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Jurisprudência
Sumário

I. O questionário médico não constitui uma cláusula contratual geral do contrato de seguro para efeito de vinculação do tomador do seguro ou da seguradora aos deveres de comunicação e informação previstos no diploma das cláusulas contratuais gerais.

II. No âmbito do seguro do ramo vida releva a existência de inquéritos clínicos, que acompanham a proposta, sendo estes um instrumento para a seguradora alicerçar a decisão de contratar e proceder à avaliação concreta do risco que assume.

III. Sendo que o elemento decisivo para a celebração do contrato é o questionário apresentado ao potencial segurado, na medida em que se presume que não são aí feitas perguntas inúteis ou vagas e, através deste, é o próprio segurador que indica ao tomador quais as circunstâncias que julga terem influência no contrato a celebrar. É através deste questionário que a seguradora faz saber ao candidato as circunstâncias concretas em que se baseia para assumir o risco – são aquelas que determinam a celebração do contrato e as suas condições.

IV. Aplicando-se ao caso sub judice o disposto no artº 429º do Código Comercial, tendo a seguradora optado por apresentar um questionário “fechado” em que apenas se admitia a resposta “sim” ou “não” às questões formuladas, e sendo estas em escasso número (seis), a que acrescia o facto de uma delas ser pouco clara, prestando-se a interpretações que poderiam induzir o tomador em erro, não poderia a seguradora anular o contrato de seguro com fundamento em declarações inexactas ou falsas por parte deste, pois que a matéria dada como provada se revela insuficiente para tal.

V. É que, porque é o Segurador quem define as condições relevantes para a aceitação e outorga do contrato de seguro, o princípio da boa fé e o princípio da transparência impõem rigor, linearidade, clareza e simplicidade de linguagem, nas questões formuladas no questionário, a fim de que o tomador/segurado possa compreender o sentido das perguntas e ser responsabilizado pelas respostas inexactas ou omissões. Ou seja, o credor da informação deve diligenciar para que o segurado possa responder com verdade, de forma esclarecida.

VI. Devendo a aferição da relevância, para efeitos do art. 429 do C Comercial, ser feita na perspectiva do proponente, segundo o “critério da razoabilidade”, tal implica o apuramento do proponente concreto, das suas circunstâncias pessoais, a sua condição sócio-cultural, o grau de literacia.

VII. Com a entrada em vigor do RJCS (DL 72/2008, de 16.04), no que toca à situação de declaração inicial de risco, passou-se do sistema de questionário fechado para o sistema do dever espontâneo (correntemente denominado de questionário aberto): se no dito modelo fechado a declaração inicial do risco assentava (somente) no dever de resposta às perguntas formuladas pelo segurador no questionário, agora, a obrigação do segurado não se reduz à sua obrigação de informação aos termos do questionário fornecido pelo Segurador.

VIII. Pela sua própria definição, as cláusulas inseridas nas condições gerais e nas condições especiais de um contrato de seguro, sendo de aplicação generalizada a determinados contratos de seguro do mesmo tipo, assumem a natureza de cláusulas contratuais gerais.

IX. Uma cláusula que exige, para a verificação de situação de “invalidez total e permanente – e, dessa forma, o segurado poder acionar o seguro e exigir a indemnização – , designadamente, que o segurado “seja portador de um grau de desvalorização superior a 66,6% segundo a Tabela Nacional de Incapacidades”, para se poder accionar o seguro de grupo, é desproporcionada, favorecendo, de forma excessiva, a posição contratual do predisponente e prejudicando inequitativa e danosamente a do aderente. Como tal, e porque é atentatória da boa fé, é abusiva.

Decisão Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível

I – RELATÓRIO

AA, residente na Rua ..., ... ..., instaurou acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra Ocidental - Companhia Portuguesa de Seguros de Vida, S.A., com sede na Avenida ... (...), ..., ... ..., onde concluiu pedindo que seja:

- declarada a validade dos contratos de seguro de vida titulados pela apólice nº ......90;

- condenada a Ré a pagar à entidade mutuante - “Banco Comercial Português, S.A.” - beneficiária dos seguros de vida titulados pela apólice nº ......90 - os capitais em dívida à data da sentença;

- condenada a Ré a pagar à Autora o remanescente dos capitais seguros, com juros, à taxa legal, a contar da citação;

- condenada a Ré a restituir à Autora os prémios, indevidamente pagos, posteriores à data do sinistro, com juros, à taxa legal, a contar da data do sinistro.

Alega que celebrou com o Banco Comercial Português, S.A. um contrato de mútuo de € 115.000,00 e outro de € 15.000,00, tendo formalizado com a Ré dois contratos de seguro de grupo em que o Banco Comercial Português assumia a posição de tomador e beneficiário, não tendo a Ré cumprido os seus deveres de comunicação e informação perante a A.

Alega, ainda, que, por via do AVC que sofreu e das suas sequelas, é portadora de um grau de incapacidade de 66%, tendo accionado o contrato de seguro uma vez que se encontra em situação de invalidez.

Acrescenta que a Ré é responsável pelo pagamento das quantias relativas ao empréstimo contraído junto do Banco Comercial Português.


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Citada, a Ré contestou, excepcionando a ilegitimidade da A., alegando para o efeito que contraiu juntamente com BB os mútuos bancários, pelo que não se encontram todos os interessados em juízo.

Relativamente aos factos, aceitou a existência dos contratos de seguro, a partir de 17/07/2008, invocando, contudo, a existência de patologias pré-existentes que não foram declaradas aquando da subscrição dos contratos de seguro, as quais, caso tivessem sido declaradas, teriam originado a não celebração dos contratos de seguro.

Acrescenta que, por via dessa omissão ou falsa declaração, os contratos são nulos, estando excluídas as garantias de cobertura da apólice/certificados individuais.

Alega, ainda, que, o accionamento da cobertura de invalidez total e permanente depende da existência de um grau de invalidez igual ou superior a 66,6, invalidez essa definitiva e total, o que não se verifica no caso em concreto.

Deduz, por fim, o incidente de intervenção principal provocada do Banco Comercial Português, por ter interesse igual ao da A. na acção.


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Notificada, a A. respondeu às excepções deduzidas, nada tendo a opor à intervenção do Banco Comercial Português e requereu a intervenção principal provocada de BB, como seu associado.

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Por despacho de 24.09.2019, foi convidada a A. a fazer intervir o Banco Comercial Português e foi admitida a intervenção, a título principal, do lado activo, do marido da A., BB, tendo o mesmo sido citado.

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A A. deduziu incidente de intervenção principal provocada do Banco Comercial Português, o qual foi admitido, tendo o mesmo sido citado.

Citado, o Banco Comercial Português, S.A. veio apresentar articulado através do qual, confirmou ter celebrado com os AA. os mútuos invocados, tendo os contratos de seguro sido celebrados entre a seguradora e os mutuários, acrescentando ter sido comunicado à A. e marido os termos dos contratos de seguro outorgados no âmbito dos contratos de mútuo contraídos, e cumprido os deveres de informação impostos.


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Notificada, a A. apresentou articulado de resposta, requerendo a ampliação do pedido no sentido de ser declarado que o Banco Comercial Português não cumpriu o seu dever de informação.

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Foi proferido despacho a indeferir a ampliação do pedido, porquanto o Banco Comercial Português não é Réu, mas sim interveniente do lado activo, enquanto beneficiário do contrato de seguro.

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Foi realizada prova pericial para apreciação da situação clínica da A.

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Procedeu-se à realização de audiência de julgamento, com observância das formalidades legais.

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Foi proferida sentença que absolveu a R. Ocidental - Companhia Portuguesa de Seguros de Vida, S.A., e o interveniente Banco Comercial Português, S.A. dos pedidos formulados pela A. AA.

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Não se conformando com a decisão proferida, veio a autora AA interpor recurso de apelação, tendo a Relação do Porto, com um voto de vencido, julgado não provido o recurso, confirmando a sentença recorrida.

De novo inconformada, veio a autora AAinterpor, nos termos do artigo 671º, nº 1, do Código de Processo Civil, RECURSO DE REVISTA” “e, subsidiariamente, nos termos do artigo 672º, nº 1, alíneas a), b) e c), do Código de Processo Civil, RECURSO DE REVISTA EXCECIONAL”, apresentando alegações que remata com as seguintes

Conclusões (que, diga-se, pouco mais são do que a reprodução da motivação vertida nas alegações):

1. Quanto à admissibilidade do presente recurso de revista, o douto acórdão recorrido, que pôs termo ao processo, foi proferido no âmbito de recurso interposto pela aqui Recorrente da douta sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, confirmando a decisão de absolvição da Ré Seguradora, aqui Recorrida; contudo, não se verifica a existênciade dupla conformidade que obsta à admissibilidade do recurso de revista, uma vez que, apesar de estarmos perante conformidade decisória e conformidade essencial da fundamentação, do douto acórdão recorrido resulta voto de vencido relativo a todas as questões levantadas pela Recorrente no recurso de apelação e que termina com a expressão “Por tais razões daria provimento ao recurso.”, pelo que não existe unanimidade da decisão colegial, sendo certo que (art. 671º, nº 1 e 3, do CPC e Ac. STJ de 30/11/2022, Proc. nº 12674/21.4T8SNT.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt).

2. Não estamos, assim, perante uma mera situação em que um Juiz Desembargador Adjunto, votando favoravelmente a decisão, lavra uma declaração de voto, demarcando-se de determinadas afirmações ou argumentos do Juiz Desembargador Relator, ou apresentando razões adicionais que levaram a votar a decisão (Ac. STJ de 27/10/2020, Proc. nº 638/15.1T8STC.E1.S1, disponível in www.dgsi.pt), mas de uma verdadeira discordância com a totalidade da decisão, pelo que, salvo melhor, não podemos considerar estar perante uma situação de dupla conforme que obsta à admissibilidade do recurso de revista, sendo, por isso, admissível o presente recurso de revista, que tem como fundamento a violação de lei substantiva, como veremos mais à frente, nomeadamente quanto à interpretação e aplicação do art. 24º, nº 3 e 4, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, o art. 342º, nº 2, do CC e os art. 15º e 16º do DL nº 446/85, de 25 de Outubro, nos termos do art. 674º, nº 1, al. a), do CPC.

3. Caso o Tribunal ad quem considere que não é admissível a interposição do presente recurso de revista, a Recorrente interpõe, subsidiariamente, recurso de revista excecional, uma vez que, o recurso de revista, em princípio não admitido, poderá caber quando se verifique alguma das situações do art. 672º, nº 1, al. a), b) e c), do CPC, cumprindo à Recorrente, sob pena de rejeição, indicar na sua alegação as razões pelas quais deve ser admitida a revista, considerando o preenchimento dos requisitos acima referidos para a sua admissibilidade, fundamentação esta destinada a ser apreciada nos termos do art. 672º, nº 3, do CPC.

4. Os presentes autos tiveram início com a petição inicial apresentada pela Recorrente na qual peticiona, em suma, que seja declarada a validade dos contratos de seguro titulados pela apólice nº ......90 e a Ré Seguradora condenada a pagar à entidade mutuante os capitais em dívida à data da sentença e à Autora, aqui Recorrente, o remanescente dos capitais seguros; estando em causa na presente ação duas questões: as alegadas omissões ou inexatidões da Recorrente aquando do preenchimento dos questionários médicos associados aos contratos de seguro e a sua situação de invalidez total e permanente, às quais estão associados tópicos relativos a contratos de seguro de vida sobre os quais o STJ já por várias vezes se debruçou, como os questionários médicos fechados e padronizados e as cláusulas contratuais abusivas relativas à caracterização do estado de invalidez, sendo, in casu, necessária a sua apreciação pelo STJ para uma melhor aplicação do direito.

5. Estas questões surgem no âmbito de um seguro de vida associado a mútuo para aquisição de casa de morada de família, estando em causa uma segurada que, devido a doença, sofre atualmente de incapacidade que a impede de exercer a sua atividade profissional e pela qual se encontra reformada por invalidez, o que a impede de auferir rendimento suficiente para continuar a regularmente cumprir as obrigações que assumiu junto do banco, pagando as prestações relativas ao mútuo, correndo o risco de ficar sem a sua casa, sendo certo que, após acionada a apólice de seguro, não só a seguradora se recusou a pagar o capital, como ainda invocou a nulidade dos contratos de seguro celebrados.

6. Estamos perante uma situação que tem repercussão fora dos limites da causa, uma vez que está relacionada com valores sócio-económicos, assumindo importância na estrutura e relacionamento social, podendo interferir com a tranquilidade e segurança relacionada com a celebração de contratos de seguro de vida, principalmente aqueles associados a contratos de mútuo para aquisição de habitação, sendo certo que os mesmos visam proteger tanto o mutuante como o mutuário, no caso de este, numa situação de invalidez total e permanente, se vir incapaz de cumprir as suas obrigações junto daquele, pelo que, tendo em conta o que está em causa e a relevância da questão para a sociedade em geral, não restará qualquer dúvida que estão em causa interesses de particular relevância social.

7. Atenta a matéria de facto articulada e provada, poderá surgir uma situação em que possa haver colisão de uma decisão jurídica com valores sócio-culturais dominantes que a devam orientar e cuja eventual ofensa possa suscitar alarme social determinante de profundos sentimentos de inquietação que minem a tranquilidade de uma generalidade de pessoas, tendo a questão em causa particular importância, existindo um interesse comunitário, sendo certo que os interesses em jogo ultrapassam os limites do caso concreto (Ac. STJ de 30/01/2014, Proc. nº 1245/10.9TJLSB.L1.S1, de 29/04/2010, Proc. nº 216/09.4TVLSB-A.L1.S1, e de 14/10/2010, Proc. nº 3959/09.9TBOER.L1.S1, e Ac. STA de 24/03/2011, Proc. nº 0227/11, e de 27/01/2011, Proc. nº 018/11, todos disponíveis in www.dgsi.pt).

8. Justifica-se, assim, uma nova apreciação da questão, desta vez pelo STJ, de modo a melhor interpretar e aplicar a lei, nomeadamente, o art. 24º, nº 3 e 4, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, o art. 342º, nº 2, do CC e os art. 15º e 16º do DL nº 446/85, de 25 de Outubro, tendo este recurso de revista excecional como fundamento, nos termos do art. 674º, nº 1, al. a), do CPC, a violação de lei substantiva, como veremos mais à frente; esta interpretação é merecedora de profunda reflexão, atentas as consequências da mesma no património da Recorrente, em particular na manutenção da sua casa de morada de família, sendo essencial para melhor aplicação do direito, encontrando-se preenchidos os pressupostos da excecional admissibilidade do recurso ínsitos nas alí. a) e b) do nº 1 do art. 672º do CPC.

9. Quanto às questões em causa, sobre as quais o douto acórdão recorrido decidiu, existem vários acórdãos proferidos pelo STJ que se encontram em oposição àquele, tendo o presente recurso de revista excecional os seguintes acórdãos-fundamento: (i) Ac. STJ de 17/10/2019, Proc. nº 3546/16.5T8CSC.L1.S1, disponível in www.diariodarepublica.pt (perante um questionário fechado e com tão poucas perguntas, como os dos autos, dificilmente se pode concluir que o segurado omitiu doenças ou prestou declarações inexatas, sendo certo que, tendo a seguradora optado por esse tipo de questionário, que se presta a interpretações que podem induzir o tomador em erro, não pode anular o contrato de seguro com fundamento em declarações inexatas ou falsas; (ii) Ac. STJ de 14/02/2023, Proc. nº 1117/20.0T8VIS.C1.S1, disponível in www.juris.stj.pt (a cláusula que exige a incapacidade geral de 60% para se poder acionar o seguro de grupo, quando se verifica uma incapacidade total e definitiva para o exercício da profissão, é desproporcionada, favorecendo de forma excessiva a posição contratual do predisponente e prejudicante inequitativa e danosamente a do aderente, tratando-se de cláusula abusiva; (iii) Ac. STJ de 02/11/2023, Proc. nº 5560/17.4T8VIS.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt (a densificaçãodo conceito relevantede invalidez absoluta e definitiva no contrato de seguro de vida (grupo) carece de linearidade, pois implica a ponderação de um conjunto de fatores diversificados, conforme a situação a analisar, e a sua articulação não pode deixar de levar a concluir que o segurado impossibilitado de trabalhar, ficará igualmente impossibilitado de solver as obrigações contraídas junto da entidade bancária aquando da celebração do mútuo, pelo que esse conceito deve ser perspetivado de forma mais maleável e flexível; (iv) Ac. STJ de 10/02/2022, Proc. nº 1681/18.4T8VFR.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt (o acionamento do seguro de vida contratado não poder ser afastado pelo simples facto de se provar, a partir de um relatório do IML, que a segurada pode exercer a sua atividade habitual, com certas limitações ou esforços suplementares, sem se demonstrar como e com que resultados poderia ser reajustada a sua vida profissional).

