acontece no Acórdão a quo, desproveria, aliás, essa norma de qualquer sentido ou utilidade, devendo concluir-se que a Procuração é nula, nos termos do disposto nos artigos 949.º e 2182.º do Cód. Civil.
14.º Ao decidir de forma diversa, fez o Venerando Tribunal a quo errada interpretação e aplicação do Direito aos factos em presença, em especial do disposto nos artigos 257.º, 268.º, 280.º, 334.º, 949.º e 2182.º, todos do Cód. Civil, nos artigos 46.º, n.º 1, al. m), 51.º, 68.º, n.º 1, al. a), 70.º, n.º 1, al. e), 71.º e 173.º, todos do Código do Notariado, e no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
15.º Constatada a nulidade da Procuração de 21.12.2015, por qualquer dos fundamentos supra, tal sempre deverá importar que sejam declarados ineficazes todos os actos praticados pelos Réus no uso da mesma, concretamente, a Escritura de Doação, a Escritura de Rectificação da Escritura de Doação de 9 de Março de 2016 e a Escritura de Rectificação da Escritura de Doação de 9 de Dezembro de 2016,
16.º Repercutindo-se tal ineficácia, necessariamente, também na esfera da aqui Recorrente, na qualidade de arrendatária do imóvel objecto do negócio, pois os Réus não adquiriram por doação a propriedade da fracção autónoma em que se encontra instalada a Farmácia, não tendo, como tal, a qualidade necessária à emissão das declarações constantes das cartas datadas de 29 de Dezembro de 2016, que nenhum efeito podem, pois, produzir.
17.º Nos termos do citado artigo 268.º, n.º 1, são especialmente reguladas as relações entre representado e representante, determinando-se a ineficácia do acto praticado sem poderes de representação, em relação à pessoa em nome de quem o negócio é celebrado, mas também em relação à contraparte no negócio representativo.
18.º O negócio representativo inicialmente não produz efeitos nem quanto ao representado, nem quanto à contraparte, fazendo a ratificação pelo representado operar a sua eficácia retroactiva, sem prejuízo dos direitos de terceiro (cfr. preceitua o artigo 268.º, n.º 2 do Cód. Civil).
19.º É pressuposto da declaração de ratificação do negócio representativo pelo representado o de que o representado se encontra capaz, desde logo, para conhecer do negócio efectuado, compreender os correspondentes efeitos, e decidir se ratifica ou não o respectivo negócio.
20.º Sendo a ratificação conditio iuris do negócio jurídico praticado por representante sem poderes para o efeito, tal declaração, além de – como constatou a Sentença a quo – não ter ocorrido no caso dos autos, jamais poderia ter tido lugar, considerado que, como ficou provado e demonstrado na Sentença prolatada no processo de acompanhamento de maior a que foi sujeita a Dra. AA, a mesma se encontrava num estado de total incapacidade, físico-motora e cognitiva, pelo menos, desde 3 de Junho de 2011, situação que se manteve até ao seu falecimento (cfr. Facto 16 do elenco dos Factos Provados),
21.º E também não poderá vir a ter lugar atento o falecimento da Dra. AA entretanto ocorrido.
22.º Não sendo o negócio representativo ratificado, por haver sido negada ou se ter revelado inviável a ratificação, o negócio pretensamente praticado a coberto desses inexistentes poderes torna-se definitivamente ineficaz, não estando mais em causa uma ineficácia stricto sensu (e apenas em relação a certas pessoas) - i.e., o negócio é nulo.
23.º A invocação da eficácia do negócio representativo resultante da representação sem poderes é permitida a qualquer interessado, como ocorre no caso dos autos – e, de resto, se impõe.
24.º Até porque, in casu, além de coincidentes os representantes e a contraparte no negócio celebrado (i.e. os ora Réus), era representante nomeado da Dra. AA (até então 1.ª Ré) o seu Filho e até aqui 2.º Réu, a quem, naturalmente, em manifesto conflito de interesses, não interessa(va) a invalidade ou declaração de ineficácia de negócios celebrados a seu favor.
25.º No mais, o entendimento seguido na Sentença da Primeira Instância, em sentido contrário à pretendida invalidação de todos os instrumentos contratuais celebrados com base nessa Procuração nula, daria ademais chancela, como de inequívoca forma os autos atestam, a um gritante abuso do direito dos 2.ª e 3.º Réus, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 334.º do Cód. Civil, que, em qualquer causa, sempre cumpriria ao Tribunal a quo ter reconhecido, de igual modo concluindo pela procedência dos presentes autos.
26.º Além de radicar em errado entendimento e aplicação do artigo 268.º do Cód. Civil considerados os contornos do caso concreto, a Sentença a quo lesa ainda as máximas de certeza e segurança das relações jurídicas, que devem presidir às (boas) decisões judiciais, redundando, além do mais, numa interpretação e aplicação do referido preceito legal desconforme à Constituição da República Portuguesa, maxime do princípio da segurança jurídica plasmado no seu artigo 2.º.
27.º Em face de todo o exposto, deve ser também declarada, pelo menos, a ineficácia de todos os negócios jurídicos celebrados pelos pretéritos 2.ª e 3.º Réus com assento na Procuração de 21.12.2015 também face a estes, e, bem assim, de todas as comunicações que à Autora endereçaram, no quadro do Contrato de Arrendamento.
28.º Ao decidir de forma diversa, fez o Venerando Tribunal a quo errada interpretação e aplicação do Direito aos factos em presença, em especial do disposto nos artigos 268.º, 280.º, 334.º, 949.º e 2182.º, todos do Cód. Civil, nos artigos 46.º, n.º 1, al. m), 51.º, 68.º, n.º 1, al. a), 70.º, n.º 1, al. e), 71.º e 173.º, todos do Código do Notariado, e no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
DA NULIDADE AUTÓNOMA DA ESCRITURA DE RECTIFICAÇÃO DE 9 DE DEZEMBRO DE 2016
29.º Contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo, a Escritura de Rectificação de 9 de Dezembro de 2016 não consubstancia um acto permitido (e válido), ao abrigo do preceituado no artigo 80.º, n.º 2 do Código do Notariado, padecendo de uma causa de nulidade autónoma, por violação de norma legal, nos termos do disposto no artigo 280.º, n.º 1 do Cód. Civil; sendo que, ainda que válida fosse, e não é, a pretensa rectificação operada nunca poderia ter por efeito afectar os direitos da aqui Autora.
30.º A rectificação é inadmissível, na medida em que não visou sanar um qualquer lapso na declaração de vontade dos outorgantes, não correspondendo a mesma à real vontade dos declaratários no momento em que a declaração foi emitida, destinando-se, ao invés, a alterar a vontade declarada dos outorgantes, como resulta demonstrado nos autos.
31.º Esse acto de rectificação redunda assim numa extinção de um direito real de gozo, com efeito retroactivo, por meio que a lei não consente (em violação do previsto nos artigos artigo 1306.º, n.º 1 e 1476.º do Cód. Civil, de carácter imperativo).
32.º Pelo exposto, é também nula e de nenhum efeito, por violação de norma legal imperativa, a Escritura de Rectificação em apreço, com todas as consequências que daí derivam, designadamente, a reconstituição retroactiva da situação existente à data da sua celebração e a consequente invalidade de todos os actos praticados pelos 2.ª e 3.º Réus, com assento na mesma, tudo nos termos e para os efeitos do artigo 289.º do Cód. Civil.
33.º Ademais, e sem conceder, a aludida rectificação, redundando afinal num acto extintivo de um direito real da então 1.ª Ré, foi praticada por quem não tinha poderes para o efeito, uma vez que a Procuração outorgada pela Dra. AA, além de nula, nunca conferiria, em todo o caso, poderes para extinguir quaisquer direitos reais, mas apenas para promover a sua transmissão.
34.º Também por aqui, deveria ter sido declarada nula e ineficaz, relativamente à pretérita 1.ª Ré e à aqui Recorrente, a Escritura de Rectificação de 9 de Dezembro de 2016 e ineficazes, em consequência, as comunicações enviadas pelos até aqui 2.ª e 3.º Réus à Recorrente datadas de 29 de Dezembro de 2016 e as que, no mesmo contexto, se lhe seguiram.
35.º Ao decidir diversamente, fê-lo o Tribunal a quo em manifesta violação do disposto nos artigos 4.º, n.º 1, 80.º e 132.º do Código do Notariado e nos artigos 280.º, 1306.º, n.º 1 e 1476.º do Cód. Civil.
11. Foram apresentadas contra-alegações, onde se conclui (transcrição):
1.ª O recurso interposto pela recorrente tem por objecto o douto Acórdão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
2.ª A ausência da menção de que não assina por não saber ou por não poder fazê-lo não acarreta a nulidade da procuração.
3.ª O artigo 70.º do Código do Notariado prevê de forma taxativa as causas de nulidade, nas quais não se inclui a falta de menção a outorgantes que não possam ou não saibam assinar.
4.ª A omissão das formalidades previstas no artigo 46.º, n.º 1, alínea m) do Código do Notariado não provoca a nulidade do acto.
5.ª Razão pela qual a procuração dos autos é plenamente válida.
6.ª A autora não alegou que a impressão digital na procuração não foi feita pelo punho de AA ou a falsidade do acto notarial.
7.ª Nos presentes autos não está em causa a eficácia da doação (uma vez que aquilo que foi declarado corresponde ao que a doadora declarou), nem a identidade dos sujeitos, nem tampouco o objecto do acto jurídico.
8.ª Mas sim a ausência, por mero lapso da Notária, de uma declaração atestando que a impressão digital aposta na procuração pertence à doadora e que a mesma não assinou por não o poder fazer.
9.ª Ainda que se conceda (por mera cautela de patrocínio) que a procuração dos autos padece da inobservância de algum formalismo, a verdade é que tal inobservância apenas tem como consequência a sua perda de eficácia probatória, e não a sua validade jurídica.
