Sumário
I - O reconhecimento da propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens de águas pertencentes ao domínio público hídrico veio a ser consagrado legalmente através do DL n.º 468/71, de 05-11, onde foi estabelecida uma presunção ilidível de dominialidade (art. 8.º).
II - A Lei n.º 54/2005, de 15-11, manteve tal presunção de propriedade do Estado, ampliando as possibilidades da sua ilisão, consignando o reconhecimento da propriedade privada sobre terrenos inseridos nesse domínio, sem recurso a probatio diabolica da propriedade anterior a 1864 ou 1868 (art. 15.º).
III - Não resulta da letra, nem do espírito da lei, a exclusão do âmbito de incidência da al. c) do n.º 5 do art. 15.º da Lei 54/2005, a possibilidade de prova da titularidade privada de prédios sitos na margem de rios que, não sendo águas do mar, estão sujeitos às autoridades marítimas.
IV - O acto expropriativo não tem como consequência necessária ou automática o ingresso no domínio público de todo e qualquer bem. O domínio público do Estado sobre bens imóveis só se verifica com a concreta afectação do imóvel ao fim que determinou a expropriação, ou seja, com a colocação do mesmo a desempenhar a função que justifica a sua sujeição ao regime jurídico-administrativo da dominialidade pública. Nessa medida, o que não seja afecto ao fim público visado pela causa determinante da expropriação, ficará no domínio privado da expropriante, ainda que essa entidade seja o próprio Estado.
V - Situando-se os prédios objecto de expropriação para além da margem do rio Douro e da própria estrada da circunvalação do Porto (Estrada Nacional n.º 12), sendo antes confinantes com a mencionada via, cuja construção foi a causa determinante da declaração de utilidade pública, porque não foram afectos ou destinados à circulação rodoviária (não integrados funcionalmente a esse fim público), é de concluir que não integraram o domínio público rodoviário.
Decisão Texto Integral
Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,
I - Relatório
1. Infraestruturas de Portugal, SA, intentou acção declarativa com processo comum contra o Estado Português pedindo que lhe seja reconhecido o direito de propriedade sobre prédios localizados na margem do rio Douro, dentro da área de jurisdição da autoridade marítima. Pretende com a acção afastar a presunção de dominialidade pública à luz do disposto no artigo 15.º, da Lei n.º 54/2005, de 15-11, sobre os seguintes prédios:
- Prédio urbano descrito: em livro sob o n.º …., do L n.º …., Secção ….., correspondendo-lhe o n.º informatizado ….., na Conservatória do Registo Predial …. e inscrito na matriz com o artigo …49 da união de freguesias …., ……, …., ……, …… e ……;
- Prédio urbano descrito em livro sob nº ….. (Livro n.º …., Secção ….), correspondendo-lhe o número informatizado ….., da Conservatória do Registo Predial …. e inscrito na matriz com o artigo …51 da união de freguesias …., …., …., ….., ….. e …….;
- Prédio urbano com descrição informatizada sob o n.º …… na Conservatória do Registo Predial ….., inscrito na matriz com o artigo …..50 da união de freguesias ….., …, …., …., ….. e …...
Invocou para o efeito e fundamentalmente:
- encontrarem-se os imóveis inseridos na faixa de 50 metros a contar do limite do leito das águas do rio Douro, localizando-se numa zona cumulativamente influenciada pelas marés e em área de jurisdição da autoridade marítima;
- terem os imóveis sido objecto de aforamento com laudémio de quarentena e, nessa medida, não integravam o domínio público à data da entrada em vigor do Código de Seabra;
- situarem-se os imóveis no coração urbano do Porto, datando a sua submissão ao regime foreiro desde os primórdios do século XVIII (a ocupação junto ao rio Douro na cidade do Porto, tendo sido feita particularmente na zona onde os imóveis se situam, por meio de fraccionamento do prazo foreiro, objecto de autorização real em 18-08-1818, constituindo o aforamento e o negócio enfiteutico, no seu conjunt,o o modo económico, social e institucional de concretizar e promover a ocupação urbana das zonas citadinas daquela região);
- mostrar-se desnecessária, no caso e em face da situação dos imóveis (porque integrados na zona urbana consolidada), remontar a 1864 a prova da propriedade dos mesmos, de acordo com o artigo 15.º, da Lei 15/2005 (na redacção conferida pela Lei n.º 34/2014, de 19-06);
- não terem os referidos imóveis, não obstante objecto de expropriação (por utilidade pública viária) pela Junta Autónoma das Estradas (feita ao abrigo do Lei de 26 de Julho de 1912), sido integrados no uso viário e, como tal, introduzidos no domínio público, tendo ficado no domínio privado a fim de serem alienados a particulares;
- ter o Estado (via JAE) transmitido ope legis tais prédios para as entidades suas sucessoras na gestão das estradas nacionais, ficando na propriedade destas;
- assumir natureza diversa da expropriação por utilidade pública viária (ocorrida no caso) a expropriação prevista na Lei n.º 54/2005 (artigo 16.º, n.º 2) e no artigo 9.º, n.º 2, do DL 468/71, de 05-11, (denominada expropriação dominiandi causa);
- inexistir, anteriormente a 1972 (entrada em vigor do DL 468/71), uma definição legal de margem hídrica com a largura de 50 m com efeito dominializante de terrenos, mesmo que pertencentes ao Estado dentro da referida área.
2. Na contestação o Réu pugnou pela improcedência da acção defendendo que os prédios em causa se integram no domínio público do Estado Português.
Referiu, nesse sentido, não ter ocorrido a transmissão da propriedade dos imóveis para a Autora tendo, para além disso, sido adquiridos pelo Estado por expropriação (no âmbito do projecto de obras da Estrada Nacional n.º … entre a …. e …..). Alegou a tal respeito que, não só a Autora não fez prova de que os prédios eram por título legítimo objecto de propriedade particular ou comum antes de 31-12 de 1864 (ou que estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa), como através da expropriação os prédios estiveram na propriedade pública do Estado fazendo claudicar o pressuposto do prédio se manter de forma ininterrupta na propriedade privada ou na posse privada ou comum desde data anterior a 31-12-1864.
Defendeu ainda a inaplicabilidade da alínea c) do n.º 5 do artigo 15.º da Lei 54/2005 (regime simplificado de prova) à situação dos autos por o preceito se reportar aos casos em que estejam em causa águas do mar (não a águas fluviais ou lacustres em que assume aplicação os n.º2 a 4 do artigo 15.º da referida Lei).
3. Foi dispensada a realização da audiência prévia e proferido despacho saneador, tendo sido fixado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova.
4. Realizado julgamento foi proferida sentença que julgou a acção procedente, declarando a Autora proprietária dos seguintes prédios:
a) Prédio urbano descrito: em livro sob o n.º …., do L n.º …, Secção …, correspondendo-lhe o n.º informatizado …., na Conservatória do Registo Predial …. e inscrito na matriz com o artigo …...49 da união de freguesias …., ……, ….., …., ……. e ……;
b) Prédio urbano descrito em livro sob nº … (Livro n.º ….., Secção ….), correspondendo-lhe o número informatizado …., da Conservatória do Registo Predial …. e inscrito na matriz com o artigo …...51 da união de freguesias ….., …., …., ….., ….. e …..;
c) Prédio urbano com descrição informatizada sob o n.º …. na Conservatória do Registo Predial ….., inscrito na matriz com o artigo ……50 da união de freguesias .., …., ….., …., … e ….
5. O Réu veio interpor recurso per saltum para este tribunal, deduzindo as seguintes conclusões (transcrição):
“I) Introdução
1 - A sentença recorrida reconheceu a propriedade da autora sobre os três prédios integrados na margem direita do Rio Douro, o qual é navegável, sendo que o respectivo troço, de águas interiores sujeitas à influência das marés, encontra-se sob jurisdição das autoridades marítima e portuária, respectivamente da Capitania do Porto do Douro e a APDL – Administração dos Portos de Douro, Leixões e Viana do Castelo, SA..
2 - A parcela da margem do Rio Douro onde os prédios se encontram implantados está compreendida no domínio público marítimo e integra o domínio público do Estado – art.ºs 3, al. e) e 4º da Lei nº 54/2005.
3 - No troço do Rio Douro correspondente à margem em que os prédios se inserem, a mesma tem a largura de 50 metros (art.º 11.º, n.º 2, da Lei n.º 54/2005, na actual versão).
4 - Para o local em apreço não se apurou estar o domínio público marítimo delimitado segundo o formalismo legal exigido (Decreto-Lei n.º 353/2007, de 26/10 e Portaria 931/2010, de 20/9) nem se conhece qualquer diligência nesse sentido.
5 - Nesta medida, o reconhecimento de propriedade privada da parcela da margem do Rio Douro ocupada pelos 3 prédios está sujeito ao regime estabelecido no artigo 15.º n.ºs 2, 3 ou 4 da Lei n.º 54/2005.
II) A integração dos prédios no domínio público e a inexistência de qualquer acto de desafectação, ainda que tácito
6 - De acordo com os critérios de classificação dos bens dominiais ensinados por Diogo Freitas do Amaral e José Pedro Fernandes, Comentário à Lei dos Terrenos do Domínio Hídrico, Coimbra Editora, 1978, a parcela da margem do Rio Douro onde se situam os três prédios em apreço integram em simultâneo vários desses domínios: a) o domínio público natural (face ao processo da sua criação); b) o domínio público hídrico, aqui domínio público marítimo (face à sua consistência material); c) que pertence ao Estado (quanto a titularidade do direito - Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro); d) domínio público artificial com função rodoviária (quanto ao processo de criação), e) o domínio público da circulação (este quanto à função) dado que esta parcela da margem do Rio Douro está implantada uma via pública.
7- Nada impede que possam coexistir em simultâneo dois (ou mais) domínios diferenciados: o domínio publico marítimo com a sua natureza territorial ou natural, cujo fundamento reside na contiguidade com as águas do mar e com as demais águas sujeitas à influência das marés, e o domínio público viário, de natureza funcional baseada na sua conexão com o serviço público de transporte.
8- Quanto a essa sobreposição de classificações a Comissão do Domínio Público Marítimo (CDPM) no seu parecer n.º 6216, de 2009/10/22, publicado no Boletim n.º123/2009, salientando o relevo dado ao domínio público hídrico, enquanto domínio público natural, face aos usos, obras ou funções que sobre eles e implantem ou se exerçam referiu que :“A construção sobre a margem, por exemplo (...) de uma estrada (...) que, enquanto tal, sejam qualificadas como domínio público, não colide com a dominialidade marítima do solo antes se lhe sobrepõe, sem irremediáveis embaraços de ordem jurídica. Obvio é que as potencialidades fruitivas na vertente hídrica, bem como o exercício da pertinente jurisdição pública podem, em resultado dessa sobreposição, ficar na prática temporariamente limitadas ou até absorvidas pelo regime específico das infra-estruturas implantadas no terreno. Nem por isso, todavia, a dominialidade hídrica se encontra afastada, podendo dizer-se reduzida à necessidade de articulação com o regime dos bens nele implantados, de "contratualização" da ocupação e do exercício de competências, subsistindo ainda que em estado de latência, situação de que recuperará, quando e na medida em que as obras artificiais sejam retiradas, desqualificadas ou por qualquer via modificadas quanto à sua composição física e estatuto jurídico. (...)”.
9- Também não é concebível a existência de desafectação tácita admitida pela douta sentença, quanto aos bens dominiais integram o domínio público natural, sendo que tal também não se coaduna com as faixas do território correspondentes a margens do domínio público hídrico, porque subordinadas a um regime especial.
10 - Assim, a referida «desafetação tácita» nos termos a que alude a sentença, não se perspetiva como hipótese possível quando os bens em questão sejam parte do domínio público hídrico, como sucede no caso em apreço, na medida em que o artigo 19.º da Lei n.º 54/2005 prevê que os bens do domínio público hídrico podem, efetivamente, dele ser desafetados, mas, somente, mediante diploma legal, estabelecendo o Decreto-Lei n.º100/2008 de 16 de junho, as condições e trâmites deste procedimento – que na se verificam no caso em apreço.
11- Acresce que devido à sua natureza originária - domínio público natural - as margens das águas em geral - e, nomeadamente, das águas públicas - não carecem de qualquer utilização física e específica para justificar a sua manutenção no domínio público.
12- Não existindo desafectação tácita, deveriam aqueles prédios ter sido reconhecidos como domínio público do Estado.
III) Efeitos expropriação dos referidos prédios por utilidade pública
13- Os prédios acima referidos foram objecto de expropriação por utilidade pública pela então Junta Autónoma das Estradas (JAE), enquanto organismo da Administração Central do próprio Estado Português, criado em 1927, pelo Decreto-Lei 13 969, de 20 de Julho de 1927, do Ministério do Comércio e Turismo, no âmbito do projecto de obras da estrada nacional n.º …, entre a ….. e …..
14- Na verdade, desde a expropriação até à criação da EP-Estradas de Portugal S.A., tal como acontece com parte do património público do Estado, não foi sujeita a registo a inscrição da titularidade do Estado Português sobre os referidos prédios.
15- A razão de ser resulta do reconhecimento de quais tais prédios integram o domínio público do Estado, reforçado pelo acto de expropriação, que por si só constitui prova bastante da titularidade do Estado.
16- Integrando-se tais prédios no domínio público do Estado, os mesmos passam a ser coisa fora do comércio jurídico, pelo que existe uma impossibilidade legal de transmissão da propriedade de tais prédios, pelo que qualquer contrato ou convenção que tenha por objecto a transmissão dos referidos prédios é nula.
17- Nesta medida, não se transmitiu a propriedade dos referidos prédios para a EP-Estradas de Portugal, E.P., nem para a E.P.-Estradas de Portugal, S.A., nem para a Infraestuturas de Portugal, S.A, por impossibilidade legal.
18- Assim, com a transmissão do património da JAE, enquanto integrante da Administração Central do Estado, para as empresas públicas que a sucederam, a última das quais a aqui autora, não se transmitiu a propriedade dos referidos prédios, por impossibilidade legal, mas tão somente a sua administração e afectação às referidas empresas.
IV- Não verificação dos pressupostos a que alude o art.º 15.º, n.º 2, 3 e 4 da Lei n.º 54/2005
19- O art.º 3.º al. e) e 4.º da Lei n.º 54/2005, estabelece uma presunção de dominialidade a favor do Estado, que poderá ser afastada nos termos do art.º 15.º, do mesmo diploma.
20- O regime estabelecido no artigo 15.º n.ºs 2, 3 ou 4 da Lei n.º 54/2005, dispõe o seguinte:
“2 - Quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis deve provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868.
3 - Na falta de documentos suscetíveis de comprovar a propriedade nos termos do número anterior, deve ser provado que, antes das datas ali referidas, os terrenos estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa.