10. Todos estes acórdãos foram proferidos no âmbito de contrato de seguro de vida acionado pelo segurado que pugna encontrar-se em situação de invalidez total e permanente, como nos presentes autos, sendo certo que cada um destes acórdãos-fundamento releva para questões em causa do douto acórdão recorrido, pelo que todos eles são necessários para o presente recurso, expandindo-se quanto aos aspetos de identidade que determinam a contradição alegada nas conclusões relativas ao recurso em si, onde melhor se enquadram, evitando repetições desnecessárias (art. 672º, nº 2, al. c)

11. Encontra-se, por isso, também preenchido o pressuposto da excecional admissibilidade do recurso ínsito na al. c) do nº 1 do art. 672º do CPC, justificando-se uma melhor interpretação e aplicação da lei, nos termos já expostos, requerendo-se, assim e subsidiariamente, que, caso o Tribunal ad quem considere não existir fundamento para conhecimento da Revista como normal, ordene a remessa dos autos à Formação para apreciação dos pressupostos invocados com vista ao conhecimento da impugnação recursória como excecional (Ac. STJ de Justiça de 26/10/2022, Proc. nº 245/09.8TBVRS.E1.S1, disponível in www.dgsi.pt).

12. Quanto ao recurso em si,o Tribunal aquo julgouimprocedenteo recurso interposto pela Recorrente e confirmou a sentença recorrida, que absolveu a Ré “Ocidental -Companhia Portuguesa de Seguros de Vida, S.A.” e o interveniente “Banco Comercial Português, S.A.“ dos pedidos formulados pela aqui Recorrente, considerando o douto acórdão recorrido que não ficou demonstrada a validade do contrato de seguro ou a situação de incapacidade atual,total e permanente da Recorrente,por,alegadamente, não se encontrar total e definitivamente incapaz de exercer qualquer profissão compatível com os seus conhecimento e capacidades, visando o presente recurso discutir as questões da validade do contrato de seguro com cobertura de risco de incapacidade total e permanente para o exercício de profissão remunerada e da situação de incapacidade total e permanente da Recorrente, nomeadamente, quanto à interpretação e aplicação do art. 24º, nº 3 e 4, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, o art. 342º, nº 2, do CC e os art. 15º e 16º do DL nº 446/85, de 25 de Outubro, nos termos do art. 674º, nº 1, al. a), do CPC.

13. Do douto acórdão recorrido resulta declaração de voto vencido - a qual vai de encontro à posição da Recorrente e, por isso, será a base do presente recurso -apresentada pela Exma. Juiz Desembargadora CC, enquanto 1ª Adjunta, que expõe as razões pelas quais daria provimento ao recurso, dando-se como reproduzida a mesma.

14. Quanto à validade dos contratos de seguro, o Ac. STJ de 17/10/2019, Proc. nº 3546/16.5T8CSC.L1.S1 (nosso acórdão-fundamento, aqui junto e disponível in www.diariodarepublica.pt, lida com uma situação muito semelhante à dos presentes autos, sendo certo que, em ambos os casos, os questionários médicos e as respostas aos mesmos são iguais, consistindo das mesmas seis perguntas: “1. Já o aconselharam a consultar um médico, a ser hospitalizado, a submeter-se a algum tratamento ou intervenção cirúrgica? 2. Está de baixa por doença ou acidente? 3. Tem ou teve alguma doença que a tenha obrigado a interromper a sua atividade laboral por mais de 15 dias consecutivos nos últimos 5 anos? 4. Tem alguma alteração física ou funcional, teve algum acidente grave, foi submetido a alguma intervenção cirúrgica ou recebeu alguma transfusão de sangue? 5. fez ou foi aconselhado a fazer um teste de SIDA? 6. Já lhe foi recusada a celebração de um seguro de vida, de doença ou de acidentes pessoais, ou o mesmo foi celebrada em condições especiais?”

15. Nesse acórdão, o STJ considerou que, ao contrário do que consta no art. 24º, nº 2, do atual Regime Jurídico do Contrato de Seguro, o questionário médico é fechado, com perguntas formuladas de modo pouco claro e pouco objetivo, sendo de difícil compreensão, contendo situações agregadas, o que dificulta uma simples resposta positiva ounegativa,dando o exemplo do ponto1do questionário médico, que agrega três questões numa só, apesar se apenas admitir a resposta “sim” ou “não”, suscitando dúvidas quanto ao caráter cumulativo ou alternativo e podendo induzir o proponente em erro, uma vez que a questão admite várias interpretações.

16. Nos termos do douto acórdão, face a tal questionário, do qual nem sequer resulta a questão “sofre de alguma doença?”, muito dificilmente se poderá concluir que o proponente omitiu as referidas doenças ou prestado declarações inexatas, limitando-se a responder negativamente às seis perguntas do questionário médico, sem que lhe fosse dada a possibilidade de mencionar outras circunstâncias não solicitadas no mesmo, sendo certo que a falta de pedido de outras informações relativas ao estado de saúde do proponente, pela seguradora, revela a ausência de um comportamento medianamente cuidador na avaliação dos riscos que assumiu, da parte desta.

17. Face à factualidade provada e não provada e estando em causa, nos presentes autos, questionários iguais àquele deste douto Ac. STJ de 17/10/2019, Proc. nº 3546/16.5T8CSC.L1.S1, não podemos deixar de considerar também nos presentes autos que não houve da parte da Recorrente qualquer omissão ou imprecisão no preenchimento dos questionários, uma vez que em cada um dos pontos do questionário são colocadas várias questões numa só, admitindo apenas resposta sim ou não, suscitando dúvidas quanto ao caráter cumulativo ou alternativo dessas questões, suscetível de induzir em erro o proponente, podendo ter várias interpretações, tratando-se de um questionário clínico fechado, limitado àquelas perguntas, nem sequer tendo o cuidado de questionar o segurado se sofre de alguma doença, sendo certo que, apesar de estar em causa se, à data da celebração dos contratos de seguro, a Recorrente sofria de alguma doença - alegando a Recorrida Seguradora ser tão importante para a avaliação do risco no momento da celebração do contrato do seguro - não é algo que sequer se digne a perguntar à Recorrente nos questionários médicos.

18. A Recorrente respondeu às perguntas que lhe foram colocadas com verdade; os antecedentes da Recorrente relativos à enxaqueca não se inseriam em qualquer uma das perguntas colocadas nos questionários clínicos e, apesar do Tribunal de 1ª Instância alegar que “A pergunta em causa é: “Já a aconselharam a consultar um médico, a ser hospitalizado, a submeter-se a algum tratamento ou intervenção cirúrgica?”, no que diz respeito às enxaquecas de que a Recorrente sofre, pelo menos à data do preenchimento dos questionários clínicos, a Recorrente nunca tinha sido aconselhada a consultar médico, a ser hospitalizada, a submeter-se a algum tratamento ou intervenção cirúrgica, portanto não podia ter deixado de dar a resposta “não”.

19. No Ac. STJ de 17/10/2019, Proc. nº 3546/16.5T8CSC.L1.S1, embora o autor padecesse de hipercolesterolemia e hipertensão arterial - doenças diagnosticadas anos antes, para as quais era medicado, sem que interferisse com a sua vida - o STJ julgou que era consentâneo que o autor, como qualquer cidadão médio, considerasse que não tinha situações de saúde relevantes, pelo que, no presente caso, temos igualmente de pugnar que qualquer cidadão médio, nas circunstâncias da Recorrente, consideraria que não tinha situações de saúde relevantes.

20. A Recorrente sofre de enxaquecas desde os 7 anos, o que nunca afetou de qualquer modo relevante a sua vida, jamais tendo abandonado ou faltado ao trabalho devido às mesmas (este facto não se encontra no elenco da factualidade provada e não provada, não obstante a Recorrente ter requerido esse aditamento ao Tribunal da Relação do Porto, transcrevendo excertos de depoimentos que suportam tal factualidade);a medicação que tomava e ainda toma para as enxaquecas não é sujeita a receita médica e a Recorrente utiliza-a apenas quando sente uma enxaqueca, não se podendo, assim, dizer que faça medicação regular, tendo a própria perita de neurologia nomeada pelo Tribunal referido que as enxaquecas da Recorrente são banais.

21. Não podemos considerar mais grave a situação da Recorrente relativamente àquela do Ac. STJ de 17/10/2019, Proc. nº 3546/16.5T8CSC.L1.S1, pelo que, afigurando-se consentâneo que, nesse processo, o autor, como qualquer cidadão médio, considerasse que não tinha situações de saúde relevantes, o mesmo se deverá considerar quanto a caso dos presentes autos, não havendo qualquer inexatidão ou omissão da parte da Recorrente, sendo a Recorrida Seguradora que é inexata nas questões que coloca e omissa quanto àquelas que deveria perguntar, tendo, desde a celebração dos contratos dos autos, alterado o conteúdo dos questionários clínicos, assim como a lei consagrou um sistema de questionário aberto.

22. Perante um questionário fechado, com tão poucas perguntas, não se pode concluir que a Recorrente tenha omitido a sua história pessoal e familiar relativa às enxaquecas ou prestado declarações inexatas, tendo o funcionário do Recorrido Banco limitado-se a ler à Recorrente as perguntas constantes do questionário clínico, não lhe fazendo quaisquer perguntas adicionais, para além da tensão arterial, peso e altura, preenchendo as quadrículas à medida que as resposta de sim ou não iam sendo dadas, não tendo sido dado como provado que o funcionário do Recorrido Banco tenha dado qualquer explicação sobre o teor das questões ou qualquer esclarecimento adicional relativamente à sua extensão e alcance, ou conhecimento prévio do teor da proposta em momento anterior à deslocação da Recorrente à agência bancária, limitando-se a Recorrente a responder negativamente às seis perguntas do questionário clínico, à medida que as mesmas lhe foram lidas, sem que lhe tivesse sido dada a possibilidade de mencionar outras circunstâncias não solicitadas nesse questionário, situação idêntica à dos autos em que foi proferido o Ac. STJ de 17/10/2019, Proc. nº 3546/16.5T8CSC.L1.S1

23. A Recorrida Seguradora não solicitou outras informações relativas aos estado de saúde da Recorrente, o que é revelador da ausência de um comportamento medianamente cuidadoso na avaliação dos riscos que assumiu, sendo certo que, o facto de considerar que aquelas seis perguntas eram suficientes para tomar uma decisão sobre a avaliação do risco assumido, sem solicitar quaisquer outras informações relativas ao estado de saúde da Recorrente, revela um comportamento descuidado da parte da Recorrida Seguradora, não tendo havido, da parte da Recorrente, qualquer declaração inexata ou omissão, em qualquer um dos questionários médicos preenchidos (tanto quanto àquele preenchido no âmbito do contrato de seguro celebrado em 23/05/2008, como àquele preenchido no âmbito do contrato de seguro celebrado em 02/02/2010), o que decorre da identidade entre o douto acórdão recorrido e o douto acórdão-fundamento, com o qual aquele está em contradição (cfr. também Ac. STJ de 31/01/2023, Proc. nº 941/18.9T8OER.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt, relativo, igualmente, a um questionário padronizado).

24. Como nesse doutoacórdão do STJ,o Tribunalaquodeveriaterdeclarado os contratos de seguro validamente celebrados e em vigor, não resultando da matéria provada factos que demonstrem ter havido, por parte da Recorrente, omissão ou inexatidão da declaração dolosa, nos termos do art. 24º, nº 3, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, ou suscetíveis de integrar a negligência e a causalidade previstas no art. 26º, nº 4, do mesmo diploma, cujo ónus da prova recai sobre a Recorrida Seguradora, nos termos do art. 342º, nº 2, do CC.

25. Quanto à invalidez total e permanente da Recorrente, temos de apreciar a cláusula contratual que resulta dos factos provados nº 5 e 14 - cláusula contratual geral sujeita ao regime do DL nº 446/85, de 25 de Outubro - que estabelece que o segurado estará em situação de “invalidez total e permanente” quando se verificar cumulativamente que o segurado está “definitivamente incapacitado de exercer qualquer profissão ou atividade lucrativa em consequência de doença ou acidente, com fundamento em sintomas objetivos clinicamente comprováveis”, que não é “possível prever qualquer melhoria no seu estado de saúde de acordo com os conhecimentos médicos atuais” e que é “portador de um grau de desvalorização superior a 66,6% segundo a Tabela Nacional de Incapacidades”.

26. O Ac. STJ de 14/02/2023, Proc. nº 1117/20.0T8VIS.C1.S1 (aqui junto como acórdão-fundamento e disponível in www.juris.stj.pt) debruça-se sobre uma situação semelhante,em que aseguradora apresentou contrato deseguro de grupo que previa uma necessidade de verificação de invalidez profissional e, cumulativamente, a necessidade de verificação de um grau de incapacidade geral igual ou superior a 60% para a segurada poder acionar o seguro e exigir a indemnização, concluindo, quanto a tal cláusula, que “tem de se considerar esta como nula por contrária à boa-fé e por defraudar as expectativas dos aderentes.”, pelo que, podemos os concluir pela identidade das situações do douto acórdão recorrido e do douto acórdão-fundamento,uma vezque está em causa a validade de cláusula contratual geral,ínsita em contratos de seguro, que cumula requisitos relativos não só à verificação da invalidez profissional, mas também ao grau de incapacidade do segurado.

27. Do Ac. STJ de 14/02/2023, Proc. nº 1117/20.0T8VIS.C1.S1, resulta ainda que, pretendendo a seguradora fazer prevalecer o seu entendimento de que o seguro só podia ser acionado se verificadas cumulativamente essas duas condições, tinha de fazer prova de que tal resultou de negociação com a segurada, sendo certo que esta, perante uma cláusula que preveja a incapacidade para o exercício da profissão, apreende que terá direito ao seguro no caso de ficar incapacitado para o exercício da profissão, independentemente do grau de incapacidade que lhe for determinado, sendo abusiva a cláusula que exija a incapacidade geral de 60% para se poder acionar o seguro de grupo, quando se verifica uma incapacidade total e definitiva para o exercício da profissão, tendo de ser declarada a sua nulidade, nos termos gerais do direito, subsistindo a obrigação de cumprimento por parte da seguradora.

28. Como resulta do douto acórdão-fundamento, bem como da douta declaração de voto vencido do acórdão recorrido, dever-se-á considerar a cláusula contratual que resulta dos factos provados nº 5 e 14 abusiva, por atentatória da boa fé, uma vez que, na caracterização do estado de invalidez, exige, cumulativamente, que o segurado esteja definitivamente incapacitado de exercer qualquer profissão ou atividade lucrativa em consequência de doença ou acidente, com fundamento em sintomas objetivos clinicamente comprováveis, que não seja possível prever qualquer melhoria no seu estado de saúde de acordo com os conhecimentos médicos atuais, e que seja portador de um grau de desvalorização superior a 66,6% segundo a Tabela Nacional de Incapacidades, uma vez que, exigir tal grau de incapacidade quando, com grau inferior, o segurado já se encontra em situação de invalidez absoluta e definitiva e, por isso, incapaz de exercer atividade remunerada, seria frustar o objetivo visado de a seguradora proceder ao pagamento quando o segurado esteja absolutamente incapaz, pugnando-se, assim, pela nulidade dessa cláusula na parte em que define a situação de invalidez absoluta e definitiva condicionada à desvalorização superior a 66,6%, nos termos dos art. 15º e 16º do DL nº 446/85, de 25 de Outubro.