10.ª A recorrente alega, ainda, que a procuração “não confere os poderes necessários à outorga da Escritura de Doação a favor dos 2ª e 3º Réus”, já que a procuração tem de “determinar especificadamente, positiva e negativamente, quais os imóveis que podem ser objecto desse negócio”.
11.ª No que concerne ao objecto da doação, o texto da procuração é o seguinte (cf. Documento n.º 18 junto com a petição inicial):
“a quem confere os poderes necessários para doar a eles mandatários, todos os imóveis ou direitos imobiliários que possui a esta data, com ou sem reserva de usufruto, sitos nos concelhos de ..., ..., ..., ...,..., ...”.
12.ª A procuração identifica os imóveis que a mandante possui, na data da outorga da procuração, em determinados concelhos, logo, não há qualquer grau de indeterminabilidade quanto a tal facto.
13.ª Pelo que, se conclui que o objecto da procuração estava determinado, não existindo qualquer violação do disposto no n.º 1 do artigo 949.º do Código Civil.
14.ª Nas conclusões 15ª a 35ª, a recorrente vem reproduzir as suas alegações apresentadas em sede recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, olvidando que a decisão de que ora recorre constitui o que se designa por dupla conforme.
15.ª Do confronto da decisão da Primeira instância e do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa e das respectivas fundamentações quer de facto quer de direito, resulta evidente que se verifica dupla conforme, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 671.º do CPC o seguinte:
16.ª Caso assim não se entenda (o que não se aceita), a extinção do usufruto ocorreu por via de rectificação da declaração negocial ínsita na escritura de doação, pelo que, não contraria o disposto no artigo 1476.º do C.C.
17.ª Contrariamente ao afirmado pela recorrente, não está em causa o suprimento ou rectificação de omissões ou inexactidões de acto notarial, através do procedimento previsto no artigo 132.º do Código do Notariado, mas sim a mera rectificação da declaração negocial, uma vez que, contrariamente ao que consta na primeira escritura, pretendiam os outorgantes que a doação fosse efectuada sem reserva de usufruto, o que é permitido pelo disposto no n.º 2, alínea b) do artigo 80.º do Código do Notariado.
18.ª Em face do exposto, não ocorre qualquer violação do disposto no artigo 1476.º do Código Civil.
19.ª Alega a recorrente que sendo a procuração outorgada pela falecida 1.ª ré a favor dos 2.º e 3.º réus nula, deve concluir-se também pela ineficácia dos actos praticados pelos mesmos face à apelante, como impõe o disposto no n.º 1 do artigo 268.º do C.C.
20.ª Sucede que, a recorrente não tem legitimidade para arguir a ineficácia dos actos praticados pelos 2.º e 3.º réus.
21.ªA ineficácia - contrariamente ao alegado pela recorrente - não se estende a terceiros, uma vez que o mencionado preceito nem sequer regula as relações entre o representado e um terceiro ou entre o representante e um terceiro .
22.ª É única e exclusivamente a vontade e interesse do representado que o legislador pretendeu tutelar com a letra do normativo constante do n.º 1 do artigo 268.º do C.C.
23.ª Não afectando a nulidade da procuração a validade dos actos levados a cabo pelos recorridos.
24.ª Invoca a recorrente que os recorridos agiram em abuso de representação e abuso de direito.
25.ª Está-se, assim, perante o que tem sido designado por questões novas.
26.ª É consabido que os recursos não se destinam à apreciação de questões novas, mas tão-somente à reapreciação de questões que foram já anteriormente decididas pela decisão.
27.ª Ora, teve a recorrente possibilidade de, no momento processual adequado, isto é, na petição inicial, ter alegado a questão do abuso de representação e abuso de direito e, outrossim, os factos que alegadamente os demonstravam.
28.ª Pelo que, deve o douto Acórdão recorrido manter-se na íntegra.”
12. Após estudo os autos, o STJ considerou necessário abrir o contraditório sobre uma possível solução de direito, ao abrigo do regime do art.º 246.º do CC, tendo notificado as partes para se pronunciarem.
13. Em resposta, disseram os autores:
“7. Está provado que a Senhora Dra. AA se encontrava, o acto de outorga da Procuração em crise, totalmente incapacitada de ler ou assinar qualquer documento, ou sequer de compreender o seu significado e o seu sentido, e que os Réus e/ou a Senhora Notária conheciam ou podiam constar o estado da mesma da Dra. AA (cfr., inter alia, Factos Provados 15, 16 e 17 da Sentença).
Donde,
8. Entende a Recorrente que a recondução do caso à figura do artigo 246.º do Código Civil como antecipada por Vossa Excelência estará em consonância com tudo o quanto se vem expôs e propugnou na presente lide – designadamente quanto à falta de assinatura da Procuração e da (impossibilidade) de ratificação do negócio representativo –, desde o momento em que foi inequivocamente constatada a total ausência de vontade da Dra. AA no acto impugnado (a dita Procuração),
9. Sendo claro o preenchimento também da hipótese normativa do aludido artigo, sem prescindir do demais invocado nas Alegações de Recurso.
10. Sendo que, e sempre sem prejuízo da lógica que deverá presidir ao raciocínio decisório, partindo das normas para a solução, a verdade é que, nos presentes autos, é à saciedade manifesto que não poderá, em Justiça, reconhecer-se à Procuração (e demais actos) em causa qualquer validade!”
14. Em resposta, disseram os RR:
“Da referida matéria de facto provada resulta, assim, que:
• A ré AA foi sujeita ao regime do maior, tendo sido consignando que tal medida se tornou necessária desde 3 de junho de 2011.
• Os actos que a autora pretende impugnar foram praticados após a data em que tal medida se tornou necessária.
Pelo que, considerando a incapacidade da ré AA, não pode deixar de se aplicar o disposto no artigo 154º, nº 3 do Código Civil (doravante designado por CC):
(…)
A falta de consciência da declaração negocial, que prevê o artigo 246° do CC só se pode aplicar a um declarante discernido, capaz de entender o sentido dela mas que, todavia, não se apercebe (não tem a consciência) de que a está a emitir.
Ora, o caso dos presentes autos trata-se de incapacidade acidental, em que a declarante estava privada daquele discernimento ou da aptidão para compreender o sentido da declaração.
Repare-se, por outro lado, que o referido artigo 154º do CC regula o regime jurídico aplicável aos negócios celebrados antes de anunciado o processo de maior acompanhado e remete expressamente para o disposto acerca da incapacidade acidental.
Neste sentido já se pronunciou este Venerando Tribunal no seu Acórdão de 04.10.2001, CJ STJ IX, 3, 61.
E, também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo 342/15.0T8VPA.G1.S1 de 11/12/2018, in www.dgsi.pt:
(…)
Também neste sentido, veja-se Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo 2541/19.7T8STB.E1.S1 do dia 06/04/2021, in www.dgsi.pt:
(…)
Este artigo sobrepõe-se ao art.º 246.º, onde se prevê a falta de consciência da declaração.
Segundo Menezes Cordeiro, “ele (art.º 257.º) parece sobrepor-se ao artigo 246º e às figuras nele contempladas da coacção física e da falta de consciência da declaração: em qualquer destas duas hipóteses, o declaratário ou está acidentalmente incapacitado de entender o sentido da declaração ou não tem o livre exercício da sua vontade. De seguida, ele usa uma linguagem centrada na pessoa do declarante e não na sua declaração. E, por fim, ele fixa um regime dissonante: a (mera) anulabilidade, contra a nulidade – há doutrina que fala mesmo em inexistência – originada pela coacção ou pela falta de consciência da declaração”[29].
(…)
Portanto, temos como certo e adquirido que o regime jurídico aplicável aos negócios celebrados pelo incapaz, antes de assim ter sido declarado, como o dos autos, é o resultante do mencionado art.º 257.º.
(…)
Pelo exposto, considera-se que no caso em apreço não é aplicável o disposto no artigo 246º do Código Civil.”
15. Colhidos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.
II. Fundamentação
De facto
16. Factos provados
1. A 4 de Maio de 2005, a A., adquirente, celebrou com a falecida R. AA, transmitente, um acordo denominado “contrato de trespasse“ referente ao estabelecimento comercial de Farmácia denominado “Farmácia Cunha”, instalado e a funcionar no imóvel correspondente à fracção “B” do prédio urbano sito na Rua da ... da freguesia de ... (actual freguesia de ...), concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Comercial de ... sob o n.º .18/19810130 e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o n.º .46 da freguesia de ....
2. Em execução do referido trespasse, a A. e a falecida R. AA celebraram ainda, no mesmo dia 4 de Maio de 2005, um acordo denominado “Contrato de Arrendamento Comercial”, nos termos do qual a falecida R. deu de arrendamento à A. o imóvel referido em 1).
3. Por carta datada de 29 de Dezembro de 2016, junta a fls. 65, vieram a 2.ª e o 3.º R. comunicar à aqui A. que haviam adquirido, por doação da falecida R., o imóvel objecto do contrato de arrendamento e que, por conseguinte, deveria a A. daí em diante proceder ao pagamento das rendas para conta bancária distinta daquela para a qual o fazia normalmente, que para o efeito indicaram.
4. Por carta datada de 29 de Dezembro de 2016, vieram a 2.ª e o 3.º R. comunicar a sua oposição à renovação do contrato de arrendamento, alegando que deveria o mesmo considerar-se resolvido no dia 3 de Maio de 2017.
5. Às comunicações de 29 de Dezembro de 2016, referidas em 3) e 4), respondeu a A. por carta datada de 12 de Janeiro de 2017, opondo-se às pretensões da 2.ª e 3.º R.
6. A 21 de Dezembro de 2015, na Residência 1, Rua ..., ..., foi outorgada a procuração cuja cópia se encontra a fls. 76v a 78, na qual figura como outorgante a falecida R., e onde se refere que a mesma constitui seus procuradores a 2.ª e o 3.º R., a quem são conferidos poderes para “doar a eles mandatários, todos o imóveis ou direitos imobiliários que possui a esta data, com ou sem reserva de usufruto, sitos nos concelhos de ..., ..., ..., ...], ..., ....”