4 - Quando se mostre que os documentos anteriores a 1864 ou a 1868, conforme os casos, se tornaram ilegíveis ou foram destruídos, por incêndio ou facto de efeito equivalente ocorrido na conservatória ou registo competente, presumir-se-ão particulares, sem prejuízo dos direitos de terceiros, os terrenos em relação aos quais se prove que, antes de 1 de dezembro de 1892, eram objeto de propriedade ou posse privadas.”
21- Para aplicação do n.º 2 do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, o reconhecimento do direito de propriedade que a autora reclama pressupõe, desde logo, a demonstração de os prédios que reivindica serem objecto de propriedade privada resultante de título legítimo de aquisição à luz das regras consagradas nas Ordenações Filipinas e seus aditamentos.
22- Através da expropriação os prédios estiveram na propriedade pública do Estado, pelo que não se verifica o pressuposto do prédio se manter de forma ininterrupta na propriedade ou posse privada ou comum desde data anterior a 31/12/1864 nos casos dos art.ºs 15.º, n.º 2 e 3; ou antes de 1951, no caso da al. 5.º al. c), da Lei n.º 54/2005.
23- Na expropriação por utilidade pública, já não estamos no âmbito de uma presunção ilidível, mas sim perante o reconhecimento da propriedade pública do Estado, à qual já não é possível aplicar o disposto no art.º 15.º da Lei n.º 54/2005.
24- Ora, tal propriedade pública apenas poderia ser transmitida se existisse uma acto de desafectação da mesma – que como se viu não sucedeu.
25- Concluímos, assim, que a expropriação por utilidade pública impede a aquisição por terceiros dos referidos prédios, porquanto através do acto de expropriação por utilidade pública passam a integrar de forma automática a propriedade pública do Estado.
26- O acto expropriativa ocorrido é impeditivo do reconhecimento da propriedade privada sobre os referidos prédios.
27-Nesta medida, não estão reunidos os pressupostos a que alude art.º 15.º, n.º 2 , 3 ou 4, da Lei n.º 54/2005, não poderá ser reconhecida à autora propriedade dos prédios supra referidos.
V- Não verificação dos pressupostos a que alude o art.º 15.º, n.º 5, da Lei n.º 54/2005
28- De salientar que aquilo que o legislador pretende com o disposto no art.º 15.º, n.º 5, da Lei n.º 54/2005 é dispensar o regime probatório instituído pelos nºs 2 a 4 do artigo 15.º da lei 54/2005 e, portanto, não incidindo sobre a matéria a necessidade de ser intentada acção judicial para reconhecimento da propriedade privada.
29- A alínea b), do n.º 5 do artigo 15.º, apenas se aplica quando se pretenda obter o reconhecimento de propriedade privada sobre parcelas do leito ou da margem de cursos de águas navegáveis ou flutuáveis não sujeitos à jurisdição dos órgãos locais da Direção-Geral da Autoridade Marítima ou das autoridades portuárias - o que não sucede nos autos dado que o Rio Douro, encontra-se sob jurisdição das autoridades marítima e portuária, respetivamente da Capitania do Capitania do Porto do Douro e a APDL – Administração dos Portos de Douro, Leixões e Viana do Castelo, SA..
30- A alínea c) do referido art.º 15.º, n.º 5, pressupõe a verificação cumulativa de quatro pressupostos, a saber:
a) uma parcela de terreno integrada numa zona urbana consolidada;
b) fora da zona de risco de erosão ou de invasão do mar, omitindo a lei a referência a “águas fluviais ou lacustres”;
c) ocupação por construção anterior a 1951;
d) e todos os requisitos devem ser “documentalmente comprovadas”. Sendo os quatro requisitos cumulativos a falta de um deles torna inaplicável o referido normativo.
31- Vamos centrar a nossa análise no requisito da localização fora da zona de risco de erosão ou de invasão do mar.
32- Nesta matéria, entende-se que integram este conceito zona de risco de erosão ou invasão do mar”, pelo menos, as zonas que sejam consideradas como faixas e áreas de risco nos Planos de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) aprovados ao abrigo do Decreto-Lei n.º 309/93, de 2 de Setembro, e regulados no Decreto-Lei n.º 159/2012, de 24 de Julho, e ainda as que vierem a ser definidas nos novos Programas da Orla Costeira de acordo com o novo Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio.
33- Daqui resulta que a norma apenas tem aplicação quando estiverem em causa “águas do mar”.
34- Assim, quando estejam em causa águas fluviais ou lacustres, não pode o regime simplificado de prova previsto na alínea c) do art.º 15.º ter aplicação.
35- Assim, estando os prédios em apreço inseridos na margem do Rio Douro – curso de água navegável sujeito à jurisdição dos órgãos locais da Direcção-Geral da Autoridade Marítima e da autoridade portuária não se encontram abrangidos pelas alíneas b) ou c) do n.º 5, da Lei n.º 54/2005, mas antes pelo regime previsto nos seus n.ºs 2 a 4, pois o curso de água em apreço está sujeito a jurisdição das mencionadas entidades - o que afasta a aplicabilidade da alínea b) - e não estão em causa águas do mar - o que afasta a aplicabilidade da alínea c)).
36- Nesta medida, não estaria a autora dispensada de provar os pressupostos de aplicação do disposto no art.º 15.º, n.º 2 , 3 ou 4, da Lei n.º 54/2005, o quais como já se referiu não se verificou.
37- Por todos estes motivos cumpria assim ao Tribunal a quo reconhecer que os prédios em causa integram o domínio público do Estado do qual nunca chegaram a sair
38- Nesta medida, impunha-se ao Tribunal a quo julgar improcedente a acção e absolver o Réu Estado Português do pedido.
39- A sentença recorrida violou de forma expressa, além do mais as normas contidas nos art.ºs 3, al. e) e 4º, por um lado e as normas contidas no art.º 15.º, n.º 2, 3, 4 e 5, por outro, todas da Lei n.º 54/2005, estas últimas por não verificação dos pressupostos de aplicabilidade.”.
6. A Autora, em contra-alegações, concluiu (transcrição):
“A - Os prédios urbanos ajuizados cujo reconhecimento de propriedade se requereu, nos termos do Artigo 15.º da Lei 54/2005, de 15 de Novembro, são constituídos por áreas objecto de expropriação ao abrigo da Lei das Expropriações - Lei de 26 de Julho de 1912 - no âmbito das obras de alargamento da marginal do …., áreas que não foram utilizadas para as referidas obras, nem integradas no domínio publico rodoviário, destinando-se, por esse facto, a serem vendidas, à luz do ultimo daqueles diplomas, o qual foi revogado pelo Decreto-Lei n.º 71/76, de 27 de Janeiro.
B - Corroborando este entendimento – dois acórdãos judiciais, um da Relação do Tribunal do Porto de 24 de Novembro de 1983 e outro do Supremo Tribunal de Justiça de 06 de Dezembro de 1984, proferidos em autos em que foram partes a Junta Autónoma de Estradas e a sociedade M......, e juntos aos presentes autos juntos como prova documental, o primeiro daqueles acórdãos, relativamente à área não abrangida no alargamento da via, diz- nos que: “O terreno embora expropriado não entrou no domínio público do Estado porque, pela expropriação, não ficou afecto directa e imediatamente ao uso público (…)
Rezando o segundo que “De facto, o Estado não cumpriu o estabelecido no art.º 7.º da Lei de 26 de Julho de 1912, com remissão para o paragrafo 2º do art.º 6º devia ter posto à venda em hasta pública as faixas de terreno expropriadas nas condições daquela disposição, mas não o fez”. Adiantando ainda que: “Assim ficou sujeito à sanção do art.º 31.º do Decreto de 15 de fevereiro de 1913-regulamento das expropriações por utilidade pública- isto é, dizia aquele preceito que, como expropriante, responderia por perdas e danos o Estado não cumprindo as disposições da Lei de 26 de julho. Este regulamento como aquela lei mostram-se revogados pelo decreto-lei n.º 71/76, de 27-1 e durante a sua vigência nunca qualquer interessado para aquele efeito accionou o Estado”.
C - O Ministério Público nas suas doutas alegações, contrariamente ao que se concluiu antecedentemente em A. e B., nega e aponta como erro nuclear da sentença do Tribunal a quo que os terrenos correspondentes aos prédios dos autos se mantiveram no domínio privado, antes afirmando que passaram ao domínio público, confundindo, incompreensivelmente, a expropriação rodoviária feita ao abrigo da Lei de 26 de Julho de 1912, com a expropriação hídrica ao abrigo do artigo 9.º, n.ºs 2 e 3, do Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro, e artigo 16.º, n.ºs 2 e 3 da Lei 54/2005, de 15 de Novembro.
Com efeito:
Na expropriação rodoviária o que se pretende é obter a propriedade de um terreno (aquisição expropriante) com a finalidade de o utilizar para nele e com ele construir e incorporar obras equipamentos, criando uma realidade nova - uma infraestrutura viária. Já na expropriação hídrica o meio (ato expropriativo) confunde-se com o fim (integração no domínio público), pelo que, sem qualquer alteração física ou funcional, a simples qualificação como dominial reveste essa natureza (integração automática).
Na afectação rodoviária o Estado realiza com e nos terrenos que expropria uma infraestrutura complexa que, uma vez declarada concluída e aberta ao uso público, constitui uma nova realidade e esta, e só esta, adquire por esse facto a função dominial.
D - O Ministério Público, não menos incompreensivelmente, assaca um erro na decisão do Tribunal a quo quando este, para a hipótese, que não aceita, de que os terrenos tivessem sido dominializados, metodologicamente conclui que nesse hipotético caso, estariamos perante uma desafectação tácita, afirmando-se na sentença que “E mesmo que assim não se entenda, afigura-se-nos que se verificou, pelo menos, uma desafetação tácita dos terrenos que não foram integrados no uso viário. Tal desafectação tácita prende-se com a falta de utilização pelo público o que implica a perda da característica pública da respectiva utilidade, ficando ela a pertencer ao domínio privado da pessoa colectiva de direito público sua proprietária, daí resultando que a partir do momento em que se haja verificado a tácita desafectação, entra no comércio jurídico-privado e se torna alienável e prescritível (ver: Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, p. 958). ”
Pois se a dominilidade rodoviária não advém da aquisição do terreno com o interesse público para construir uma rodovia, nem da incorporação no mesmo de obras equipamentos ou de outros elementos susceptiveis de conjuntamente integrar uma universalidade física apta a funcionar como rodovia, mas tão somente de a esta ser conferida uma concreta afetação funcional (qual seja a do uso viário público), se tal conjunto material e artificial de terrenos, obras e demais elementos for distraído dessa funcionalidade suprime-se imediata e tacitamente a raiz da dominialidade.
E - Nos terrenos expropriados para fins rodoviários o interesse ou utilidade pública conducente à respetiva expropriação reside na necessidade de os integrar numa realidade nova – uma infraestrutura rodoviária a construir - susceptível de ser qualificada como domínio público, se público chegar a ser o respectivo uso.
Se tal uso for desativado a consequência é a desafetação tácita de tal função e domínio. Por maioria de razão, tal acontece aos terrenos que tendo sido objecto de expropriação com o objectivo de integrar a realidade rodoviária, nunca chegaram a ser utilizados para tal fim. É o caso dos autos.
Dizendo de outro modo, na expropriação rodoviária o legislador funda o interesse na criação de uma infraestrutura com função viária. Caso não utilize o terreno para esse fim ou mesmo a venha a concretizar-se a criação de uma infraestrutura viária na sequência da reunião e preparação, em ordem a esse fim, dos meios físicos necessários – terrenos, obra e equipamentos - só estaremos perante uma realidade dominial a partir da respetiva abertura ao uso público.
Ao contrário, na expropriação hídrica o legislador assenta o interesse dominializante numa prexistente realidade física, estática e imutável, ou seja a contiguidade com as águas públicas e o respetivo leito, sem qualquer conexão com o que no terreno expropriado venha a concretizar-se. O chamamento dos terrenos à dominialidade hidrica funda-se na relação física de contiguidade com as águas do mar ou das demais águas sujeitas à influência das marés e inerente acessoriedade, nomeadamente por razões de acesso e utilização das águas.
Quando tal relação fisica seja tida por indispensável a esse fim emerge a utilidade ou interesse público de proceder à respetiva expropriação. Verifica-se, pois, a preexistência de uma realidade dominial – as águas públicas – em benefício das quais se confere dominialidade ao terreno expropriado.
F - A Junta Autónoma das Estradas (JAE) não promoveu a venda até à data em que a Lei de 26 de Julho de 1912 foi revogada, por sinal posteriormente à entrada em vigor do Decreto-Lei 468/71, relativo aos terrenos do domínio público hídrico. E não o tendo feito, os terrenos continuaram afectos à mesma e integraram o respectivo património autónomo.
Bem andou o Tribunal a quo quando na sentença em recurso diz que “No caso, resulta que os terrenos expropriados pela Junta Autónoma das Estradas (JAE) no local em questão não foram integrados no uso viário e nunca chegaram a integrar o domínio público, tendo de permanecer no domínio privado a fim de ser alienados a particulares, o que nunca chegou a ser feito. E, posteriormente, a Junta Autónoma de Estradas, transmitiu ope legis, tais prédios para as entidades suas sucessoras na gestão das estradas nacionais, ficando na propriedade destas, conforme resulta do registo”.
G - Particularmente relevante quanto à caracterização do processo expropriativo para fins rodoviários, e aqui se refere por ser clarificadora e se admitir coadjuvante à leitura da conclusão anterior, foi o depoimento da testemunha AA, que durante anos sempre foi responsável pelo cadastro e registo predial e acompanhamento dos processos de expropriação e nessa área se mostrou profunda conhecedora dos procedimentos técnicos e administrativos conexos com tais actos nos quais participava ou pelos quais era responsável.
Com efeito, aquela testemunha, a diversas instâncias, esclareceu que:
- Nas expropriações rodoviárias as áreas que não ficavam integradas na via não integravam o domínio público rodoviário e constituíam domínio privado, ficando integradas no património autónomo da JAE ou das entidades suas sucessoras;
- Não se fez no passado o registo de tais áreas por serem muito numerosas as parcelas nessa situação e por até 2008 não ser obrigatório o registo predial;
- A integração no património autónomo da JAE não constava de uma listagem específica porque as mesmas já estavam medidas e definidas nos documentos de obras das rodovias em razão das quais haviam sido expropriadas.
H - Na linha aliás do que acima se referiu, e para o caso que ora nos ocupa, o legislador encabeçou sistematicamente na titularidade, superintendência e ou propriedade das entidades rodoviárias, as áreas que tendo sido expropriadas para fins rodoviários não foram utilizados para tal finalidade, prevendo a venda em hasta pública ou o ingresso de tais bens no património autónomo, no património privativo ou propriedade privada de tais entidades. Com efeito e curiosamente, para outra coisa não dizer, um ano depois de, no âmbito da legislação hídrica ter sido publicado o Decreto nº 12445, de 29 de Setembro de 1926, que previu, a título provisório, uma largura de 50m mas apenas como margem sujeita à fiscalização dos Serviços Hidráulicos, foi criada em 1927 a Junta Autónoma de Estradas (JAE), sendo a primeira instituição pública com funções de coordenação e integração da administração rodoviária dotada de autonomia patrimonial e financeira. Recorde-se, ainda, poucos anos posterior à vigência do Decreto-Lei n.º 468/71, o Decreto – Lei n.º 184/78, de 18 de Julho que reestruturou a JAE e no seu artigo 66.º prevê como receitas da Junta, entre outros bens, “o produto da venda de terrenos sobrantes das estradas nacionais, de árvores, de frutos e outros bens ou direitos do seu património”.