29. O Ac. STJ de 02/11/2023, Proc. nº 5560/17.4T8VIS.C1.S1 (acórdão-fundamento aqui junto e disponível in www.dgsi.pt) acrescenta que a densificação do conceito relevantede invalidezabsolutae definitiva,no contexto de contrato de seguro de vida (grupo) deve ser perspetivada em moldes não demasiado alargados, nem muito rígidos, mas de forma mais maleável e flexível, na necessária consideração casuística, devendo concluir-se que o segurado impossibilitado de trabalhar, ficará de igualmente impossibilitado de solver as obrigações contraídas junto da entidade bancária aquando da celebração do mútuo, cuja a superação constitui a razão última para a celebração do contrato de seguro, nos termos configurados.

30. Este acórdão-fundamento, como os demais, diz respeito a um caso em que o segurado, no âmbito de um contrato de seguro de vida, acionou esse seguro, com base na sua invalidez absoluta e definitiva, o que corresponde às circunstâncias dos presentes autos, sendo certo que, em ambos os casos se discute se o segurado (in casu, a Recorrente) efetivamente se encontra em situação de invalidez absoluta e definitiva, resultando da douta declaração de voto vencido que os factos provados nº 8, 9 e 34 preenchem este conceito de invalidez absoluta, que não é afastado pelo facto provado nº 11 (“as sequelas são compatíveis com o exercício da atividade habitual com esforços suplementares”), pois este assentou unicamente nas conclusões do relatório do IML, que tem por objeto apenas a avaliação do dano, que não coincide totalmente com o conceito de invalidez que se discute no âmbito do seguro de vida, sendo certo que nem sequer ficou demonstrado que “esforços suplementares” são esses no contexto da situação concreta da Recorrente, que sofreu um AVC.

31. O Ac. STJ de 10/02/2022, Proc. nº 1681/18.4T8VFR.P1.S1 (acórdão-fundamento aqui junto e disponível in www.dgsi.pt) - relativo a situação em que, como nos presentes autos, a segurada sofreu graves sequelas provocadas por doença, as quais foram desconsideradas pelo relatório do IML, que considerou os segurados aptos para o exercício da atividade habitual com esforços suplementares ou reajustando essa atividade - considerou que o acionamento do seguro do ramo vida contratado não pode ser afastado pelo simples facto de se provar, a partir de um relatório do IML, que a segurada está apta a exercer as funções da sua atividade profissional habitual, com exceção das que determinem contacto com o público, na medida em que não ficou demonstrado como e com que resultados a sua vida profissional poderia ser reajustada.

32. A Recorrente foi submetida a exame médico na ARS ..., em 03/01/2018, tendo-lhe sido atribuído o grau de incapacidade permanente global de 66%, reportada a 2017, auferindo da SS, a título de pensão de invalidez, desde 09/10/2018, a quantia mensal de € 305,35, não se podendo considerar que possa exercer a sua atividade profissional habitual, encontrando-se a Recorrente em situação de invalidez total e permanente, o que não é posto em causa pelo facto provado nº 11, que teve por base apenas as conclusões do relatório do IML, cujo objeto não é totalmente coincidente com o conceito de invalidez em causa no seguro de vida, não tendo os peritos do IML sido sequer capazes de concretizar quais os “esforços suplementares” que a Recorrente teria de fazer.

33. O Tribunal a quo esteve mal quando julgou improcedente o recurso da Recorrente e confirmou a sentença recorrida, sendo certo que os contratos de seguro celebrados nos autos são válidos; a cláusula contratual que resulta dos factos provados nº 5 e 14, relativa à “invalidez total e permanente”, é abusiva na parte em que condiciona a definição de situação de invalidez absolutae definitiva condicionada à desvalorização superior a 66,6%; e a Recorrente efetivamente encontra-se em situação de invalidez total e permanente, devendo a Recorrida Seguradora ser condenada nos termos peticionados na petição inicial.

Termos em que, o presente recurso de revista deve ser admitido e julgado provado e procedente, ou, subsidiariamente, o presente recurso de revista excecional deve ser admitido e julgado provado e procedente, e, em consequência, revogado o douto acórdão recorrido, substituindo-o por nova decisão nos termos pugnados neste recurso.

Contra-alegou a recorrida, Ocidental - Companhia Portuguesa de Seguros de Vida, S.A., pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Nada obsta à apreciação do mérito da revista.

A revista é normal, não excepcional, pois que, embora Relação tenha confirmado a sentença, fê-lo, porém, com um voto de vencido, donde se não poder falar em dupla conformidade decisória inibidora da revista normal (ut artº 671º, nº3 CPC).

Quanto ao mais, a situação tributária mostra-se regularizada, o requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Para além de que tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).


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Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), as questões a decidir consistem em saber:

Da invalidade ou validade dos contratos de seguro por (respectivamente) se verificar ou não omissão/inexactidão das declarações prestadas pelo segurado.

Se a cláusula contratual constante dos factos provados nºs 5 e 14, relativa à “invalidez total e permanente”, é abusiva na parte em que condiciona a definição de situação de invalidez absoluta e definitiva à desvalorização superior a 66,6%.


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III – FUNDAMENTAÇÃO

III. 1. FACTOS PROVADOS

É a seguinte a matéria de facto provada (na 1ª instância, após impugnação em recurso):

1. A A. e o marido celebraram com a R. contrato de seguro de vida, renovável anualmente, associado ao crédito à habitação concedido pelo interveniente Banco Comercial Português SA, com o capital seguro, à data da participação, 20/04/2015, de 102.848,79 euros, tendo sido emitido certificado individual com o nº......59.

2. A A. e o marido celebraram com a R. novo contrato de seguro de vida, renovável anualmente, associado ao crédito à habitação concedido pelo interveniente Banco Comercial Português, S.A., com o capital seguro, à data da sua celebração, de 15.000,00 euros, tendo sido emitido certificado individual com o nº......96.

3. Com esses seguros de vida, apólice GR......90, além da cobertura principal, a R. garantia ainda uma cobertura complementar em caso de invalidez total e permanente da A..

4. A A. respondeu ao questionário médico que lhe foi fornecido nos termos que constam de fls. 106 a 108 e 114 a 116, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido.

5. Nas condições especiais do contrato de seguro consta que se verifica uma situação de invalidez total e permanente se “em consequência de doença ou acidente, estiver total e definitivamente incapaz de exercer uma atividade remunerada, com fundamento em sintomas objetivos, clinicamente comprováveis, não sendo possível prever qualquer melhoria do seu estado de saúde de acordo com os conhecimentos médicos atuais, nomeadamente quando desta invalidez resultar paralisia de metade do corpo, perda do uso dos membros superiores ou inferiores em consequência da paralisia, cegueira completa ou incurável, alienação mental e toda e qualquer lesão por desastre ou agressões em que haja perda irremediável das faculdades e capacidade de trabalho, devendo em qualquer caso o grau de desvalorização, feito com base na Tabela Nacional de Incapacidades, ser superior a 66,6% que, para efeitos desta cobertura, é considerado como sendo igual a 100%.”.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, resultaram ainda provados os seguintes factos:

6. Foi diagnosticado à A, “AVC isquémico/Enfarte migranoso provável pós status migranoso, em 22/12/2014, tendo ficado internada no serviço de Neurologia do Hospital de ... até 29.12.2014, para estudo e tratamento.

7. A A., aquando da alta, em 29/12/2014, apresentava os seguintes diagnósticos: enfarte migranoso provável status migranoso, enxaqueca com aura visual, hipotiroidismo, dislipidemia, obesidade e síndrome depressivo reativo.

8. Conforme relatório pericial, cujo teor se dá por reproduzido, em nota da alta do Hospital de ..., datada de 29/12/2014, com relevo, pode ler-se: “(…) 41 anos, residente em ..., com o marido e filha. Trabalha numa fábrica de têxteis (…) No serviço de neurologia a 22 de dezembro/14 por provável status migranoso (…) ... No sábado dia 20/12 estava num jantar com as colegas da fábrica e teve instalação gradual (em minutos) de hipovisão no hemicampo visual direito tipo “escuridão” associada a “faíscas” no mesmo hemicampo que habitualmente tem como aura de enxaqueca. Passados alguns minutos, notou também instalação hipostesia da hemiface direita. A hipostesia resolveu ao final de 20 minutos, mas manteve sempre as alterações visuais e teve início de cefaleia hemicraniana contralateral, muito intensa, tipo “moedeira”, que achou ser mais intensa e diferente da enxaqueca habitual, associava-se a náuseas e foto-fobia. Durante a noite houve melhoria da cefaleia, mas no dia seguinte a cefaleia regressou, tendo mantido sempre os défices visuais, pelo que recorreu H. da área. Foi transferida para o H. ... para realizar TC CE. Fez analgesia endovenosa, que aliviava parcialmente a dor, mas mantinha a hipovisão associada a “faíscas” no hemicampo direito. No dia 22/12 de manhã teve recrudescimento da hipostesia da face e depois hipostesia de todo o hemicorpo, associada a sensação de menor força desse hemicorpo, pelo que foi enviada ao CH... para observação por Neurologia. A doente tem enxaqueca com aura visual desde os 7 anos de idade, com espectro de fortificação/faíscas de um dos hemicampos, com duração de 20 min, seguida decefaleia de intensidade moderada a intensa, pulsátil hemicraniana contralateral, com náuseas e vómitos, fono e fotofobia. A enxaqueca tem frequência variável (pode estar 3 meses sem crises e 1 mês em que tem todas as semanas). Desde há um mês tem tido episódios de alteração visual tipo “escuridão” de hemicampo esquerdo, com duração de minutos (<20 min), sem cefaleia subsequente. Tem também tido episódios de enxaqueca com aura mais frequentes (1x/semana), tem andado mais ansiosa nos últimos meses, especialmente no último mês (problemas relacionais com a mãe desde setembro). Fazia migraleve para a enxaqueca com boa resposta. Desde que foi descontinuado, foi medicada com migretil, mas com má resposta, sentiu-se pior (tomou apenas 1 vez há 1 mês). Já chegou a fazer profiláticos, mas não se recorda de nomes e acha que não tiveram benefício. Na observação por Neurologia na sala de Emergência: CCO, sem aparentes alterações das funções nervosas superiores. Hipovisão do hemicampo E, mas consegue identificar movimentos na perimetria, refere sensação de “escuridão” e “faíscas”. Sem oftalmoparesias, sem diplopia ou nistagmo. Hipostesia álgica na hemiface dta. Sem alterações nos restantes NC. FM no hemicorpo dto diminuída, com queda sem pronação e oscilação bizarra do MSD na prova de braços estendidos. Hipostesia álgica do hemicorpo dto. CP indiferentes. Sem dismetria dos membros esq e MID. Faz mov bizarros do MSD na prova dedo-nariz. Pela hipótese de status migranoso, fez 6 mg dexametasona, com resposta parcial: melhoria da cefaleia e alt sensitivas, mantendo alt visuais. Durante o SU com novo agravamento da cefaleia, pelo que fez bólus de 500 mg VPA, com melhoria progressiva da cefaleia, mas uma vez que mantinha ainda défice visual e cefaleia residual, decidido internamento no Serviço de Neurologia para estudo e tratamento. Antecedentes pessoais: Enxaqueca com aura visual desde os 7 anos; Hipotiroidismo Dislipidemia; Obesidade; Episódio de dor ciática há 1 mês; Cx: cesariana e fibroma uterino; Reacção de hipersensibilidade tipo 4 (joalharia de fantasia); Nega HTA ou DM; Nega hábitos tabágicos ou etílicos; MH: eutirox 50, supralip, anticoncepcional oral”.

9. A A. foi submetida a exame médico na ARS ..., em 03/01/2018, tendo-lhe sido atribuído o grau de incapacidade permanente global de 66%, reportada a 2017, tendo sido atribuído o coeficiente 0,50 pelo Capítulo III, 2.12.2.1; pelo Capítulo V, 3.5, a), 0,10; pelo Capítulo X – Grau II da TNI, 0,15; e pelo capítulo XIV, 3, c) 0,10.

10. A A. apresenta uma incapacidade permanente de 18,9190%, tendo sido desvalorizada em 0,01000 pelo Capítulo X, Grau I); 0,10900 pelo Capítulo III.2.12.3.2, a); e 0,18919 pelo Capítulo V, 3.5, a), todos da TNI.

11. As sequelas da A. são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares.

12. A A. não apresenta dependência permanente de ajuda de terceira pessoa.

13. A A., desde 20.12.2014, não mais exerceu qualquer atividade laboral.

14. Das condições gerais constantes do contrato de seguro a que a A. aderiu consta como cobertura principal, alínea b) “invalidez total e permanente” – estando definido que “no caso de invalidez total e permanente do segurado, a seguradora, nos temos previstos nas Condições da apólice, garante o pagamento do capital seguro ao beneficiário”, considerando-se existir “invalidez total e permanente quando se verifiquem cumulativamente os seguintes factos:

- esteja o segurado definitivamente incapacitado de exercer qualquer profissão ou atividade lucrativa em consequência de doença ou acidente, com fundamento em sintomas objetivos clinicamente comprováveis;

- não seja possível prever qualquer melhoria no seu estado de saúde de acordo com os conhecimentos médicos atuais;

- seja portador de um grau de desvalorização superior a 66,6% segundo a Tabela Nacional de Incapacidades”.

15. A A. e BB assinaram as propostas de adesão que constam dos autos como Doc 1 e 2 da pi, a 23/05/2008 e 02/02/2010, aceites pela R. com datas de inicio, respetivamente, a 17/07/2008 e 25/02/2010, cujo teor aqui se considera reproduzido e de onde consta que as garantias são “morte ou invalidez total e permanente” e ainda “são exatas e completas as declarações prestadas, tendo tomado conhecimento de todas as informações necessárias à celebração do contrato, tendo sido entregue as respetivas condições gerais e especiais, de que tomaram integral conhecimento e tendo lhes sido prestados todos os esclarecimentos sobre as garantias e exclusões aplicáveis, com as quais concordam”, e bem assim que “tomam conhecimento de que o questionário médico faz parte integrante do contrato de seguro de vida proposto e que as declarações inexatas ou reticentes ou a omissão de factos, tornam o pedido de adesão nulo e sem qualquer efeito, exonerando a seguradora da obrigação de pagamento de qualquer indemnização”.

16. Tal apólice de grupo do ramo vida nº ......90, em que a R. figura como seguradora, foi realizada para garantir dois empréstimos imobiliários bancários celebrados entre os AA. e o “Banco Comercial Português, S.A.”, com o capital seguro inicial de 115.000,00 €, certificado nº.......59, emitido com início em 17/07/2008 e o certificado individual nº.......96, com o capital seguro inicial de 15.000,00€, com inicio a 25/02/2010, ambos com as coberturas de morte e invalidez total e permanente e com origem na mesma proposta de adesão.

17. Os contratos de seguro foram celebrados entre os mutuários e a 1ª ré por exigência do banco, 2º réu, como garantia de reembolso do capital mutuado no caso de ocorrer um sinistro, tendo o banco ficado constituído como beneficiário irrevogável desses seguros.

18. Aquando da celebração dos contratos de seguro, foi explicado aos AA. o conteúdo das propostas de adesão, nomeadamente quanto ao conceito de invalidez total e permanente, bem como da importância que o questionário clínico envolvia para a validade do seguro, de que aqueles se inteiraram e assinaram depois de esclarecidos.