7. A procuração acima referida não se encontra assinada pela falecida R., nela estando aposta uma impressão digital sem quaisquer menções adicionais.
8. A 29 de Dezembro de 2015, a 2.º e o 3.º R., fazendo uso da Procuração referida em 6) e 7) doaram a si mesmos, com reserva de usufruto a favor da falecida R., um conjunto de imóveis, entre os quais o imóvel objecto do contrato de arrendamento.
9. Foi efectuado registo junto da Conservatória do Registo Predial da referida doação com reserva de usufruto por via das Apresentações ..60 e ..61 de 2016/02/29.
10. A 9 de Março de 2016, fazendo novamente uso da Procuração referida em 6) e 7), a 2.º e o 3.º R. outorgaram em Escritura de Rectificação da Escritura de Doação, declarando: “Que, por escritura exarada neste Cartório a folhas trinta e cinco do livro de notas para escrituras diversas número cento e sessenta e nove A, a representada dos outorgantes doou-lhes, seus únicos filhos e com reserva de usufruto, os seguintes imóveis:
[…]
Que, por esta escritura, rectificam aquela no sentido de passar a constar que a doação foi feita por conta da quota disponível.
Que, em tudo o mais se mantém o disposto na referida escritura de vinte e nove de dezembro.”
11. Em 9 de Dezembro de 2016, a 2.º e o 3.º R. voltaram a outorgar em escritura de rectificação, usando a referida procuração na qual declaram que, pela escritura de doação, lhes foi doado, com reserva de usufruto, o conjunto de imóveis aí melhor referidos, nos quais se encontra a fracção autónoma em que se encontra instalada a Farmácia Cunha (com a actual designação de Farmácia Príncipe Real) rectificando-se tal escritura, no sentido de da mesma passar a constar que a doação dessa fracção autónoma foi feita sem reserva de usufruto.
12. Na sequência dessa rectificação foi alterado o registo predial da aludida fracção autónoma, aí figurando apenas a doação do direito de propriedade plena.
13. No dia 5 de Fevereiro de 2020, foi proferida sentença transitada em julgado, no âmbito do processo especial de interdição da falecida R., AA, promovido pelo Ministério Público e que correu termos no Juízo Local Cível de ... (Juiz ...), sob o n.º 20982/18.5.8....
14. A mencionada sentença, sob o regime do maior acompanhado que, entretanto, entrou em vigor, determinou a aplicação à beneficiária, a falecida R. AA, da medida de acompanhamento de representação geral, consignando-se no mais que tal medida se tornou necessária desde 3 de Junho de 2011.
15. Na mencionada sentença foi considerado provado que:
“3º. A beneficiária padece de confusão mental e de afasia global, sendo portadora de tubo de gastrostomia percutânea endoscópica (PEG) na sequência de um hematoma subdural bilateral crónico que sofreu após uma queda, ocorrida no ano de 2011, tendo ainda sofrido, no pós-operatório imediato, em 03.06.2011, um acidente vascular cerebral hemorrágico do hemisfério esquerdo.
4º. A beneficiária apresenta uma Perturbação Neurocognitiva Major, quadro de demência, de etiologia vascular.
5º. Em consequência de tais patologias, que revestem carácter permanente, definitivo e irreversível, a requerida encontra-se totalmente dependente de terceira pessoa para a realização de todas as atividades da vida diária.
6º. A beneficiária apresenta afasia de expressão, não sendo capaz de comunicar verbalmente ou por escrito.
7º. Em virtude das suas doenças, a beneficiária já não consegue ler, escrever, assinar o seu nome, contar ou realizar cálculos.
8º. Já não consegue situar-se temporalmente e não compreende a sucessão do tempo, desconhecendo os dias da semana, os meses e os anos.
9º. De igual modo, não consegue situar-se espacialmente.
10º. Não reconhece o dinheiro e não tem qualquer noção do seu valor nem do valor económico dos bens.
11º. A beneficiária não consegue lavar-se nem tomar banho sozinha, não sendo capaz de se mover sozinha.
12º. Passa o dia na cama ou em cadeirão e não tem capacidade para colaborar nas transferências cama-cadeirão / cadeira de rodas.
13º. Identicamente, é incapaz de se vestir ou de se alimentar sozinha e bem assim de confecionar as suas refeições ou de tomar a sua medicação.
14º. Encontra-se, desde 11 de Setembro de 2015, integrada na Estrutura Residencial Para Idosos – Residência 1, sita na Rua ..., ... ....oa, sendo os funcionários desta instituição que têm vindo a prestar todos os cuidados de que a mesma necessita em virtude da sua patologia, beneficiando ainda a requerida de um suporte familiar presente e efetivo e de visitas diárias dos seus familiares.
15º. Esteve integrada na Residência 2 desde 2011 até 11 de Setembro de 2015.
16º. A beneficiária necessita de total auxílio de terceiros para todas as atividades da sua vida diária, designadamente ao nível da sua higiene pessoal, da sua alimentação e do seu vestuário.
17º. De igual forma, necessita de total ajuda relativamente à administração da sua medicação que necessita tomar diariamente.
18º. A requerida encontra-se completamente dependente de terceiros para assegurar a sua vida diária e a sua subsistência, sendo tal situação permanente, definitiva e irreversível”.
16. Na data da outorga da procuração datada de 21 de Dezembro de 2015, a falecida R. AA encontrava-se incapaz de ler ou assinar qualquer documento, ou sequer de compreender o seu significado e o seu sentido.
17. Na data da outorga da procuração, os RR. e/ou a Notária que lavrou a mesma conheciam ou podiam constatar o estado físico-motor e cognitivo da falecida R. AA.
17. Factos não provados
i. Não se provou que a falecida R. AA não assinou a procuração outorgada no dia 21 de Dezembro por causa motoras.
ii. Não se provou que a vontade dos outorgantes sempre foi a de doar o imóvel sem reserva de usufruto, para que pudessem promover a respectiva administração como proprietários.
De Direito
18. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.
As conclusões do recurso determinam que as questões a conhecer são:
a. Validade da procuração outorgada;
b. Validade do contrato de doação celebrado tendo por base a procuração;
c. Validade do acordo de rectificação que extinguiu o usufruto em favor da doadora.
19. Resumo/enquadramento
Nos presentes autos, a sentença considerou que “resultou apurado que a procuração lavrada pela Sr.ª Notária em 21.12.2015, na qual figura como outorgante a falecida R. AA e onde consta que a mesma constitui os RR. como seus procuradores com poderes para “doar a eles mandatários todos os imóveis ou direitos imobiliários que possui a esta data, com ou sem reserva de usufruto, sitos nos concelhos de ... “ não se mostra assinada pela falecida R., encontrando-se aposta nela uma impressão digital sem qualquer menção.
De acordo com o disposto pelo artigo 46.º, n.º 1, al. m), do Código do Notariado, o instrumento notarial deve conter a indicação dos outorgantes que não assinem e a declaração que cada um deles faça de que não assina por não saber ou por não poder fazê-lo.
O artigo 51.º, n.º 1, do mesmo código dispõe que os outorgantes que não saibam ou não possam assinar devem apor, à margem do instrumento, a impressão digital do indicador da mão direita.
Dispõe o artigo 70.º, n.º 1, al. e) do Código do Notariado que o acto notarial é nulo, por vício de forma, quando falte a assinatura de qualquer dos outorgantes que saiba e possa assinar.
No caso dos autos, a procuração notarial de 21.12.2015 não contém a assinatura da falecida R., mas apenas a aposição de uma impressão digital, sem a declaração pelo oficial público que a lavrou que essa impressão pertence à outorgante que não pode nem consegue assinar.
Assim, é evidente que se verifica-se falta de assinatura da respectiva outorgante, a falecida R., pelo que importa concluir pela nulidade do acto notarial datado de 21.12.2015.”
Na sentença também se apreciou a questão da incapacidade acidental.
“Posteriormente à propositura da presente acção, foi proferida sentença no âmbito do processo especial de acompanhamento de maior da falecida R., nos termos da qual foi determinada a aplicação da medida de acompanhamento de representação geral, consignando-se que tal medida se tornou necessária desde 3 de Junho de 2011.
Neste momento, torna-se necessário distinguir os efeitos da sentença que determinou a aplicação da medida de acompanhamento de representação geral da falecida R., quanto ao momento da prática dos actos, consoante os mesmos sejam praticados:
1. no decurso da acção;
2. posteriores ao registo da sentença;
3. anteriores à publicidade da acção.
Assim, quanto aos actos praticados depois de anunciada a propositura da acção, a anulabilidade depende da verificação cumulativa de três requisitos:
1. o acto ter sido praticado depois do anúncio da propositura da acção;
2. a medida de acompanhamento ter sido definitivamente decretada;
3. o acto ter causado prejuízo ao acompanhado, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 154.º, n,º 1, alínea b) do Código Civil.
Quantos aos actos posteriores ao registo do acompanhamento, rege o disposto no artigo 154.º, n.º 1, alínea a) do Código Civil.
No que respeita aos actos praticados antes da propositura da acção – que é o que sucede no presente caso -, rege o disposto no artigo 154.º, n.º 3 do Código Civil, o qual determina a aplicação do regime da incapacidade acidental, previsto no artigo 257.º do Código Civil.
Refere o mencionado normativo que:
“1. A declaração negocial feita por quem, devido a qualquer causa, se encontrava acidentalmente incapacitado de entender o sentido dela ou não tinha o livre exercício da sua vontade é anulável, desde que o facto seja notório ou conhecido do declaratário.
2. O facto é notório, quando uma pessoa de normal diligência o teria podido notar”.
Resulta assim do referido artigo que, para que um acto seja anulável, é necessária a verificação cumulativa de dois requisitos:
1. que, no momento da prática do acto, o declarante estivesse incapaz de entender o sentido da sua declaração ou não tivesse o livre exercício da sua vontade;
2. que essa incapacidade acidental fosse notória ou conhecida do declaratário.