Sucessivamente:
- Pelo Decreto-Lei n.º 237/99, de 25 de Junho, foi criado o Instituto das Estradas de Portugal (IEP), dizendo-se no seu artigo 2.º que “O património autónomo do IEP é constituído pela universalidade de bens e direitos que integram o património privativo da Junta Autónoma de Estradas à data da entrada em vigor do presente diploma”.
- Pelo Decreto-Lei n.º 239/2004, de 21 de Dezembro, transformou-se o Instituto das Estradas de Portugal (IEP) em entidade pública empresarial, com a denominação de EP - Estradas de Portugal, EP, dotada de autonomia administrativa e financeira e património próprio, conservando a universalidade dos direitos e obrigações, legais e contratuais, que integravam a sua esfera jurídica do anterior IEP no momento da transformação.
- Pelo Decreto-Lei n.º 374/2007, de 7 de Novembro, a EP - Estradas de Portugal, EP foi transformada na EP- Estradas de Portugal SA;
- E finalmente, pelo Decreto-Lei n.º 91/2015, de 29 de Maio, foi criada a ora Respondente, mediante incorporação, por fusão, da REFER EPE e as Estradas de Portugal, S. A.
I - Em todos os diplomas referidos na conclusão anterior, que criaram ou transformaram as entidades rodoviárias a que dizem respeito, ficou sempre estabelecido:
- A transferência para cada uma delas dos bens que integravam o património da que a antecedeu;
- A imposta competência e a obrigação de promover o registo nas pertinentes conservatórias dos bens que integravam o seu património autónomo, património privativo ou propriedade.
Foi precisamente em obediência a tais determinações ope legis que a EP-Estradas de Portugal SA e subsequentemente a ora Respondente procederam ao registo dos prédios dos autos cujo reconhecimento de propriedade se requereu e a douta sentença do Tribunal a quo confirmou.
J - Cumpre referir ainda que as áreas expropriadas para as obras do alargamento da marginal …, ao abrigo da Lei de 26 de Julho de 1912, e obviamente também os terrenos que delas faziam parte e deram origem aos prédios urbanos ora ajuizados, e que foram objeto de registo predial ope legis nas datas que o processo revela, faziam parte de uma ampla propriedade da Câmara Municipal do Porto - que era um terreno de prazo dado de aforamento - desde data que os autos não documentam, mas sempre anterior a 1862, uma vez que por escritura desse ano, a enfiteuse foi renovada a BB, que a houve por sucessão testamentária para poderem subenfiteuticar-se. Assim, deram origem a numerosas cazas de muitos cazeiros, à luz da provisão real de 18 de Agosto de 1818 que autorizou os subemprazamentos e subenfiteuses, direito que a Municipalidade … sempre salvaguardou em sucessivas transmissões do prazo foreiro, constituindo uma forma de urbanização de uma parte verdadeiramente no coração da cidade, pelo menos ao tempo, localizada cerca de 1000 metros a poente da Praça da …. da cidade do Porto., realidade esta concretizada em arruamentos e calçadas, casario em contínuo e numeração policial das respectivas portas, revelando uma zona urbana consolidada. Aliás, roborante de tal realidade urbana consolidada - isto tão só no sentido de pôr frente a frente a factualidade dos autos com o direito aplicável e bem aplicado - é a sentença proferida nos autos de expropriação litigiosa que correu termos no Tribunal de Comarca …. …... Juízo Cível 1960- Processo n.º 2126/…. - …... Secção, e que constitui o Doc n.º 18 da Petição Inicial.
Em tal sentença quando reportando-se ao laudo do perito da expropriante Junta Autónoma das Estradas - laudo em que se propunha o pagamento ao expropriado de certo valor indemnizatóri0 desconsiderando a inserção e localização do imóvel - diz-se que “Quanto a este laudo, apenas pretendemos fazer o reparo na parte em que se diz que o prédio se encontra afastado do Centro Comercial ….. que, salvo o devido respeito, não corresponde, rigorosamente, á verdade, pelo que os valores encontrados poderiam ir um pouco mais acima”.
L - De tudo quanto nas antecedentes conclusões se referiu, sem esquecer os princípios gerais firmemente assentes na nossa ordem jurídica - o princípio da não retroactividade das leis e o princípio do respeito pelos direitos adquiridos - expressamente relevados na sentença ora recorrida, é de inferir que face:
- À proveniência originária dos terrenos que integram os prédios ajuizados;
- À decorrência do processo expropriativo e da efectivação do alargamento da marginal do …;
- À integração dos mesmos no património autónomo da JAE e sucessiva transmissão para as entidades que lhe sucederam;
- À obrigação de tais entidades promoverem o registo nas conservatórias prediais pertinentes;
- À efectivação de tais registos, tudo isto a coberto de disposições legais expressas e específicas.
As áreas dos prédios ajuizados, seja qual for ou pudesse ser o alcance da locução ínsita no artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 468/71 - “sempre que tais leitos e margens lhe pertençam” - não podia incluir nesta previsão os prédios ajuizados.
Como se alegou e nas subsequentes conclusões irá evidenciar-se, a referida locução normativa nunca e em nenhuma instância foi acolhida com o sentido estrito e rígido que a aparente literalidade poderia sugerir nem, em abono da verdade, foi reconhecido um enquadramento normativo coerente com a produção legislativa dominial hídrica anterior e posteriormente produzida.
M – Antes de 1864 não existiam atos normativos legais, ordenações do Reino, assentos da Casa da Suplicação ou mesmo direito consuetudinário em que fosse estabelecida noção de margem ou praia de águas do mar ou outras correntes de água, que não fosse a noção do direito romano relativa a littus maris e a ripa fluminis (vide Afonso Queiró in “As praias e o domínio público”).
No reinado de Dom Luís I, a Carta de Lei de 25 de Junho de 1864 estabeleceu a imprescritibilidade e o domínio público dos rios navegáveis e flutuáveis com as respectivas margens e autorizou o Governo a legislar sobre canais, valas e portos de mar. Nada dispunha, pois, em matéria de margens ou praias. O Decreto Régio de 31 de Dezembro de 1864 que regulamentou a referida carta de lei dispunha no seu art.º 1.º que " são do domínio público (...) praias e os rios navegáveis e flutuáveis com as suas margens, os canais e valas, os portos artificiais e docas existentes ou que, de futuro, se construam". Tendo sido, pois, omisso quanto à caracterização do conceito de praia nomeadamente a respectiva largura. Compreende-se que assim tenha acontecido na medida em que na previsão da norma regulanda não cometia a este diploma tal definição e, não o tendo feito, as noções jurídicas até então vigentes continuaram a vigorar e, por isso, limitando-se a praia do mar ou a margem dos rios à linha das maiores marés ou das maiores cheias.
N - A legislação que posteriormente a 1864 e anteriormente ao Decreto – Lei n.º 468 /71 revela a ausência de dispositivos legais que consagrem a dominialidade dos terrenos marginais às águas além dos limites consagrados no Direito Romano. Atentemos, para o efeito, nos diplomas: O Decreto nº 8, de 1 de Dezembro de 1892; o Decreto nº 5787 IIII, de 10 de Maio de 1919 e o Decreto nº 12445, de 29 de Dezembro de 1926.
O primeiro de tais diplomas - correntemente designado por Regulamento dos Serviços Hidráulicos - considera serem públicas as águas salgadas das costas, enseadas, baías, portos, docas, fozes, rios, esteiros e respectivos leitos, cais e praias (…), até onde alcançasse o colo da máxima preia-mar de águas vivas (…), manifestação normativa indúbia de que a declaração da dominialidade de terrenos marginais estava arredada da previsão deste diploma.
O segundo - Lei das Águas – dispõe que a delimitação da largura das margens, seria feita quando se procedesse à classificação e demarcação das bacias hidrográficas nos termos do regulamento (artigo 124º, § 2º), relegando, pois, para momento normativo posterior a criação de um conceito jurídico de margem diferente do que vigorava antes da lei (carta de lei e decreto régio ambos de 1864).
Com o Decreto nº 12445, de 29 de Setembro de 1926, supriu-se, a título provisório, a omissão de publicação do referido regulamento, considerando a largura de 50m, mas apenas como margem sujeita à fiscalização dos Serviços Hidraúlicos e não como definição de domialidade dos terrenos abrangidos (art.º 14º).
Realidade que o Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Janeiro de 1935 afastou definitivamente quaisquer hesitações que se suscitassem nesta matéria quando nele se diz que “O Decreto n.º 12445, de 29 de Setembro de 1926, definiu provisoriamente a largura das margens dos cursos de águas sujeitas ao domínio público para efeito da fiscalização a que se refere o artigo 124.º da lei das águas (...)”. Ficando em tal Assento cristalinamente expresso quando nele se diz que “Estas disposições de carácter provisório são somente para efeitos de fiscalização dos serviços hidráulicos (…)”.
O - A novidade que a locução “sempre que tais leitos e margens lhe pertençam”, contida no artigo 5.º do Decreto–Lei n.º 468/71, alargada a uma faixa de 50m, contrariando assim tudo quanto anteriormente legislado sobre o domínio público marítimo, padece de um vício originário qual seja o de confundir a área terrestre da jurisdição das autoridades maritimas e hidráulicas com área sujeita à dominialidade hídrico-marítima.
É, aliás, reveladora de tal confusão a definição do n.º 2 do art. 3º do Decreto – Lei n.º 468/71, quando nos diz que “A margem das águas do mar bem como a das águas navegáveis ou flutuáveis sujeita à jurisdição das autoridades maritima e portuária, tem a largura de 50m”, e só derivamente, mas inteiramente ex novo, se pronuncia no art.º 5º sobre a dominialidade dos terrenos abrangidos.
Com efeito, parte-se da definição de um território apenas como área onde determinadas entidades públicas detêm atribuições e exercem competências como missão subjectiva das mesmas, para, a contrapelo do anteriormente legislado, o subsumir igualmente como área onde os terrenos nela abrangidos mudam de natureza jurídica - alteração objectiva de regime jurídico do território.
P - O alargamento conceptual normativo acima referido suscitou de imediato reações e conflitos que levaram a uma reação muito acentuada quanto à aplicabilidade prática da mencionada locução (art.º 5.º, n.º 1 do Decreto – Lei n.º 468/71,). Desde logo, os autores materiais do texto do diploma em causa salientam a pags 106 do “Comentário à Lei dos Terenos do Domínio Público Hídrico” (da autoria de Freitas do Amaral e José Monteiro Fernandes) que “o Decreto-Lei 468/71 veio ousadamente consagrar a posição da comissão do domínio público marítimo que sempre defendeu a dominialdade dos leitos e das margens das águas públicas na sua jurisdição”. Freitas do Amaral que na citada obra fez tal apreviação, foi, aliás, o presidente do grupo de trabalho que presidiu à elaboração do texto legal em apreço.
Q - Outra constatação suscitada pelos anteditos autores naquela mesma obra foi, contrariando a literalidade aparentemente absoluta e universal da mencionada expressão da lei, apontar o seguinte: “Parece, pois, de concluir que a titularidade do direito de propriedade do Estado de leitos e margens públicas de águas navegaveis e flutuáveis, embora a palavra “sempre” possa inculcar o contrário, deve ser apenas considerado como necessário mas não suficiente para que esses leitos e margens pertençam ao domínio público do Estado” (Pag 103 do referido Comentário).
R - Perante tal incongruência foram, no âmbito da administração central do Estado, articulados procedimentos que, no fundo, correspondiam a tornar não aplicável, ou dizendo de outro modo, retirar em grande parte eficácia prática, e, como se refere no mencionado Comentário, “(…) perante dezenas senão centenas ou milhares de alienações de parcelas nestas condições -alienações baseadas no convencimento legítimo (…) de que pertenciam ao domínio privado do Estado”, e com de objectivo de “ evitar uma situação de conflito entre dois órgãos do Estado - o Ministerio das Finanças e o departamento da Marinha” - foi entendido e firmado entre os dois órgãos que no departamento de Marinha, “se não iria contestar a validade das alienações feitas”. Em reforço dos constrangimentos e da solução encontrada para os superar acima referidas, outras implicações revelam o excesso de fervor dominial que não poderia estar na vontade do legislador, designadamente enquadrando as situações de bens advindos à propriedade do Estado como último sucessor hereditário de determinado de cujus, e nos quais existam inquilinos com contratos civis de arrendamento, ou arrendamentos para fins habitacionais - afectação que a própria lei do domínio hídrico não prevê como susceptível de atribuição de utilização privativa do domínio público - de prédios em que haja outros co-proprietários do bem que o Estado herdou, ou que constituam unidade predial, juridicamente consistente e fisicamente indissolúvel.
Mais incisiva ainda quanto às fragilidades e limitações, ou mesmo esvaziamento, do conteúdo normativo da citada locução, é a legislação dominial hídrica produzida após o Decreto-Lei n,º 468/71, a que se alude nas conclusões seguintes, desde logo a Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro.
S - A Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, diz no seu no seu art.º 12.º, nº 1 que: “São particulares, sujeitos a servidões administrativas, os leitos e margens de águas do mar e de águas navegáveis e flutuáveis que forem objecto de desafectação e ulterior alienação, ou que tenham sido, ou venham a ser, reconhecidos como privados por força de direitos adquiridos anteriormente, ao abrigo de disposições expressas desta lei, presumindo-se públicos em todos os demais casos”.
Não pode deixar de notar-se relativamente à locução do nº 1, do art.º 5.º do D/L n.º 468/71 - sempre que tais leitos e margens lhe pertençam - a clara diferença redativa da locução “(…) presumindo-se públicos todos os demais” que a Lei n.º 54/2005 utiliza na supra mencionada disposição, resolutamente afastando-se do determinismo inspirado pelo diploma que a mesma revogou. Aliás, a expressão “públicos” na aparente indeterminação quanto ao seu alcance tanto pode abranger a pertença a entidade pública como a integração no regime dominial público dos bens. Afigurando-se que a verdadeira intenção do legislador era, com a locução “presumindo-se públicos em todos os demais casos” limitar-se à ideia de pertença à entidade pública – o Estado.
A legislação subsequente e alterações à própria Lei n º 54/2005, patenteiam uma mudança ainda muito mais profunda de enquadramento da realidade dominial, como nas subsequentes conclusões se revela.