19. Aquando da subscrição das propostas de adesão a A não declarou os antecedentes pessoais, referidos no facto 8, e a toma regular de medicação.

20. Nem referiu os antecedentes familiares, pai e tia (paterna) com enxaquecas com aura.

21. A autora detinha assim um quadro clínico pré-existente que, se tivesse sido declarado, teria condicionado a aceitação do risco.

22. Sendo que o questionário médico, assinado pela autora, foi preenchido de acordo com informações por esta transmitidas.

23. A 1ª R. aceitou a contratação da cobertura do risco com base na proposta de adesão subscrita pela interessada e nas informações clínicas fornecidas pela mesma, não tendo sido necessários exames médicos adicionais, de acordo com os critérios internos de conjugação de idade e capital em risco.

24. O seguro foi aceite no pressuposto de que as declarações efetuadas pela pessoa segura não padeciam de incorreções ou omissões.

25. Na proposta de adesão, a autora respondeu negativamente a todas as perguntas do questionário médico.

26. Caso a proponente tivesse dado respostas afirmativas, teria que responder a um questionário clínico mais detalhado e fazer exames médicos que teriam condicionado a aceitação do risco.

27. A aceitação da adesão foi assim condicionada pela análise e aprovação da proposta de adesão subscrita, originando que a R., fazendo fé nas declarações prestadas, tenha entendido não ser necessário solicitar elementos clínicos adicionais para a avaliação do risco.

28. A participação do sinistro por invalidez da A foi rececionada nos serviços da R em 20.04.2015, via sucursal do BCP, invocando a incapacidade reconhecida no atestado multiusos.

29. A R. respondeu por carta registada com AR datada de 26.05.2015, declinando a responsabilidade pelo pagamento dos capitais seguros das apólices, por quadro clínico pré-existente, e procedendo à anulação dos contratos de seguro associados ao crédito habitação da A.

30. A A. procedeu ao envio de outras reclamações (cfr.doc. 19 e 20 pi), mantendo a 1ª R. a decisão de declinar o sinistro.

31. Como os seguros de vida associados ao crédito habitação tinham duas pessoas seguras, foram emitidos contratos em nome do segurado BB.

32. O segundo contrato de seguro de vida, celebrado pela A e marido, associado ao crédito à habitação concedido pelo interveniente Banco Comercial Português SA, com o certificado individual com o nº ......96, tinha como capital seguro, à data da participação do sinistro, em 20/04/2015, a quantia de € 13.845,31.

33. A A., nascida a ........1973 encontra-se divorciada do A, desde ... .05.21.

34. A A. recebe da SS, a título de pensão de invalidez, desde ... .10.2018, a quantia mensal de €305,34.

35. Em Outubro de 2023, faltava pagar ao BCP, pela A. e BB, a quantia de € 93.058,79, relativamente ao 1º mútuo contraído, e a quantia de € 11.614,79, quanto ao 2º mútuo.


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2.2. Factos Não Provados

O Tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos:

a. A Aquando da contratação dos seguros, a autora não tenha sido questionada pelo estado de saúde.

b. A incapacidade de que padece a A. A. exija que esta seja assistida em permanência por terceira pessoa.

c. A A. esteja impossibilitada de exercer qualquer atividade profissional.

d. Que tenham sido entregues aos AA as condições gerais e especiais dos contratos de seguro sem lhes ter sido explicado o seu conteúdo.

e. A A não tinha, à data da contratação, a menor consciência de ser portadora de qualquer doença, porque nunca nenhum médico lhe tinha diagnosticado e comunicado qualquer doença.

f. Na altura em que contratou, nenhuma consciência tinha a autora de que poderia estar a prestar qualquer declaração de saúde inexata, ou a desprezar as advertências constantes do boletim de adesão que assinou.

g. Nunca qualquer uma das patologias/doenças que vieram a dar causa à situação atual de incapacidade se tinham manifestado no dia a dia da autora ou no seu estado de saúde.


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III. 2. DO MÉRITO DO RECURSO

Analisemos, então, as questões suscitadas na revista.

I. DA INVALIDADE OU VALIDADE DOS CONTRATOS DE SEGURO POR (RESPECTIVAMENTE) SE VERIFICAR OU NÃO VERIFICAR OMISSÃO/INEXACTIDÃO DAS DECLARAÇÕES PRESTADAS PELO SEGURADO

a autora demandou a Ré seguradora no fito de obter o reconhecimento do direito emergente dos contratos de seguro com a mesma por si celebrados, por via dos quais foi contratada a cobertura de risco de morte e invalidez total e permanente que faz recair sobre a ré a obrigação de suportar os valores em dívida nos contratos de crédito à habitação, na data de verificação do risco.

Estamos, assim, perante um contrato pelo qual o segurador, em troca do pagamento de uma soma em dinheiro (prémio) por parte do contratante (segurado), se obriga a manter indemne o segurado dos prejuízos que podem derivar de determinados sinistros (ou casos fortuitos), ou ainda a pagar (ao segurado ou a terceiro) uma soma em dinheiro conforme a duração ou os eventos da vida de uma ou várias pessoas»1. Ou, para refere Moitinho de Almeida2, é aquele pelo qual uma das partes, o segurador, compensando segundo as leis da estatística um conjunto de riscos por ele assumidos, se obriga, mediante o pagamento de uma soma determinada, a, no caso da realização de um risco, indemnizar o segurado pelos prejuízos sofridos.

"A função económico‑social do contrato de seguro é uma função de garantia completada com um elemento de troca (prémio), sempre que a finalidade global e típica do contrato se destine a compensar pecuniariamente a perda ou a desvalorização de um bem (coisa ou crédito) ou a frustração de uma expectativa (diminuição, não‑realização ou não‑aumento do património activo; aumento ou não diminuição do património passivo; afectação da capacidade de trabalho e/ou emergência de danos morais)" 3.

Se é certo que actualmente, conforme reza o artigo 32º do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16/04, (atualizado pela Lei n.º 75/2021, de 18/11), a validade do contrato de seguro não depende da observância de forma especial, porém, o segurador é obrigado a formalizar o contrato num instrumento escrito, designado por apólice de seguro, e a entregá-lo ao tomador do seguro, apólice essa datada e assinada pelo segurador.

Nesta perspectiva, pode dizer-se que estamos perante contrato formal — reduzido a escrito, no aludido instrumento que constitui a apólice de seguro (cfr. art. 426.º do Cód. Comercial) — pelo qual alguém se obriga a proporcionar a outrem, a segurança de pessoas ou bens, relativamente a determinados riscos, mediante o pagamento de uma contraprestação, chamada "prémio" 4.

E diga-se que a exigência desta forma se justifica por razões de solenidade, de reflexão, de prova, de segurança e de certeza 5. Com efeito, tem-se considerado a referida forma escrita do contrato de seguro um requisito para que o mesmo se considere existente, ou, pelo menos, válido (ad substantiam) e não apenas um requisito de eficácia prática destinado a provar (ad probationem) o contrato 6, pelo que, perante o nosso ordenamento jurídico — designadamente da conjugação dos arts. 220.º e 364.º do Código Civil — cremos dever ser este o entendimento que legalmente se impõe.

Assim, pode bem dizer-se que sem apólice não há seguro: aquela é ao mesmo tempo título constitutivo e documento probatório do contrato de seguro 7 e o contrato só fica perfeito depois que o segurador aprova (aceita) a proposta e emite a apólice 8.

Sendo um negócio jurídico bilateral, cuja perfeição ou conclusão resulta do consenso ou acordo de declarações de vontade convergentes das partes outorgantes, o contrato de seguro tem origem numa proposta, a qual é enviada à seguradora para aceitação, tendo esta entidade, de acordo com o princípio da liberdade contratual, plena liberdade para aceitar, sem ou com modificações, ou não contratar, segundo ponderação de critérios de risco e de ordem comercial 9.

Em suma, trata‑se de um contrato:

— Comercial, pelo menos quanto à seguradora como resulta do art. 425.º C. Com., regulado nos termos do art. 99.º do mesmo Código;

— Formal – nos explicitados termos (sendo que, como dito, actualmente a validade do contrato não depende da observância de forma especial, bastando o documento/instrumento designado por apólice);

— Bilateral ou sinalagmático, pois, como vimos, dele resultam obrigações para ambas as partes, verificando‑se um nexo de reciprocidade ou interdependência entre elas;

— Oneroso, visto cada parte prosseguir uma vantagem pessoal que é contrapartida daquela que confere à outra (dele resulta para ambas as partes uma atribuição patrimonial e um correspectivo sacrifício patrimonial);

— Aleatório: o segurador não sabe se terá ou não de efectuar a prestação ou, se há certeza da prestação, quando se efectuará; já não há incerteza na prestação do segurado (a prestação da seguradora fica dependente de um evento futuro e incerto);

— De execução continuada (a sua execução prolonga‑se pela vida do contrato, facto que determina, designadamente, a eficácia ex nunc da resolução);

— De adesão;

— De boa fé.

Nesta senda, dispõe o art. 1.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, anexo ao DL 72/2008, de 16 de Abril, que por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando‑se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga‑se a pagar o prémio correspondente.


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Feitas estas explanações teóricas sobre o tipo contratual em causa, regressemos aos autos.

I. a). QUANTO AO CONTRATO DE 23.05.2008 (a que se aplica o artº 429º do Código Comercial)

Convém observar – como o fez a sentença – que “de acordo com o artigo 3º do Decreto preambular do Decreto-Lei n.º 72/2008 de 16/04, “nos contratos de seguro com renovação periódica, o regime jurídico do contrato de seguro aplica-se a partir da primeira renovação posterior à data de entrada em vigor do presente decreto-lei, com excepção das regras respeitantes à formação do contrato, nomeadamente as constantes dos artigos 18.º a 26.º, 27.º, 32.º a 37.º, 78.º, 87.º, 88.º, 89.º, 151.º, 154.º, 158.º, 178.º, 179.º, 185.º e 187.º do regime jurídico do contrato de seguro.”10.

(…)

Não é por tal aplicável, ao 1º dos contratos aqui em causa, o Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16/04, designadamente quanto às normas dos artigos 78º e 87º, nos termos do artigo 3º do decreto preambular.

Em causa está, assim, conforme bem salienta o Tribunal a quo, a celebração de dois contratos de seguro, cuja regulamentação se encontra então prevista no Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS), instituído pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16.04, que entrou em vigor em 01-01-2009 e, como tal, após a celebração do primeiro contrato de seguro em discussão nos autos, que data de Maio de 2008, por se tratarem de contratos anualmente renováveis.

De acordo com o artigo 2º do Decreto Lei que aprova o RJCS, o disposto naquele regime aplica-se, quer aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, quer ao conteúdo dos contratos de seguro celebrados anteriormente que subsistam à data da sua entrada em vigor, desde que o sinistro não ocorra antes do início da sua vigência (não se aplicando, contudo, ao 1º dos contratos, designadamente, as normas dos artigos 78º a 87º).

(…)

Dado que à data da assinatura da 1º proposta de adesão não vigorava o RJCS, importa, em 1ª linha, verificar qual a legislação então aplicável.”.

Vigorava, então, para o primeiro dos contratos – o de 23.05.2008 – o disposto no artº 429º do Código Comercial (que veio a ser revogado pelo RJCS), que rezava assim:

“Toda a declaração inexacta, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tornam o seguro nulo.”.

O § único prevê que se da parte de quem fez as declarações tiver havido má fé, o segurador tem direito ao prémio.

O Tribunal Constitucional, pronunciando‑se sobre a ratio e o alcance desta norma, no seu acórdão n.º 524/99, de 29/09/99 11, diz o seguinte: «a exacta determinação do risco constitui um aspecto fundamental da disciplina do contrato de seguro, uma vez que o montante do prémio a pagar pelo segurado é fixado em relação ao risco e que uma exacta determinação do risco por parte do segurador é susceptível de se repercutir na gestão da empresa e na possibilidade de proporcionar à generalidade dos segurados a garantia e a segurança pretendidos. Daí que, em diversas ordens jurídicas, a lei estabeleça para o segurado o ónus de, no momento da formação do contrato, comunicar ao segurador todas as circunstâncias conhecidas que possam ter influência na determinação do risco e determine as consequências, quanto à validade ou eficácia do contrato, da inobservância de tal ónus pelo segurado (como sucede com o art. 429.º do Código Comercial português, o art. 1892 do Código Civil italiano e o art. 10 da Lei espanhola n.º 50/1980, de 8 de Outubro, sobre o contrato de seguro). Alguma doutrina refere‑se a uma especial relevância do princípio da boa fé no âmbito do contrato de seguro (…). O reforço da exigência de boa fé, neste domínio, deve relacionar‑se, por um lado, com a natureza duradoura da relação contratual que se estabelece entre as partes e, por outro lado, com o carácter aleatório deste tipo de contrato. Tendo em conta principalmente esta característica do contrato de seguro, há que reconhecer que a avaliação do risco coberto pelo seguro, a individualização do sinistro e, consequentemente, a definição das obrigações do segurador dependem das informações prestadas pelo segurado no momento da formação do contrato. A norma do art. 429.º do Código Comercial tem portanto como objectivo dar concretização a esta necessidade de determinar com exactidão o risco do contrato de seguro. Consequência do incumprimento do dever de declaração exacta é, segundo a norma em análise, a anulabilidade do contrato (segundo a doutrina portuguesa e segundo a doutrina italiana, perante norma idêntica)».

Neste seguimento, o Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/2001, de 21/11/2001 12, refere que: «sendo fundamental, no contrato de seguro, a confiança nas declarações emitidas pelos contraentes, para prevenir as eventuais tentativas de fraude, a lei sanciona com a invalidade os contratos em que tenha havido declarações inexactas, incompletas ou prestadas com reticências, com omissões por parte do tomador do seguro e que influam sobre a existência ou condições do contrato, sendo inócua a intenção do segurado. A avaliação do que sejam declarações inexactas ou omissões relevantes, determinantes do regime de invalidade do negócio, terá de ser feita caso a caso»13.

A aludida norma do art. 429.º do C.Com. salienta dois aspectos importantes: por um lado, não se exige a existência de dolo do declarante — embora ultimamente se defenda que no domínio do seguro obrigatório é necessário demonstrar que ao emitir as declarações reticentes ou falsas este agiu com intenção de defraudar a seguradora, induzindo‑a em erro acerca da intensidade do risco, visando, conscientemente, subtrair‑se ao pagamento do prémio devido 14, pois este apenas determina a não restituição do prémio vencido que teria lugar por força da retroactividade dos efeitos da declaração de invalidade do negócio jurídico 15; por outro lado, a exigência do conhecimento — na positiva — determina que o desconhecimento, ainda que por negligência do segurado ou do tomador, não determina o surgimento do vício 16.

Acresce que nem todas as declarações falsas ou reticentes conduzem à invalidade. Assim sucede quando o segurador: provocou a reticência; tinha conhecimento — ou esta era notória para este — da circunstância declarada com inexactidão ou o objecto da reticência e aceitou o contrato mostrando, assim, que aquela não foi determinante; renunciou ao direito de se desvincular do contrato 17; concluiu o contrato mesmo quando o declarante não responde a uma das perguntas colocadas 18.

Além disso, apenas são determinantes aquelas declarações que influam na existência e nas condições do contrato de modo que, se o segurador as conhecesse, não contrataria ou teria contratado em condições diversas.

O legislador classifica o vício em causa como “nulidade”.

No entanto, a Doutrina 19 e a Jurisprudência 20 vêm defendendo uniformemente que os interesses em jogo não justificam uma sanção tão grave, já que este regime tem fundamento nos casos em que existem motivos de interesse público que é necessário proteger, enquanto que no caso estamos em presença de infracção de requisitos dirigidos à tutela de interesses particulares. Por isso, tem sido defendido que se trata duma imperfeição terminológica e que o vício é a anulabilidade.