A consequência é, assim, a anulabilidade.
Incumbia à A. demonstrar que, no momento da outorga da procuração a falecida R. se encontrava incapaz de entender o sentido da declaração que emitia ou não tinha o livre exercício da sua vontade.
E, por outro lado, que tal incapacidade fosse notória ou conhecida dos declaratários, in casu, dos RR.
Neste sentido veja-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.01.2009, relativo ao Processo n.º 08B3333, disponível em www.dgsi.pt, o qual refere o seguinte:
“1. No que concerne ao regime legal dos actos praticados pelo interdito, há diferenças de tratamento conforme esteja em causa negócio jurídico praticado pelo interdito (i) após o registo da sentença de interdição definitiva (art. 148º CC), ou (ii) na pendência do processo de interdição, depois de publicados os anúncios a que alude o art. 945º do CPC (art. 149º), ou (iii) anteriormente à publicidade da acção de interdição (art. 150º).
2. Tendo o contrato aqui impugnado sido celebrado antes da publicação do anúncio da acção de interdição, está, por força do disposto no indicado art. 150º, sujeito ao regime, previsto no art. 257º do CC, dos actos praticados por quem, devido a qualquer causa, se achava acidentalmente incapacitado de entender o sentido da declaração negocial ou não tinha o livre exercício da sua vontade.
3. Esses actos só são anuláveis desde que, no momento da sua prática, isto é, no momento em que é emitida, pelo interdito, a sua declaração de vontade, haja neste uma incapacidade de entender o sentido da declaração negocial ou falte o livre exercício da vontade, e que a incapacidade natural existente seja notória ou conhecida do declaratário (nos contratos, a contraparte), entendendo-se notória a incapacidade quando uma pessoa de normal diligência a teria podido notar.
4. A declaração judicial, na sentença que decreta a interdição, sobre a data do começo da incapacidade, constitui mera presunção simples, natural, judicial, de facto ou de experiência, da incapacidade, à qual pode ser oposta contraprova, nos termos do art. 346º do CC.
5. Dada a anterioridade do negócio referido em 2., que o aqui autor, tutor da interdita, pretendia, em representação desta, anular, sobre ele recaía o ónus da prova de que, na data em que a sua tutelada celebrou a escritura pública de alienação do imóvel em causa, ela se encontrava em condições psíquicas que lhe não permitiam entender o sentido da declaração negocial que emitiu ou lhe tolhiam o livre exercício da vontade, e de que tal facto era notório ou conhecido do outro outorgante” – destaques nossos.
No mesmo sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.12.2017, relativo ao Processo n.º 123/15.1T8TCS.C1, disponível em www.dgsi.pt, o qual refere o seguinte:
“1 – Quanto ao valor da fixação na sentença que decreta uma interdição da data do começo dessa incapacidade, na vigência do Código Civil de 1966, a doutrina e a jurisprudência têm atribuído a tal declaração judicial um valor meramente indiciário: não de uma presunção legal (iuris et iure ou iuris tantum), mas o valor de mera presunção simples, natural, judicial, de facto ou de experiência que, embora constitua um começo de prova, não inverte o ónus da prova da existência da incapacidade no momento da prática do ato – ónus que impende sobre quem pede a anulação” – destaques nossos.
Prosseguindo o citado aresto do seguinte modo:
“Ora, tratando-se de uma mera presunção de facto ou judicial, em bom rigor a Ré não tinha que ilidir essa presunção, nem a isso estava obrigada; o Autor é que teria o ónus de prova em causa, assistindo à Ré fazer a contraprova nos termos normais (cf. art. 346º do C.Civil)” – destaque nosso.
Na medida em que, não se estando perante causa legal de inversão do ónus da prova, tem plena aplicação o disposto no n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil, nos termos do qual: “Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”.
Prova essa que a A. fez: no momento da outorga da procuração, a falecida R. não estava capaz de entender o sentido da sua declaração negocial, verificando-se a alegada incapacidade acidental.”
E na sentença também se conheceu da questão da possível nulidade para as escrituras de doação e de rectificação objecto do pedido de declaração de ineficácia formulado pela A.
“Ante de mais, importa chamar à colação o artigo 268.º do Código Civil, onde se estabelece que:
“1. O negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado.
2. A ratificação está sujeita à forma exigida para a procuração e tem eficácia retroactiva, sem prejuízo dos direitos de terceiro.
3. Considera-se negada a ratificação, se não for feita dentro do prazo que a outra parte fixar para o efeito.
4. Enquanto o negócio não for ratificado, tem a outra parte a faculdade de o revogar ou rejeitar, salvo se, no momento da conclusão, conhecia a falta de poderes do representante.”.
Segundo os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, “A falta de poderes de representação pode advir de não haver título legítimo de representação (não há nenhum instrumento de procuração ou há uma procuração nula) …” (in. Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª Ed., Pág. 249).
Assim, é certo que o artigo 268.º é aplicável neste caso, configurando-se a situação dos autos como uma falta de poderes de representação.
“Como se sabe, a invalidade é uma espécie do género ineficácia negocial, tomada esta expressão em sentido amplo, e compreende a nulidade e a anulabilidade, senão também a inexistência. A ineficácia em sentido restrito, ou ineficácia propriamente dita, contrapõe-se à invalidade. Não constituirá uma categoria dogmática mas é menos, “uma designação para nomear uma série de figuras, figuras essas com substância própria, quando tomadas cada um por si” (Prof. Rui de Alarcão, em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J.J. Teixeira Ribeiro, vol. III, pág. 627).
A ineficácia que, nos termos do artigo 268.º, n.º 1, do Código Civil, atinge o negócio celebrado por uma pessoa sem poderes de representação é uma de tais figuras. Trata-se de uma ineficácia stricto sensu, que não de uma nulidade e, demais, relativa, dado que apenas se verifica em relação a certas pessoas (impossibilidade) e só por elas pode ser invocada (neste sentido, Mota Pinto, Teoria do Direito Civil, 2ª ed., pág. 592).”.
Como se retira do artigo 268.º, do Código Civil, o negócio que uma pessoa sem poderes de representação celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este se não for ratificado por este último.
“A ineficácia será relativa se se verificar apenas em relação a certas pessoas (inoponibilidade), só por elas podendo ser invocada (o negócio, embora eficaz noutras direcções, é inoponível a certas pessoas). (cfr. Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed., pág. 606).
Ou seja, no caso dos autos aplica-se a consequência do artigo 268.º e não o regime a nulidade e anulabilidade do negócio jurídico previsto nos artigos 285.º e seguintes do Código Civil.
Como ensina o Prof. Menezes Cordeiro, "a ineficácia em sentido estrito traduz a situação do negócio jurídico que, não tendo, em si, quaisquer vícios, não produza, todavia todos os seus efeitos por força de factores extrínsecos." (in "Tratado de Direito Civil Português - I -Parte geral - Tomo I", 1999, pág. 577).
Assim sendo, não se trata aqui de uma “ineficácia erga omnes, que pode ser invocada por qualquer interessado e opera ipso iure“, mas sim de “ineficácia apenas em relação a certas pessoas, em favor das quais foi estabelecida, e só estas podendo invocá-la“. (Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, 1983, pág. 412).
“Os negócios feridos de ineficácia relativa produzem, pois, efeitos, mas não estão dotados de eficácia relativamente a certas pessoas.” (Carlos Alberto da Mota Pinto, obra citada, pág. 607).
Na jurisprudência são inúmeras as decisões onde o entendimento acima exposto é proclamado:
“I - Pedindo o autor a invalidade do negócio celebrado por quem não detinha direitos de representação, mas tratando-se de negócio ineficaz relativamente ao putativo representado (art. 268.º, n.º 1 CC), deve o tribunal corrigir oficiosamente esse erro e declarar tal ineficácia, nos termos do art. 5.º, n.º 3 CPC.
II - Não sendo ilícito nem inválido o negócio celebrado sem poderes de representação, o mesmo é ineficaz (art. 268.º, n.º1 CC), abrindo-se então uma situação de pendência durante a qual não se sabe se o ato produzirá ou não efeitos, pendência da qual se sai através de ratificação pelo dominus ou de revogação ou rejeição pela outra parte.” (cfr. Ac. TRL de 24.10.2022, in www.dgsi.pt).
“II. Quanto à questão da invocada nulidade formal das procurações outorgadas para a constituição das hipotecas voluntárias, verifica-se que a eventual averiguação das regras legais aplicáveis ao caso dos autos, podendo conduzir à declaração de nulidade das procurações, teria apenas como efeito a ineficácia das mesmas ao abrigo do n.º 1 do art. 268.º do CC, ineficácia, porém, que apenas pode ser invocada pela pessoa representada, no caso, a mãe da autora, e não pela autora.
III. Assim, a apreciação da eventual nulidade das procurações não apenas se mostra inútil para alcançar o objectivo pretendido pela recorrente, como se apresenta como incompatível com o facto de tal pretensão ser dirigida contra a titular da legitimidade substantiva para invocar a ineficácia das procurações, a mãe da autora, interveniente principal ao lado dos réus nos presentes autos.” (Ac. Do STJ de 27.01.2022, in www.dgsi.pt).
Atento o exposto, não pode a A. invocar a ineficácia do contrato de doação e das respectivas rectificações relativamente à falecida R., doadora, fundada na falta de poderes de representação dos 2.º e 3.º RR.
Por outras palavras, apenas a falecida R., doadora, podia invocar a ineficácia da doação por falta de poderes de representação por parte dos 2.º e 3.º RR.
Assim, improcede a pretensão da A. de se prevalecer da aludida ineficácia e de com base nela determinar o cancelamento do registo da doação.
Pelo que antecede, fica prejudicada a apreciação dos demais pedidos da A.”