T - O Decreto-Lei n.º 100/2008, de 16 de Junho, subverteu a visão da dominialidade hídrica e marítima, em dois aspectos nucleares: por um lado, o abandono do princípio da conexão territorial assente na relação de contiguidade do terreno enxuto com as águas públicas, substituindo-a pelo critério da conexão funcional, quando limita a dominialidade hídrica à afectação necessária de tais terrenos ao exclusivo “interesse público do uso das águas” (Artigo 4.º, n.º 1) e, por outro, o afastamento da titularidade necessária do Estado sobre o domínio público marítimo que a redação inicial da Lei n.º 54/2005 estabelecia, com a admissão de transferência de tal titularidade para outras entidades, quando dispõe e regula a mutação dominial subjectiva (Artigo 8.º). Deste modo, o princípio territorial da contiguidade que presidiu à fixação da área de jurisdição das autoridades marítimas - as quais sempre arreigadamente defenderam a sujeição ao regime dominial hídrico dos terrenos integrados em tal jurisdição - deixou de ser, enquanto tal, o critério determinante para o estabelecimento de tal dominialidade, e assim desaparecido, como qualificante objectivo do domínio público marítimo, o princípio da contiguidade territorial e afastada a titularidade necessária do Estado como elemento subjectivo de tal categoria dominial, não subsistem razões para manter o apelo e a coerência normativas no sentido de que tudo quanto pertença ao Estado dentro da faixa marginal às águas, automática e necessariamente se considere dominializado.
U - A Lei n.º 34/2014, de 20 de Junho, afastou o recuo necessário da prova da para o reconhecimento da propriedade privada ao ano de 1864, bastando-se na demonstração de que os terrenos “Estejam integrados em zona urbana consolidada como tal definida no Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (…) e se encontrem ocupados por construção anterior a 1951.”
Nesta profunda alteração não pode ver-se no legislador um mero facilitante dos particulares. A segurança que o legislador coloca no facto de a consolidação urbana assentar em intervenções de planeamento, licenciamento e fiscalização das entidades competentes, e a implícita aceitação e reconhecimento de que a disponibilidade jurídica conferida aos particulares adentro de áreas urbanamente consolidadas se não ajusta às restrições e condicionamentos inerentes à dominialidade pública, constituíram, em grande parte, a subjacência racional à facilitação de prova conferida pelo preceito citado.
Seria no mínimo estranho que o Estado legislador auto-imponha ao Estado-proprietário a dominialização forçada e sistemática de todo e qualquer bem do seu domínio privado, localizado em área de comprovada consolidação urbana - zona que o mesmo Estado declara excludente de qualquer presunção de dominialidade.
V - A ora Respondente não se socorreu da prova formal exigida para obter o benefício temporal de postcipação de prova porque de tal não carecia, mas tal não afasta que se apliquem aos prédios dos autos os princípios que estiveram subjacentes à alteração normativa da Lei n.º 34/2014, de 20 de Junho, uma vez que, e como se deixou concluído em J. os prédios dos autos já desde data muito anterior a 1951 integravam zona urbana consolidada.
X. Tudo quanto antecedentemente se deixou concluído em H. sobre o enquadramento institucional e patrimonial operado pelos diplomas que criaram, transformaram e fusionaram as entidades responsáveis pela coordenação e integração da administração rodoviária, com reporte à expropriação rodoviária para alargamento da marginal do rio ...., e o concluído quanto à não inclusão no domínio público rodoviário das áreas que embora expropriadas não integraram a infraestrutura viária aplica-se, com similar efeito, à exclusão do domínio público hídrico.”.
II – APRECIAÇÃO DO RECURSO
De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º 2, 635.º, nº .4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil – doravante CPC), mostram-se submetidas (pela ordem indicada pelo Recorrente) à apreciação deste tribunal as seguintes questões:
ð Da admissibilidade e ocorrência de desafectação tácita dos prédios do domínio público (conclusões 6.ª a 12.ª);
ð Dos efeitos da expropriação (conclusões 13.ª a 27.ª);
ð Da ausência de prova quanto aos pressupostos de aplicação do regime simplificado de prova do artigo 15.º, n.º 5, da Lei n.º 54/2005, e da não demonstração pela Autora dos requisitos dos n.ºs 2, 3 ou 4, da mesma Lei (conclusões 28.ª a 36.ª).
1. Dos factos
1.1 Provados
1. Encontra-se registada a aquisição a favor da autora, por transferência de património em consequência de fusão, os seguintes bens imóveis:
a) Prédio urbano descrito em livro sob o n.º …., do L.º N.º: …, Secção …, correspondendo-lhe o n.º informatizado …, na Conservatória do Registo Predial …. e inscrito na matriz com o artigo …..49 da união de freguesias …., ….., …., ….., … e ….. (que teve origem no art.º … da freguesia ….) - (conforme documentos de fls. 17 a 19 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
b) Prédio urbano descrito em livro sob nº …, do Livro n.º …., Secção …, correspondendo-lhe o número informatizado …., da Conservatória do Registo Predial .… e inscrito na matriz com o artigo ….. 51 da união de freguesias …, …, …., …., ….. e …, (que teve origem no art.º …18 da freguesia .….) - (conforme documentos de fls. 19v a 21 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido);
c) Prédio urbano com descrição informatizada sob o n.º ….. na Conservatória do Registo Predial do ….., inscrito na matriz com o artigo ….50 da união de freguesias …., ….., …, …., …. e … (que teve origem no art.º … da freguesia .….) - (conforme documentos de fls. 21v a 23 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
2. Os prédios aludidos em 1. foram objecto de expropriação no âmbito do projecto de obras da Estrada Nacional n.º …. (…), entre a …. e …, correspondendo-lhes na planta parcelar da dita expropriação, junta a fls. 24 e cujo teor se dá por reproduzido, os números 36, 86 e 87, contíguos entre si.
3. O prédio descrito sob o nº ….80 constituía a parcela nº … da planta parcelar da expropriação que se identifica em 2.
4. Na planta de identificação, junta a fls. 23v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido, e que identifica a localização urbana, área e confrontações dos aludidos prédios, o polígono correspondente à área do prédio referido em 3. encontra-se representado e geograficamente coordenado, cujos vértices aqui se transcrevem:
1. M= -39 533 .676 M=163 739 .526
2. M= -39 540 .783 M=163 735 .777
3. M= -39 548 .420 M=163 739 .159
4. M= -39 552 .177 M=163 742 .802
5. M= -39 547 .895 M=163 747 .933.
5. Ao prédio descrito em livro sob o n.º …, do L.º N.º: …., Secção …, a que corresponde o n.º informatizado …., na Conservatória do Registo Predial ….., são dadas, quer no registo predial quer na matriz, as seguintes natureza, localização, área, composição e confrontações: “urbano, freguesia da …, Calçada da …. nº …. a …, correspondendo a um terreno devoluto com a área de 112 m2, confrontando a norte com Câmara Municipal do Porto e EP- Estradas de Portugal SA, a sul com EP Estradas de Portugal SA e Calçada ..…., a nascente com Câmara Municipal do Porto e a poente com EP- Estradas de Portugal SA e Calçada da ……” e ainda como “Afecto ao domínio público rodoviário 89,50 m2”, conforme documentos de fls. 17 a 19 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
6. No âmbito do processo de expropriação que correu termos pelo ….. Juízo Cível, ….. secção, Processo n.º 1736/…., da Comarca do ….., foi homologado o auto de expropriação amigável de 17 de Abril de 1959 de uma parcela de 201,50 m2, com edificado, no sito da Calçada ….., freguesia …., concelho …, inscrito na matriz predial urbana, sob o art.º …..13 e descrito sob o n.º …. do L.º …. a fls 111v da Conservatória do Registo Predial ...…., conforme documento de fls. 27 a 30 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
7. Naquele auto consta que a JAE vai realizar a obra de pavimentação da Estrada Nacional n.º … (Marginal do ....) entre a … e o …., para o qual se mostra necessário expropriar a dita parcela dada a confrontar do norte com Calçada …., do sul com Calçada …., do poente com CC, do nascente com CC, conforme certidão junta a fls. 36 a 39v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
8. A primitiva descrição do prédio n.º …. foi feita à vista de um título apresentado no Diário de 26 de Dezembro de 1877, conforme certidão junta a fls. 36 a 39v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
9. A área total de 201,50m2 vertida no auto de expropriação, deduzida dos 89,50m2 incorporados no domínio público rodoviário, reduz a superfície do prédio ora em causa precisamente aos 112 m2, constantes das certidões do registo e da matriz.
10. O referido prédio havia ficado inscrito em nome dos expropriados em virtude de partilha que fizeram por morte do DD, também chamado DD, conforme certidão junta a fls. 36 a 39v e transcrição de fls. 76 a 77, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
11. A primitiva descrição do prédio é do seguinte teor: “terreno sito na Rua da …, freguesia da ….. Tem de largo de nascente a poente quatro metros e noventa centímetros e de cumprido do norte a sul sete metros e setenta centímetros, confronta do norte com EE do nascente com FF, do sul com a rua e do poente com margem do rio Douro. É foreiro à Câmara do Porto.”, conforme certidão junta a fls. 36 a 39v e transcrição de fls. 76 a 77, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
12. Consta ainda da referida descrição, inscrito a favor de EE a transmissão de um terreno próprio para edificação, sito na Calçada …., descrito no Lº … fls. 111 sob o nº …. (….) com a condição de que “andando o apresentante a edificar uma casa no terreno aqui comprado e em um outro terreno seu, e que tem as paredes exteriores já concluídas na altura de sete metros, lado sul desde a soleira até à cornija, e 9 metros e cinquenta centímetros do lado poente, não as poderá o comprador elevar a maior altura nem mesmo as laterais (…) ficando a vendedora FF, viúva (…) e seus sucessores com meação nas paredes exteriores”, conforme certidão junta a fls. 36 a 39v e transcrição de fls. 76 a 77, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
13. E ainda que o referido prédio se trata de: “casa sobradada e pertenças, sito na Rua da ….., n.º …. e teve o n.º …, freguesia ….. Confronta do norte com herdeiros de GG, do sul com HH de nascente com os ditos herdeiros e Rua da …. e do poente com (....) II. É foreiro à Câmara. Descrição feita à vista do título apresentado sobre o n.º 12 do Diário de 26 de Dezembro de 1877.
Averbamento 1: Verifiquei pelo título apresentado sob o n.º 6 do Diário de 4 de Agosto de 1885 que o prédio acima descrito têm de (...) os números ….. a ….. AP. n.º …. - Em 26 de Dezembro de 1877 EE (...) apresentou sobre o n.º 12 do Diário desta Conservatória uma escritura de venda outorgada nas notas do tabelião JJ, com base na qual se inscreveu em nome do apresentante a transmissão de uma casa e pertenças sita na Calçada … n.º .. (antigamente n.º …) descrito no Livro … a fls. 112 sob o n.º … comprada a II e mulher MM, conforme certidão junta a fls. 36 a 39v e transcrição de fls. 76 a 77, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
14. Dos averbamentos feitos à sobredita descrição predial 16980, constam as seguintes menções:
a) No averbamento 1 diz-se: “Verifiquei pelo mesmo documento apresentado sob o n.º 13 do diário de 8 de Outubro de 1891 ( ...) que no terreno supra descrito foi edificada uma morada de casas de dois andares com os n.º … a … para a Calçada…..”;
b) No Averbamento 2 diz-se que o prédio é constituído “(…) por uma casa de 5 pavimentos ou seja rés-do-chão, armazém, loja ampla, dois andares e águas furtadas e mais pertenças, sita na Calçada …. com os n.ºs … a …. (antigos … a … e ainda antes … a …) freguesia …. está inscrito na matriz predial sob o artigo …..”.
c) No averbamento 3 à sobredita descrição diz-se que a requerimento de NN foi declarado que “o prédio deixou de ser foreiro à Câmara Municipal do Porto a quem se pagava o foro anual de 25 centavos actualizados com laudémio de quarentena, visto mostrar-se remido conforme alvará nº 548 de 5 de Junho de 1947, na mesma Câmara”, conforme certidão junta a fls. 36 a 39v e transcrição de fls. 76 a 77, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
15. Na sequência, a parcela de terreno que compunha a descrição predial n.º …. ficou integrada na descrição predial n.º …..
16. OO, na qualidade de herdeiro de seu pai DD, requereu em 1946 a remição do ónus enfitêutico, ou seja, a parte do referido encargo que impendia sobre o prédio sito na Calçada …. n.º … a …. da freguesia da …. de que a Câmara Municipal do Porto era senhoria directa, remição obtida pelo alvará nº 548 de 5 de Junho de 1947, conforme documento junto a fls. 43 a 44v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
17. No aludido auto diz-se que o pedido de remição dos ónus enfitêuticos que incidiam sobre o prédio da Calçada da …. nº …. a …., da freguesia ….., respeita ao ónus laudemial incidente sobre “uma porção do prazo feito por BB a esta Excelentíssima Câmara em 7 de Março de 1862 registado no Livro de Inventário dos Foros do Bairro Ocidental sob o n.º trezentos e noventa e nove/quatrocentos”, conforme documento junto a fls. 43 a 44v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
18. Na escritura de renovação de prazo celebrada em 27 de Março de 1862 entre a Câmara Municipal do ….. e BB, solteira, consta que esta “era senhora e possuidora de um terreno de prazo sito entre a rua do ... e a rua dos ….., o qual era de natureza de prazo fateusim, foreiro no domínio directo à Exm.ª Câmara Municipal”, conforme transcrição junta a fls. 77v a 78v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
19. Mais consta da mencionada escritura que “todo o mesmo terreno estava compreendido na medição de dois prazos (...) feitos pela municipalidade senhoria directa: um a PP em 28 de junho de 1714 e outro a QQ em 15 de Fevereiro de 1727, com domínio de quarentena sobre todas as trocas e vendas do declarado terreno e suas benfeitorias cujas obrigações foram sempre compridas pela caseira e reconhecente (a dita BB) e seus antepossuidores os quais obtiveram em carta de 18 de Agosto de 1818 provisão de sua magestade a fim de poder subemprazar-se pelo que a maior parte do dito terreno se achava com edificações que pertenciam aos diversos subenfiteutas”, conforme transcrição junta a fls. 77v a 78v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
20. No mesmo documento consta o “Auto de reconhecimento, medição e confrontação de um terreno de prazo, sito entre a rua…, ….. e a rua…., no qual se acham construidas muitas cazas pertencentes a diferentes cazeiros subemphteuticas em que é reconhecente a cazeira emphiteuta Dona BB” (....) e reconhecida a Excelentíssima Câmara desta invicta cidade do ….”; e ainda que a caseira BB é “senhora emphjteuta deste terreno e prazo, por ter havido por disposição testamentária de Dona RR e irmão”, conforme transcrição junta a fls. 77v a 78v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
21. Quanto à medição e confrontação do prazo, consta “ter do lado Norte, de Poente para o Nascente e fazendo todas as voltas do muro quatrocentos e quarenta e um metros e dez centímetros, ou quatrocentas e uma varas; e confronta por este lado com a rua do …, e rampa que vai para os lavadouros: medindo do lado do Nascente do Norte para o Sul tem cento e trinta e nove metros e quatro centimetros ou cento e vinte varas e dois palmos: confronta com a Quinta …. pertencente a T....., e com o caminho que cresce dos Lavadouros das …. para a mesma quinta medido pelo lado do Sul tem trezentos e desaseis metros e oitenta centímetros, ou duzentas e vinte e oito varas: confronta com a rua …..: medido pelo lado do Poente tem cincoenta e dois metros e oitenta centímetros ou quarenta e oito varas: confronta por este lado com um caminho em projecto ou terreno pertencente a SS e fonte ….”, conforme transcrição junta a fls. 77v a 78v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
22. Mais se declarou no dito documento que: “Este terreno se achava cortado por alguns caminhos públicos, conforme transcrição junta a fls. 77v a 78v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
23. Consta ainda naquele documento que “pela Excelentíssima Câmara foi dito que em virtude do referido auto por esta escritura de renovação de prazo emprazava em prazo e fateusim à mencionada outorgante D. BB o terreno do prazo constante da medição e confrontação especificada” e ainda a aceitação de BB de todas as condições do emprazamento, designadamente o pagamento do foro anual “devendo o laudémio da quarentena ser correspondente ao preço pelo qual se verificar a venda do terreno e suas benfeitorias”, conforme transcrição junta a fls. 77v a 78v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
24. Por sua vez, o prédio descrito sob o nº …. constituía a parcela nº …. da planta parcelar da expropriação aludida em 2.