Tem‑se entendido, igualmente, que não têm aplicação os princípios relativos ao erro, como a essencialidade do facto omitido ou falso para a decisão de contratar, sendo encarado como uma violação do princípio da boa‑fé. Assim, não é necessário que a inexactidão tenha sido determinante para a celebração do negócio, mas que, simplesmente, pela sua natureza, pudesse ter exercido alguma influência 21.

Porém, como se trata de um contrato sinalagmático, e em homenagem ao princípio da boa fé, entende‑se que impende sobre o segurador a obrigação de informar correctamente ab initio e concorrer para o esclarecimento das declarações que considera necessárias à tomada da decisão de contratar, das cláusulas que devem regular a relação jurídica 22 e do próprio valor do prémio.

Compete à seguradora demonstrar que os factos omitidos ou falsamente declarados seriam susceptíveis de influenciar a sua decisão de contratar ou o conteúdo das cláusulas previstas no contrato 23, uma vez que se trata de um facto impeditivo ou extintivo da validade do negócio jurídico.

A anulabilidade determina que o contrato só pode ser invalidado mediante a invocação do vício pela seguradora, a qual tem, para o efeito, o prazo de um ano a contar do conhecimento da declaração inexacta ou reticente 24 — a não ser que o negócio não esteja ainda cumprido, caso em que pode ser suscitado sem qualquer limite temporal.

Pode, ainda, verificar‑se a sanação do vício por confirmação, que pode ser expressa ou tácita e compete à seguradora, sendo eficaz apenas após a cessação do vício que lhe serve de fundamento, assim como do conhecimento dele e do direito à anulação 25.

É de acentuar que o encargo que impende sobre o tomador do seguro de declarar o risco sem omissões, reticências ou inexactidões, não deixa de envolver também a seguradora, que não pode abandonar‑se totalmente às declarações do proponente com o fundamento de que a sanção legal a protegerá das declarações erróneas, devendo entender‑se que sobre ela impende, no mínimo, o dever de sindicar as respostas que o tomador dá aquando da proposta de seguro ao questionário ou o seu não preenchimento.

A reforçar a tese de que a prestação daquelas declarações determinará a anulabilidade (e não a nulidade, conforme é sugerida a letra do preceito do artigo 429.º do C.Com.), dada a natureza particular dos interesses em jogo e a inexistência de violação de qualquer norma de cariz imperativo, determinada por exigências de interesse público, está agora a solução legal perfilhada no Decreto Lei n.º 72/2008, de 16/04, que aprovou o (novo) regime jurídico do contrato de seguro, já acima aludido, em cujo artigo 25.º/1, se preceitua que, em caso de incumprimento doloso do dever referido no n.º 1 do artigo anterior (ou seja, do dever de o tomador do seguro ou o segurado, antes da celebração do contrato, declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador), o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro.


*


O RJCS, por seu turno, prevê, nos artigos 25º e 26º (como dito, apenas aplicáveis ao segundo contrato de seguro), a anulabilidade ou possibilidade de cessação do contrato de seguro, consoante exista, respectivamente, omissão/inexactidão dolosa ou meramente negligente de cumprimento do dever, que impende sobre o segurado, referente à declaração inicial de risco, prevista no art.º 24º: o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador.

Impõe-se, então, aferir se existe razão que justifique a posição assumida pela 1ª ré ao declinar qualquer responsabilidade, o que mereceu acolhimento da sentença, com apoio na circunstância de a autora ter omitido uma situação de doença pré-existente, que foi causa determinante da situação de incapacidade actual e que, caso fosse conhecida da 1ª ré, teria conduzido à decisão desta de não contratar nos termos em que contratou (teria condicionado a aceitação do risco e conduzido a que a 1ª ré não aceitasse segurar o risco de incapacidade/invalidez total e permanente).

Vejamos.

Provado está que “21, A Autora detinha um quadro clínico pré-existente que, se tivesse sido declarado, teria condicionado a aceitação do risco.”

Com efeito, a Autora/Recorrente sofre de enxaquecas com aura visual desde os 7 anos de idade, tendo antecedentes familiares (pai e tia paterna com o mesmo quadro), com toma de medicação associada.

Provado está, ainda, designadamente, que:

“23- A 1ª R. aceitou a contratação da cobertura do risco com base na proposta de adesão subscrita pela interessada e nas informações clínicas fornecidas pela mesma, não tendo sido necessários exames médicos adicionais, de acordo com os critérios internos de conjugação de idade e capital em risco.

24-O seguro foi aceite no pressuposto de que as declarações efetuadas pela pessoa segura não padeciam de incorreções ou omissões.

25-Na proposta de adesão, a autora respondeu negativamente a todas as perguntas do questionário médico.

26-Caso a proponente tivesse dado respostas afirmativas, teria que responder a um questionário clínico mais detalhado e fazer exames médicos que teriam condicionado a aceitação do risco.

27-A aceitação da adesão foi assim condicionada pela análise e aprovação da proposta de adesão subscrita, originando que a R., fazendo fé nas declarações prestadas, tenha entendido não ser necessário solicitar elementos clínicos adicionais para a avaliação do risco.”.

Porém, provado está, também, que “4. A A. respondeu ao questionário médico que lhe foi fornecido nos termos que constam de fls. 106 a 108 e 114 a 116, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido”26.

Esse questionário médico não constitui uma cláusula contratual geral do contrato de seguro para efeito de vinculação do tomador do seguro ou da seguradora aos deveres de comunicação e informação previstos no diploma das cláusulas contratuais gerais27

Ou seja, o regime das cláusulas contratuais gerais não é aplicável ao questionário pré-elaborado pela seguradora ao qual o segurado responde, de modo a fornecer àquela elementos na fase prévia à celebração do contrato de seguro em função dos quais a seguradora estabelece as condições de aceitação do contrato.

Na verdade, as respostas ao questionário médico não estão pré-elaboradas, pelo que se não pode dizer que a pessoa segura se limita aderir ao questionário médico, antes o seu conteúdo depende do que, motu proprio, nele fizer constar a pessoa segurada, tendo esta que responder ao questionário médico, numa fase prévia à celebração do contrato de seguro, para fornecer à seguradora os elementos essenciais para estabelecer as condições de aceitação do contrato.

Compete aos segurados, no questionário médico, responder com verdade às perguntas constantes do mesmo, ainda com um simples “sim” ou “não” para permitir à seguradora avaliar o risco, sendo que as respostas ao questionário médico são a base da avaliação do risco por parte da seguradora e a base da formação da vontade negocial.

Ou seja, as respostas devem reproduzir com inteira fidelidade a situação clínica que é do conhecimento do segurado e essas respostas são da exclusiva responsabilidade do segurado, ao assinar a proposta de adesão e o questionário médico.

Numa segunda fase competirá ao departamento médico da Seguradora fazer a averiguação clínica que julgar pertinente em função das respostas afirmativas ao questionário médico.

Pergunta-se, então, se no presente caso – e, como dito, reportamo-nos aqui, apenas, ao primeiro contrato celebrado (o de 23.5.2008 – pois só a este se aplica o anterior regime do artº 429º do Cód. Comercial) pode considerar-se que a proponente segurada, aquando da formalização da proposta de seguro, omitiu, voluntariamente, pontos relevantes do seu estado de saúde e que tal omissão teve influência na aceitação do risco por parte da companhia de seguros – ónus probatório que recaia sobre a Ré (artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil). Ou seja, importa saber se houve, por banda da segurada, prestação de declarações inexactas e omissão de elementos essenciais para apreciação do risco que a seguradora assumiu.

A sentença e o acórdão consideraram que sim.

Diz o acórdão recorrido (diferentemente do que é sustentado na declaração de voto de vencido):

“Pode, assim, concluir-se ter existido intenção da Autora de prestar declarações inexactas ou omitir informações relevantes atentos os antecedentes de que padecia em termos de saúde.

Porém, mesmo que tal tenha ocorrido por mera culpa leve ou negligência, as omissões são censuráveis e afetaram a decisão da 1ª ré, determinando, consequentemente, a invalidade do contrato.

A omissão culposa de situação clínica que era conhecida da autora e se mostra relevante para a aferição do risco, desde que tenha determinado a celebração ou o conteúdo do contrato, gera o direito potestativo da 1ª R. à anulação, exercido pela mesma por ocasião da resposta ao pedido de activação do risco.

Ou seja, ao resultar provado que a seguradora aceitou a assunção do risco e celebrou o contrato com base no questionário preenchido sob indicação da Apelante, limitando-se ao “não”, em que esta omitiu uma patologia prévia e respectivo tratamento, que naturalmente conhecia, bem como à luz da prova de que o desconhecimento dos factos omitidos determinou a celebração do contrato de seguro na parte referente à cobertura que aqui se discute (invalidez total e permanente), assistia à 1ª ré o direito de anular o contrato e de negar a assunção de cobertura do risco.

Com efeito, os seguros dos autos foram aceites no pressuposto de que as declarações efectuadas pela proponente/segurada não padeciam de incorrecções ou omissões que, no futuro, e caso fosse essa a situação, poderiam originar a resolução do contrato ou a cessação das garantias conferidas, inclusive, numa eventual participação de sinistro.

De resto, a patologia vinda de referir, caso tivesse sido declarada ou permitido a sua averiguação após resposta positiva, teria originado a não celebração dos contratos de seguro dos autos por parte da Ré.

Ou seja, a Ré/Apelada não aceitaria celebrar estes contratos de seguro com a Autora/Apelante ou sempre excluiria qualquer tipo de consequência futura relacionada com as patologias em questão (sempre com e exclusão da cobertura de ITP).”.

Não foi este, como dito, o entendimento vertido na declaração de voto de vencido.

Entendeu-se ali:

«No contrato de seguro celebrado em 23/05/2008 releva (i) o questionário (pto 4 da matéria de facto e documentos reproduzidos), (ii) a única resposta admitida ser SIM ou NÃO, (iii) a doença de que a autora sofria à data (enxaqueca com aura)».

Quanto à declaração de risco sujeita ao regime do artigo 429º do Código Comercial, chamou-se à colação um ac. do STJ de 2019, em que estava em causa um questionário com iguais perguntas (padronizadas), ali se tendo considerado (cita-se) que se estava perante um «questionário médico fechado (…) com formulação das perguntas de forma pouco clara, objectiva e de difícil compreensão, contendo várias situações agregadas, o que dificulta uma resposta simples: positiva ou negativa.

Disso é exemplo o ponto 1 do questionário médico, onde são colocadas três questões numa só, em que apenas se admite uma de duas respostas (sim ou não), suscitando-se dúvidas quanto ao seu carácter cumulativo ou alternativo, podendo induzir em erro o proponente, pois faz depender do conselho de terceiro a ida ao médico, o internamento hospitalar e a submissão a tratamento ou intervenção cirúrgica e que admite várias interpretações.

O questionário médico é fechado, não contendo perguntas para além dos pontos 1 a 6, não cuidando minimamente de saber se o segurado sofre de alguma doença, circunstância relevante para a aceitação da proposta contratual por parte da seguradora.

Esta pergunta tão simples (“sofre de alguma doença?”) colocaria o segurado na obrigação de responder afirmativamente e, desse modo, informar a seguradora das suas verdadeiras patologias, o que determinaria, eventualmente, a não aceitação da seguradora da proposta de adesão do autor ou a aceitação com outras condições.

Perante um questionário fechado e com tão poucas perguntas (…) muito dificilmente se poderá concluir que o autor omitiu as referidas doenças ou prestado declarações inexactas (…). Tendo a seguradora optado por apresentar um questionário “fechado” em que apenas se admitia a resposta “sim”; ou “não”; às questões formuladas, e sendo estas em escasso número (seis), a que acrescia o facto de uma delas ser pouco clara, prestando-se a interpretações que poderiam induzir o tomador em erro, não poderia a seguradora anular o contrato de seguro com fundamento em declarações inexactas ou falsas por parte deste, pois que a matéria dada como provada se revela insuficiente para tal».

Nessa senda, considerou o aludido voto de vencido que este contrato foi validamente celebrado, estando plenamente em vigor.


*


Concorda-se com a posição ínsita nesta declaração de voto de vencido.

Efectivamente – e quanto ao primeiro contrato celebrado, o de 23.05.2008, a que, como referido, se aplica o disposto no artº 429º do CCom (revogado pelo RJCS), e não o RJCS, por força do seu decreto preambular – , era perguntado no questionário:

“1)

Já o aconselharam a consultar um médico, a ser hospitalizado, a submeter-se a algum tratamento ou intervenção cirúrgica?

2)

Está de baixa por doença ou acidente?

3)

Tem ou teve alguma doença que o tenha obrigado a interromper a sua atividade laboral por mais de 15 dias seguidos nos últimos 5 anos?

4)

Tem alguma alteração física ou funcional, teve algum acidente grave, foi submetido a alguma intervenção cirúrgica ou recebeu alguma transfusão de sangue?

5)

Já fez ou foi aconselhado a fazer um teste de SIDA?

6)

Já lhe foi recusada a celebração de um seguro de vida, de doença ou de acidentes pessoais, ou o mesmo foi celebrado em condições especiais?”.

As respostas ali solicitadas eram, somente, de sim, ou não, sendo que “25. Na proposta de adesão, a autora respondeu negativamente a todas as perguntas do questionário médico”.

Esta questão da validade dos contratos de seguro, com cobertura de risco de incapacidade total e permanente para o exercício de profissão remunerada e da situação de incapacidade total e permanente da Recorrente, tem sido alvo de tratamento em arestos deste Supremo Tribunal de Justiça.

E incidindo sobre uma situação cujo questionário médico era exactamente igual ao dos presentes autos (em que também se aplicava o artº 429º do CCom – o contrato de seguro era de 2007), pronunciou-se esta Supremo Tribunal no Ac. de 17.10.2019, proc. nº 3546/18.5T8CSC.L1.S128 de forma que se nos afigura lapidar e com que concordamos inteiramente.

Escreveu-se neste aresto:

“O referido questionário médico, é fechado (…) com formulação das perguntas de forma pouco clara, objectiva e de difícil compreensão, contendo várias situações agregadas, o que dificulta uma resposta simples: positiva ou negativa.

Disso é exemplo o ponto 1 do questionário médico, onde são colocadas três questões numa só, em que apenas se admite uma de duas respostas (sim ou não), suscitando-se dúvidas quanto ao seu carácter cumulativo ou alternativo, podendo induzir em erro o proponente, pois faz depender do conselho de terceiro a ida ao médico, o internamento hospitalar e a submissão a tratamento ou intervenção cirúrgica e que admite várias interpretações.

O questionário médico é fechado, não contendo perguntas para além dos pontos 1 a 6, não cuidando minimamente de saber se o segurado sofre de alguma doença, circunstância relevante para a aceitação da proposta contratual por parte da seguradora.

Esta pergunta tão simples (“sofre de alguma doença?”) colocaria o segurado na obrigação de responder afirmativamente e, desse modo, informar a seguradora das suas verdadeiras patologias, o que determinaria, eventualmente, a não aceitação da seguradora da proposta de adesão do autor ou a aceitação com outras condições.

Perante um questionário fechado e com tão poucas perguntas (…) muito dificilmente se poderá concluir que o autor omitiu as referidas doenças ou prestado declarações inexactas (…)Tendo a seguradora optado por apresentar um questionário “fechado” em que apenas se admitia a resposta “sim”; ou “não”; às questões formuladas, e sendo estas em escasso número (seis), a que acrescia o facto de uma delas ser pouco clara, prestando-se a interpretações que poderiam induzir o tomador em erro, não poderia a seguradora anular o contrato de seguro com fundamento em declarações inexactas ou falsas por parte deste, pois que a matéria dada como provada se revela insuficiente para tal”29.