A A. também havia suscitado a questão da nulidade da escritura de rectificação datada de 09.12.2016, com base no disposto no artigo 280.º do Código Civil, alegando a violação do disposto no artigo 1476.º do Código Civil.
Defendeu a A. que a escritura de rectificação não configura uma forma legalmente admissível de extinção do direito de usufruto, pelo que a mesma é nula por violação de norma legal imperativa e, em consequência, são inválidos todos os actos praticados pelos 2.º e 3.º RR., com base na mesma.
E o tribunal disse (na sentença):
“Segundo o artigo 280.º, n.º 1, do Código Civil, é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável.
De acordo com o disposto no artigo 281.º, do Código Civil, se apenas o fim do negócio jurídico for contrário à lei ou à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes, o negócio só é nulo quando o fim for comum a ambas as partes.
Defende a A. que a escritura de rectificação datada de 09.12.2016 se traduziu num acto extintivo do direito real de usufruto, o que viola o disposto no artigo 1476.º do Código Civil por não consubstanciar nenhuma das formas de extinção do usufruto legalmente previstas.
Entende a A. que não é possível equiparar a escritura de rectificação a renúncia porquanto a rectificação se destina a sanar lapsos na declaração de vontade dos outorgantes e não a alterar a vontade das partes.
A renúncia ao usufruto “é um negócio jurídico unilateral que não depende de aceitação”, através do qual o titular de um direito abdica do mesmo. (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª ed., pág. 533).
Sucede que não se trata aqui de suprimento e rectificação de omissões ou inexactidões de acto notarial através do procedimento previsto no artigo 132.º do Código do Notariado mas de rectificação da declaração negocial ínsita na escritura de doação, nada obstando que os respectivos outorgantes venham em nova escritura pública corrigir a exteriorização dessa vontade.
Na verdade, assim o prevê o artigo 80.º, n.º 2, al. b) do Código do Notariado.
Assim, a escritura não contraria o disposto no artigo 1476.º do Código Civil.”
O desfecho da acção, na primeira instância foi assim:
“Pelos fundamentos expostos, julgo a acção parcialmente procedente e, em consequência, decido declarar a nulidade da procuração outorgada a 21 de Dezembro de 2015.
Mais decido absolver os RR. do demais peticionado.
Registe e notifique.
Custas a suportar por A. e RR., na proporção de 2/3 e 1/3, respetivamente.”
Houve recurso de apelação.
O Tribunal da Relação manteve os factos provados e não provados. Mas não acompanhou a sentença na decisão, no que se reporta à validade da procuração.
Disse:
“Na sentença recorrida considerou-se que a procuração era nula, nos termos previstos no art. 70º, al. e) CN.
Não podemos sufragar tal entendimento.
Está provado que a procuração não se encontra assinada pela falecida R., nela estando aposta uma impressão digital sem quaisquer menções adicionais.
De acordo com a al. e), do referido art. 70º, o ato notarial é nulo, por vício de forma, quando falte a assinatura de qualquer dos outorgantes que saiba e possa assinar, tratando-se de vício sanável, como decorre do seu nº 2.
A dita nulidade exige a verificação cumulativa de dois requisitos: o outorgante que não assinou o documento tinha de saber assinar e estar em condições de o poder fazer. Só assim se compreende a forma de sanação do referido vício: declaração dos outorgantes, por forma autêntica, que estiveram presentes à leitura e explicação do ato, que este representa a sua vontade e que não se recusaram a assiná-lo (al. d), do nº 2, do art. 70º).
Ora, no caso, apurou-se que no momento da outorga da procuração, AA não podia assinar a procuração em virtude da sua incapacidade para assinar qualquer documento. Faltando um dos requisitos apontados, não estão reunidos os pressupostos de que a lei faz depender a verificação da nulidade prevista naquela norma.
A procuração encontra-se assinada pela notária que a elaborou, e no canto superior de uma das páginas, como no final do texto respetivo, encontra-se aposta uma impressão digital.
A autora não alegou que a dita impressão não foi aposta por AA e/ou que a mesma não corresponde à impressão de qualquer dos seus dedos, como não invocou a falsidade do ato notarial.
Está provado, como já se disse, que não foi feita qualquer menção na procuração a propósito da impressão digital nela aposta.
Dispõe o art. 51º, do CN:
“1 - Os outorgantes que não saibam ou não possam assinar devem apor, à margem do instrumento, segundo a ordem por que nele foram mencionados, a impressão digital do indicador da mão direita.
2 - Os outorgantes que não puderem apor a impressão do indicador da mão direita, por motivo de doença ou de defeito físico, devem apor a do dedo que o notário determinar, fazendo-se menção do dedo a que corresponde junto à impressão digital.
3 - Quando algum outorgante não puder apor nenhuma impressão digital, deve referir-se no instrumento a existência e a causa da impossibilidade.
4 - A aposição da impressão digital a que se referem os números anteriores pode ser substituída pela intervenção de duas testemunhas instrumentárias, exceto nos testamentos públicos, instrumentos de aprovação ou de abertura de testamentos cerrados e internacionais e nas escrituras de revogação de testamentos.”
Por seu turno, a alínea m), do sobredito art. 46º, trata das situações em que existam um ou mais outorgantes que não assinam a procuração, e explicita que do instrumento notarial deve ficar a constar a indicação daquele(s) que não assine(m), bem como a declaração que cada um deles faça, de que não assina por não saber ou por não poder fazê-lo.
No caso, não foi mencionado na procuração quem não a assinava. No mais, não podia ser feita menção à declaração prevista naquela norma: AA foi a única interveniente (pelo que será de presumir que a impressão digital corresponde a um dos seus dedos, pois estava incapaz de assinar o documento) e estava incapaz de fazer qualquer declaração porque não falava nem escrevia, como decorre da matéria factual apurada.
A falta da dita menção a cargo da notária – a indicação de quem não assinava a procuração – e, bem assim, a indicação referente ao dedo a que corresponde a impressão digital aposta no documento (art. 51º, nºs 1, e 2, CN), traduzem inobservância de formalidades previstas na lei, mas que não são sancionadas com o vício da nulidade, como decorre explicitamente daquele art. 70º do CN.
Deste modo, e tal como assinalado pelos Réus no recurso subordinado, a decisão recorrida incorreu em erro de direito quando declarou nula a procuração ao abrigo de tal norma.
Na sequência do pedido formulado no articulado superveniente, a sentença recorrida concluiu, ainda, que aquando da outorga da procuração, em 21 de dezembro de 2015, AA encontrava-se incapaz de ler ou assinar qualquer documento, ou sequer de compreender o seu significado e o seu sentido e que naquele mesmo momento os Réus e a Notária que lavrou o documento conheciam ou podiam constatar o estado físico-motor e cognitivo da falecida Ré.
A dita matéria factual não foi objeto de alteração na sequência da impugnação feita pelos Réus em sede de recurso subordinado.”
No demais, o Tribunal disse:
“A procuração é, deste modo, anulável, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 154º, nº 3 e 257º, do CC, carecendo, por conseguinte, de fundamento legal o pedido de declaração de nulidade formulado pela autora no articulado superveniente.
O regime da nulidade e anulabilidade dos negócios jurídicos é distinto.
A nulidade é invocável a todo o tempo, por qualquer interessado2 e pode ser conhecida oficiosamente (art. 286º, do CC); já a anulabilidade só pode ser arguida pelas pessoas em cujo interesse a lei a estabelece, e dentro do ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento (art. 287º, do CC).
Lidos conjuntamente os arts. 257º e 287º, do CC é inequívoco que a anulabilidade foi instituída para proteção do incapacitado, e não de qualquer pessoa com interesse meramente indireto na anulação do ato, pelo que, in casu, a anulabilidade da procuração só poderia ser suscitada em vida do incapaz, pelo seu representante; após a sua morte, pelos o(s) seu(s) sucessore(s). Neste sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12/112/2013, proferido no Processo Nº 282/13.8TVLSB.L1-6, acessível em www.dgsi.pt.
Deste modo, não tendo a Autora legitimidade material para pedir a anulabilidade do ato notarial em causa e não sendo aquele vício de conhecimento oficioso, não pode ser decretada a anulabilidade da procuração.”
20. Há agora recurso de revista.
Que dizer?
A A. invocou a nulidade da procuração com um determinado fundamento – a sentença reconheceu-lhe razão e o Tribunal da Relação negou-a.
Foi julgado provado que a declaratária, quando efectuou a declaração, estava incapaz de entender e o facto era sobejamente notório. Simplesmente, por aplicação do regime da anulabilidade não poderia a Recorrente fazer-se prevalecer da invalidade da procuração, por falta de legitimidade para arguir este vício.
Obsta a remissão do n.º 3 do art. 153.º do CC à possibilidade de invocar a inexistência ou nulidade da procuração por faltar a declaração ou a vontade de declaração, algo que ficou também provado, sobretudo pela débil ligação entre o mero pestanejar e uma efectiva declaração, atendendo igualmente às afectações cognitivas medicamente atestadas?
Vejamos.
É de salientar que no decurso da acção estão provados factos que permitem enquadrar a nulidade invocada pela A. noutro fundamento – e que também foi discutido pelas partes, como resulta da prova produzida e dos factos provados – mas em relação a esse fundamento não houve uma abordagem jurídica – nem pelas partes, de forma directa, nem pelo tribunal, oficiosamente – e que seria passível de o ser por estarmos perante um vício gerador de nulidade – e que resultaria da aplicação aos autos do regime do art.º 246.º do CC – atenta a situação em que se encontrava a falecida na data em que aparentemente teve uma intervenção na procurador cuja validade se discute nestes autos – e que consiste em saber se a falecida tinha vontade em outorgar a procuração e a mínima consciência de estar a realizar uma acto jurídico com o conteúdo e efeitos dos que o tribunal recorrido entendeu ter sido realizado.