25. Na planta de identificação, junta a fls. 40v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido, e que identifica a localização urbana, área e confrontações dos aludidos prédios, o polígono correspondente à área do prédio referido em 24. encontra-se representado e geograficamente coordenado, cujos vértices aqui se transcrevem:
1- M= -39 549.601 P= 163 736.062
-39 556,671 P=163 736.605
2- M= -39 552.177 P=163 742.602
4- M =-39 548.420 P=163 739.159
26. Este prédio urbano, situa-se na freguesia da …, Calçada …., n.ºs ….., … e …, com a área de 33m2, confronta a norte com EP – Estradas de Portugal SA, a sul com Calçada …, a nascente com EP – Estradas de Portugal SA e a poente com Estradas de Portugal SA, conforme documento de fls. 19v a 20 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
27. Este prédio confronta a poente e nascente com o prédio aludido em 3.
28. Nos autos de expropriação contenciosa que correram termos pela …. secção do … juízo Civel do .. sob processo nº 1879/…, foi proferida sentença expropriando a CC e mulher TT duas porções de edificado, entre elas uma porção de terreno edificado com a área de 32m2, que fazia parte do prédio urbano constituído por casa de (...) pavimentos, sito na Calçada …. nº …, … e …, inscrito na matriz sob o nº … da freguesia …. e na Conservatória sob o nº …, conforme documento de fls. 45 a 47v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
29. Consta ainda do referido documento que o prédio foi à propriedade de CC mediante inventário por morte do sujeito passivo UU e que conjuntamente com RR terão feito a deixa testamentária a BB do prazo foreiro a que se alude em 17, conforme documento de fls. 45 a 47v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
30. Consta da petição inicial de expropriação de que entre os encargos que incidiam sobre o prédio era o de pagar a II um foro de 2$20, conforme documento de fls. 45 a 47v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
31. A área deste prédio estava abrangida no perímetro do prazo foreiro aludido em 17.
32. Nos autos de expropriação contenciosa que correram termos pelo …. Juízo Cível - …ª Secção, do Tribunal da Comarca …. sob o nº de processo 2126/…, foi proferida sentença em Julho de 1961 expropriando a VV uma parcela de terreno edificado que faz parte do prédio urbano descrito sob o nº …. a fls. 145v do Lº … na Conservatória do Registo Predial …, composto de morada de casas sobradadas, que se compõe de um andar e armazém e mais pertenças, sita na rua dos …. n.º …, freguesia de …, registada a favor da expropriada em 22 de Maio de 1933, conforme documento de fls. 56 a 66 e transcrição de fls. 80 a 83, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
33. Consta do aludido documento que o dito prédio foi registado no L.º … fls 120 sob o nº … em 4 de Junho de 1867 a favor de FF o foro de 8 800 reis, conforme documento de fls. 56 a 66v e transcrição de fls. 80 a 83, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
34. O prédio nº …., corresponde à descrição informatizada da parcela de terreno edificado que fazia parte do prédio urbano descrito sob o nº … a fls 145v do Lº …. que, por sua vez, constituía a parcela 86 da planta parcelar da expropriação que se identifica em 2.
35. No processo aludido em 32. foi expropriada pela Junta Autónoma de Estradas a VV o aludido prédio, conforme documento de fls. 56 a 66 e transcrição de fls. 80 a 83, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
36. Na planta de identificação, junta a fls. 83v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido, e que identifica a localização urbana, área e confrontações dos aludidos prédios, o polígono correspondente à área do prédio referido em 33. encontra-se representado e geograficamente coordenado, cujos vértices aqui se transcrevem:
1. M = -39 556.671 P = 163 736 605
2. M = -39 565.551 P=163 739.403
3. M = -39 556.177 P=163 752.455
4. M = -39 548.562 P=163 741.265
37. Ao prédio urbano nº …. da Conservatória do Registo Predial do …, dado como inscrito na matriz com o artigo … da União das Freguesias …, …, …, ….., ….. e …, a descrição é do seguinte teor: sito na freguesia …, confrontando a norte - Servidão e Câmara Municipal do Porto, sul – Avenida …. e Calçada …., nascente – EP - Estradas de Portugal SA, e poente – Servidão, conforme documento de fls. 21 v a 22 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
38. Todos os aludidos prédios estremam entre si formando um contínuo predial e situam-se em zona urbana consolidada e foram ocupadas por construção anterior a 1951.
39. E situam-se na margem direita do Rio Douro, o qual é navegável, sendo o respectivo troço, no aludido local, de águas interiores sujeitas às influências das marés.
2. O direito
1. Nesta acção proposta (em Julho de 2018) contra o Estado Português pelas Infraestruturas de Portugal, SA, ao abrigo do artigo 15.º, da Lei n.º 54/2005, de 15-11[1], a Autora visa o reconhecimento do direito de propriedade sobre três prédios urbanos, sitos na margem (direita) do rio Douro, afastando a presunção de dominialidade pública decorrente de se encontrarem em área abrangida pelo domínio público hídrico (porque abrangidos na faixa de 50 metros a contar do limite do leito das águas do daquele rio).
Na sequência do referenciado no relatório supra, para demonstração da propriedade privada quanto aos imóveis a Autora utiliza dois caminhos probatórios contemplados na lei para a demonstração da antiguidade propriedade privada: prova recuada a 1864 e a limitada a 1951, neste último caso, através da demonstração da localização dos prédios (integração dos mesmos em zona urbana consolidada com construção anterior a 1951).
O Réu refuta a verificação de qualquer desses requisitos necessários ao reconhecimento da titularidade privada, fazendo acrescer, em prole da defesa do domínio público dos prédios em causa, a circunstância de terem sido objecto de expropriação quando da construção da estrada de … a favor da então entidade pública Junta Autónoma das Estradas (JAE).
2. A sentença ao julgar a acção integralmente procedente, declarando a Autora proprietária dos prédios em causa nos autos, socorrendo-se da fundamentação utilizada pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 326/2015, alicerçou a respectiva decisão nas seguintes premissas:
- a Autora adquiriu os prédios em causa no seguimento da expropriação dos mesmos por alturas de 1960 por parte da JAE, por transmissões de património decorrentes de extinções e fusões legais que sucessivamente fizeram com que se transmitissem da JAE, para a IEP – Instituto de Estradas de Portugal, desta para a EP – Estradas de Portugal, EP, desta para a EP – Estradas de Portugal, SA, e, finalmente, desta para a ora Autora;
- os prédios inserem-se em zona influenciada pelas marés e em área de jurisdição da autoridade da marítima, pelo que fazem parte do domínio público marítimo, nos termos do DL n.º 335/98, de 03-11 e da Lei n.º 54/2005, conforme aceite unanimemente pelas partes;
- mostra-se feita nos autos a prova da titularidade privada dos imóveis antes de 31-12-1864, nos termos do artigo 15.º, n.º 2, da Lei n.º 54/2005, uma vez que os mesmos foram objecto de “aforamento com laudémio de quarentena” à data de entrada em vigor do Código de Seabra (22-03-1868), que aboliu tais encargos enfitêuticos; acresce ter ficado ainda apurado que tais prédios faziam parte de uma ampla propriedade da Câmara Municipal do …., no caso, um “terreno de prazo dado de aforamento”, mais antigo e sempre anterior a 1862;
- a titularidade privada não se mostra afectada pelo facto dos prédios terem sido expropriados, ao abrigo do Código das Expropriações de 1912, porquanto os mesmos nunca chegaram a integrar o domínio público tendo presente que, nos termos dos seus artigos 6.º § 2, e 7.º, daquele diploma, foi incluída nessa expropriação uma faixa anexa à via pública de 50 metros, a qual se destinava a ser posta à venda em hasta pública, o que não chegou a suceder;
- ainda que assim não fosse, teria ocorrido uma desafectação tácita dos terrenos que não foram integrados no uso viário uma vez que nunca chegaram a ser utilizados pelo público, tendo ficado a pertencer ao domínio privado da então pessoa colectiva pública e sido sucessivamente transmitidos.
3. No recurso interposto para este tribunal o Ministério Público faz assentar a sua discordância, fundamentalmente, na seguinte ordem de razões:
- a sentença descurou os efeitos da expropriação por utilidade pública dos referidos prédios e, nessa medida, a respectiva integração dos mesmos no domínio público, sem que tenha ocorrido qualquer acto de desafectação, ainda que tácito;
- não se encontram verificados quer os pressupostos a que aludem os n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, quer os consignados no n.º 5 do mesmo preceito.
Não podemos concordar, conforme passaremos a justificar, abordando, porém, as questões suscitadas no recurso em função da sua ordem lógica (porquanto o conhecimento e a procedência de umas prejudica a apreciação de outras), que é inversa da utilizada pelo Recorrente.
4. Da (in)verificação dos pressupostos de afastamento da dominialidade pública hídrica (conclusões 19 a 36)
Não merece controvérsia no processo que o reconhecimento da propriedade sobre os imóveis que a Autora quer fazer valer através da presente acção pressupõe a aplicabilidade da Lei n.º 54/2005, de 15-11, que veio estabelecer a titularidade dos recursos hídricos.
Nos termos da referida Lei, os recursos hídricos, em função da titularidade, compreendem os recursos dominiais, ou pertencentes ao domínio público, e os recursos patrimoniais, ou pertencentes a entidades públicas ou particulares (artigo 1.º, n.º 2).
O domínio público hídrico abarca o domínio público marítimo, o domínio público lacustre e fluvial e o domínio público das restantes águas (artigo 2.º, n.º 1).
O domínio público marítimo compreende, por sua vez e entre outros, as margens das águas costeiras e das águas interiores sujeitas às influências das marés (artigo 3.º, alínea e)).
Margem é a faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas (artigo 11.º, n.º 1) que, quando referente a águas do mar ou águas navegáveis sujeitas à jurisdição dos órgãos locais da Direcção-Geral da Autoridade Marítima, tem a largura de 50 metros (artigo 11.º, n.º 2). Leito é o terreno coberto pelas águas quando não influenciadas por cheias extraordinárias, inundações ou tempestades (artigo 10.º, n.º 1).
Conforme dispõe o artigo 4.º, da referida Lei[2], o domínio público marítimo pertence ao Estado, atenta a importância e afectação públicas das águas, que devem situar-se fora do comércio jurídico privado e devam ser inalienáveis, impenhoráveis e imprescritíveis.
Porém, tal titularidade não é absoluta[3].
Na retrospectiva legislativa quanto à matéria da titularidade dos recursos hídricos importa ter presente dois diplomas fulcrais na organização e regulamentação dos Serviços Hidráulicos: o Decreto n.º 8 de 1 de Dezembro de 1892, sobre «Organização dos serviços hidráulicos e do respectivo pessoal» e o correspondente «Regulamento para a execução do Decreto n.º 8, de 1 de Dezembro de 1892, sobre os serviços hidráulicos», aprovado por Decreto de 19 de Dezembro de 1892 e conhecido por «Regulamento dos serviços hidráulicos».
Relativamente a estes dois diplomas, o Preâmbulo do DL 383/77, de 10-09 (aprova a Lei Orgânica da Direcção Geral dos Recursos e Aproveitamento Hidráulicos) salienta que nos mesmos, “(…) notáveis para a época, são estabelecidas minuciosas normas sobre a classificação das águas, classificação e demarcação de cursos de água navegáveis e flutuáveis e não navegáveis nem flutuáveis e de bacias hidrográficas, ordenamento e custeamento das obras hidráulicas, conservação, melhoramento ou aproveitamento dos cursos de água, organização da sua execução e repartição dos respectivos encargos, uso, conservação e polícia das águas, taxas, emolumentos e multas, licenças para obras hidráulicas, organização dos serviços, seus fundos e receitas próprias e competência e disciplina do pessoal”.
Pode ler-se ainda no mesmo Preâmbulo que a referida legislação “actualizada e completada pelo Decreto n.º 5787-IIII, de 10 de Maio de 1919, conhecido por «Lei de águas», na parte respeitante ao domínio das águas e ao regime do seu aproveitamento por concessão, e pelo Decreto n.º 6287, de 20 de Dezembro de 1919, que aprovou o Regulamento do aproveitamento das águas públicas por concessão, ou seja o Regulamento da lei de águas”, constitui ainda o corpus da legislação sobre serviços hidráulicos.
Todavia, esta legislação não se reportava nem tratava especificamente do tema do reconhecimento de propriedade privada sobre margens de águas públicas, o que apenas veio a acontecer com o DL n.º 468/71, de 05-11, ao prever o reconhecimento de direito de propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens de águas públicas pertencentes ao domínio público hídrico, estabelecendo uma presunção ilidível de dominialidade (cfr. artigo 8.º)[4].
A este respeito refere o preâmbulo daquele diploma:
“Já quanto ao reconhecimento da propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens públicas se tocou num aspecto mais relevante, que, sem envolver modificação profunda do direito vigente, beneficia contudo num ponto importante, aliás, com inteira justiça, os proprietários particulares: quando se mostre terem ficado destruídos por causas naturais os documentos anteriores a 1864 ou a 1868 existentes em arquivos ou registos públicos, presumir-se-ão particulares os terrenos em que relação aos quais se prove que, antes de 1 de Dezembro de 1892, eram objecto de propriedade ou posse privadas. Aliviando deste modo o peso do ónus da prova imposto aos interessados, vai-se ao encontro da opinião que se tem generalizado no seio da Comissão do Domínio Público Marítimo, dada a grande dificuldade, em certos casos, de encontrar documentos que inequivocamente fundamentem as pretensões formuladas à Administração Dominial. Não pode, no entanto, esquecer-se que esta orientação, baseada em princípios gerais firmemente assentes na nossa ordem jurídica - o princípio da não retroactividade das leis e o princípio do respeito pelos direitos adquiridos - não deverá prejudicar, na prática, os interesses gerais da colectividade, em razão dos quais, precisamente, se foi criando e se mantém na titularidade do Estado o domínio público hídrico. (…)”.