Acerca do questionário e circunstâncias que rodearam a sua elaboração e preenchimento, apenas se provou que: “4. A A. respondeu ao questionário médico que lhe foi fornecido nos termos que constam de fls. 106 a 108 e 114 a 116, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido.”; “19. Aquando da subscrição das propostas de adesão a A não declarou os antecedentes pessoais, referidos no facto 8, e a toma regular de medicação.”; “20. Nem referiu os antecedentes familiares, pai e tia (paterna) com enxaquecas com aura.”; “25. Na proposta de adesão, a autora respondeu negativamente a todas as perguntas do questionário médico.”. E que “26. Caso a proponente tivesse dado respostas afirmativas, teria que responder a um questionário clínico mais detalhado e fazer exames médicos que teriam condicionado a aceitação do risco.”.

Ou seja, não se provou que a Ré seguradora tivesse, por qualquer forma, explicado as questões a que o questionário se referia, tendo a segurada se limitado a responder às mesmas com “sim” ou “não”, sem que se tivesse provado que lhe tenha sido dada a possibilidade de mencionar outras circunstâncias não solicitadas no questionário que foi inserido nas propostas de adesão, predisposta pela seguradora e assinada pelo segurado.

Como se não provou que a ré seguradora tivesse solicitado à segurada outras informações relativas ao seu estado de saúde – o que (como acentua o aludido Ac do STJ de 17.19.2019) – “é revelador da ausência de um comportamento medianamente cuidadoso na avaliação dos riscos que assumiu”30.

E incidia sobre a seguradora provar que teve estes cuidados e prestou estes esclarecimentos.

Percute-se: em cada um dos pontos do questionário são colocadas várias questões numa só, admitindo apenas resposta sim ou não, suscitando dúvidas quanto ao carácter cumulativo ou alternativo dessas questões, susceptível de induzir em erro o proponente, podendo ter várias interpretações.

Assim, o questionário clínico é fechado, limitado àquelas perguntas, nem sequer tendo o cuidado de questionar o segurado se sofre de alguma doença!

Ora, os antecedentes da recorrente relativos à enxaqueca não se inseriam em qualquer uma das perguntas colocadas nos questionários clínicos que lhe foram apresentados para resposta.

Diz a sentença que “A pergunta em causa é: “Já a aconselharam a consultar um médico, a ser hospitalizado, a submeter-se a algum tratamento ou intervenção cirúrgica?”.

É verdade que essa era a (primeira) pergunta.

Porém, no que respeita às enxaquecas de que a Autora sofria, não está provado que pelo menos à data do preenchimento dos questionários clínicos, a Recorrente alguma vez tivesse sido aconselhada a consultar médico, a ser hospitalizada, a submeter-se a algum tratamento ou intervenção cirúrgica.

Assim sendo, tem razão a recorrente quando questiona: “De que modo é que a Recorrente poderia ter respondido para além de “não”?

Como referido supra, a aludida (a primeira) pergunta do questionário – esta que, na economia dos autos, é a única cuja resposta tem ou teria interesse para a questão que ora se aprecia – é pouco clara, objectiva e de difícil compreensão, contendo várias situações agregadas, o que dificulta muito uma resposta simples: positiva ou negativa. E cabia, naturalmente, à ré seguradora alegar e provar ter feito perguntas à Autora com esclarecimentos sobre as questões que a pergunta poderia suscitar. Entender de outra forma é, a nosso ver, um desacerto, desprovido de fundamentação bastante, pois do mesmo questionário não consta, de facto, qualquer pergunta sobre se o aderente padece de alguma doença.

Com efeito, do que do mesmo questionário médico discerne um declaratário normal, parece relevar a importância apenas de patologias especificadas, como a SIDA, de doenças ocorridas nos últimos 5 anos apenas se na origem de baixa médica por tempo superior a 15 dias, alteração física ou funcional (conceito que é de muito difícil interpretação para um leigo como a Autora), a ocorrência de acidente grave e a sujeição a alguma hospitalização, intervenção cirúrgica ou uma transfusão de sangue.

Desta forma, afigura-se-nos que merece inteiro acolhimento o entendimento colhido na declaração de voto de vencido que, com arrimo em jurisprudência que invoca, considerou válido o seguro aqui sob apreciação (o primeiro), dada a não verificação de prestação pela segurada de declarações inexactas e omissão de elementos essenciais para apreciação do risco que a seguradora assumiu.

Para além do mais, em boa verdade, a primeira pergunta do questionário levanta dúvidas quanto ao seu carácter cumulativo ou alternativo, pois condensa três perguntas numa só31.

Ademais, o questionário sob análise faz depender a resposta afirmativa de um aconselhamento prévio que nem se sabe se terá provido de um técnico (um médico, um enfermeiro) ou se pode revestir-se de uma mera indicação a título opinativo provinda de um familiar ou de um amigo, em suma, de um leigo32.

Assim, portanto, a pergunta formulada no ponto um do questionário não é nada directa nem clara33.

E reitera-se que era à ré seguradora que competia alegar e provar que fez perguntas à Autora, sua segurada, sobre as questões do questionário médico no momento da adesão ao contrato. Não incumbindo esse ónus à Autora, sob pena de inversão, ou (quiçá) subversão, manifesta e em toda a extensão do regime do ónus da prova com assento no artº 342º do CC.

Assim sendo, concorda-se com o voto de vencido lavrado no acórdão recorrido ao não considerar que a correcta avaliação do risco num contrato de seguro de vida pressupõe a declaração pelo contratante de qualquer doença ou condição física que pudesse influir em tal avaliação. Isto porque a lei aplicável ao seguro aqui em questão não fazia impender sobre o segurado um juízo de prognose sobre o que poderá influir ou não influir na avaliação do risco empreendida por uma seguradora que elabora unilateralmente e de forma livre o questionário clínico que quer ver respondido pelos aderentes e que, ainda para mais, se reserva o direito de exigir mais exames médicos e exames auxiliares de diagnóstico.

Acresce que o elemento decisivo para a celebração do contrato é o questionário apresentado ao potencial segurado, na medida em que se presume que não são aí feitas perguntas inúteis ou vagas e, através deste, é o próprio segurador que indica ao tomador quais as circunstâncias que julga terem influência no contrato a celebrar. É através deste questionário que a seguradora faz saber ao candidato as “circunstâncias concretas em que se baseia para assumir o risco – são aquelas que determinam a celebração do contrato e as suas condições”34.

Assim, portanto, não cremos que as declarações da autora perante o questionário, face ao que nele era perguntado, devam ser consideradas reticentes, não se considerando que a autora tenha omitido qualquer doença de que padecesse ou prestado declarações inexactas, donde, no que tange a este aspecto, se pode considerar válido o seguro.

É que, como já dito, o questionário, ao contrário do que consta do artº 24º nº2 do actual RJCS, é fechado, com formulação de perguntas de forma pouco clara, objectiva e de difícil compreensão, contendo várias situações agregadas, o que dificulta uma resposta simples, de sim ou não. E paradigmático disso mesmo é, precisamente, o ponto 1 do questionário, como ficou explicado.

Como se escreveu no ac. do STJ de 31.01.202335, “neste contexto, a responsabilidade da declaração do risco inicial deve ser compartilhada entre o segurador e o tomador, já que a este não se exige que conheça os elementos indispensáveis à avaliação do risco.

Porque é o Segurador quem define as condições relevantes para a aceitação e outorga do contrato de seguro, o princípio da boa fé e o princípio da transparência impõem rigor, linearidade, clareza e simplicidade de linguagem, nas questões formuladas no questionário, a fim de que o tomador/segurado possa compreender o sentido das perguntas, e ser responsabilizado pelas respostas inexactas ou omissões. Ou seja, o credor da informação deve diligenciar para que o segurado possa responder com verdade, de forma esclarecida.”.

Assim, como igualmente se escreveu neste aresto do STJ – parafraseando o também já citado Ac. do STJ de 17.10.2019 – , “devendo a aferição da relevância, para efeitos do art. 429 do C Comercial, ser feita na perspectiva do proponente, segundo o “critério da razoabilidade”, tal implica o apuramento do proponente concreto, das suas circunstâncias pessoais, a sua condição sócio-cultural, o grau de literacia”36.

O que tudo se desconhece, pois não resulta da factualidade apurada nos autos.

Assim se remata como no referido Ac. do STJ de 17.10.2019: “perante o questionário - fechado, repete-se - apresentado pela seguradora, não poderá considerar-se que” a autora “terá prestado declarações inexactas, muito menos falsas”, pelo que “Tendo a seguradora optado por apresentar um questionário “fechado” em que apenas se admitia a resposta "sim" ou "não" às questões formuladas, e sendo estas em escasso número (seis), a que acrescia o facto de uma delas ser pouco clara, prestando-se a interpretações que poderiam induzir o tomador em erro, não poderia a seguradora anular o contrato de seguro com fundamento em declarações inexactas ou falsas por parte deste, pois que a matéria dada como provada se revela insuficiente para tal”37.

QUANTO AO CONTRATO DE 02.02.2010 – a que se aplica o DL 72/2008, de 16.04 (nos termos do seu decreto preambular)

No que tange a este contrato, escreveu-se no voto de vencido: “não resulta da matéria provada factos demonstrativos de ter havido por parte da autora omissão/inexatidão da declaração dolosa (artigo 24º/3 do RJCS) e também nada resulta da factualidade provada susceptível de integrar a negligência e a causalidade prevista no artigo 26º/4, pelo que, cabendo nesta parte o ónus da prova à seguradora (artigo 342º/2 do CC) também aqui declararia válido o contrato”.

Aplicando-se, a este contrato o disposto no RJCS, em particular o estatuído nos seus arts. 24º a 26º, não podemos concordar com o voto de vencido, pois, como dito, com a entrada em vigor deste regime jurídico, no que toca à situação de declaração inicial de risco, passou-se do sistema de questionário fechado – que vigorava antes do RJCS – para o sistema do dever espontâneo (correntemente denominado de questionário aberto).

Prevê-se nesse RJCS, nos artigos 25º e 26º, a anulabilidade ou possibilidade de cessação do contrato de seguro, consoante exista, respectivamente, omissão/inexactidão dolosa ou meramente negligente de cumprimento do dever, que impende sobre o segurado, referente à declaração inicial de risco, prevista no art.º 24º: o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador.

Assim, naquele primeiro modelo, adoptado na nova Lei dos Contratos de Seguro (ao contrário do segundo modelo – o dito modelo fechado –, em que a declaração inicial do risco assenta (somente) no dever de resposta, às perguntas formuladas pelo segurador no questionário), o tomador do seguro ou segurado passou a estarobrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador” (nº1 do artº 24º), não se reduzindo a sua obrigação de informação aos termos do questionário fornecido pelo Segurador.

E se é certo que há uma grande divergência doutrinária quanto à melhor solução (sistema de declaração espontânea vs sistema de questionário fechado) e que as legislações mais modernas têm acolhido o sistema do questionário fechado38, sendo aqui (quanto ao contrato de 02.02.2010) aplicável o novo regime da LCS, incidia sobre a segurada/Autora (independentemente da amplitude, mesmo alguma vaguidade, das perguntas do questionário – em especial da primeira) a obrigação de, antes da celebração do contrato, declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador.

Ora, se é, também aqui, certo que a responsabilidade da declaração do risco inicial deve ser compartilhada entre o segurador e o tomador, já que a este não se exige que conheça os elementos indispensáveis à avaliação do risco, há circunstâncias/factos que ficaram provadas(os) que eram – ou não podiam deixar de ser – bem conhecidas da autora e que qualquer pessoa medianamente atenta e esclarecida consideraria significativas para a apreciação do risco pelo segurador.

Com efeito, provado está que a Autora tinha um quadro clínico pré-existente que, se tivesse sido declarado, teria condicionado a aceitação do risco – funcionando, como dito, relativamente a este segundo contrato o referido sistema de questionário aberto, com a consequente obrigação da Autora a, antes da celebração do contrato, declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador. E cremos ser mais que razoável aceitar que a Autora sabia que o seu estado clínico descrito nos factos provados tinha relevância para a apreciação do risco pelo segurador.

Com efeito, a Recorrente sofre de enxaquecas com aura visual desde os 7 anos de idade, tendo antecedentes familiares (pai e tia paterna com o mesmo quadro), com toma de medicação associada. É uma realidade assaz significativa e que, mesmo ponderando o teor do questionário que lhe foi apresentado, não podia deixar de estar na mente da autora, dada a gravidade da referida situação por que ao longo de muitos e muitos anos (desde os 7 anos de idade) tem passado e continua a passar. Donde não poder deixar de ser uma circunstância que estivesse obrigada a declarar à seguradora antes da celebração do contrato de seguro, ou seja, (pelo menos) quando lhe foi entregue o questionário médico para preencher. Mais não fosse, perante o teor das perguntas do questionário, deveria suscitar, a quem lho apresentou, o esclarecimento acerca da relevância ou não dessa sua prolongada situação clínica, então a dando a conhecer no questionário.

Assim, perante o teor do actual artº 24º nº1 do RGCS (aplicável ao segundo contrato), cremos estar-se perante omissão de circunstância da autora bem sabida e que razoavelmente devia ter por significativa para a apreciação do risco pelo segurador.

Provado está que:

18 – Aquando da celebração dos contratos de seguro, foi explicado aos AA o conteúdo das propostas de adesão, nomeadamente …da importância que o questionário clínico envolvia para a validade do seguro, de que aqueles se inteiraram e assinaram depois de esclarecidos.

19 - Aquando da subscrição das propostas de adesão a A não declarou os antecedentes pessoais, referidos no facto 8, e a toma regular de medicação.

20 – Nem referiu os antecedentes familiares, pai e tia (paterna) com enxaquecas com aura.

21– A autora detinha assim um quadro clínico pré-existente que, se tivesse sido declarado, teria condicionado a aceitação do risco.

22– Sendo que o questionário médico, assinado pela autora, foi preenchido de acordo com informações por esta transmitidas.

23- A 1ª R. aceitou a contratação da cobertura do risco com base na proposta de adesão subscrita pela interessada e nas informações clínicas fornecidas pela mesma, não tendo sido necessários exames médicos adicionais, de acordo com os critérios internos de conjugação de idade e capital em risco.

24-O seguro foi aceite no pressuposto de que as declarações efetuadas pela pessoa segura não padeciam de incorreções ou omissões.

25-Na proposta de adesão, a autora respondeu negativamente a todas as perguntas do questionário médico.

26-Caso a proponente tivesse dado respostas afirmativas, teria que responder a um questionário clínico mais detalhado e fazer exames médicos que teriam condicionado a aceitação do risco.

27-A aceitação da adesão foi assim condicionada pela análise e aprovação da proposta de adesão subscrita, originando que a R., fazendo fé nas declarações prestadas, tenha entendido não ser necessário solicitar elementos clínicos adicionais para a avaliação do risco.

Assim, portanto – e, percute-se, aplicando-se ao contrato sob análise o regime de questionário aberto (sistema do dever espontâneo) – , não pode deixar de se considerar inválido o segundo contrato de seguro celebrado, por virtude das referidas omissões, no questionário, das aludidas circunstâncias da autora, dela bem sabidas e que, como se provou, eram significativas para a apreciação do risco pelo segurador.

É certo que a enxaqueca comum afecta muitas pessoas. Já, porém, um quadro como o da Apelante, com antecedentes familiares, com aura visual desde os 7 anos de idade, vómitos associados e toma de medicação frequente, impunha (por força do estatuído no artº 24º, nº1 do RJCS) que a Recorrente lhe fizesse referência, de forma a, na concreta situação, em caso de averiguação complementar, permitir à 1ª ré concluir qual a doença existente e ponderar o risco.

Escreveu o acórdão recorrido:

“Com efeito, a enxaqueca com aura é uma forma específica de enxaqueca que se caracteriza por vir acompanhada de sintomas neurológicos transitórios, conhecidos como “aura”, que precedem a cefaleia e em geral têm instalação gradual.