Esta questão é de conhecimento oficioso, por envolver a falta de declaração da própria autora da procuração – situação que determina a sua inexistência ou, no mínimo, a sua nulidade.
Dispõe o art. 611º, do CPC:
“1- Sem prejuízo das restrições estabelecidas noutras disposições legais, nomeadamente quanto às condições em que pode ser alterada a causa de pedir, deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da ação, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão.
2 - Só são, porém, atendíveis os factos que, segundo o direito substantivo aplicável, tenham influência sobre a existência ou conteúdo da relação controvertida. (…)”.
20.1. As partes foram convidadas a pronunciarem-se sobre a aplicação do regime do art.º 246.º do CC.
Disse a recorrente que concorda com a sua aplicação.
Disseram os recorridos, que não pode ser aplicado, porque o regime do maior acompanhado determina a sujeição ao regime da incapacidade acidental.
20.2. Vejamos a questão na perspectiva de que a procuração ser nula, por lhe ser aplicável o regime do art.º 246.º do CC:
Parece-nos que a solução deste nosso recurso não pode ser outro que não declarar que a procuração é nula por incapacidade da falecida, que não pode ser tida por mera incapacidade acidental, mas permanente.
Seguir-se-ia aqui a linha de raciocínio também adoptada no A. TRL de 2014- Acórdão de 10 de Abril de 2014 (Proc. nº 1407/11.3TJLSB.L1-7) – e ainda as considerações realizadas no Acórdão de -….. Capacete – sobre o critério que deve distinguir o âmbito de aplicação do art.º 246.º e 257.º do CC – nomeadamente, nas seguintes passagens:
“Não obstante a divergência detetada na jurisprudência, é possível extrair uma conclusão: parece ser dominante a posição segundo a qual a cisão entre a falta de consciência da declaração e a incapacidade acidental passa pelo facto de o sujeito ter ou não ter capacidade para entender a declaração. Não cremos, porém, que este seja o melhor critério. Aliás, a doutrina tem vindo a defender – numa aproximação à solução gradativa que o ordenamento jurídico alemão nos oferece em matéria de menoridade – que é possível aplicar o artigo 246º CC aos menores abaixo de uma determinada idade (7 anos), considerando o negócio por si celebrado nulo (e não anulável)[18]-[19].No mais, entende-se que assim seja: por que razão haveríamos de tutelar mais fortemente aquele que, tendo capacidade para entender o ato declarativo, não se apercebeu dele do que aquele que simplesmente não tem aquela capacidade?
Há, porém, que estabelecer adequadamente a cisão. O que separa a falta de consciência da declaração da incapacidade acidental é a presença ou a ausência de vontade no momento da emissão da declaração negocial. Estando em causa a falta de consciência da declaração, inexiste vontade de declaração, ou seja, o sujeito não se apercebe que o seu comportamento – que é voluntário – tem o valor de declaração negocial.
Já no caso de se constatar a incapacidade acidental do sujeito, haveremos de concluir que o ato é não só voluntário, como ele tem consciência da natureza declarativa do seu comportamento. Simplesmente, por força de circunstâncias endógenas ou exógenas, no momento da celebração do negócio, o declarante não consegue entender o alcance do ato que pratica (tendo, porém, consciência de que o está a praticar) ou não consegue determinar a sua vontade de acordo com um pré-entendimento que estabeleça.”
Repare-se agora na situação dos autos, com os factos provados.
Deles resulta claramente que estamos perante uma situação de falta de consciência da declaração: inexiste vontade de declaração, ou seja, o sujeito não se apercebe que o seu comportamento – que é voluntário (ou meramente resultado de reflexos interpretados pelo notário como sinais de vontade, mas cuja razoabilidade é questionada pelo tribunal) – tem o valor de declaração negocial.
Claramente não se está na situação de incapacidade acidental: para isso o acto de instituir os procuradores teria de ser um acto voluntário da falecida e ela teria de ter consciência da natureza declarativa do seu comportamento.
Em apoio desta ideia, cf. Heinrich Ewald Hörster / Eva Sónia Moreira da Silva escrevem que «(...) o artigo 246.º reúne duas situações diferentes, embora idênticas num aspecto, a falta absoluta da vontade, ou uma ausência da vontade, por parte do declarante.
Em rigor não há nenhuma divergência entre uma vontade e a sua declaração. As situações abrangidas pelo artigo 246.º distinguem-se da simulação, da reserva mental e da declaração não séria, onde sempre existe uma vontade, embora haja uma divergência entre esta e a declaração feita. Mas, a distinção ainda vai mais longe: enquanto nas três figuras referidas esta divergência é intencional, no caso do artigo 246.º a falta de vontade ou melhor, a sua ausência, não provém de qualquer intencionalidade. A “falta de consciência da declaração” não é voluntária (o declarante nem sequer se apercebe) […].
Deste modo, o artigo 246.º prevê o seguinte: a declaração não produz qualquer efeito (apesar da chegada ao poder ou da tomada de conhecimento por parte do declaratário), se o declarante (1.º) não tiver a consciência de fazer uma declaração negocial ou (2.°) for coagido pela força física a emiti-la. (...)
Quanto às consequências de uma tal “declaração”, a lei recorre, novamente, à formulação ambígua de que a declaração não produz qualquer efeito. Tal como no caso da declaração não séria, esta formulação significa a não verificação de quaisquer efeitos negociais, devido à não existência de um negócio jurídico (o que equivale, também aqui, a uma nulidade sem quaisquer efeitos laterais legais). (...).
À falta de consciência de fazer uma declaração correspondem duas alternativas: na primeira, há falta de vontade de acção; na segunda há vontade de acção, mas falta a consciência de fazer uma declaração negocial.
Uma acção em sentido jurídico apenas existe quando for comandada pela vontade. Partindo desta premissa, não há vontade nenhuma e, consequentemente, também não há acção nenhuma quando se trata de movimentos inconscientes ou de reflexos. Aqui falta a vontade de acção por completo. Não há o propósito de emitir declaração alguma. É esta a primeira das alternativas referidas.
No entanto, pode existir o propósito de emitir uma declaração, pode haver uma vontade de acção, embora não haja uma vontade de emitir aquela declaração como declaração negocial, mas apenas como, p. ex., declaração de ciência. Aqui falta a vontade de fazer uma declaração no sentido do artigo 217.º, uma vontade no sentido de criar uma vinculação jurídica. (...).
A consequência jurídica da falta de consciência da declaração devida à falta completa da vontade de acção, é, como no caso da coacção física ou da declaração não séria, a não produção de qualquer efeito. Esta não produção de qualquer efeito significa, portanto, a ausência de todos e quaisquer efeitos de natureza negocial.
O mesmo “não produz qualquer efeito” vale também para o caso da falta de consciência da declaração causada pela falta da vontade de fazer uma declaração negocial no sentido do artigo 217.º. A lei não distingue (como talvez fosse de esperar) na sua formulação entre as duas alternativas da falta de consciência da declaração em causa, que são estrutural e conceitualmente diferentes entre si.
A recusa de qualquer efeito de natureza negocial, em ambas as alternativas da falta de consciência da declaração, verifica-se sempre, seja a falta conhecida do declaratário ou não, seja ela reconhecível para ele ou não, uma vez que a lei não estabelece estes pressupostos.»[22].
Ou ainda, como sucede no acórdão que vimos seguindo, as palavras de Evaristo Mendes.
“A lei, sem tomar partido na querela quanto à qualificação do vício que atinge as declarações emitidas sem consciência, comina a sua não produção de efeitos jurídicos (cf. Rui de Alarcão, 1964: 88). A doutrina tem oscilado entre qualificar as declarações como inexistentes (cf. Carvalho Fernandes, 2010:194, Oliveira Ascensão, 2003: 126, e Pais de Vasconcelos, 2012: 562), nulas (cf. Menezes Cordeiro, 2005: 788) ou, numa posição intermédia, inexistentes quando se trate de uma situação de falta de vontade de ação e nulas quando exista falta de vontade de declaração (cf. C. Mota Pinto, 2012: 491). (...).
O ónus da prova da falta de consciência da declaração ou da coação física onera, nos termos gerais (artigo 342.º, n.º 1), aquele que invoca a ineficácia da declaração, sem prejuízo da sua declaração oficiosa pelo tribunal, dentro dos limites do princípio do dispositivo.»[23].
Ou igualmente, nas palavras de Mota Pinto, referindo-se à «falta de consciência da declaração, afirma:
«Falta a vontade de acção ou falta a vontade ou, pelo menos, a consciência da declaração.
Estas hipóteses são abrangidas pelo artigo 246.º: “se o declarante não tiver a consciência de fazer uma declaração negocial...”. Estatui-se que o negócio não produz qualquer efeito, mesmo que a falta de consciência da declaração não seja conhecida ou cognoscível do declaratário. Trata-se de um caso de nulidade, salvo na hipótese de falta de vontade de acção, em que parece estar-se, antes, perante um caso de verdadeira inexistência da declaração. Com efeito, quando falta a vontade de acção não há um comportamento humano consciente, voluntário, «finalista»; há um comportamento inconsciente, involuntário, reflexo ou, na hipótese de coacção física, absolutamente forçado, embora exteriormente pareça estarmos perante uma declaração.»[24].
E para se compreender a complexidade do tema, ainda se diz no acórdão:
“Na medida em que estas situações afectam a formação correcta da vontade do declarante, traduzindo-se também numa falta de vontade da declaração, coloca-se o problema de compatibilização do regime da incapacidade acidental com o de outras faltas ou vícios da vontade, como a falta de consciência da declaração, prevista no citado art.º 246º.
Menezes Cordeiro refere que “ele (art.º 257.º) parece sobrepor-se ao artigo 246.º e às figuras nele contempladas da coacção física e da falta de consciência da declaração: em qualquer destas duas hipóteses, o declaratário ou está acidentalmente incapacitado de entender o sentido da declaração ou não tem o livre exercício da sua vontade. De seguida, ele usa uma linguagem centrada na pessoa do declarante e não na sua declaração. E, por fim, ele fixa um regime dissonante: a (mera) anulabilidade, contra a nulidade - há doutrina que fala mesmo em inexistência - originada pela coacção ou pela falta de consciência da declaração”[27].