A Lei n.º 54/2005, de 15-11[5], veio revogar este diploma e no seu artigo 15.º, reportando-se à matéria do reconhecimento de propriedade privada sobre margens de águas públicas, sob a epígrafe Reconhecimento de direitos adquiridos por particulares sobre parcelas de leitos e margens públicos, preceitua:
“1 - Compete aos tribunais comuns decidir sobre a propriedade ou posse de parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, cabendo ao Ministério Público, quando esteja em causa a defesa de interesses coletivos públicos subjacentes à titularidade dos recursos dominiais, contestar as respetivas ações, agindo em nome próprio.
2 - Quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis deve provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868.
3 - Na falta de documentos suscetíveis de comprovar a propriedade nos termos do número anterior, deve ser provado que, antes das datas ali referidas, os terrenos estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa.
4 - Quando se mostre que os documentos anteriores a 1864 ou a 1868, conforme os casos, se tornaram ilegíveis ou foram destruídos, por incêndio ou facto de efeito equivalente ocorrido na conservatória ou registo competente, presumir-se-ão particulares, sem prejuízo dos direitos de terceiros, os terrenos em relação aos quais se prove que, antes de 1 de dezembro de 1892, eram objeto de propriedade ou posse privadas.
5 - O reconhecimento da propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de águas navegáveis ou flutuáveis pode ser obtido sem sujeição ao regime de prova estabelecido nos números anteriores nos casos de terrenos que:
a) Hajam sido objeto de um ato de desafetação do domínio público hídrico, nos termos da lei;
b) Ocupem as margens dos cursos de água previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 5.º, não sujeitas à jurisdição dos órgãos locais da Direção-Geral da Autoridade Marítima ou das autoridades portuárias;
c) Estejam integrados em zona urbana consolidada como tal definida no Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, fora da zona de risco de erosão ou de invasão do mar, e se encontrem ocupados por construção anterior a 1951, documentalmente comprovado.
6 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, compete às Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira regulamentar, por diploma das respetivas Assembleias Legislativas o processo de reconhecimento de propriedade privada sobre parcelas de leitos e margens públicos, nos respetivos territórios.”[6].
O confronto deste diploma com o diploma antecedente revela que se manteve a presunção de propriedade do Estado sobre o domínio público marítimo, mas foram ampliadas as possibilidades de ilisão dessa presunção e reconhecimento da propriedade privada sobre terrenos inseridos nesse domínio, sem recurso a probatio diabolica da propriedade anterior a 1864 ou 1868.
As novas alterações visaram estabelecer equilíbrio entre o respeito pelos direitos adquiridos dos particulares e a necessidade de as margens de águas públicas, por condicionarem a utilização dessas águas, integrarem o domínio público, ou seja, ficarem sujeitas a um regime especial de direito público caracterizado por um reforço das medidas de protecção das coisas que o integram.
No caso, sem colocar em causa a realidade fáctica fixada na sentença sobre a qual a procedência da acção se mostra sustentada, o Recorrente considera que a Autora não logrou ilidir a presunção de dominalidade pública quanto os pretendidos prédios, afirmando que não foi feita a prova exigida pelo artigo 15.º, n.ºs 2, 3 e 4, da Lei 54/2005.
Entende o Réu que a Autora não se encontrava dispensada daquela exigência probatória por o regime simplificado previsto no n.º 5 do artigo 15.º não assumir aplicação dado estar em causa curso de águas fluviais (e não águas do mar) sujeito à jurisdição dos órgãos locais da Direcção-Geral da Autoridade Marítima e da autoridade portuária; por isso, concluiu, sem possibilidade de integração nas alíneas b) e c) daquele preceito.
Este posicionamento, além de coartar o adequado alcance da norma constante da alínea c) do n.º 5 do artigo 15.º da Lei 54/2005, ignora os factos apurados.
Por outro lado, o Réu ao defender a ausência de prova exigida pelos n.ºs 2 a 4 do artigo 15.º, reconduz a questão aos efeitos da expropriação dos prédios uma vez que defende que através da mesma os referidos imóveis estiveram na propriedade pública do Estado e, como tal, segundo o Ministério Público, claudica o pressuposto de os prédios se manterem, de forma ininterrupta, na propriedade ou posse privada ou comum desde data anterior a 31/12/1864 (cfr. conclusões 19 a 27, particularmente a 22).
Vejamos.
4.1 Conforme resulta da sentença recorrida, o tribunal a quo considerou demonstrada a titularidade privada dos referidos prédios desde data anterior a 31-12-1864[7] e, nessa medida, preenchidos os requisitos do artigo 15.º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 54/2005, justificando da seguinte forma:
“(…) constata-se que os prédios em causa foram objeto de aforamento com laudémio de quarentena, o que só por si implica que os mesmos não integravam o domínio público à data da entrada em vigor do Código de Seabra que ocorreu em 22 de Março de 1868. Com efeito, tais encargos enfiteuticos foram abolidos para os contratos de futuro pelo art.º 1657 º do mencionado Código.
Acresce que da factualidade dada como assente, podemos ainda concluir que os prédios em causa faziam parte de uma ampla propriedade da Câmara Municipal do … - terreno de prazo dado de aforamento - desde data não concretamente apurada, mas sempre anterior a 1862, uma vez que por escritura desse ano, a enfiteuse foi renovada a BB, que a houve por sucessão testamentária.
Assim sendo, e de harmonia com o regime jurídico acima explanado, os prédios em causa presumem-se particulares.
E, ao que deixamos dito, não obsta o facto dos terrenos em apreço terem sido alvo de expropriação.”
Este entendimento, sem prejuízo de alguma dificuldade de interpretação da matéria de facto provada, atenta a complexidade e diversidade de denominações e diferentes identificações dos prédios e suas confrontações ao longo dos últimos cerca de 150 anos, encontra respaldo nos factos provados (que, sublinhamos, não foi minimamente colocada em causa no recurso), em especial, da factualidade consignada em 17, 18, 19, 23, 29, 31, como se mostra explicitado na motivação da matéria de facto ínsita na sentença[8], que se revela particularmente elucidativa permitindo mergulhar no longo historial da condição jurídica e localização dos prédios actualmente registados em nome da Autora em termos de corresponderem a imóveis que, na data legalmente relevante, eram, por título legítimo, objecto de propriedade particular (conforme impõe o artigo 15.º, n.º 2), ou estavam na posse em nome próprio de particulares (artigo 15.º, n.º 3).
A relevância para a compreensão da realidade fáctica em causa, atenta a particularidade da situação sob apreciação, autoriza a que se proceda à seguinte transcrição da motivação fáctica levada a cabo pelo tribunal a quo:
“Quanto à antiguidade do direito de propriedade privada sobre os prédios em causa tivemos, sobretudo, por relevante o que consta da escritura de renovação de prazo a BB, cuja transcrição se encontra junta a fls. 77v a 78v dos presentes autos, na qual se descreve o prazo foreiro, quanto a áreas, funções e obrigações, constando ainda do aludido documento que o mesmo foi renovado por ter ficado em testamento a BB por deixa testamentária de RR e irmão.
Ora, encontrando-se esta escritura de renovação de prazo, datada 27 de março de 1862, é evidente que o regime foreiro é ainda mais antigo, tanto mais que na mesma escritura se alude a “(...) terra de prazo sita entre a rua dos …., …. e a rua do ….., cujo terreno tem muitas edificações pertencentes a diferentes cazeiros subemphyeutas (…)” e ainda que “em data de Desoito de Agosto de mil oitocentos torgada Provisão de Sua Magestade a fim de poder subemprazar-se”; bem como que “ (...) a maior parte do dito terreno se achava bemfeitorisado e com edificações, que pertenciam a numerosos subemphiteutas;” que “no terreno emprazado não poderá ser imposto censo ou hypotheca, vendê-lo, empenhá-lo, doa-lo e troca-lo ou de qualquer maneira alheá-lo ou onerá-lo sem licença e authoridade da Camara (…)” e que “(…) todas as pessoas que no prazo houverem de suceder serem obrigadas a ir à secretaria da Municipalidade declararem os seus nomes e títulos de successão a fim de serem admitidas como taes (…)”.
Do exposto, não podemos deixar de concluir verificado o emprazamento e subemprazamento do terreno municipal em apreço, sendo este uma forma que a Câmara Municipal do …. utilizou para a urbanização daquela zona da cidade do ….
Quanto à delimitação do foro renovado pela aludida escritura à aludida BB e das áreas do dito foro dadas em subenfiteuse revelou-se mais uma vez absolutamente relevante a análise da prova documental, desta feita coadjuvada pela prova testemunhal produzida em sede de audiência final, sendo que, quanto a esta, mostrou-se particularmente esclarecedor e conhecedor o depoimento da testemunha XX, técnico do Município do … no respectivo departamento de cadastro, o qual por via do exercício dessas funções prestou um depoimento informado, claro e devidamente suportado, nomeadamente, no levantamento topográfico certificado pela Câmara Municipal do ….. e junto aos autos na sessão de audiência final de 18.09.2019, bem como na informação técnica da Direcção Municipal do Urbanismo da Câmara Municipal de fls. 122 e nas representações fotográficas e de imagem do local onde se situam os prédios, antes e depois das obras de alargamento da marginal do .... na cidade do …. e o Lavadouro das …. constantes de fls. 122v a 123.
Esta testemunha afirmou de forma assertiva e convicta que a Rua dos …. situava-se onde actualmente se encontra a Rua …. e que a mesma se desenvolvia até ao encontro com a Calçada das …., antes denominada Calçada da ….., tendo ainda acrescentado, quanto à caracterização das parcelas ora em causa que as mesmas tiveram construções até aos anos 40/50; que, entretanto, as mesmas se converteram em ruínas, encontrando-se os prédios devolutos e que não os encontrou no cadastro do património municipal, não se lhe oferecendo quaisquer dúvidas em os situar no local referenciado na petição inicial.
Tivemos ainda em atenção o Auto do reconhecimento, medição e confrontação do terreno de prazo, no qual se refere que o mesmo se situa entre a rua dos …, …. e a rua do …., e ainda, quanto às confrontações prediais norte e nascente, que o terreno estrema, do lado norte com a “rua do …. e rampa que desse arruamento vai para os Lavadouros das ….”, e do nascente com a “quinta do …. pertencente a T....., e com o caminho que desce dos Lavadouros das …. para a mesma quinta”.
Acresce que relativamente à extrema sul do terreno de prazo, e constando do respectivo auto de delimitação diz que “confronta com a rua dos ….”, constatamos que o levantamento topográfico certificado pela Câmara Municipal do …. representa a posição e traçado da rua antiga dos …; tudo conforme o depoimento da testemunha XX, como vimos supra.
Da conjugação da prova ora sumariamente descrita resulta, pois, evidente que os prédios em causa, todos sitos junto à Calçada da …., hoje Calçada das …., para a qual dão do lado poente e sul, integravam a propriedade municipal, dada de prazo a BB.
No que importa à integração do prédio 16981 no prédio 16980, resulta do exame da documentação a eles atinentes que os dois terrenos localizavam-se a poente da Calçada das …. e estavam incluídos no terreno foreiro de que era senhora directa a Câmara Municipal do …. e enfiteuta a BB.
Assim, da escritura de 9 de Março de 1877 que serviu de base à descrição nº …., EE adquiriu a FF um terreno próprio para edificação em virtude de o dito EE andar a “edificar uma casa no terreno aqui comprado” (ou seja na dita escritura) e “em um outro terreno seu” e que no registo ficou assim medido e confrontado: “Prédio sito na Rua da ….., freguesia da …. tem de largo de nascente a poente quatro metros e noventa centímetros e de cumprido do norte a sul sete metros e setenta centímetros, confronta do norte com EE, do nascente com FF, do sul com a rua e do poente com margem do rio ....”.
Por outro lado, pela escritura de 4 de Outubro de 1875 que serviu de base ao registo do …. EE tinha já adquirido a II, um prédio composto “d´uma casa e pertenças sita na Calçada da … nº … antigamente nº …, com as seguintes confrontações: do norte com herdeiros de GG, de nascente com os ditos herdeiros GG e Rua da .. e do poente com II”.
Atentas as confrontações ora descritas dos dois prédios em causa, vê-se que as áreas dos mesmos confrontavam entre si pelo norte e nascente quanto ao … e correspectivamente pelo sul e poente relativamente ao ….
E, tanto assim é, que do documento cuja transcrição consta de fls. 76 e seguintes, se pode retirar que o prédio …, quer no registo inicial quer na escritura que lhe serviu de base, é dado a estremar do norte com EE, bem como que o prédio …. é dado a confrontar com o prédio …, pelo norte e nascente, com herdeiros de GG, sendo que no registo do …. aparece como vendedora deste apenas FF e na condição de viúva (o GG era marido daquela como os documentos dos autos revelam).
Acresce que no registo do ….., FF continua a figurar como confinante pelo nascente com este prédio, que vendeu a EE.
Se a dita FF apenas vendeu, como consta dos documentos, a área onde EE andava indevidamente a construir, tal significa que a mesma era proprietária de mais área a nascente da parcela vendida, e por isso continuou a estremar com ela por esse lado.
Ademais, emerge claro dos documentos, nomeadamente, do teor dos registos dos prédios … e …. que as duas áreas se localizavam a jusante da Calçada das ….., deitando para este arruamento.
Ora, na área inicialmente descrita pelo ….., a frente do mesmo para a rua era apenas sete metros e setenta centímetros, sendo que, em 1891 e sem qualquer menção específica a aumento de área, é registada a edificação sobre o terreno de um prédio com os nºs de policia … a …. para a Calçada da …... Atenta tal numeração é evidente que o prédio ali construído excedeu a área do aludido prédio, estendendo-se com toda a segurança para a parcela contígua e que o crescimento do …. se tenha feito à custa do …...
À mesma conclusão se chega analisando a evolução da toponímia policial do Prédio …..
Com efeito, aquando do registo, na escritura de 9 de Março de 1877 que lhe serviu de base e no próprio registo, é o prédio referido como um terreno próprio para edificação não se assinalando qualquer número de polícia. Mas aquando da apresentação na Conservatória do documento sob n º13 do diário de 8 de outubro de 1891, foi averbada no registo a edificação sobre o terreno de moradas de casas com os nºs de policia nºs …. a …. para a Calçada da … e aquando da remição, por alvará nº 548 de 5 de Junho de 1947, da porção de foro do ónus enfitêutico (do prazo feito pela Camara Municipal do … a BB em 27 de março de 1862) que impendia sobre o prédio nº …., refere-se já como sito na Calçada da …. n.º … a …., tudo conforme documentos de fls. 43 a 44v e transcrição de fls. 76 a 77 dos presentes autos.