A “aura” consiste em sintomas neurológicos, mais frequentemente do tipo visuais, descritos como pontos pretos na visão (escotomas), flashes de luz, brilhos e luzes que se movem no campo de visão e que podem durar entre 5 e 60 minutos.

O principal sintoma da enxaqueca com aura é justamente esse conjunto de sintomas neurológicos que precedem a dor e podem ser descritos como flashes de luz, brilhos e luzes que se movem no campo de visão do indivíduo.

A aura pode durar entre 5 e 60 minutos e, quando termina, é logo seguida pelo surgimento de forte dor de cabeça (enxaqueca).

Os sintomas de aura mais comuns que os pacientes podem ter são: visão embaçada; pontos cegos de visão; formigamento nas mãos ou no rosto e dificuldade na fala.

Outros sintomas neurológicos também podem ocorrer.

A enxaqueca com aura não é um AVC (Acidente Vascular Cerebral). No entanto, o AVC pode, sim, provocar sintomas como visão turva e alterações visuais que lembram a enxaqueca com aura.

Importante destacar que, se o indivíduo tiver sintomas de aura pela primeira vez, a recomendação é buscar auxílio médico imediatamente para descartar justamente o AVC, considerado uma patologia mais grave e que requer atenção imediata.

De resto, a intensidade e a frequência dos episódios podem afectar significativamente a qualidade de vida. Além disso, a preocupação com possíveis complicações, como o risco aumentado de AVC em alguns casos, reforça a importância de buscar ajuda médica para o problema.

O médico especialista no diagnóstico e tratamento de enxaquecas, incluindo a do tipo com aura, é o neurologista.

O diagnóstico da enxaqueca com aura é realizado após avaliação médica, análise da história clínica, familiar e alguns exames físicos e de neuroimagem.

Nesse sentido, o médico pode solicitar exames de tomografia computadorizada e ressonância magnética para descartar outras condições de saúde que podem causar sintomas semelhantes aos da enxaqueca com aura.

Em geral, os exames de imagem servem justamente para descartar outros diagnósticos. Portanto, costuma-se dizer que a enxaqueca é uma condição de diagnóstico clínico.

O tratamento para a enxaqueca com aura varia de acordo com a gravidade dos sintomas e a frequência das crises. O principal objetivo do tratamento é aliviar a dor, reduzir a frequência das crises e melhorar a qualidade de vida.

De forma geral, existem duas abordagens: o tratamento agudo para alívio da dor de forma mais rápida; e o tratamento preventivo para modulação da dor, reduzindo assim a frequência e a gravidade dos episódios.

Em muitos casos, uma abordagem mais ampla, que inclui mudança de estilo de vida - com realização de atividade física, cuidados com alimentação, redução do consumo de álcool - pode ser necessária para eliminar os gatilhos do problema.

Por fim, pode ser preciso o apoio psicológico (terapia cognitivo-comportamental) quando se entende que o fator emocional actua como desencadeante importante dos episódios de enxaqueca.

Ora, como em todos os contratos, as partes, quer nos preliminares quer na conclusão deles, devem actuar com boa-fé, ou seja, com lealdade, transparência e verdade, de modo a que o consenso que o contrato postula assente em factos verdadeiros que são determinantes para a sua celebração.

Particularmente no contrato de seguro do ramo vida que, pelo seu objecto, envolve ponderação da segurada, dado o intenso carácter aleatório de que se reveste, deve a minuta ou proposta de seguro apresentada a quem pretende celebrar o contrato, ser respondida com verdade, pois só de posse de informações exactas e conhecidas acerca do estado de saúde do pretendente ao seguro pode a seguradora decidir se aceita pura e simplesmente, ou se aceita com condições agravadas, face ao mais intenso grau de risco, ou, se pura e simplesmente recusa a celebração.”.

Em suma: aplicando-se ao segundo contrato o RJCS, nos explanados termos, incorreu a Autora no vício da anulabilidade do contrato, ínsita no artigo 25º, nº1 desse RJCS (por remissão para o nº 1 do artº 24º - incumprimento doloso do dever referido no n.º 1 do artigo anterior), ou, pelo menos, no artº 26º nº 4 do mesmo diploma (omissões ou inexactidões negligentes).

Daí a invalidade deste contrato, o que afasta a obrigação da ré seguradora em ressarcir a autora com sustento no mesmo contrato.

Assim, procede parcialmente a primeira questão (apenas, portanto, relativamente ao primeiro contrato celebrado (o de 23.05.2008) – sendo inválido o segundo, nos sobreditos termos).

DA CLÁUSULA CONSTANTE DOS FACTOS PROVADOS 5 E 14, RELATIVA À “invalidez total e permanente”, NA PARTE EM QUE CONDICIONA A DEFINIÇÃO DE SITUAÇÃO DE INVALIDEZ ABSOLUTA E DEFINITIVA À DESVALORIZAÇÃO SUPERIOR A 66,6%.

A jurisprudência tem abordado a questão da validade ou não de tal cláusula, na parte em que define a situação de invalidez absoluta e definitiva condicionada à desvalorização superior a 66,6%.

Das condições gerais constantes do contrato de seguro a que a A. aderiu consta como cobertura principal, alínea b) “invalidez total e permanente” – estando definido que “no caso de invalidez total e permanente do segurado, a seguradora, nos temos previstos nas Condições da apólice, garante o pagamento do capital seguro ao beneficiário”, considerando-se, ali, existir “invalidez total e permanente quando se verifiquem cumulativamente os seguintes factos:

- esteja o segurado definitivamente incapacitado de exercer qualquer profissão ou atividade lucrativa em consequência de doença ou acidente, com fundamento em sintomas objetivos clinicamente comprováveis;

-não seja possível prever qualquer melhoria no seu estado de saúde de acordo com os conhecimentos médicos atuais;

- seja portador de um grau de desvalorização superior a 66,6% segundo a Tabela Nacional de Incapacidades”.

Temos, assim, que, na perspectiva da Autora, o facto gerador de responsabilidade da Ré é o de a Autora se encontrar em situação de invalidez absoluta e definitiva.

Assim, a Ré só responderá caso estejam preenchidos, na íntegra (e cumulativamente), os requisitos previstos na aludida cláusula.

Consideraram as instâncias, que, ainda que o seguro se considerasse válido, por inexistência de omissão de informações relevantes ou prestação de declarações inexactas por banda da autora (o que, vimos, se verificou quanto ao primeiro contrato – que não, portanto, quanto ao segundo contrato), sempre não existia responsabilidade da ré seguradora, por não verificação daquele clausulado das condições gerais constantes do contrato de seguro a que a A. aderiu, isto é, por não se verificar, na pessoa da Autora, uma situação de invalidez total e permanente.

Vejamos.

Provou-se que:

9 – A A. foi submetida a exame médico na ARS ..., em 03/01/2018, tendo-lhe sido atribuído o grau de incapacidade permanente global de 66%, reportada a 2017, tendo sido atribuído o coeficiente 0,50 pelo Capítulo III, 2.12.2.1; pelo Capitulo V, 3.5, a), 0,10; pelo Capítulo X – Grau II da TNI, 0,15; e pelo capítulo XIV, 3, c) 0,10.

10– A A. apresenta uma incapacidade permanente de 18,9190%, tendo sido desvalorizada em 0,01000 pelo Capítulo X, Grau I); 0,10900 pelo Capítulo III.2.12.3.2, a); e 0,18919 pelo Capítulo V, 3.5, a), todos da TNI.

Entenderam as instâncias – comum voto de vencido da Srª Desembargadora – que a factualidade provada não é de molde a considerar que a Autora esteja em situação de invalidez total e permanente.

A propósito, escreveu-se na sentença:

“… não existe dúvida, à luz dos factos provados, que a autora não se encontra em situação de invalidez total e permanente, definida nas condições especiais do contrato como sendo verificada quando, a pessoa segura ”em consequência de doença ou acidente, estiver total e definitivamente incapaz de exercer uma atividade remunerada, com fundamento em sintomas objetivos, clinicamente comprováveis, não sendo possível prever qualquer melhoria do seu estado de saúde de acordo com os conhecimentos médicos atuais, nomeadamente quando desta invalidez resultar paralisia de metade do corpo, perda do uso dos membros superiores ou inferiores em consequência da paralisia, cegueira completa ou incurável, alienação mental e toda e qualquer lesão por desastre ou agressões em que haja perda irremediável das faculdades e capacidade de trabalho, devendo em qualquer caso o grau de desvalorização, feito com base na Tabela Nacional de Incapacidades ser superior a 66,6% que, para efeitos desta cobertura, é considerado como sendo igual a 100%.”

Note-se que não se está a colocar em causa o atestado multiusos junto pela A., como meio de prova. O Tribunal deu como provado o respetivo teor, nos seus exatos termos, mas com o alcance com que este foi emitido e que não é aquele que lhe atribui a A..

A incapacidade de 66% atribuída não corresponde a uma incapacidade definitiva, que de acordo com as condições especiais do contrato exige uma desvalorização igual ou superior a 66,6% e, como tal, pouco ajuda para a afirmação do facto controvertido e que permitiria a afirmação em data relevante para estes autos da situação de invalidez definitiva.

Contudo, conforme exame pericial realizado, apurou-se que a A apresenta atualmente uma incapacidade de 18,9190%, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades para Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais (Anexo I DL 352/07, de 23.10) e não de 66%.

Assim, à luz do elenco de factos provados, ainda que se concluísse pela validade do contrato de seguro, o que não ficou demonstrado, com cobertura de risco de incapacidade total e permanente para o exercício de profissão remunerada, não se verifica, na pessoa da A, tal situação de incapacidade atual, total e permanente.

A A. não está total e definitivamente incapaz de exercer qualquer profissão compatível com os seus conhecimentos e capacidades, pelo que não podia, caso se mantivesse válido o seguro, acionar esta cobertura.”.

Neste entendimento converge o acórdão recorrido.

A nosso ver, sem razão.

A cláusula em questão é uma cláusula contratual geral sujeita ao regime do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro.

Efectivamente, estando em causa um contrato relativo a um seguro de vida grupo, o qual se rege pelas Condições Particulares Gerais e Especiais, por norma e embora se indiquem como cláusulas particulares elas são comuns a esse tipo de contratos, o que faz delas cláusulas gerais. Num contrato de seguro de vida grupo as cláusulas contratuais são as mesmas para todos os aderentes.

Como tal, pela sua própria definição, as cláusulas inseridas nas condições gerais e nas condições especiais de um contrato de seguro, sendo de aplicação generalizada a determinados contratos de seguro do mesmo tipo, assumem a natureza de cláusulas contratuais gerais.39.

Assim, as condições especiais de um contrato de seguro, pré-elaboradas e destinadas a ser adotadas por interessados indeterminados, não deixam de ser cláusulas contratuais gerais, e, como tal, estão submetidas aos ditames do DL nº 446/85 – sendo cláusulas contratuais gerais, de acordo com a orientação aduzida no art. 1º do DL nº 446/85, aquelas que são elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respetivamente, a subscrever ou a aceitar, e aquelas que são inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar.

Como se diz no Ac. do STJ de 10-05-201840, “o contrato de seguro de grupo apresenta-se com uma particular estruturação: num primeiro momento (fase estática), o contrato é celebrado entre a seguradora e o tomador do seguro, que estabelecem entre si as condições de inclusão no grupo e as condições de seguro para os aderentes, em que assumem especial relevo as coberturas dos riscos; num segundo momento (fase dinâmica), o tomador de seguro promove a adesão ao contrato junto dos membros do grupo.

Com a adesão, constitui-se uma relação trilateral entre a seguradora, o tomador do seguro e o aderente. O contrato deixa de regular exclusivamente os interesses do tomador e da seguradora e passa também a regular os interesses do segurado de acordo com as cláusulas apostas no modelo proposto.”

No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/02/202341, em que estava em causa uma situação em que a seguradora apresentou “projeto de contrato de seguro de grupo (convertido em contrato pela aceitação/adesão) no qual se cumulam cláusulas, prevendo uma a necessidade de verificação de invalidez profissional e outra prevendo a necessidade de verificação de um grau de incapacidade geral igual ou superior a 60%, para a segurada poder acionar o seguro e exigir a indemnização”, entendeu-se, relativamente a tal cláusula, que “tem de se considerar esta como nula por contrária à boa-fé e por defraudar as expectativas dos aderentes.”.

Escreveu-se ali: «A cláusula que exige a incapacidade geral de 60% para se poder acionar o seguro de grupo, quando se verifica uma incapacidade total e definitiva para o exercício da profissão é desproporcionada, favorecendo de forma excessiva, a posição contratual do predisponente e prejudicando inequitativa e danosamente a do aderente.

“Sendo uma cláusula abusiva, terá de ser declarada a sua nulidade, nos termos gerais do direito, subsistindo obviamente a obrigação de cumprimento por parte da seguradora.

(…).

Este o sentido da jurisprudência, nomeadamente no Ac. do STJ de 27-09-2016, no Proc. nº 240/11.7TBVRM.G1.S1, ao referir “É abusiva (por atentatória do vetor da boa-fé), proibida e nula a cláusula especial constante das condições de contrato de seguro de grupo destinado ao pagamento do saldo de um empréstimo por crédito à habitação em caso de invalidez absoluta e definitiva do aderente, que exige acrescidamente para a caracterização desse estado de invalidez que o aderente fique na obrigação de recorrer à assistência permanente de uma terceira pessoa para efetuar os atos ordinários da vida corrente.”

Clausular que a par da incapacidade para o exercício da profissão era necessário e cumulativamente que a segurada padecesse de uma incapacidade geral superior a 60%, traduzir-se-ia que em casos específicos, como o que está em analise, em que a profissão exige uso apurado das mãos pudesse ocorrer com frequência a incapacidade para o exercício da profissão sem que a incapacidade geral atingisse os 60%. Como se diz no acórdão que citamos, “Tal cláusula introduz um significativo desequilíbrio contratual entre as partes (na prática esvazia largamente a utilidade do seguro), na medida em que o fim precípuo do dito seguro é obrigar o segurador a pagar ao banco mutuante no caso do aderente ficar impossibilitado de o fazer por si, e esta finalidade satisfaz-se com a própria impossibilidade e sem necessidade do aderente ficar também dependente da referida assistência permanente.”».

Concorda-se com este aresto: deve considerar-se tal cláusula contratual relativa à “invalidez total e permanente”, abusiva (por atentatória da boa-fé42) ao cumulativamente exigir os referidos pressupostos ou requisitos na caracterização do estado de invalidez43.

É que, exigir tal grau de incapacidade (de 66,6%) quando com grau inferior a pessoa se encontrar já em situação de invalidez absoluta e definitiva – logo, incapaz de a exercer actividade remunerada – seria frustrar o objectivo visado que é de a seguradora vir a proceder ao pagamento quando a pessoa segura esteja absolutamente incapaz, pelo que se deve declarar a nulidade da cláusula na parte em que define a situação de invalidez absoluta e definitiva condicionada à desvalorização superior a 66,6% (ut artigos 15º e 16º do DL 446/85, de 25 de Outubro).

Assim também o ac. do STJ de Justiça de 02/11/202344: “A densificação do conceito relevante de invalidez absoluta e definitiva, no atendimento da formulação clausulada num contrato de seguro de vida (grupo) carece de linearidade, porquanto importa a ponderação de um conjunto de fatores diversificados, conforme a situação a analisar, e cuja articulação não pode deixar de levar a concluir que o segurado impossibilitado de trabalhar, ficará de igualmente impossibilitado de solver as obrigações contraídas junto da entidade bancária aquando da celebração do mútuo, cuja a superação constitui a razão última para a celebração do contrato de seguro, nos termos configurados, e que se entende dever-se perspetivar em moldes, não demasiado alargados, nem muito rígidos, mas de forma mais maleável e flexível, na necessária consideração casuística.”.

Tal como no caso dos autos, discutia-se ali se o segurado se encontrava em situação de invalidez absoluta e definitiva.