(Ac TRL relativo ao processo n.º 8947/21.4T8LSB.L1-7, 24 Janeiro 2023, disponível em https://jurisprudencia.pt/acordao/212580/)
Insiste-se em atender a Paulo Mota Pinto, in Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico, Almedina, 1995, pp. 298 e 299, n. 263 e p. 303-305, onde o A refere – quanto a esta possível zona de confluência – o seguinte:
“À luz do código deSseabra a questão era discutida pela remissão para o regime da incapacidade acidental aplicado aos actos do demente antes da ação de interdição, remissão que também hoje encontramos em relação as acções de acompanhamento de maiores”.
À partida, não deveria estar vedada a invocação do erro ou falta de consciência nos termos gerais, apenas por existir igualmente uma situação de incapacidade acidental (op. ult. cit., p 302, n. 267). Adere a este entendimento, ainda que apresente dúvidas quanto à premissa de não ser o regime do art 257 um regime especial face a regulamentação geral do erro e da falta de vontade, em virtude do facto de não ter o legislador graduado as situações de incapacidade acidental.
Conclui, em texto, que independentemente da solução sobre o problema da relação entre o regime da incapacidade acidental, por um lado, e as faltas e vícios da vontade, “parece-nos claro que o art. 257.º está vocacionado para abranger também (embora talvez não excluindo outras normas) situações e ausência e viciação da vontade (pp. 303-305).
20.3. Mas como seria isso possível se foi dado por provado que:
1. A mencionada sentença, sob o regime do maior acompanhado que, entretanto, entrou em vigor, determinou a aplicação à beneficiária, a falecida R. AA, da medida de acompanhamento de representação geral, consignando-se no mais que tal medida se tornou necessária desde 3 de Junho de 2011.
2. Na mencionada sentença foi considerado provado que:
“3º. A beneficiária padece de confusão mental e de afasia global, sendo portadora de tubo de gastrostomia percutânea endoscópica (PEG) na sequência de um hematoma subdural bilateral crónico que sofreu após uma queda, ocorrida no ano de 2011, tendo ainda sofrido, no pós-operatório imediato, em 03.06.2011, um acidente vascular cerebral hemorrágico do hemisfério esquerdo.
4º. A beneficiária apresenta uma Perturbação Neurocognitiva Major, quadro de demência, de etiologia vascular.
5º. Em consequência de tais patologias, que revestem carácter permanente, definitivo e irreversível, a requerida encontra-se totalmente dependente de terceira pessoa para a realização de todas as atividades da vida diária.
6º. A beneficiária apresenta afasia de expressão, não sendo capaz de comunicar verbalmente ou por escrito.
7º. Em virtude das suas doenças, a beneficiária já não consegue ler, escrever, assinar o seu nome, contar ou realizar cálculos.
8º. Já não consegue situar-se temporalmente e não compreende a sucessão do tempo, desconhecendo os dias da semana, os meses e os anos.
9º. De igual modo, não consegue situar-se espacialmente.
10º. Não reconhece o dinheiro e não tem qualquer noção do seu valor nem do valor económico dos bens.
11º.
12º.
13º.
14º. …
15º. …
16º. ..
17º. De igual forma, necessita de total ajuda relativamente à administração da sua medicação que necessita tomar diariamente.
18º. A requerida encontra-se completamente dependente de terceiros para assegurar a sua vida diária e a sua subsistência, sendo tal situação permanente, definitiva e irreversível”.
3. Na data da outorga da procuração datada de 21 de Dezembro de 2015, a falecida R. AA encontrava-se incapaz de ler ou assinar qualquer documento, ou sequer de compreender o seu significado e o seu sentido.
4. Na data da outorga da procuração, os RR. e/ou a Notária que lavrou a mesma conheciam ou podiam constatar o estado físico-motor e cognitivo da falecida R. AA.
20.4. Cremos aliás que no acórdão recorrido se teve consciência da situação, mas não foi encontrada a solução adequada, pois chegou a afirmar-se (sublinhado, para salientar os aspectos a que se alude):
“Em conformidade com o disposto no citado artigo 257.º, n.º 1 do Cód. Civil, a declaração negocial feita por quem, devido a qualquer causa, se encontrava incapacitado de entender o sentido dela ou não tinha o livre exercício da sua vontade é anulável, contanto que o facto seja notório ou conhecido do declaratário,
- Sendo notório quando uma pessoa de normal diligência o teria podido notar, como dispõe o n.º 2 do mesmo artigo – ponto em que não nos deteremos, por serdetamanha evidêncianocasodosautos, como afirma(aquibem) o Acórdão a quo.
- Em virtude daquele impedimento, o acto de outorga da Procuração deveria ter sido, como se disse supra, liminarmente recusado pela Senhora Notária, em cumprimento do disposto no artigo 173.º, n.º 1 do Código do Notariado”
20.5. Em reforço do exposto, deixamos aqui expressas as dúvidas lançadas por Mafalda Miranda Barbosa no texto de análise do regime do maior acompanhado, quando diz – Maiores acompanhados: da incapacidade à capacidade?, Revista da Ordem dos Advogados, 2018, I/II, p. 231 ss, disponível em https://portal.oa.pt/media/130218/mafalda-miranda-barbosa_roa_i_ii-2018-revista-da-ordem-dos-advogados.pdf:
“Contudo, contra o que era a intenção originária dos estudiosos na matéria, não se garantiu — como não se poderia garantir — que não houvesse uma situação de total incapacidade do sujeito. e, deixando-se nas mãos do julgador a determinação dos atos para os quais o acompanhado necessitará de assistência e/ou de representação, sem uma prévia determinação de categorias de atos, pode-se correr o risco de deixar privado de proteção um sujeito em específicos domínios da sua atuação. é claro que tal não é determinado pelo regime em si, mas pela concreta intervenção do julgador. simplesmente, e sem que isto implique uma qualquer desconfiança em relação ao poder judicial, o casuísmo a que o sistema conduz não deixa de envolver esse risco.”
20.6. Quer isto dizer que a interpretação que se faz do regime do maior acompanhado e da solução aí imposta no art.º 154.º, n.º7, tem de ser passível de ser conjugada com o regime do art.º 246.º do CC; enquanto no art.º 154.º, n.º7 se estará a pensar na perspectiva do maior e dos seus interesses apenas, na perspectiva do art.º 246.º estar-se-á a pensar em moldes mais amplos, que envolvem igualmente outros interessados, perante a prática de um acto que lesa os seus interesses, como sucede na nossa acção, e que a ordem jurídica não pode deixar de considerar, numa de 2 opções:
- ou considera que o acto – emissão da procuração é nula – por falta de vontade do declarante, declarando nula a procuração e retirando da invalidade as consequências que se impõem –
- ou o acto é anulável, mas o arrendatário tem poder para invocar a invalidade, por a mesma ter sido a base da prática de um acto jurídico que afecta a sua posição jurídica e para a qual a ordem jurídica tem de oferecer um meio de defesa. E sendo anulável, e estando requerida a declaração de invalidade, e demonstrados os pressupostos da incapacidade acidental – as instâncias sobre o ponto não discordam – então a decisão do tribunal só pode ser a de declarar essa invalidade, anulando a procuração e retirando da invalidade as consequências que se impõem –
20.7. Como se tornou evidente, pela exposição anterior, há divergência na jurisprudência e na doutrina sobre a aplicação preferencial ou exclusiva do art. 257.º do CC.
No sentido da não aplicação do art. 246.º e preferência pelo art. 257.ºdo CC, na jurisprudência veja-se, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, 19-12-2012 (proc. n.º 1267/06. TBAMT.P2), com o argumento de que o primeiro pressupõe um estado geral de discernimento (tratava-se de apreciar a declaração de testador num estado de senilidade)
Em sentido diferente, decidiu o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10-4-2014 (pro. n.º 1407/11.3TJLSB.L1.7) (a declaratária teria falta de capacidade de compreensão em virtude de hemorragia cerebral, pelo que se reputou haver falta de consciência da declaração)
Criticando o critério distintivo (a presença ou falta de capacidade para entender a declaração), Mafalda Miranda Barbosa (in Falta e Vícios da vontade, Gestlegal, 2021, p. 58) e chamando a atenção para a defendida aplicação do art. 246.º CC, por exemplo, na celebração de actos por menores de sete anos (sendo o negócio nulo e não anulável) conclui:
“O que separa a falta de consciência da declaração da incapacidade acidental é a presença ou a ausência de vontade no momento da emissão da declaração negocial.” Assim, enquanto na falta de consciência não há vontade da declaração, na incapacidade acidental o acto é voluntário, havendo consciência da natureza declarativa do comportamento, simplesmente falha a compreensão sobre o alcance do acto em si (op.ult. cit., p.58.
21. Tudo visto e ponderado:
A ausência de voluntariedade ficou claramente provada, restando saber qual a consequência da falta de declaração ou consciência, face à omissão da lei.
A doutrina qualifica essas declarações como inexistentes (por exemplo, Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, 2010, p. 194), como nulas (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, 2005, p. 788), destacando-se, quiçá a mais influente posição, a de Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, 5.ª ed., 2012, p. 491, segundo o qual a declaração será tida como inexistente se se tratar de falta de declaração de vontade (uma vez que, nestes casos, não há comportamento humano voluntário, funcionalizado à produção de efeitos jurídicos, op. ult. cit., p 491) e nula a existir falta de consciência, ambas a serem conhecidas ex officio pelo tribunal. Ou ainda como diz Carlos Ferreira de Almeida, Invalidade, inexistência e ineficácia, Católica Law Review, 2017, n.º 2, p. 15, ocorre nesses casos uma situação de inexistência material, que constitui o grau máximo da ineficácia, é um “vício superior e mais grave do que a nulidade” (ibidem, p.46), uma “supernulidade” (ibidem, p. 47).