Posteriormente, no averbamento n.º 3 e a requerimento de NN, foi declarado que o prédio … deixou de ser foreiro à Camara Municipal do …., visto mostrar-se remido, conforme alvará nº 548 passado em 5 de Junho de 1947, referindo-se como igualmente sito na Rua da … e aquando da apresentação nº 1 do Diário de 29 de Julho de 1954, diz-se que o prédio é constituído por uma casa de cinco pavimentos ou seja rez-do-chão, armazém, loja ampla, dois andares e águas furtadas e mais pertenças, sito na Calçada da …. com os nºs …. a …., com expressa indicação registal de que corresponde aos antigos ….. a …., e ainda antes … a …. (também conforme transcrição do documento nº 11 junto com a petição inicial).
Se analisarmos a evolução sofrida pelo Prédio …., constata-se que aquando da venda a EE por II, ou seja em 1875 é este prédio referido como casa e pertenças sita na Calçada da …. e tinha o nº …., antigamente nº …. e aquando do registo do …., ou seja em 25 de dezembro 1877, este prédio foi igualmente descrito como “casa sobradada e pertenças sita na Rua da …. n.º …., e teve o n.º ….”; sendo que aquando da apresentação sob o n.º 6 do diário de 4 de agosto de 1885, é dito que este mesmo prédio ficou descrito como “ tem actualmente os n.ºs …. a ….” e as alusões notariais ou registais ao prédio … acabam, falando-se a partir de então, apenas do nº …...
No que concerne à correlação do prédio ….. como prédio ….., importa referir que da descrição predial do prédio nº …. junta a fls. 21v a 22 dos presentes autos consta que ao mesmo corresponde o artigo matricial ….. da União das Freguesias de …., …., ….., …., ….. e ….., referindo-se igualmente nesse documento de registo que o dito artigo proveio do artigo … da freguesia de ….., por mudança de freguesia.
E na certidão predial relativa ao artigo de matriz ….. da referida União das Freguesias, diz-se que o mesmo é originário do artigo ….. da extinta freguesia da …..
Deste modo, a alteração de número de matriz ficou unicamente a dever-se a mudanças administrativas na área de territórios paroquiais – a primeira levando à passagem da freguesia de … para a da …., e a segunda pela extinção da freguesia da … para a mencionada União de Freguesias, sem que tal haja, porém, interferido com a localização, composição ou outra especificidade do prédio (cfr. documento de fls. 22v a 23).
Veja-se ainda que o prédio nº ….., é descrito no registo como “morada de casas sobradadas que se compõe de um andar, armazém e mais pertenças, sita na Rua dos …, nº …., da freguesia de …. ( )” e apenas uma parcela de terreno edificado que fazia parte do prédio n.º …., foi objecto de expropriação (conforme documento 18 junto com a petição inicial e cuja transcrição consta de fls. 80 a 83).
Por sua vez ao prédio …., resultante da parte expropriada do ….., que não foi incorporada no alargamento da via, são no registo actual dadas as seguintes confrontações: norte - Servidão e Câmara Municipal do ….., sul – Avenida ….. e Calçada das ….., nascente – EP - Estradas de Portugal SA, e poente – Servidão.
Ora, como já vimos, a testemunha XX, técnico municipal ligado ao cadastro do município e conhecedor do local e da documentação a ele atinente, confirmou que a Rua dos …. ligava com a Calçada das ….., sendo o encontro entre os dois arruamentos na zona junta ao rio.
De todo o exposto, resultou à evidência que os prédios em questão se situavam numa zona urbana consolidada e ocupadas por construção anterior a 1951.”
Acresce, no seguimento do que também foi concluído na decisão recorrida, que a matéria apurada em 38 - “Todos os aludidos prédios estremam entre si formando um contínuo predial e situam-se em zona urbana consolidada e foram ocupadas por construção anterior a 1951” – indica, igualmente, que a demonstração do reconhecimento da propriedade privada, ou seja, da exclusão do domínio público[9] é passível de ser feito por via do artigo 15.º, n.º 5, alínea c), da Lei n.º 54/2005, concluindo, por isso, pelo afastamento da presunção de dominialidade pública.
Relativamente a este aspecto, contrariamente ao defendido pelo Réu, entendemos não ocorrer fundamento para considerar não verificada esta modalidade de demonstração da titularidade privada com base na interpretação que faz da norma[10].
Perante a prova expressa de que os prédios em causa se situam em zona urbana consolidada (facto n.º 38), conforme se encontrava definida no artigo 2.º, alínea o), do RJEU[11], e de que eram ocupados por construção anterior a 1951 (factos provados n.º 12, 13, 14, 16 e 32), defende o Ministério Público que não se verifica o pressuposto da referida alínea - prédios fora da zona de risco de erosão ou de invasão do mar - uma vez que estão em causa águas fluviais e não águas do mar (cfr. conclusões 31 a 36 das alegações)[12].
Argumenta nesse sentido o Recorrente que à situação não podem ser aplicáveis as alíneas b) ou c) do n.º 5 do citado artigo 15.º (apenas o regime previsto nos seus n.os 2 a 4), por o curso de água em apreço estar sujeito a jurisdição das entidades marítimas – o que afasta a aplicabilidade da alínea b) – e não estar em causa águas do mar – o que afasta a aplicabilidade da alínea c)[13].
Trata-se, todavia, de uma interpretação que, para além do mais, descuida o fim visado com a introdução da actual redacção do referido artigo 15.º, que foi, sem dúvida, o de facilitar a prova da titularidade privada dos prédios presuntivamente integrados no domínio público hídrico.
Na verdade, não resulta, nem da letra nem do espírito da lei, que o legislador tenha pretendido “separar as águas” no que se refere aos âmbitos de incidência da alínea b) – cursos de água navegáveis não sujeitos às autoridades marítimas – e da alínea c) – águas do mar –, deixando por regular, rectius, por facilitar o regime de prova nos casos, como o presente, em que estão em causa prédios sitos na margem de rios que, não sendo águas do mar, estão sujeitos às autoridades marítimas.
Com a previsão da alínea b) do artigo em causa – que só se refere a parcelas de leitos ou margens de cursos de águas navegáveis ou flutuáveis não sujeitos às autoridades marítimas – não se pretendeu que ficasse excluída a possibilidade de prova da titularidade privada relativamente a todas as parcelas de cursos de água, nomeadamente, de rios navegáveis, que estivessem sujeitos às autoridades marítimas por não estarem abrangidos por águas do mar.
A possibilidade de prova da titularidade privada de parcelas de terreno abrangidas pela alínea c) não se circunscreve, pois, a terrenos abrangidos ou relativos a áreas referentes a águas do mar, desde logo, por não se descortinar esse elemento na previsão positiva da norma, sendo a referência a “zona de risco de erosão ou de invasão do mar” apenas mencionada como delimitador negativo ou como elemento excludente dessa possibilidade.
Ler na norma um outro elemento de exclusão do seu âmbito de aplicação, para além do que aí vem expresso, como seria o caso de parcelas junto a cursos de águas navegáveis sujeitos às autoridades marítimas por não serem abrangidos por águas do mar, seria extrair dela um sentido sem correspondência verbal, e, por isso, um resultado interpretativo vedado nos termos do artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil.
Tanto assim é que, conforme refere o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 326/15: “o legislador português (…) optou por admitir expressamente a existência de margens de propriedade pública e de margens de propriedade privada, condicionando a segunda a um regime de prova muito exigente, sob pena de tais margens se considerarem públicas e, por conseguinte, dominiais (cfr. o artigo 5.º da Lei n.º 54/2005). Dito de outro modo, porventura mais consonante como o pensamento legislativo, tolera-se o direito de propriedade privada sobre margens de águas públicas, muito embora tendo presente que, na falta de comprovação daquele direito, o relevo dos terrenos para o interesse público alavanca necessariamente a sua dominialidade, ou seja, a assunção da conveniência de uma afetação e destino públicos, e, logo, a recondução à propriedade de entes públicos.
Este regime jurídico persegue, como se perceciona, um equilíbrio entre, por um lado, o princípio do respeito pelos direitos adquiridos dos particulares, e, por outro, a conveniência de que as margens de águas públicas, por condicionarem a utilização dessas águas, integrem o domínio público, ou seja, estejam sujeitas um regime especial de direito público caracterizado por um reforço das medidas de proteção das coisas que o integram.
Por isso, mesmo quando o particular logre comprovar o seu direito de propriedade sobre margens de águas públicas, o legislador dispõe de diversos mecanismos para instituir a eventual afetação pública desses terrenos, tais como o direito de preferência em caso de alienação forçada ou voluntária, a expropriação e a constituição de servidões administrativas (cfr. os artigos 16.º e 21.º, da Lei n.º 54/2005)”.
Ora, no caso presente, sublinha-se, resulta da matéria de facto provada e vem referido na sentença, sem que tal tenha sido questionado pelas partes, que “Tais prédios situam-se na margem direita do Rio .... e pelas áreas que os mesmos possuem, é possível concluir que se ocupam os cinquenta metros a que o art.º 11º, nº 2 da Lei 54/2005 faz referência: as margens do rio.
Aliás é pacifico entre as partes que os mesmos se localizam numa zona cumulativamente influenciada pelas marés e em área de jurisdição da autoridade marítima, ex vi do Decreto-Lei n.º 335/98, de 03 de Novembro, e da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro.”.
Assim, na medida em que os prédios em causa nos autos estão abrangidos pelo domínio público fluvial, conforme resulta dos artigos 5.º, alínea a) e 11.º, n.º 2, da Lei n.º 54/2005, atenta a sua localização na faixa de 50 metros de largura da margem das águas navegáveis, e não resultando dos autos que estejam em “zona de risco de erosão ou de invasão do mar”[14], não se vislumbram fundamentos para excluir a possibilidade de se considerar demonstrada a titularidade privada, ao abrigo do artigo 15.º, n.º 5, alínea c), da Lei n.º 54/2005.
Tendo a Autora demonstrado estes elementos, também, por esta via, cabe concluir pelo afastamento da presunção de dominialidade pública.
5. Da integração dos prédios no domínio público por efeito da expropriação:
Pugna o Recorrente pela alteração do sentido decisório do tribunal a quo defendendo que, mesmo que se entenda demonstrada a titularidade privada dos prédios, nos termos e para os efeitos do artigo 15.º, da Lei n.º 54/2005, tal titularidade foi interrompida por efeito da expropriação desses prédios em favor da JAE, o que fez com que os imóveis integrassem o domínio público do Estado, tornando nulos os negócios posteriores por estarem em causa coisas fora do comércio jurídico.
A este respeito entendeu a decisão recorrida:
- “E, ao que deixamos dito, não obsta o facto dos terrenos em apreço terem sido alvo de expropriação.
Com efeito, as expropriações referidas nesta peça processual foram feitas ao abrigo da Lei de 26 de Julho de 1912.
Nos termos do art.º 6.º paragrafo 2, daquela lei, as expropriações necessárias à abertura ao alargamento e à regularização de vias públicas poderão abranger, além dos perímetros estritamente necessários àqueles fins, mais uma faixa anexa exterior de largura não superior a 50 metros.
Por sua vez, o art.º 7.º do mesmo diploma estabelecia que as referidas faixas de terreno uma vez expropriadas, serão postas à venda em “hasta pública talhadas no chão, regulares de dimensões e confinações, acomodadas às exigências de uma boa edificação urbana (...)”.
No caso, resulta que os terrenos expropriados pela Junta Autónoma das Estradas (JAE) no local em questão não foram integrados no uso viário e nunca chegaram a integrar o domínio público, tendo de permanecer no domínio privado a fim de ser alienados a particulares, o que nunca chegou a ser feito. E, posteriormente, a Junta Autónoma de Estradas, transmitiu ope legis, tais prédios para as entidades suas sucessoras na gestão das estradas nacionais, ficando na propriedade destas, conforme resulta do registo.
Neste sentido, veja-se a jurisprudência invocada pela autora na petição inicial.”.
Subscreveu-se, assim, na sentença o entendimento perfilhado pela Autora,[15].
Analisada a matéria de facto (interpretada à luz da convicção da matéria de facto supra transcrita), resulta que os prédios em causa nos autos foram objecto de expropriação (por volta do ano de 1960 como assinalado na sentença), sendo que não foram afectos ou destinados à circulação rodoviária, desde logo, por se situarem para além da margem do rio .... e da própria estrada da …., não obstante a sua construção ter sido a causa determinante da declaração de utilidade pública[16].
Na verdade, decorre da realidade factualidade provada que os prédios não se situam na área ocupada pela estrada da …. do …. (Estrada Nacional n,º …..), sendo antes confinantes com a mencionada via. Acresce que, pelo menos em relação a um dos prédios, ficou expressamente provado que a actual área de 112 m2 do prédio (no caso o prédio descrito sob o n.º …, correspondente à parcela n.º …), resulta da dedução de 89,50 m2 a uma primitiva área total de 201,50 m2, sendo que só essa área de 89,50 m2 excluída da descrição do prédio foi incorporada do domínio público rodoviário (cfr. facto provado n.º 9).
Assim, encontrando-se demonstrado que os prédios em causa não se encontram incluídos na referida via, nos termos dos mencionados artigos. 6.º paragrafo 2, e 7.º do regime das expropriações decorrente da Lei de 26 de Julho de 1912, correspondendo a uma “faixa anexa exterior de largura não superior a 50 metros” em relação à estrada, seriam susceptíveis de ser vendidos em hasta pública.
Em todo o caso, e para a questão a apreciar quanto à integração dos prédios no domínio público, mais do que considerar que tais parcelas correspondiam a uma faixa anexa em relação à estrada susceptíveis de venda em hasta pública (venda que nunca chegou a suceder), é determinar se foram destinadas ou afectas ao uso público.
Com efeito, tem-se entendido que “em regra, o ingresso do bem expropriado no domínio público apenas se consuma mediante a afectação do mesmo aos fins públicos que foram causa e justificação do aludido tipo de intervenção”[17].
Este princípio pode ser comprovado, nomeadamente, no âmbito de regime legal do DL n.º 110/2009, de 18-05[18] (no preâmbulo e n.º 7 da Base 7.ª), nos termos do qual se declara que os bens que não cheguem a ser afectados ao domínio público integram o património da concessionária estando em causa no que se reporta ao DL 374/2007, de 07-11, precisamente a E.P. - Estradas de Portugal, S.A. (“antecessora” da aqui Autora)[19]. Consequentemente, há que depreender que o domínio público do Estado só se verifica com a concreta afectação do imóvel ao fim que determinou a expropriação, ou seja, com a colocação da coisa a desempenhar a função que justifica a sua sujeição ao regime jurídico-administrativo da dominialidade pública[20].
Este entendimento mostra-se coerente com a noção de domínio público adoptada pela doutrina que, para além de diferentes classificações[21] , nomeadamente, em função da sua criação, distingue entre domínio público natural (por exemplo, o hídrico, o aéreo ou o mineiro) ou artificial (por exemplo, o cultural, o militar ou rodoviário), se afirma, desde logo, que nem todos os bens da Administração Pública integram o domínio público, o mesmo valendo, no caso presente, para a JAE, entidade pública expropriante dos prédios em causa nos autos que à data integraria a administração directa do Estado.