Ora, como bem observa a declaração de voto de vencida, lavrada no acórdão recorrido, os factos provados nos pontos 8, 9 e 34 preenchem este conceito de invalidez absoluta, o qual não é afastado pelo facto provado do ponto 11, em que se declarou provado que «as sequelas são compatíveis com o exercício da atividade habitual com esforços suplementares» dado que este facto assentou unicamente nas conclusões do relatório do IML o qual tem por objecto apenas a avaliação do dano, que não é totalmente coincidente com o conceito de invalidez que se discute no âmbito do seguro de vida, tanto mais que não se demonstra quais são esses «esforços suplementares» no contexto da situação concreta da autora que sofreu um AVC.

Com efeito, como faz notar o ac. do STJ de 10/02/202245,“Perante as graves repercussões de ordem física, estética e psicológica provocadas pela doença, o acionamento do seguro do Ramo Vida contratado não pode ser afastado pelo simples facto de se provar, a partir de um relatório do IML, que a segurada está apta a exercer as funções da sua atividade profissional habitual, com exceção das que determinem contacto com o público, na medida em que não está demonstrada como e com que resultados poderia ser reajustada a sua vida profissional.”46.

Tanto na situação dos presentes autos como na do acórdão do STJ acabado de citar, estamos perante segurados que sofreram graves sequelas provocadas por doença, as quais foram desconsideradas pelo relatório do Instituto de Medicina Legal, que considerou os segurados aptos para o exercício da actividade habitual com esforços suplementares ou reajustando essa actividade.

Assim, apesar de no facto provado nº 11 se ter considerado que “As sequelas da A. são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares”, a resposta ao mesmo ponto de facto teve por base apenas as conclusões do relatório do Instituto de Medicina Legal, cujo objecto, como já referido, é a avaliação do dano, o qual não é totalmente coincidente com o conceito de invalidez em causa no seguro de vida, não se podendo considerar que tal ponha em causa o conteúdo dos factos provados nº 847, 9 e 34.

Além de que os peritos do Instituto de Medicina Legal nem sequer foram capazes de concretizar quais são os “esforços suplementares” que a Recorrente teria de fazer. E se é certo que “A A. foi submetida a exame médico na ARS ..., em 03/01/2018, tendo-lhe sido atribuído o grau de incapacidade permanente global de 66%, reportada a 2017, tendo sido atribuído o coeficiente 0,50 pelo Capítulo III, 2.12.2.1; pelo Capitulo V, 3.5, a), 0,10; pelo Capítulo X Grau II da TNI, 0,15; e pelo capítulo XIV, 3, c) 0,10.”, também se provou que A A. recebe da SS, a título de pensão de invalidez, desde 09.10.2018, a quantia mensal de €305,34.”.

E sendo inválida, não se pode considerar que a Autora/Recorrente pode exercer a sua actividade profissional habitual, devendo considerar-se que se encontra em situação de invalidez total e permanente – caso contrário, não lhe teria sido atribuído, em sede de exame médico na ARS ..., um grau de incapacidade permanente global de 66%, ou a aludida pensão de invalidez!


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Concluindo:

i) o primeiro contrato de seguro, celebrado em 23.05.2008 (com o capital seguro inicial de 115.000,00, certificado individual nº ......59), dado não lhe ser aplicável o RJCS (antes o anterior artº 429º do Cód Com), é válido; ii) o segundo contrato de seguro, celebrado em 02.02.2010 (com o capital seguro inicial de 15.000,00, certificado individual nº ......96), dado ser-lhe aplicável o RJCS (com especial incidência, os seus arts. 24º a 26º), não é válido; iii) assiste, como tal, à Autora o direito ao peticionado, mas apenas no que tange ao primeiro contrato de seguro que com a Ré celebrara.

Assim procede parcialmente a revista.


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IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em dar parcial provimento ao recurso e, consequentemente, conceder parcialmente a revista, alterando-se o Acórdão recorrido, em função do que:

I. Se condena a Ré nos termos peticionados pela Autora (mas apenas) quanto ao contrato de seguro de vida celebrado em 23.05.2008 (com o capital seguro inicial de 115.000,00, certificado individual nº ......59);

II. Se confirma no mais a decisão recorrida.

Custas por Autora e Ré na proporção de vencidos.

Lisboa, 31.10.2024

Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator)

Orlando dos Santos Nascimento (Juiz Conselheiro 1º adjunto)

Isabel Salgado (Juíza Conselheira 2º Adjunto)

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1. Francisco Guerra da Mota, O Contrato de Seguro Terrestre, vol. I, p. 271; Clara Lopes, Seguro de Responsabilidade Civil Automóvel, Lisboa 1987, p. 15.

2. O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, Lisboa, 1971.

3. Carlos Ferreira de Almeida, Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, Almedina, 1992, pp. 565‑566.↩︎

4. Para maiores desenvolvimentos sobre o contrato de seguro, vd., designadamente, José Vasques, Contrato de Seguro, cit., pp. 87 a 140; Carlos Bettencourt de Faria, O conceito e a natureza jurídica do contrato de seguro, CJ, 1978, II, pp. 785 a 799; Paulo Duarte, Contrato de Seguro À Luz da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais, Revista Portuguesa de Direito do Consumo, Dezembro de 1997, n.º 12, pp. 93 a 109.

5. Cfr., A. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, T. I, Almedina, 1999, p. 319; José Oliveira Ascensão, Teoria Geral do Direito Civil, 1.º, III, Lisboa, 1992, p. 186.

6. Cfr. Almeida Costa, RLJ, ano 129.º, p. 21; José Calvão da Silva, Estudos de Direito Comercial, Coimbra, 1996, p. 104; José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 1999, p. 106; Pinheiro Torres, Ensaio sobre o Contrato de Seguro, p. 46; J.C. Moitinho de Almeida, ob. cit., p. 38; STJ 16/12/1980 (Aquilino Ribeiro), BMJ 302‑273; RL 26/05/1987, CJ, 3, 92; RC 25/01/1978, CJ, 3, 260.↩︎

7. Cfr. Azevedo Mota, Princípios de Direito Marítimo, 4.º vol., p. 37.

8. Pinheiro Torres, ob. cit., p. 35; Moitinho de Almeida, ob. cit., p. 38.

9. Ac. STJ 10/04/1996, Loureiro Pipa, CJSTJ, 1, 285.

10. Destaque nosso.

11. Publicado no Diário da República, II série, de 17/03/2000↩︎

12. Publicado no Diário da República, I‑A Série, de 27/12/2001.

13. Destaque nosso.

14. Cfr. Ac. RC de 5.02.98 in CJ Ano XXIII, T. 1, p. 64; Ac. RC de 25.02.2000 in CJ Ano XXV, T. 3, p. 67.

15. Cfr. Ac. RP de 14.06.88 in CJ Ano XIII, T. 3, p. 238.

16. Cfr. Ac. RC de 5.02.98 in CJ Ano XXIII, T. 1, p. 64.

17. Sanação superveniente do vício.

18. Cfr. Moitinho de Almeida in O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, Livraria Sá da Costa Editora, p. 80.

19. Cfr. Moitinho de Almeida, in op. cit., p. 79; José Vasques, in Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 1999, p. 380.

20. Cfr. v.g., Ac. RP de 14.06.88 in CJ Ano XIII, T. 3, p. 238, Ac. RL de 28.02.91 in CJ Ano XV, T. 1, p. 172, Ac. STJ de 19.10.93 in CJ Ano I, T. 3, p. 72; Ac. RC de 6.03.97 in CJ Ano XXII, T. 2, p. 62; Ac. RC de 25.02.2000 in CJ Ano XXV, T. 3, p. 67; Ac. RP de 12.02.2202 in http://www.dgsi.pt/ jtrp00033678; Ac. RP de 18.11.2004 in http://www.dgsi.pt/ jtrp00037388; Ac. RP de 25.03.2004 in http://www.dgsi.pt/ jtrp00036106.

21. Cfr. Ac. RP de 14.06.88 in CJ Ano XIII, T. 3, p. 238.

22. Cfr. Ac. RL de 512.82 in CJ Ano VII, T. 1, p. 171.

23. Cfr. Ac. RC de 6.03.97 in CJ Ano XXII, T. 2 p. 62; Ac. STJ de 3.03.98 in CJ Ano VI, T. 1, p. 103; Ac. RC de 5.02.98 in CJ Ano XXIII, T. 1, p. 64.

24. Cfr. art. 287.º do Código Civil.

25. Cfr. art. 288.º do Código Civil.

26. O destaque é nosso.

27. Cfr. neste sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de 27.08.2008 e de 06.07.2011 in www.dgsi.pt. e o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 2/07/2013 in www.dgs.pt.

28. Relator: Ilídio Sacarrão Martins.

29. Destaque nosso.

30. Destaque nosso.

31. Cfr. ac. da RP de 28.3.2017, proc. 772/13.2T2TR.P1.

32. Assim, o cit. ac. de 28.3.2017.

33. Cfr. Ac. RE de 26.3.2015, proc. 1645/13.4TBSTB.E1.

34. Cfr. Ac STJ de 17.10.2006, in proc. nº 06A2852, disponível em www dgsi.

35. Proc. nº 941/18.9T8OER.L1.S1

36. Destaque nosso.

37. Destaque nosso.

38. Sobre a problemática, cf. LUÍS POÇAS, O Dever de Declaração Inicial do Risco no Contrato de Seguro, pág.360 e segs..

39. Cfr, neste sentido, inter alios, os acs. do STJ de 10.07.2008 e de 14.02.2023 (Proc. nº 1117/20.0T8VIS.C1.S1).

40. Poc. nº 261/15.0T8VIS.C1.S2.

41. Proc. nº 1117/20.0T8VIS.C1.S1, disponível in www.juris.stj.pt.

42. Como se refere no ac. deste STJ de 17-05-2012, no Proc. 2841/03.8TCSNT.L1.S1, “1. O conceito normativo de boa fé é utilizado pelo legislador em dois sentidos distintos: no sentido de boa fé objetiva, enquanto norma de conduta , ou seja, no plano dos princípios normativos, como base orientadora e fundamento de efetivas soluções reguladoras dos conflitos de interesses, alcançadas através da densificação, concretização e preenchimento pelos Tribunais desta cláusula geral ; e no sentido de boa fé subjetiva ou psicológica, isto é, como consciência ou convicção justificada de se adotar um comportamento conforme ao direito e respetivas exigências éticas”.

  E acrescenta: “Na verdade, como é notado pela doutrina e jurisprudência, a boa-fé objetiva tem uma relevância acrescida na disciplina do contrato de seguro, bem expressa na norma constante do art. 429 do C. Com.:

  Da maior importância é a classificação do contrato de seguro como de boa fé: porque se baseia nas declarações prestadas pelo segurado, referindo-se alguns Autores a uma uberrimae bona fidei, máxima boa fé, considerando-a elemento peculiar do contrato de seguro; a caracterização do seguro como contrato de boa fé não pretende reforçar a ideia de que quem negoceia com outrem para conclusão e um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, mas sublinhar a necessidade absoluta de lealdade do segurado para manter a equidade na relação contratual, uma vez que a seguradora é normalmente obrigada a confiar nas suas declarações , sem poder verificá-las aquando da subscrição (José Vasques, Contrato de Seguro, 1999, pag. 110)”.

43. Não se olvide, designadamente, que – como é referido no relatório pericial (facto provado 8) – , a Autora “trabalha numa fábrica de têxteis” e que a incapacidade com que ficou (cfr., v.g., facto 7) a impossibilitava, naturalmente, de exercer a profissão que vinha exercendo, exigente como é, maxime no que toca ao uso das mãos e…da visão.

44. Proc. nº 5560/17.4T8VIS.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt.

45. Proc. nº 1681/18.4T8VFR.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt.

46. Destaque nosso.

47. Que dispõe: “8 – Conforme relatório pericial, cujo teor se dá por reproduzido, em nota da alta do Hospital de..., datada de 29/12/2014, com relevo, pode ler-se: “(…) 41 anos, residente em ..., com o marido e filha. Trabalha numa fábrica de têxteis (…) No serviço de neurologia a 22 de dezembro/14 por provável status migranoso (…) ... No sábado dia 20/12 estava num jantar com as colegas da fábrica e teve instalação gradual (em minutos) de hipovisão no hemicampo visual direito tipo “escuridão” associada a “faíscas” no mesmo hemicampo que habitualmente tem como aura de enxaqueca. Passados alguns minutos, notou também instalação hipostesia da hemiface direita. A hipostesia resolveu ao final de 20 minutos, mas manteve sempre as alterações visuais e teve início de cefaleia hemicraniana contralateral, muito intensa, tipo “moedeira”, que achou ser mais intensa e diferente da enxaqueca habitual, associava-se a náuseas e foto-fobia. Durante a noite houve melhoria da cefaleia, mas no dia seguinte a cefaleia regressou, tendo mantido sempre os défices visuais, pelo que recorreu H. da área. Foi transferida para o H. ... para realizar TC CE. Fez analgesia endovenosa, que aliviava parcialmente a dor, mas mantinha a hipovisão associada a “faíscas” no hemicampo direito. No dia 22/12 de manhã teve recrudescimento da hipostesia da face e depois hipostesia de todo o hemicorpo, associada a sensação de menor força desse hemicorpo, pelo que foi enviada ao CH... para observação por Neurologia. A doente tem enxaqueca com aura visual desde os 7 anos de idade, com espectro de fortificação/faíscas de um dos hemicampos, com duração de 20 min, seguida decefaleia de intensidade moderada a intensa, pulsátil hemicraniana contralateral, com náuseas e vómitos, fono e fotofobia. A enxaqueca tem frequência variável (pode estar 3 meses sem crises e 1 mês em que tem todas as semanas). Desde há um mês tem tido episódios de alteração visual tipo “escuridão” de hemicampo esquerdo, com duração de minutos (<20 min), sem cefaleia subsequente. Tem também tido episódios de enxaqueca com aura mais frequentes (1x/semana), tem andado mais ansiosa nos últimos meses, especialmente no último mês (problemas relacionais com a mãe desde setembro). Fazia migraleve para a enxaqueca com boa resposta. Desde que foi descontinuado, foi medicada com migretil, mas com má resposta, sentiu-se pior (tomou apenas 1 vez há 1 mês). Já chegou a fazer profiláticos, mas não se recorda de nomes e acha que não tiveram benefício. Na observação por Neurologia na sala de Emergência: CCO, sem aparentes alterações das funções nervosas superiores. Hipovisão do hemicampo E, mas consegue identificar movimentos na perimetria, refere sensação de “escuridão” e “faíscas”. Sem oftalmoparesias, sem diplopia ou nistagmo. Hipostesia álgica na hemiface dta. Sem alterações nos restantes NC. FM no hemicorpo dto diminuída, com queda sem pronação e oscilação bizarra do MSD na prova de braços estendidos. Hipostesia álgica do hemicorpo dto. CP indiferentes. Sem dismetria dos membros esq e MID. Faz mov bizarros do MSD na prova dedo-nariz. Pela hipótese de status migranoso, fez 6 mg dexametasona, com resposta parcial: melhoria da cefaleia e alt sensitivas, mantendo alt visuais. Durante o SU com novo agravamento da cefaleia, pelo que fez bólus de 500 mg VPA, com melhoria progressiva da cefaleia, mas uma vez que mantinha ainda défice visual e cefaleia residual, decidido internamento no Serviço de Neurologia para estudo e tratamento. Antecedentes pessoais: Enxaqueca com aura visual desde os 7 anos; Hipotiroidismo Dislipidemia; Obesidade; Episódio de dor ciática há 1 mês; Cx: cesariana e fibroma uterino; Reacção de hipersensibilidade tipo 4 (joalharia de fantasia); Nega HTA ou DM; Nega hábitos tabágicos ou etílicos; MH: eutirox 50, supralip, anticoncepcional oral”.