Sendo a nulidade um vício previsto na lei, que comporta uma solução protetora dos interesses envolvidos na problemática suficientemente abrangente, considera-se de aplicar o seu regime à situação em análise, sem prejuízo de a mesma poder ser ainda coberta pela inexistência.
22. Tendo considerado que a nulidade/inexistência da procuração é a solução mais conforme com o ordenamento jurídico, ao nível das consequências da nulidade da procuração, centremo-nos nos efeitos dos actos praticados pelo procurador para com a representada e para com os terceiros – seja a doação, seja a rectificação das doações, seja a oposição à renovação do contrato.
Tendo concluído pela nulidade /inexistência da procuração, os contratos celebrados com base nela devem ser apreciados à luz do regime da representação sem poderes, no que respeita à relação com o suposto mandante, por força do art.º 268.º do CC, admitindo-se, em abstracto a possibilidade de ratificação pelo mandante, mas afastando-a, no caso concreto, porque vem provado o estado geral incapacitante (em termos de compreensão) da outorgante da procuração, o que seria difícil de permitir compaginar com uma válida declaração de ratificação, cujo carácter pessoal é incontroverso. Também não seria possível considerar que a ratificação se encontrava incluída nos poderes de representação da procuração sub iudice. Finalmente, o falecimento da representada impede qualquer forma de ratificação.
Em suma – estes factores convergem para a nulidade do contrato de doação praticado sem legitimidade, na medida em que o regime da ineficácia absoluta perde aqui a sua ratio essencial ou predominante: a protecção de um representado que pode avocar a si os efeitos de um negócio em seu nome celebrado, sem poderes de representação [cf. Menezes Cordeiro/Pedro de Albuquerque (Código Civil Comentado I, p. 786), que,” à partida, semelhante negócio deveria ser nulo: coloca-se fora do âmbito da autonomia do seu autor, faltando-lhe, por isso, a legitimidade. ]
Quer isto dizer que estes mesmos actos, na relação com o A. (terceira), sobretudo quando os mesmos são praticados pelos 2º e 3º RR em nome próprio – i.e., depois de se considerarem titulares dos bens doados – são actos praticados por quem não é titular do direito e, por isso, comportam falta de legitimidade dos 2º e 3º RR. para a sua prática – sendo nulos até enquanto disposição de direito alheio, como direito próprio, ou pela via do abuso de direito – art.º 334.º do CC
E esta nulidade é invocável pelo A., a todo o tempo.
Assim, deve declarar-se
i) a nulidade /inexistência da Procuração outorgada a 21 de Dezembro de 2015, da Escritura de Doação, da Escritura de Rectificação de 9 de Março de 2016, da Escritura de Rectificação de 9 de Dezembro de 2016 e das comunicações enviadas pelos 2.ª e 3.º RR. à A. datadas de 29 de Dezembro de 2016 e das que, no mesmo contexto, se lhe seguiram,
ii) Em consequência da declaração de nulidade//inexistência, determina-se o cancelamento do registo da doação da fracção “B” do prédio urbano sito na Rua da ..., da freguesia de ... (actual freguesia de ...), concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Comercial de ... sob o nº .18/19810130 e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o nº .46 da freguesia de ..., nos termos do artigo 13.º do Código do Registo Predial, realizado a partir dos actos declarados nulos.
23. Ao admitir-se a aplicação do regime do art.º 246.º do CC, poder-se-ia não tomar conhecimento das questões prejudicadas – como a da validade formal da procuração ou dos actos posteriores de rectificação das doacções – ou até do conteúdo e limites dos poderes conferidos pela procuração à luz do regime do art.º 949, n.º1 do CC, mas esta última problemática é tida por relevante para a fundamentação da decisão, como argumento subsidiário, pelo que a vamos analisar.
24. Entendeu o Tribunal da Relação que: “Analisada a procuração verificamos que a mesma não confere poderes aos Réus para determinar o objeto da doação, o objeto da mesma está determinado pelo mandante, ao conferir poderes para doar todos os imóveis que lhe pertencem, sitos nas localidades que foram identificadas na procuração. Abrangendo os poderes para doar todo o universo de imóveis pertencentes à representada, não é necessário que em tal instrumento sejam discriminados cada um dos imóveis que podem ser objeto de doação”.
Não se acompanha a conclusão extraída pela Relação que excluiu a aplicação do art. 946.º do CC, vendo nele (pelo menos aparentemente) uma questão de mera determinabilidade do objecto negocial.
Ora, é o carácter pessoal na escolha da pessoa do donatário e nos bens a doar que imprime ao normativo referido este carácter tuitivo e imperativo, sancionando com a nulidade o mandato em que se atribua a outrem a faculdade de determinar o objecto da doação.
Embora se admita que a vontade de terceiro possa completar ou executar a vontade do doador, encontrando-se esta já determinada nos seus aspectos fundamentais (vide Pires de Lima e A. Varela, Cod. Civil Anotado 2º vol., p 252 ,4ª ed.), não pode o representante (neste caso também donatário) seleccionar mesmo de entre um conjunto de bens os passíveis de serem doados.
E não o pode fazer por via de mandato ou procuração (apesar de a lei apenas mencionar mandato, tal como o código civil italiano, no seu artigo 778.º, fonte do nosso normativo congénere). A distinção entre «procuração», negócio jurídico unilateral que confere poderes de representação (segundo o artª 262.º CC) e «mandato», modalidade de contrato de prestação de serviço que impõe a obrigação de praticar actos jurídicos por conta de outrem, haja ou não representação, em nada contende com uma aplicação indistinta do artigo às duas figuras, em virtude da teleologia associada ao preceito: a não designação por outrem do objecto a doar.
Veja-se ainda as considerações de Júlio Gomes in Comentário ao CC. Direito das Obrigações. Contratos em especial, UCP, 2023, p. 254: “a doação é um negócio pessoalíssimo e seguindo uma antiga tradição não se admite que o doador atribua a outrem a faculdade de escolher a pessoa ou determine o objecto da doação”.
A propósito da escolha por terceiro, salientamos, por relevante, o Ac. do STJ de 17-10-2022, (proc. n.º 02B2263), in https://juris.stj.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2002:02B2263.77?search=LWt8bFanB5I9eBfT3o4-sempre seria necessário demonstrar que a mandante - C - tinha querido permitir doar o prédio referido nos autos, nos termos constantes da escritura em apreciação, apesar de, por testamento de 13-Nov-85 e de 16-06-95, o ter legado aos Réus, ora recorridos.
Acontece que os AA. não conseguiram fazer tal demonstração, como ressalta das respostas dadas aos quesitos ns. 8 e 9 que eles pretendem que sejam consideradas como não escritas.
De resto, a procuração constante dos autos, - base da escritura referida refere apenas... "fazer doações de quaisquer bens imóveis a ela pertencentes.." e não fazer doações de todos os imóveis a ela pertencentes.
E, se a mandante não referiu a totalidade dos imóveis, é porque algo a inibiu de o fazer ou dizer, já que a expressão - "quaisquer bens imóveis" é mais limitativa do que a expressão - todos os bens imóveis.”
Quer isto dizer que a procuração que confere poderes para “doar a eles mandatários, todos o imóveis ou direitos imobiliários que possui a esta data, com ou sem reserva de usufruto, sitos nos concelhos de ... ..., ..., ...], ..., ...” atribui poderes selectivos aos representantes/donatários ao escolher quais os bens a doar e em que termos de entre o conjunto de bens indicado. O que a lei proíbe.
III. Decisão
Pelos fundamentos indicados – principal e subsidiário – concede-se a revista e determina-se:
i) a nulidade /inexistência da Procuração outorgada a 21 de Dezembro de 2015, da Escritura de Doação, da Escritura de Rectificação de 9 de Março de 2016, da Escritura de Rectificação de 9 de Dezembro de 2016 e das comunicações enviadas pelos 2.ª e 3.º RR. à A. datadas de 29 de Dezembro de 2016 e das que, no mesmo contexto, se lhe seguiram,
ii) Em consequência da declaração de nulidade//inexistência, determina-se o cancelamento do registo da doação da fracção “B” do prédio urbano sito na Rua da ..., da freguesia de ... (actual freguesia de ...), concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Comercial de ... sob o nº .18/19810130 e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o nº .46 da freguesia de ..., nos termos do artigo 13.º do Código do Registo Predial, realizado a partir dos actos declarados nulos.
Custas pelos recorridos.
Lisboa, 3 de Junho de 2025
Fátima Gomes
Barateiro Martins, com declaração anexa
Arlindo Oliveira
***
Declaração de Voto
Concordo com o que é dito, em tese, sobre a falta de consciência da declaração e sobre o art. 246.º do C. Civil.
Não me parece, porém, que se possa dizer que a factualidade respeitante a tal vício esteja provada: é que não foi alegada/invocada a falsidade da procuração e, tendo a mesma sido exarada perante funcionário notarial, faz prova plena do que nela se atesta como tendo sido objeto de perceção pelo funcionário notarial, ou seja, está plenamente provado que a AA disse à Sr.ª Notária o que esta faz constar da procuração como lhe tendo sido dito pela AA; e sendo assim não se pode dizer que haja falta de consciência da declaração.
Dito de outro modo, para ilidir esta força probatória havia de ter sido invocada a falsidade do documento autêntico que a procuração é (cfr. arts. 371.º e 372.º do C. Civil e 446.º e ss. do CPC).
Não concederia pois a revista com base em tal fundamento, apenas concedendo a revista quanto ao que se diz e conclui sobre a atribuição de poderes seletivos dos bens a doar aos representantes.
(António Barateiro Martins)
________
1. Da responsabilidade da relatora.
2. Ou seja, “…pelo titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica, como prática, seja afectada pelo negócio” – Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. Ipág. 263.