Conforme refere Ana Raquel Moniz, “se (…) o domínio público é definido de forma positiva, o domínio privado assume natureza residual: numa palavra, integram o domínio privado todas as coisas na propriedade da Administração Pública que se não incluem no domínio público (ou, se preferirmos, que não estão submetidas ao estatuto da dominialidade). (…) A necessária destrinça entre domínio privado e domínio público passa pela percepção da «funcionalidade» subjacente a cada um dos institutos: se hoje a propriedade privada não prescinde do exercício de uma função social, distingue-se claramente da propriedade pública, porquanto esta se assume integralmente funcionalizada, com todas as consequências que tal implica na delineação do respectivo objecto e dos poderes subjacentes.”[22].
O critério decisivo será, pois, o da função ou da afectação, podendo afirmar-se que, independentemente dos sucessivos regimes legais concretamente aplicáveis, vigora neste domínio a concepção de que, relativamente a bens que não integram o domínio público natural (como é o caso do domínio público rodoviário, ora em causa), o bem apenas fica sujeito ao regime especial de dominialidade pública se e na medida em que desempenhar uma função que, na perspectiva do legislador, é determinante da dominialidade[23] .
Neste sentido, é a própria Constituição da República Portuguesa que dispõe no artigo 84.º, n.º 1, alínea d), que pertencem ao domínio público as estradas, o que, de acordo com uma adequada interpretação dos preceitos legais aplicáveis permite concluir que no domínio público rodoviário se incluem quaisquer vias públicas (dos caminhos municipais às auto-estradas), as quais são compreendidas como universalidades, de forma a englobar também passeios, plantações, muros de sustentação, sinais de trânsito, postes de iluminação, obras de arte, túneis, e todas as coisas singulares imprescindíveis (ou, pelo menos úteis) ao desempenho da função determinante da dominialidade[24].
Nessa medida, aquilo que não se mostre imprescindível ao desempenho ou ao fim visado pelo acto de expropriação, ou se quisermos, aquilo que não seja afecto ao fim público visado pela causa determinante da expropriação, ficará no domínio privado da expropriante, ainda que a entidade expropriante seja o próprio Estado.
Entendemos, pois, ao contrário do que parece perfilhar o Réu, que o acto expropriativo não tem como consequência necessária ou automática o ingresso no domínio público de todo e qualquer bem, em particular quando este não foi afecto ao fim (público) a que se destinava.
Resultando dos autos que os prédios em questão não integram, nem algum modo se enquadram, no conceito de estrada ou rodovia acima referido (merecedor da qualificação constitucional de domínio público nos termos do artigo 84.º da Constituição da República Portugues), mas foram objecto de expropriação, sem que tenham sido integrados funcionalmente ou sido afectos a esse fim público, há que concluir que os mesmos não integraram o domínio público rodoviário.
Consequentemente, tal como considerado pela sentença, os prédios em causa nos autos não foram integrados no domínio público rodoviário por efeito da expropriação e foram validamente transmitidos para a aqui Autora.
Assim sendo, mostra-se prejudicada a apreciação da questão reportada à (in)existência de desafectação tácita do domínio público.
Improcedem, pois, as conclusões das alegações.
IV. DECISÃO
Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo Réu, sem prejuízo da isenção de que beneficia.
Lisboa, 23 de Março de 2021
Graça Amaral (Relatora)
Henrique Araújo
Maria Olinda Garcia
Tem voto de conformidade dos Senhores Conselheiros Adjuntos (artigo 15ºA, aditado ao DL 10-A/2020, de 13/3, pelo DL 20/2020, de 1/5).
Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).
_______________________________________________________
[1] Que estabelece a titularidade dos recursos hídricos e foi objecto das seguintes versões: Rect. n.º 4/2006, de 11-01, Lei n.º 78/2013, de 21-11, Lei n.º 34/2014 de 23-08 e Lei n.º 31/2016, de 23-08.
[2] Cfr. alínea a), do n.º 1, do artigo 84.º da Constituição da República Portuguesa.
[3] Conforme se mostra salientado no já citado acórdão do TC n.º 326/2015, “o domínio público está associado a um regime jurídico de direito público derrogatório da propriedade privada - o que, naturalmente, não é inócuo do ponto de vista jurídico-constitucional, sobretudo no quadro de uma economia de mercado. Assim se explica que, subjacente à sujeição legal de uma dada categoria de bens ao domínio público e à consequente afirmação da propriedade pública sobre a mesma, devam estar fundamentos que atestem a indispensabilidade ou, pelo menos, a elevada conveniência dessa subordinação à satisfação de certo interesse público, tendo em conta que o legislador dispõe de meios alternativos para a consecução desse escopo, tais como as servidões administrativas e outras restrições de utilidade pública (cfr. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª edição revista e atualizada, 2007, pp. 1004, Jorge MIRANDA/Rui MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo II, 2006, p. 81 e ss., e José Pedro FERNANDES, ob. cit., p. 179).”
[4] Nos termos do qual “1 - As pessoas que pretendam obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis devem provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objecto de propriedade particular, ou comum antes de 31 de Dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de Março de 1862.
2 - Na falta de documentos susceptíveis de comprovar a propriedade dos terrenos nos termos do n.º 1 deste artigo, presumir-se-ão particulares, sem prejuízo dos direitos de terceiros, os terrenos em relação aos quais se prove que, naquelas datas, estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa.
3 - Quando se mostre que os documentos particulares anteriores a 1864 ou a 1868, conforme os casos, se tornaram ilegíveis ou foram destruídos por incêndio ou facto semelhante ocorrido na conservatória ou registo competente, presumir-se-ão particulares, sem prejuízo dos direitos de terceiros, os terrenos em relação aos quais se prove que, antes de 1 de Dezembro de 1892, eram objecto de propriedade ou posse privadas.
4 - Não ficam sujeitos ao regime de prova estabelecido nos números anteriores os terrenos que, nos termos da lei, hajam sido objecto de um acto de desafectação”.
[5] Com as novas versões por efeito das alterações decorrentes da Declaração de Rectificação n.º 4/2006, de 11/01 e pelas Leis n.º 78/2013, de 21-11 e 34/2014, de 19-06.
[6] A justificação deste novo regime jurídico, que eliminou a fixação de prazo para a propositura da acção de reconhecimento da propriedade privada sobre margens de águas públicas, pode encontrar-se na Exposição de Motivos do Projecto de Lei n.º 557/XII/3ª.: “(...) Neste contexto, justifica-se, por isso, repor a possibilidade de os titulares do direito de propriedade sobre parcelas de terrenos de leitos e margens de águas navegáveis e flutuáveis anterior a 31 de dezembro de 1864 ou, no caso de arribas alcantiladas, a 22 de março de 1868 instaurem, a todo o tempo, as ações judiciais para reconhecimento dos seus direitos. Por outro lado, constata-se que a exigência de prova de propriedade privada reportada às datas atrás referidas pode revelar-se, em certos casos, excessiva. Trata-se, nomeadamente do caso de terrenos situados em zonas urbanas consolidadas com construção anterior a 1951 (data a partir da qual passou a ser genericamente exigido, pelo Regulamento Geral das Edificações Urbanas, o licenciamento municipal de construções dentro dos perímetros urbanos e nas zonas rurais de proteção) quando situados fora de zona de risco, que constitui a preocupação fundamental deste regime, ou das margens de águas interiores não sujeitas à jurisdição marítima, pois é nestas últimas que incidem com maior acuidade os valores da segurança de pessoas e bens e da proteção da natureza e do ambiente, subjacentes à tutela da dominialidade: nestes casos, mostra-se adequada a dispensa de prova da propriedade anterior a 1864 ou 1868” (acessível:https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063446f764c324679595842774f6a63334e7a637664326c7561).
[7] Data relevante por corresponder ao Decreto com força de lei de 31 de Dezembro de 1864, nos termos do qual passaram a considerar-se do domínio público imprescritível os rios navegáveis e flutuáveis, com suas margens, canais e valas, portos artificiais e docas existentes ou que de futuro se viessem a construir, bem como os portos de mar e praias.
[8] Enquanto elemento relevante para interpretação da sentença.
[9] Conforme recorda o acórdão do TC n.º 326/15, a respeito da alteração da Lei n.º 54/2005 pela Lei n.º 34/2014, de 19-06, esta facilitação da prova foi justificada na Exposição de Motivos do Projecto de Lei n.º 557/XIII/3.ª, da seguinte forma: “(…) Por outro lado, constata-se que a exigência de prova de propriedade privada reportada às datas atrás referidas pode revelar-se, em certos casos, excessiva. Trata-se, nomeadamente do caso de terrenos situados em zonas urbanas consolidadas com construção anterior a 1951 (data a partir da qual passou a ser genericamente exigido, pelo Regulamento Geral das Edificações Urbanas, o licenciamento municipal de construções dentro dos perímetros urbanos e nas zonas rurais de proteção) quando situados fora de zona de risco, que constitui a preocupação fundamental deste regime, ou das margens de águas interiores não sujeitas à jurisdição marítima, pois é nestas últimas que incidem com maior acuidade os valores da segurança de pessoas e bens e da proteção da natureza e do ambiente, subjacentes à tutela da dominialidade: nestes casos, mostra-se adequada a dispensa de prova da propriedade anterior a 1864 ou 1868”.
[10] Que dispõe: “O reconhecimento da propriedade pocorrerrivada sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de águas navegáveis ou flutuáveis pode ser obtido sem sujeição ao regime de prova estabelecido nos números anteriores nos casos de terrenos que: (…) c) Estejam integrados em zona urbana consolidada como tal definida no Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, fora da zona de risco de erosão ou de invasão do mar, e se encontrem ocupados por construção anterior a 1951, documentalmente comprovado.”.
[11] Nos termos do referido preceito, na redação aprovada pelo DL n.º 555/99, de 16-12, para efeitos do referido diploma entendia-se como «Zona urbana consolidada», a zona caracterizada por uma densidade de ocupação que permite identificar uma malha ou estrutura urbana já definida, onde existem as infraestruturas essenciais e onde se encontram definidos os alinhamentos dos planos marginais por edificações em continuidade.
[12] De acordo com o Guia de Apoio sobre a Titularidade dos Recursos Hídricos, entende-se por faixas de risco: “As faixas paralelas ao litoral, identificadas nos POOC, destinadas à salvaguarda das áreas sujeitas aos fenómenos erosivos em litoral de arriba e arenoso face à ocupação humana existente, bem como à prevenção desses impactos na evolução global dos sistemas costeiros” - https://apambiente.pt/_zdata/Divulgacao/Publicacoes/Guias%20e%20Manuais/Guia_RH_setembro2014.pdf
[13] Cfr. conclusão 35.ª das alegações.
[14] Com efeito, dos elementos dos autos não é possível aferir se os prédios em causa estariam, nomeadamente, integrados numa faixa de protecção identificado num Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) que levasse à conclusão de se encontrarem em tal zona de risco. Todavia, o ónus da sua demonstração, mesmo que decorrente de eventual delimitação legal, incumbiria ao Réu.
[15] Remetendo inclusive para a jurisprudência por citada na petição, sendo indicados nas contra alegações os acórdãos da Relação do Porto de 24-11-1983 e do STJ de 06-12-1984.
[16] Conforme mapas e fotografias aéreas juntos com os articulados.
[17] Parecer n.º 18/2010 do Instituto de Registos e Notariado - https://www.irn.mj.pt/IRN/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2010/p-r-p-18-2010-sjc-ct/downloadFile/file/ctrp018-2010.pdf?nocache=1318000063.97.
[18] Diploma que Procede à primeira alteração ao Decreto-Lei n.º 374/2007, de 7 de Novembro, que transforma a E. P. - Estradas de Portugal, E. P. E., em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, e à segunda alteração ao Decreto-Lei n.º 380/2007, de 13 de Novembro, que atribui à EP - Estradas de Portugal, S. A., a concessão do financiamento, concepção, projecto, construção, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional e aprova as bases da concessão. A tal respeito consta do seu preâmbulo: “(…) clarificou-se o regime dos bens adquiridos no âmbito de um processo de expropriação que não venham a integrar o domínio público. Uma vez que cabe à concessionária a condução das expropriações, bem como suportar os custos inerentes, deve ficar claro que as parcelas de terreno que não chegam a ser afectadas ao domínio público integram o património da concessionária.”
[19] Segundo o artigo 8.º, n.º 5, do referido diploma, “É atribuída à EP - Estradas de Portugal, S. A., a administração dos bens dos domínios público ou privado do Estado, cuja aquisição resulte de processo expropriativo em que a entidade expropriante seja a EP - Estradas de Portugal, S. A., uma concessionária ou uma subconcessionária de infra-estruturas rodoviárias.”.
[20] Na declaração de voto ao referido Parecer a vogal Maria Madalena Rodrigues Teixeira refere “Quanto ao regime dos bens adquiridos no âmbito do processo de expropriação, o Decreto-Lei n.º 110/2009, de 18 de Maio, no preâmbulo e na redacção dada ao artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 374/2007, de 7 de Novembro, declara que os bens que não cheguem a ser afectados ao domínio público integram o património da concessionária, de onde poderá depreender-se que o domínio público do Estado só se verifica com a concreta afectação do imóvel ao fim que terminou a expropriação, ou seja, com a colocação da coisa a desempenhar a função que justifica a sua sujeição ao regime jurídico-administrativo da dominialidade pública. Como «a classificação legal de um determinado tipo de coisas como integrantes do domínio público não exige que as mesmas, antes de se encontrarem ao serviço da função pública visada, hajam necessariamente de se encontrar na propriedade da Administração»5 , parece, em face do normativo referido, que a coisa pertencerá à entidade que suportou os custos da sua aquisição e que a transferência da propriedade para a entidade concedente só ocorrerá no momento em que se der a afectação. Se essa afectação não chegar a ocorrer, terá a entidade concessionária, a cujo património pertence a coisa expropriada, de observar os deveres resultantes do Código das Expropriações, e sublinhados nas Bases da concessão da rede rodoviária nacional, aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 380/2007, de 13 de Novembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 110/2009, designadamente os que concernem aos direitos de reversão e de preferência.”.
[21] Cfr. Diogo Freitas do Amaral e José Pedro Fernandes, Comentário à lei dos terrenos do domínio hídrico – DL 468/71, de 5 de Novembro, Coimbra Editora, 1978, p. 32 e acórdão do Tribunal Constitucional n.º 131/03, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20030131.html
[22] Direito do Domínio Público, Tratado de Direito Administrativo Especial, volume V, Coordenadores Paulo Otero e Pedro Gonçalves, Almedina, pp. 17- 18.
[23] Ana Raquel Moniz, obra citada, p. 74, nota 172, in fine.
[24] Ana Raquel Moniz, obra citada, pp. 73-74, referindo-se a diversos diplomas legais que definem o momento da transferência da obra para o domínio público.